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Recepção: 15 Março 2013
Aprovação: 26 Agosto 2013
DOI: https://doi.org/10.1590/2316-91412013120016903
Resumo: O artigo apresenta um esboço das produções historiográficas referentes ao tema da administração, direito e justiça na América portuguesa. Busca definir as potencialidades e os domínios de uma história da justiça, considerando suas relações com áreas já consagradas da historiografia.
Palavras-chave: Justiça, historiografia, América portuguesa.
Abstract: This paper aims to present a sketch of the historiographical productions about the subject of the administration, law and justice in the Portuguese America. It searchs to define the potencials and the domains of a history of justice, considering its relationships to fields already established in the historiography.
Keywords: Justice, historiography, Portuguese America.
O objetivo deste artigo é fazer uma sondagem das produções historiográficas concernentes ao tema da justiça na América portuguesa, buscando distinguir seu campo específico de investigação. Não se trata de um "balanço geral", caracterizado por Horst Waltter Blancke como um esforço de proporcionar um levantamento bibliográfico completo acerca de um determinado domínio ou tema da história.1 Não é esse o objetivo e nem a pretensão do presente artigo. São muitos os trabalhos produzidos acerca da administração, do direito e da justiça no ambiente colonial.
Há de se considerar, contudo, que, para além do caráter de inventário, um "balanço geral" tem a finalidade de apresentar uma visão panorâmica do estado das pesquisas, sistematizando-as e organizando-as em campos específicos do conhecimento e traçando um panorama das perspectivas analíticas.2 Muito embora relacione diversos estudos, não é a ambição deste exame um levantamento exaustivo da produção historiográfica acerca do tema, o que, se não justifica, ao menos explica sensíveis ausências. Tampouco é intuito abarcar cada um dos temas em sua totalidade, posto que tal feito seria excessivo, senão improdutivo, para o fim que importa aqui: promover uma prospecção historiográfica com a finalidade de circunscrever um campo de análise para a história da justiça, distinguindo algumas das questões centrais que a perpassa, os pontos de intersecção com outras áreas afins, seus objetivos e possibilidades metodológicas. Em função dessa sistematização, este artigo pode ser entendido como uma sondagem historiográfica acerca da justiça e das áreas contíguas do direito e da administração na América portuguesa.
Será apresentado um esboço dos principais debates e questões em torno dos quais tem girado a historiografia do direito, da administração e da justiça. Este balanço em nada pretende ser geral, mas, nem por isso, será parcial, no que tange aos partidarismos cegos que constroem suas críticas na oposição fácil entre o novo e o velho, o que pouco contribui para o efetivo desenvolvimento do conhecimento.3
Além da dificuldade de tratar o conjunto da produção, a proposta aqui apresentada esbarra em uma questão teórica: a imprecisão dos domínios de uma história da justiça, cujo campo, embora fértil, ainda está por ser arroteado. O tamanho da tarefa, certamente, excede os limites deste texto, mas não desabona a proposta que fica ao menos encetada. Nesse sentido, busca-se uma análise das concepções de justiça capazes de contribuir com a delimitação dos contornos de uma história que segue paralela à da administração, do direito e da sociedade. Concepções de direito e justiça instituídas de historicidade e que devem ser consideradas na definição das bases de um campo de investigação dedicado a esclarecer os amplos fatores intervenientes nas formas dilatadas de litígio e conflito social.4 Conflitos nem sempre pautados por um direito escrito e/ou pelos procedimentos processuais dos auditórios.
Não obstante suas especificidades, justiça, administração e direito possuem fronteiras porosas e convergem na infinitude das questões de que tratam. Aqui, algumas dessas questões serão abordadas ao longo da exposição das vertentes analíticas que norteiam a produção historiográfica nos referidos campos. São questões candentes que envolvem o ordenamento e a dominação social, o Antigo Regime e o papel e constituição do Estado na modernidade.5 Ao fim do artigo, apresenta-se um pouco das contribuições historiográficas mais recentes, com especial destaque para a produção de e sobre Minas Gerais, região relevante econômica e politicamente ao mundo português, cujo rico enredo se escreveu em meio à imposição e ao conflito, em um processo de institucionalização inscrito nas vagas das alterações setecentistas do direito e da política. Por meio dessa historiografia, ao fim do artigo, distinguem-se algumas das potencialidades metodológicas e desafios impostos à investigação, com vistas a contribuir com o debate atual e com o empenho na construção de uma história da justiça.
Por uma história da justiça: precedentes, definições e limites
Enquanto a administração e o direito são domínios consolidados e bem visitados na história, o mesmo parece não ocorrer com a justiça, apesar da contribuição valiosa de autores como Paolo Prodi, Antonio Manuel Hespanha, Silvia Hunold Lara, Joseli Maria Nunes Mendonça e Arno e Maria José Wheling, entre outros.6 O fato é que, no mais das vezes, a justiça é considerada, de forma muito automática e deletéria, um dos braços da administração ou do direito.7 Qualquer tentativa de mudar esse quadro e delimitar um campo de investigação da justiça depende da fixação de fronteiras, entendendo-as como aquilo que separa e que também permite o contato e a conexão. Afinal, os domínios da historiografia não são puros e muito menos se fecham sobre si.8
A história do direito e da administração precedem a da justiça e com ela se comunicam. Valeria, portanto, uma retomada da produção historiográfica daqueles domínios para se estabelecer as peculiaridades e possibilidades de uma história da justiça. Contra esta proposta poder-se-ia alegar uma especialização excessiva de áreas já consagradas, repisando a conhecida discussão sobre uma "história em migalhas".9 O argumento pode até ser procedente se considerada uma limitada acepção da justiça como a oficial e adstrita ao Estado e às suas estruturas administrativas. O mesmo argumento deixa de valer ao se ampliar a definição, as formas e as áreas de execução da justiça. Diante dessa abrangência, a proposta de uma história da justiça não implica fragmentação, mas, sim, a delimitação de um domínio. Nisso há, obviamente, implicações para uma apreciação plural da história.10
Com a finalidade de delimitar os domínios de uma história da justiça, parte-se de três pressupostos que contribuem para sua definição. O primeiro está em considerar que a justiça não é, em absoluto, um resultado exclusivo da administração ou dos direitos reconhecidos pelo Estado.11 O segundo pressuposto entende que a justiça, com base na sua conceituação, é uma potência, uma vontade ou virtude que só adquire sentido e reconhecimento na sua execução quando posta em ação. O terceiro decorre desse último princípio: a justiça se expressa em atos singulares, enquanto o direito exprime a força de intenções gerais.12 Em ambos os casos, contudo, justiça e direito são entendidos como técnicas e veículos de dominação e de conflitos polimorfos.13
Direito e justiça são conceitos aproximados e guardam sutilezas relevantes, algumas delas constituídas ao longo do tempo. Michel Villey, atento às diferenças, traça um longo estudo sobre as variações da fórmula greco-romana acerca de direito (dikaion) e justiça (dikaiosunê). Segundo Villey, dikaion, o direito, é a justiça objetiva, fora do ser, real. Já dikaios é a "justiça em mim", subjetiva, expressão individual e virtuosa da justiça (dikaiosunê).14 A justiça, enquanto virtude, como parte integrante do homem justo, manifesta-se individualmente, mas reflete-se em toda a cidade, em toda a república, por conta da sua natureza relacional.
Grosso modo, Villey, baseado em Aristóteles, considera que o direito e a justiça têm o papel de "atribuir a cada um o que é seu" (suum cuique tribuere). Ambos têm uma dimensão relacional, portanto, e visam à vida em sociedade, ao bem do outro. O direito (jus) visa regular esse espaço social dividindo as coisas "proporcionalmente" entre as pessoas, estabelecendo uma ordem ideal, direita. Uma ordem que, em razão da influência da cultura sacra judaico-cristã, reduz o direito à lei e aproxima a justiça divina da misericórdia.15 Também para Hobbes o direito é considerado um conjunto de leis, não mais a do Torá, dos Dez Mandamentos, mas as leis postas pelo Estado.16 Seja humano ou divino, moral ou legal, o direito, ou melhor, os direitos se impõem, em última análise, pela força e têm propensão à universalidade. Direitos no plural, mas, nem por isso, menos gerais. Exemplo disso é o direito natural, infundido por Deus a todos. A mesma generalidade pode ser encontrada no direito das gentes, comum e, talvez em menor medida, no positivo e costumeiro. Para além da sua universalidade, o direito teria a função de permitir ou vetar, por meio de "uma coleção de leis homogêneas".17 Nas palavras de Rousseau, as quais representam uma das perspectivas ilustradas dos Setecentos, "o objeto das leis é sempre geral, por isso entendo que a lei considera os súditos como corpo e as ações como abstratas e jamais como um indivíduo ou como ação particular".18
Ainda nos Setecentos, Thomás Antônio Gonzaga define lei utilizando-se de Johann G. Heinecke, conhecido como Heineccius em Portugal, para quem a lei seria "uma regra de atos morais prescrita pelo superior aos súditos para os obrigar a comporem conforme ela as suas ações".19 A apropriada definição de Heineccius, estabelecida no contexto da racionalização setecentista, destaca a figura de uma entidade "superior", em muitos dos casos, do legislador.20 Nos termos do direito positivo, o legislador pode ser encontrado no príncipe, representante de Deus na Terra, encarnação do Estado e personificação, dispensador e/ou derrogador da lei.21 O direito positivo tentaria garantir a justiça pelos meios, isto é, pelas leis escritas. Já o direito natural partiria dos fins, da vontade e da razão suprema e divina para "justificar" as leis.22 Neste caso, o direito consistiria menos na vontade e no poder político de um dirigente, assentando-se em uma razão inscrita ("objetiva, ligada à natureza das coisas") ou mesmo escrita (tradição literária), mas nem sempre instrumentalizável ou reconhecida pelo poder régio.23
Em qualquer dos sentidos atribuídos, o direito se exprime pela universalidade, pela força da sanção e da permissão.24 Dessa forma, a história e a filosofia do direito parecem ter mais a revelar sobre as formas e as forças de sanção instituídas do que sobre a execução das mesmas: o exercício da justiça. Uma prática essencial à ordem, ao fundamento da paz e estabelecimento da concórdia dos povos, uma virtude atrelada ao rei e dele esperada. Conforme José Subtil, "todas as fontes doutrinais da primeira época moderna nos falam da justiça como a primeira atribuição do rei".25 Contudo, como uma virtude, a justiça não era uma propriedade exclusiva do rei, embora fosse dele esperada.26 Justo era todo aquele que agia com justiça, com retidão, direito. Já a justiça era uma virtude, uma potência que só se exterioriza na conduta do indivíduo em meio à sociedade.27
Retomada sua acepção moderna, corrente no mundo luso setecentista, o direito pode ser definido como um conjunto de leis, normas e instituições que visam à ordem. 28 Nos termos do dicionário escrito por Bluteau, a justiça, por sua vez, "consiste em dar a cada um o seu prêmio e honra ao bom, pena e castigo ao mal".29 Ou seja, a justiça parece manter sua acepção clássica - o que a caracterizaria como um "conceito tradicional", na concepção de Koselleck - de "constante e perpétua vontade de dar a cada um o que é seu" ou como "uma virtude que dá a cada um o que é seu".30 Uma dentre as virtudes, a justiça visa o equilíbrio e o ordenamento de cada coisa em seu lugar.31 Daí que a ação justa de um indivíduo é a retidão de sua conduta social. Enquanto vontade ou virtude, a justiça é uma qualidade, guardada no indivíduo, porém exteriorizada por meio da ação.32
É possível distinguir nessa definição um entendimento de que a justiça, para além de ação, é uma virtude ou uma vontade. Entre os autores dos séculos XVII e XVIII, essa perspectiva "essencialista" também pode ser encontrada, por exemplo, no direito, como vontade divina ou soberana expressa em leis. O que diferencia ambos é que o direito pressupõe a universalidade da permissão e da sanção, enquanto a justiça congrega a ação e, ao fazê-lo, abre espaço para as práticas múltiplas, para os jogos de força e para as singulares. Nesse sentido, o poder - assim como a justiça, na acepção apresentada - pode ser apreendido como relação, ao contrário do que evidencia uma parcela dos pensadores seiscentistas e setecentistas que o entendia como uma essência emanada do rei, do povo ou de Deus.
Com esse deslocamento, coloca-se no cerne da análise de uma história da justiça, para além do aspecto da virtude, a questão da relação de forças. Em suma, o approach sobre as formas do direito tende a se desdobrar em estruturalismos, enquanto que o enfoque sobre a justiça, ao resgatar as relações de força na prática ordinária da sociedade e dos auditórios, revela singularidades perceptíveis quando se apreende a justiça como uma ação.
Assim entendida, a história da justiça exige uma compreensão dos aspectos formais das leis, da jurisprudência, da dogmática, das estruturas e dos agentes administrativos, mas, sobretudo, do seu exercício efetivo na sociedade, naquilo que existe de próprio nos jogos das forças.33 A justiça envolve mais do que as formas regulares e legítimas de poder, em seu centro ou periferia, permitindo conhecê-lo nas margens, para além das regras de direito, "na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício", eventualmente na sua faceta rústica e violenta.34
Se, por um lado, a lei e a doutrina têm muito a revelar da cultura de uma época, dos problemas rotineiros do ordenamento social e das estratégias intentadas para resolvê-los, de outro lado, não é possível depreender das mesmas leis e doutrinas sua efetividade, fosse pelos limites estruturais, fosse pela misericórdia e perdão reguladores da justiça. Os fenômenos jurídicos não são meramente "instrumentais, dúcteis a todas as estratégias e desígnios, mas antes produtos rigidamente condicionados pelas práticas que os produzem".35 Entende-se assim que somente a análise da justiça, oficial ou não, humana ou divina, seria capaz de distinguir a lei em movimento, sua aplicação, seu desvio, sua produção, seus condicionantes.
As fronteiras da justiça comportariam a lei e o direito, nas suas acepções mais amplas, mas os limites do direito e da justiça não se sobrepõem completamente.36 Apesar das imbricações, as especificidades são guardadas, como foi mostrado. Enquanto o direito se firma na universalidade e na sua força instituinte (divina, régia, natural, pactícia...), a justiça age no domínio do específico, nas múltiplas e ordinárias ações de atribuir a cada qual aquilo que lhe é devido. É nesses termos que uma história da justiça poderia se constituir como campo da historiografia. Um domínio que guarda proximidade com a história administrativa e do direito, mas que se distingue e se amplia por aquilo que toca às singularidades das práticas e às relações de poder, soberania e dominação que permeiam e constituem sujeitos, sociedade e Estado.
O Estado na Colônia: justiça, governo e administração na historiografia brasileira
Na desigual distribuição e fixação de prêmios, penas e perdões, a justiça oficial servia à tarefa de dominar, em nome de uma soberania, os vastos espaços e povos do mundo luso. Ao mesmo tempo, na universalidade e na pluralidade do direito e da justiça, dispersos pelos quatro cantos do globo, abriram-se os espaços para as divergências, parcialidades e particularidades. A esse movimento de forças difusas, plurais, mas em alguma medida codificadas e documentadas nos processos judiciais, corresponderia uma história da justiça portuguesa profundamente associada à constituição e à dispersão das bases de governo imperial. A retomada da história da justiça, ainda como um subdomínio dentro da história da administração, que se verifica na historiografia nas últimas décadas, em grande medida é fruto do reconhecimento da "centralidade" de um direito difuso e das formas jurídicas no mundo moderno e tardo-medieval.
É conhecido o papel que o direito e a justiça, desde a Idade Média, adquiriram para legitimar a existência do rei, do imperador.37 Para Senellart, o governo justo não constituía um limite do poder régio, mas o fundamentava.38 A mesma perspectiva, bem próxima dos teóricos da razão de Estado, pode ser identificada no dicionário de Joaquim José Caetano Pereira e Souza, para quem a justiça, mais do que a expressão do poder régio, era, efetivamente, "o fundamento do trono".39 Tratava-se de uma prática legitimadora e instituinte, portanto. No tradicional resgate histórico das monarquias e no âmbito da teoria do direito, o rei foi alçado, paulatinamente, à condição de viga mestra do edifício jurídico, na mesma medida em que se fazia da justiça seu alicerce e sua face mais visível.40
A historiografia especializada dos últimos tempos, sem antecipar a centralização das formas modernas de Estado, vem apontando para a presença difusa das formas jurídicas na sociedade corporativa.41 A centralidade do direito traduziria, nesse ambiente, a centralidade dos poderes normativos que envolveriam os costumes e o "caso julgado pelas sensibilidades jurídicas locais", por vezes à margem das leis formais do reino.42 A justiça e o direito não deixariam de exercer seu protagonismo, no final do século XVIII, com o fortalecimento das ações de governo, adotando-se uma postura menos passiva e mais ativa, segundo a qual o rei mais governa do que reina.43 A lei e a justiça contribuiriam com as ações regalistas da monarquia, a exemplo da Lei da Boa Razão que, dentre outros objetivos, primou pela valorização das leis positivas.44 As forças e formas jurídicas que fundamentaram o trono deixaram de servir ao esforço centralizador.
De fato, o reconhecimento da primazia e da persistência do mundo jurídico em toda sua extensão - da dogmática às leis, dos jogos de força às normatizações -, que envolvia e dava forma e sentido ao Estado e à sociedade, trouxe novo alento aos campos já desgastados da história da administração, aí incluída a prática da justiça oficial. Porém, para além desse reconhecimento, é possível atribuir como uma das causas desse fôlego renovado a retomada da dinâmica oscilante dos governos e da política colonial, em meio à rigidez das estruturas administrativas, incansavelmente desenhadas.
Recentemente, a historiografia vem constatando um ressurgimento da história administrativa, o que, em grande parte, seria tributário do alargamento de seu campo de análise para a política e para o governo colonial.45 Mas, já nas suas origens, a "história administrativa" abarcou a função política de conhecer as potencialidades, os entraves e o funcionamento das estruturas do governo dos povos. Em vários trabalhos, inclusive entre os memorialistas do século XVIII, nota-se a preocupação de se compreender a estrutura e a organização do sistema administrativo na América portuguesa, bem como as potencialidades da colônia e a natureza dos seus povos, para melhor governá-los.46 De fato, em muitos casos, esses estudos eram dedicados a governadores ou mesmo organizados pelos próprios administradores, como dá-nos a ver o códice de documentos coligidos pelo ouvidor da Comarca de Vila Rica, Caetano da Costa Matoso.47 Se, por um lado, essa preocupação dos governantes pode sugerir um desconhecimento das próprias estruturas administrativas, de outro, é possível distinguir nesta diligência um municiamento de informações para a ação de governo e consolidação do próprio poder, quiçá norteados por uma razão de Estado.
Ao longo do século XX, fosse para afirmar sua presença ou para negá-la, o Estado e sua estrutura já ocupariam o centro das análises acerca da administração, o que não deixaria de legitimá-lo como lócus das decisões e do poder.48 São análises que reconstroem, a partir da legislação, regimentos e demais dispositivos legais, a estrutura da administração colonial, sem descuidar da própria história do Brasil. Rodolfo Garcia, Vicente Tapajós, Augusto Tavares de Lira, Pedro Calmon e, em tempos mais recentes, Hélio de Alcântara Avelar e Graça Salgado, entre outros, buscaram definir os contornos da estrutura administrativa na metrópole e na América portuguesa.49
De um modo geral, predomina nessas análises a compreensão da colônia como uma extensão da ordem jurídico-institucional metropolitana.50 Sobre as obras precursoras da história administrativa, Laura de Mello e Souza avalia, com razão, que não se preocuparam com "o sentido, ou melhor, os sentidos da administração".51 Ao se pautarem nas leis, acabaram por simplificar o perfil dos órgãos, afastando-os de um universo político e humano que efetivamente dava sentido à administração.
Vale reconhecer, contudo, que as análises assentadas nas leis, nos regimentos e nas estruturas administrativas seguem uma tendência que, ainda hoje, pode ser entendida à luz da dificuldade de se conhecer a complexa disposição e atribuição dos ofícios, tendo em vista a indefinição das instâncias e a sobreposição das jurisdições.52 De fato, tais obras contribuíram para que seus leitores, de ontem e de hoje, pudessem se orientar em meio às leis, às atribuições e aos regimentos descritos por Caio Prado Júnior (não sem algum anacronismo) como um verdadeiro cipoal.53
Entre os estudos da administração colonial, os trabalhos de Raymundo Faoro e Caio Prado Júnior tornaram-se referências obrigatórias, em grande medida pelas suas interpretações da formação do Brasil, profundas e antagônicas. Já se distinguiram as sensíveis diferenças e a complementaridade dessas perspectivas, casadas no movimento oscilante de um governo que ora reprimia, ora anuía.54 Vale considerar ainda que, para além da superfície das diferenças, em ambas as análises, o Estado, mesmo na sua imperfeição e relativa importância, continuaria a servir de parâmetro para fixar os graus de eficácia do controle e do impulso colonizador. Essa centralidade do Estado, nos argumentos dos autores, reflete os momentos históricos dos seus pensamentos e a preocupação, sintetizada por Sérgio Buarque, de "averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e ideias de que somos herdeiros".55
Para Faoro, o sistema administrativo, racional e coeso, que se desenvolveu no mundo ibérico ao longo de alguns séculos, foi replicado e instalado com sucesso no Brasil.56 Por meio de seus agentes e da legislação, o soberano teria controlado a colônia com êxito, impedindo que atitudes lesivas à ordem prosperassem a ponto de botá-la a perder: "o Estado, imposto à colônia antes que ela tivesse povo, permanece íntegro, reforçado pela espada ultramarina [...]".57 Ainda que houvesse espaços restritos para irregularidades e pequenas autonomias na administração local, ainda que as distâncias deixassem "nas dobras do manto do governo, muitas energias soltas", a Coroa se imporia.58 Fosse com violência, fosse com transigência, o Estado, "monstro sem alma", "titular da violência" manteria o controle na América portuguesa.59
Em Formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado Júnior apresenta uma perspectiva contrastante à de Faoro. Para Prado Júnior, o aparato administrativo colonial, ante a "incapacidade" dos portugueses em criar algo mais apropriado às condições específicas de suas possessões, foi simplesmente transposto de Portugal para o Brasil. Este herdou das terras lusas todos os inconvenientes de seu modelo administrativo secular: a falta de uniformidade, de simetria, a restrição geográfica, a complexidade dos órgãos, as obscuridades das leis, a irracionalidade e as indefinições das funções.
Desnecessário retomar a crítica feita à abordagem de Prado Júnior, que seria incapaz de compreender a lógica própria do sistema administrativo e legal colonial justamente por se embasar em noções fixadas pelo Estado liberal, armadilha para a qual o próprio autor chama a atenção.60 É fundamental considerar, entretanto, que, se no nível das leis a confusão e a irracionalidade eram evidentes, no nível da prática e do contexto colonial as desordens seriam ainda mais gritantes. Ao privilegiar a prática, Prado Júnior dá vida às estruturas administrativas, aos desvios, e reconhece, no clã patriarcal, a força social da colônia, sem negar o papel do Estado. Ao Estado, na figura do rei, caberia o controle apenas simbólico de seus domínios, mas efetivo no campo do fisco, pois, do contrário, fragilizar-se-ia a proposta de um sentido da colonização.61
Prado Júnior também considera que o poder emanava do rei, síntese do Estado, cabeça do organismo social, pai e representante de Deus na terra - "supremo dispensador de todas as graças e regulador nato de todas as atividades, mais do que isso de todas as expressões pessoais e individuais de seus súditos e vassalos" -, mas, ainda assim, "com seu papel e sua função, modestos embora, mas afetivos e reconhecidos [...]".62 A descrição dessa monarquia corporativa - talvez, e apesar de tudo o que se disse em contrário, uma das primeiras na historiografia brasileira - se coaduna com a prática, a falta de sedimentação social e as contingências coloniais. Condições que, diante das "funções modestas" do rei, pediam adaptações e arremedos do modelo administrativo trasladado. Mudanças feitas ao arbítrio das autoridades e em conformidade com os problemas coloniais que se apresentavam.63
Mesmo reconhecendo as contingências favoráveis à dissolução da ordem, Faoro acaba por subordinar a realidade às leis, fiel à crença de que o Brasil foi construído com decretos e alvarás, sob a égide de um Estado forte.64 A justiça, nessa lógica, é caracterizada como uma das funções do rei, um dos braços da administração executada pelos fiéis agentes, pelos letrados que arrastavam, "na cauda, todas as energias e todas as rebeldias".65 Faoro promovia, de maneira tautológica e sistêmica, a transposição ou replicação de uma determinada concepção acerca da administração colonial, assentada nas leis, para o cotidiano administrativo. Em razão disso, a contradição apontada por Antonio Manuel Hespanha: "desde que se tirem as conclusões opostas às suas [de Faoro], sua síntese sobre o sistema político-administrativo é bastante boa".66
Como apontado anteriormente, alguns historiadores atentaram para o quanto poderiam ser complementares as visões de Faoro e Prado Júnior. Principalmente para o caso de Minas Gerais, que experimentaria uma maior presença do Estado na tentativa de conter os desvios de metais e pedras preciosas.67 Laura de Mello e Souza também é explícita ao apresentar sua intenção de conjugar as perspectivas de Faoro com as de Prado Júnior. A autora afirma que as premissas estabelecidas por Faoro se "adaptam admiravelmente ao caso mineiro" e acrescenta: "talvez nunca as leis tenham, na colônia, precedido a fixação das populações com tanta intensidade quanto nas Minas".68 Em compensação, nas Alterosas, "o Estado não teria se mostrado tão racional e a ordem não seria tão rígida como asseverou Faoro". Para Laura de Mello e Souza, a administração em Minas Gerais "funcionava de maneira contraditória", mesclando o agre ao doce. Assim, ressalta: "não é de se admirar que ante as contradições do aparelho administrativo das Minas, as explicações de Faoro e Prado Jr. possam caber com igual justeza".69
Contra o Leviatã: recentes debates na historiografia luso-brasileira8388
No Brasil, a velha preocupação com o Estado e as instituições na colônia, presentes em Faoro e Prado Júnior, ganhou novas direções com o impacto da obra de António Manuel Hespanha. Para Nuno Gonçalo Freitas Monteiro, Hespanha foi um dos responsáveis por uma verdadeira "viragem historiográfica".70 Com ele, a mencionada questão da herança lusa, colocada por Sérgio Buarque de Holanda, tomou um novo rumo nas interpretações de autores brasileiros. Ao empenho historiográfico de se conhecer os mecanismos administrativos coloniais conjugaram-se análises sobre a existência de vínculos culturais e políticos que conectariam as diversas partes do Império português, bem como colocariam em xeque o paradigma oitocentista da "centralização contínua e interminável".71
É possível distinguir duas tendências nos trabalhos de António Manuel Hespanha. De um lado, Hespanha questiona a centralização precoce do poder, tão marcante em uma historiografia que retroprojeta sobre as monarquias dos séculos XV, XVI e XVII as sombras do Leviatã, metáfora da forma moderna, racional e ativa de Estado. De outro lado, fortalece os vínculos políticos informais assentados em relações de dom e contradom que teriam na figura do rei o grande dispensador.
"Às vésperas do Leviatã", no século XVII, o Estado português, mesmo na metrópole, seria caracterizado por um controle limitado, por uma confusão de jurisdições, por um governo polissinodal e passivo, além de lidar com poderes senhoriais e municipais.72 Soma-se a isso uma concepção corporativa que reconheceria a autonomia dos corpos políticos do imenso organismo político. Diante dessa dispersão de poderes, as estratégias políticas marcadas pela já apresentada "centralidade do direito", pelo recurso à negociação e pela intensidade do pacto político assentado na "economia do dom" congregariam as forças concorrentes e contribuiriam para legitimar a presença e a atuação da Coroa.73 Tal perspectiva permite uma leitura difusa do poder em detrimento da centralização precoce do mesmo que, no mundo luso, não teria lugar antes de meados do século XVIII.74
O universo de disfunções e incapacidades do centro para dominar a periferia não corresponderia a um sistema em crise, "como alguma vez eu próprio poderei ter escrito", confessa Hespanha.75 Contra essa imagem caótica, presente em Caio Prado, Hespanha considera a força do pacto político "o leitmotiv das mais interessantes e recentes interpretações da sociedade de Antigo Regime".76 Assim, os estudos mais recentes desse autor têm privilegiado outros elementos que confeririam ordem à imaginação política e jurídica moderna e configurariam as sociedades do Antigo Regime.77
Ao lado da difusão dos poderes típica do modelo político corporativo, o autor destaca o derramamento das formas disciplinares. O pressuposto básico é que a "sociedade de Antigo Regime era uma sociedade essencialmente controlada".78 Tal proposição o leva à consideração de outras formas de controle que não a da vigilância centralizada, dada a limitação dos aparelhos centrais para realizar o domínio social. Este viria da própria sociedade, por natureza ordenada e hierarquizada. Tal ponto de vista se adequaria à dispersão do poder, característica do modelo corporativo, e permitiria distinguir uma dispersão da disciplina e do controle.79
Entre uma e outra das perspectivas de análise de Hespanha, um debate se estabeleceu com Laura de Mello e Souza. Dentre as críticas propostas pela historiadora destacam-se as seguintes questões: a limitação da dimensão do conflito decorrente da minimização do Estado e, poder-se-ia acrescentar, do ordenamento característico das sociedades do Antigo Regime, tal como descrito por Hespanha; a relevância do escravismo; e os reflexos das contingências diante das particularidades que comporiam o Império português.
Tais identidades se articulariam em torno de uma "economia do dom" ou das mercês, bem como de disposições políticas pactuadas. Para a historiadora, a descentralização das relações políticas poderia implicar no enfraquecimento da figura do Estado e, consequentemente, na diluição das tensões e conflitos entre a metrópole portuguesa e suas colônias.80 Entretanto, o rei, como grande dispensador das graças e mercês, seria reconhecido como um personagem central no sistema da "economia do dom". Predominam nessa linha de interpretação os elementos coadunadores, em prejuízo das forças desviantes que curto-circuitam o sistema nos contextos políticos locais.
Para Souza, os trabalhos de Hespanha são apropriados para o caso europeu ou, mais especificamente, para o de Portugal do século XVII. Seria, portanto, problemática a aplicação indiscriminada da apreciação de Hespanha para o contexto brasileiro. Uma distorção que seria ainda mais notável para o período no qual a América portuguesa teria assistido à imposição, mesmo que oscilante, de estruturas e mecanismos de controle da exploração aurífera e diamantífera.81 A transposição das análises de Hespanha acerca do Antigo Regime e da dinâmica social dos poderes também teria que se haver com a especificidade de uma sociedade formada, amplamente, por escravos e forros.82 Ademais:
Esbater o papel do Estado, valorizando os poderes intermediários, e manter, sem nuances, a designação de Antigo Regime para um mundo que, como o luso-americano, não conheceu o feudalismo traz, portanto, problemas consideráveis.
As considerações de Souza não se restringem apenas aos modos pelos quais as estruturas do Antigo Regime acolheriam a escravidão enquanto instituição ou mesmo absorveriam o contingente de mancípios. Souza não nega a pertinência do uso do conceito de Antigo Regime para a colônia, desde que articulado com o escravismo, o capitalismo comercial e o papel crucial do Estado.84 Se desconsideradas essas dimensões, as contradições seriam amenizadas sob os auspícios de um generoso olhar ordeiro, eurocêntrico, aglutinador, que dilui as tensões juntamente com o poder e as disciplinas sociais.85
Os trabalhos mais recentes de Hespanha têm retomado com mais vigor o tema do Antigo Regime, outrora ausente nos títulos dos seus textos.86 Em "Depois do Leviatã", Hespanha afirma serem as monarquias corporativas do século XVI a meados do XVIII um "tipo ideal das unidades políticas do primeiro Antigo Regime".87 Escalonando a existência do Antigo Regime ("primeiro Antigo Regime"), o autor amplia seu registro temporal e o associa às formas corporativas que antecederiam o passado próximo da Revolução Francesa e a centralização do poder nos moldes do Estado moderno.
Hespanha não apenas promove uma distensão temporal do Antigo Regime, como também corrobora com sua projeção para o caso brasileiro. No Brasil, os "bandos e partidos faziam a lei" e moviam as forças centrífugas e localistas do sistema político, bem como reproduziam os modelos nobiliárquicos e estamentais lusos. Ou seja, segundo alega o autor, as particularidades dos diversos contextos imperiais estariam incorporadas ao abrangente sistema político corporativo, capaz de congregar a dispersão de forças e as diversidades sociais, incluindo-as nas categorias de Antigo Regime.
[...] apesar das tensões, desigualdades e espoliação entre uns e outros, eles conviveram, uns e outros, nessa sociedade hierarquizada, fundada na desigualdade e no privilégio, internamente dominadora e marginalizadora, que foi a sociedade corporativa; no seio da qual uns exploraram tranquilamente os outros, os segregaram e dominaram, os silenciaram e gozaram com o seu silêncio.
As categorias sociais, os "estados", dentro dessa ordem, seriam uma forma de institucionalização de condições políticas e qualidades naturais.89 Uma ordem dominadora, silenciadora e avessa às transformações, mas que permitia uma restrita mobilidade e limitados conflitos. Seriam, sobretudo, mudanças onomásticas, taxionômicas, mas que deixariam pouco espaço para transformações sociais mais significativas.90 Uma ordem assentada na desigualdade e multiplicadora dos "estados", frente aos quais "a materialidade física e psicológica dos homens desaparece".91
Vale retomar, aqui, as ponderações sobre a multidão nada abstrata de escravos que, na América portuguesa, seria a força motriz da economia. Ainda que a escravidão fosse conhecida e naturalizada em Portugal, havia uma diferença demográfica gritante, da ordem dos muitos milhares, entre os números de escravos na metrópole e na colônia. A questão que se coloca, portanto, é como pensar as categorias do Antigo Regime europeu e sua afeição pela ordem em um contexto conflituoso formado largamente por escravos e forros?
Hespanha considera que, "do ponto de vista da mundividência corporativa", a multidão de escravos "não constituía um elemento dissonante", a ponto de "reconfigurar o seu desenho, a sua teoria, o seu direito".92 Da ausência de mudanças no direito, de um código específico referente à escravidão no mundo luso, contudo, não há de se deduzir a irrelevância.93 Não é possível, também, restringir o governo dos escravos a uma inequívoca questão doméstica.94 Em que pese a dimensão de uma economia e de uma justiça privada, que reforça a multiplicidade das formas jurídicas consideradas nesse artigo, a Coroa, ainda que limitada, não deixou de mediar as relações entre senhor e escravo.95 Da mesma forma, o Estado não foi omisso diante dos escravos insubmissos, o que pode ser constatado nos molhos de processos criminais, nos róis de culpados e de presos nas cadeias coloniais, bem como na ação coordenada e violenta contra os quilombolas resistentes, cujas cabeças cortadas revelavam uma condição bem distinta de qualquer criado fujão.96 A escravidão traz o conflito, a violência, as alterações inevitáveis na transposição dos modelos ordenadores e hierarquizantes da sociedade do Antigo Regime. Diante da proposta de uma história da justiça como a que se desenha nesse artigo, a escravidão revela uma dimensão, oficial ou privada, de conflito que não pode ser ignorada. Aliás, como se verá, foi no âmbito das relações de trabalho e dominação entre escravos e senhores que, recentemente, a história da justiça na América portuguesa passou a ser pensada pela historiografia brasileira.97
Do debate proveitoso reconhecem-se, portanto, as influências das novas perspectivas analíticas no campo da história administrativa, do direito e da justiça. O papel do Estado, das formas sociais e políticas do Antigo Regime e dos mecanismos de controle é colocado no centro da discussão. A questão, porém, não é mais apenas a eficácia do Estado, como em Faoro e Prado Júnior, mas a pertinência da concepção centralizada do poder na imagem do Leviatã e de uma sociedade do Antigo Regime.
Centralização e aluvionismo: contribuições para uma história da justiça em Minas Gerais
Por suas riquezas e importância no Império português, Minas Gerais constitui uma região privilegiada para os estudos coloniais sobre administração, direito e sociedade. Neles, é recorrente a avaliação da questão do ordenamento social e do poder, na sua capilaridade ou na sua ossatura estatal. Não por menos, Francisco Iglésias afirmaria que em Minas foi mais severa "a nota centralizadora".98 Ao mesmo tempo, na expressão de Sérgio Buarque, a mobilidade dos agentes e dos valores moldaria uma sociedade aluvial, onde estavam em constante ebulição as forças de condensação e fragmentação.99 Talvez pela "natureza metamórfica", Minas constitua uma região privilegiada para trabalhos dedicados às forças de controle e subversão. Por essa razão, e pela significativa produção historiográfica, Minas Gerais oferece um panorama amplo e plural dos mais recentes trabalhos e desafios para a história da justiça.
Em geral, a nova historiografia mineira tem buscado estudar a forma pela qual a articulação entre os mecanismos infraestruturais, essenciais à reprodução do poder régio, manifestava-se no Império, e de que modo o governo das Minas foi uma experiência ímpar, redimensionando as próprias maneiras de governar ou colocando-as em xeque.100 Discernindo as múltiplas formas de interação, alguns trabalhos buscaram avaliar a existência e a abrangência de um movimento de "interiorização da metrópole", ancorado na integração dos interesses políticos e mercantis das Minas com aqueles sediados no Rio de Janeiro e em outras partes do Império português.101 Ao mesmo tempo, em reação a uma perspectiva hipertrofiada do Estado, desmitificou-se a crença na nota centralizadora e controladora de regiões tão cruciais como a de Diamantina.102
Segundo Júnia Ferreira Furtado, "os estudos têm convergido para a percepção de que o entendimento do modo pelo qual o poder se estruturou nas Minas só é possível a partir do entendimento dos mecanismos de legitimação da monarquia portuguesa".103 Nessa empreitada, a historiografia, há algumas décadas, vem tratando das formas de institucionalização da sociedade mineira.104 Da consolidação das estruturas sociais à expansão dos mecanismos administrativos, uma série de estudos tratou da institucionalização em Minas.105 A formação das vilas e das câmaras, por exemplo, suscitou um conjunto expressivo de estudos, sem par na historiografia colonial.106 Dentre eles, as câmaras assumiram um papel de representação central, seja na presentificação dos poderes régios, seja na manifestação e defesa dos interesses locais, por vezes mobilizando levantes.107
Paralelamente à composição das estruturas administrativas, não se perdeu de vista o clima de instabilidade de "uma sociedade movediça", revolta, num estado de "ebulição íntima", conforme o artigo clássico de Sérgio Buarque de Holanda. Laura de Mello e Souza, por exemplo, descreveu as Minas como uma sociedade definida pela instabilidade e pela tensão social, motivada, dentre outros fatores, por uma camada de marginalizados.108 Na mesma linha, os trabalhos de Carla Anastasia e Adriana Romeiro são exemplos de uma investigação historiográfica que tende a descrever a sociedade mineira setecentista destacando seus elementos de contestação e subversão.109 Movimentos que possuíam lógicas distintas, mas que buscavam se legitimar frente às "injustiças" do governo. Neles revelava-se, assim, uma consciência ampla de direito e justiça, para além daquela executada pelos representantes do rei. Dentro desse princípio, mesmo convulsionados, os grupos da sociedade mineira manteriam os canais de negociação, ao mesmo tempo em que revelavam uma ampla acepção de justiça.
Nos estudos sobre a justiça para Minas Gerais, as contribuições trazidas pelos trabalhos de Hespanha "se inseriram num contexto mais amplo de discussão sobre o caráter do Estado e da sociedade que se constituíram no decorrer do século XVIII".110 Nessa direção, a "nova historiografia" do direito, da administração e da justiça levou à retomada de alguns dos temas clássicos no estudo das Minas e estimulou o aprofundamento de questões tais como o papel das câmaras municipais na negociação dos interesses locais; o perfil e o desempenho de agentes e funcionários da justiça; o funcionamento e o alcance das formas de execução da justiça; os mecanismos formais, simbólicos e processuais de execução da justiça; os desvios criminais e o ordenamento da sociedade mineira.111 No geral, buscou-se compreender o funcionamento da administração através daquilo que lhe competia e dava-lhe sentido, ou seja, sua ação. Ação em meio a uma sociedade em formação e dependente de estruturas e mecanismos também em um processo de estruturação e intimamente dependentes dos seus funcionários e agentes, de formações universitárias e letradas distintas, quando as tinham, bem como motivados por interesses políticos difusos, concorrentes, mas nem sempre excludentes, dos anseios metropolitanos.112 Esse esmiuçar das instituições e dos seus agentes contribuiu para que as relações de força surgissem, vivificando a perspectiva de uma história da justiça atenta às singularidades.
Por vezes, a violência insurgia diante de dilemas de honra em uma "sociedade aluvial", como a descrita por Marco Antônio Silveira. Assim como Marco Antônio Silveira, Marcos Magalhães Aguiar também identifica a existência de valores sociais e de um campo "extrajudicial" de práticas capazes de promover um ordenamento social e enquadramento da ação coletiva e individual dos negros e mulatos, personagens de sua pesquisa.113 Os trabalhos mencionados reconhecem a importância da justiça na composição e sustentação do Estado monárquico português, mas, sobretudo, como uma prática social. O que esses trabalhos expõem é o espaço da justiça, entendida como uma prática que buscava se afirmar pelos meios de que dispunha, mas que encontrava limites palpáveis, inclusive estruturais.
Estudos recentes sobre a Comarca de Vila Rica, por exemplo, têm tratado o funcionamento das instâncias locais administradoras da justiça oficial à luz dos agentes jurídicos e administrativos que as mobilizavam, dos ouvidores aos oficiais de vintena.114 Nesses estudos, são evidenciadas uma ampla área de conflito e formas de sedimentação e negociação alternativas que nem sempre reconheciam o soberano. Os casos analisados têm revelado, por exemplo, caminhos alternativos aos letrados, que não o da ascensão profissional aos órgãos centrais; caminhos que fugiam da lógica da nobilitação assentada na distribuição de cargos e mercês. Em sua análise sobre os juízes de fora de Mariana, Débora Cazelato de Souza apresenta uma solicitação do rei ao governador para que remetesse uma lista dos oficiais que serviram como ministros e que passavam às Minas para advogar: "deixam de vir requerer o seu acrescentamento por ir advogar a elas e como da advocacia querem tirar os seus interesses fazem com as causas umas tão grandes embrulhadas a que eles chamam direito".115 Para alguns, como o desembargador João Caetano Soares Barreto, parecia mais interessante permanecer em Minas do que pleitear uma carreira na Casa de Suplicação ou no Desembargo do Paço.116 Talvez, atuar nos auditórios de primeira instância, especialmente nas ricas Minas Gerais, fosse mais vantajoso financeiramente e, quem sabe, envolvesse outras formas de distinção social que não as sancionadas pela proximidade do rei.
São destaques também as análises baseadas nos estudos dos processos judiciais, capazes de reconhecer, nas variações dos tipos de crime, a consubstanciação de valores e a solidificação das relações e instituições sociais.117 Com base nas notificações, um tipo de mecanismo judicial, Wellington Costa desvenda a institucionalização de mecanismos de ordenamento social, em especial da justiça.118 Um processo que se verifica na especialização das funções administrativas e no avanço pelo território visando um controle, ainda que relativo, porque se mostravam insuficientes, restritas aos maiores núcleos populacionais. As investigações dos processos judiciais, como a promovida por Costa, permitem problematizar os alcances da justiça oficial e, a contrapelo, revelar os contornos de uma justiça paralela, guiada por direitos mais ou menos reconhecidos e codificados, firmados no costume ou na rusticidade das relações do sertão.119
Buscando discernir o funcionamento da justiça, alguns historiadores, como Maria do Carmo Pires e Patrícia Ferreira dos Santos, se debruçaram sobre a documentação do Juízo Eclesiástico, seguindo os passos de Luciano Figueiredo e Ronaldo Vainfas.120 Santos estudou os mecanismos de coerção da justiça eclesiástica e suas relações com os juízes seculares.121 Pires também se dedicou ao Juízo Eclesiástico e à repressão aos delitos da carne, que podem ser entendidos dentro de uma lógica propedêutica estabelecida diante de uma ulterior justiça divina.122 Afinal, conforme Prodi, a justiça tem "o rosto do juízo divino e o rosto humano e com base nesta distinção enfrentam-se todos os problemas concretos (...)".123 No bifrontismo de Diké, distingue-se a amplitude da justiça que, para além dos canais oficiais, perpassava as consciências, a moral, a vida em sociedade.
De fato, esse pequeno esboço historiográfico reconhece, nos trabalhos monográficos desenvolvidos no âmbito da administração, do direito, da história social e, principalmente, da justiça, a potencialidade para enfrentarem questões tão gerais como a da natureza do poder, do Estado, da soberania, da dominação, das redes de sociabilidade. Questões as quais, vale dizer, nem sempre legitimam um centro dispensador de cargos, de justiça, de graças e mercês, mas nem por isso negam a existência de um Estado como um dos componentes da "anatomia do poder".124
Esse rol de pesquisas monográficas permite refletir mais atentamente sobre o grau de ordenação e de integração da sociedade mineira setecentista à ótica das doutrinas, do modelo corporativo, das categorias do Antigo Regime, da formação de uma espécie de identidade imperial.125 É na riqueza de movimentos sociais, de instituições e dos jogos de força que se apreende as convergências e divergências dos modelos explicativos. As análises específicas podem servir para colocar à prova as hipóteses dos grandes modelos de análise ou, ao menos, para criar parâmetros comparativos.126 E mais, as análises dos registros dos atos humanos, dos contextos práticos de utilização, das dimensões em pequena escala são capazes de revelar formas alternativas de governo, de organizações sociais, de direito, de justiça.127
A história da justiça tem muito a ganhar ao aproximar-se da história social e, por extensão, ampliar as dimensões do direito e da administração para além da sua expressão legal e oficial, incorporando os aspectos simbólicos, discursivos e práticos que envolvem as relações de força e os dispositivos de poder polimórficos.128 Afinal, as instituições se caracterizam "tanto pelos gestos e práticas materiais ritualizadas que exige quanto pelas representações que supõe".129 A história da justiça deve ter no horizonte das suas análises a dimensão plural das relações de força, revelada nos processos judiciais, no conflito entre autores e réus, na ação dos oficiais e letrados, no detalhe formal e processual, no uso do direito, enfim, na ação de "dar a cada qual aquilo que é devido". A análise comparativa entre diversas localidades do Império português, bem como a percepção das mudanças da justiça na extensa duração dos anos, prometem revelações capazes de nuançar os grandes modelos explicativos, sem se fechar em estanques esquemas estruturais que não supõem, por exemplo, a coexistência de paradigmas, como o corporativo e o de razão de Estado.
O alerta contra os perigos dos partidarismos cegos, feito no início desse artigo, serve à postura crítica diante da tautologia das análises que replicam modelos explicativos, em prejuízo das divergências significativas, quiçá, reveladoras de novos paradigmas. O que se observa em alguns dos estudos mais recentes é um deslocamento que os distanciam de uma universalidade comum à história do direito, buscando a prática, a diversidade e a singularidade de uma história da justiça.
Notas
Autor notes
*Contato Universidade Federal de Ouro Preto Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História, Rua do Seminário, s/n 35420-000 - Mariana - Minas Gerais E-mail: alvoantunes@gmail.com