Resumo: Trata-se, neste artigo, de examinar o processo de legitimação que acompanhou a conquista do sertão baiano durante a segunda metade do século XVII, e de explorar as interações entre as dinâmicas locais e imperiais que levaram a uma situação de violência institucionalizada contra as populações indígenas do interior da Bahia.
Palavras chave: BahiaBahia,ImpérioImpério,sertãosertão,índiosíndios,representaçõesrepresentações.
Abstract: This article examines the justification process of the expansion towards the hinterlands of Salvador da Bahia in the Seventeenth century. It focuses the interactions between the local and imperial dynamics, which lead to a situation of institutionalized violence against the Indian native populations.
Key words: Bahia, Portuguese Empire, sertão, Indians, representations.
ARTIGOS
DO ÍNDIO GENTIO AO GENTIO BÁRBARO: USOS E DESLIZES DA GUERRA JUSTA NA BAHIA SEISCENTISTA*
FROM THE ÍNDIO GENTIO TO THE GENTIO BÁRBARO: USES AND MISUSES OF JUST WAR IN SEVENTEENTH CENTURY BAHIA
Recepção: 28 Abril 2014
Aprovação: 18 Novembro 2014
Protestando contra o assento que se lhes tinham dado nas Cortes de 1668, e reivindicando um lugar no primeiro banco, os oficiais da Câmara de Salvador dirigiam-se ao rei em 1673,
obrigados a pedir a Vossa Alteza seja servido fazer-lhe mercê de que tenha seu lugar no primeiro e nos mais actos que se celebrarem pois concorrem nella todas as razoens de merecimento para esta honra que podem pedirse e não serem maiores as da cidade de Goa a quem se concedeo porque este estado do Brazil he da grandeza e importancia ao serviço de Vossa Alteza e esta cidade cabeça dele.1
Esta carta do senado que acabamos de citar é interessante por muitos respeitos, nomeadamente pelas representações investidas no processo de "capitalização" da cidade de Salvador.2 No entanto, importa considerar mais detidamente os serviços referidos pela câmara para fundamentar o seu requerimento. No meio deles e, na verdade, logo a seguir às "guerras dos Olandeses" e antes do muito importante sustento da infantaria, encontramos a guerra contra o "gentio bárbaro", aparecendo como outro tanto valioso serviço feito à Coroa portuguesa. A proclamação, por parte da Câmara de Salvador, da guerra contra o índio gentio como serviço ao rei, tornandose mais um elemento de valorização e um argumento de negociação para apoiar este seu pedido, merece, de fato, toda a atenção.3
Os oficiais da câmara referiam-se dessa maneira às várias entradas organizadas contra o índio gentio, durante a segunda metade do século XVII, que desembocaram na conquista do sertão baiano.4 Estas jornadas do sertão ocupam então um lugar inédito na comunicação política com a Coroa, encontrando-se várias ocorrências tanto nas correspondências dos sucessivos governadores-gerais e da Câmara de Salvador quanto nas consultas do Conselho Ultramarino em Lisboa. Mais, a crescente solicitação por parte deste senado, visando a participação da Coroa neste empreendimento, constitui outra novidade, tal como o discurso que a acompanha, pretendendo legitimar a guerra contra o gentio "vizinho daquele Estado".5 Se olharmos para as "entradas" realizadas no sertão baiano no final do século XVI e nas primeiras décadas do século XVII, a evolução é tanto mais óbvia.6
À margem da guerra dos bárbaros, interessa-nos examinar o processo de legitimação que acompanhou a conquista do sertão baiano durante a segunda metade do século XVII.7 Mais do que as etapas da expansão territorial, focamos aqui os discursos e as representações visando justificar a guerra contra os índios. Trata-se, assim, de desvendar as várias dimensões dessa conquista que a historiografia tende muitas vezes a simplificar.8 Assim, o recurso da guerra justa aparece então na documentação com uma intensidade inusitada. Da mesma maneira, é importante atentar para a mobilização singular da categoria de bárbaro nessa situação, e entender as suas significações na Bahia seiscentista, tendo em vista a institucionalização da América portuguesa durante este período, ou ainda o investimento da cidade de Salvador na sua dimensão imperial.9 Importa encarar como uma e outra se encontram investidas de um novo significado, questionando afinal os fundamentos teológico-políticos do Império português.10
Considerar esses usos e deslizes permite esclarecer de outra maneira tanto o processo de expansão territorial quanto a formação política da sociedade colonial baiana ou, ainda, a organização da economia colonial. Leva igualmente a revisitar o papel da Coroa, geralmente considerada como o agente principal da conquista do sertão baiano, e a realçar as dinâmicas locais.11 Lembrando a atualidade e a importância da questão da escravização dos indígenas na segunda metade do século XVII, trata-se, afinal, de entender como o índio gentio "vizinho daquele estado" se tornou "gentio bárbaro", inimigo da República, e atingir a importância dessa busca de legitimação na Bahia da segunda metade do século XVII. Ou seja, entender como a exploração da "fronteira do gentio bravo" abrange os próprios processos de identificação dos "nobres brasilienses" da Bahia e a sua relação com o Império português.12
Nessa perspectiva, iremos considerar as entradas no sertão baiano do final do século XVI à chamada guerra dos bárbaros; as metamorfoses da guerra justa no quadro da justificativa da conquista do sertão baiano; e, por fim, os laços entre o sertão e o Atlântico, e as suas ressonâncias imperiais.
As "entradas" realizadas no interior da Bahia durante a segunda metade do século XVII marcam o início da chamada guerra dos bárbaros.13 No entanto, essas jornadas do sertão eram prática antiga e "costumeira" e muitas haviam sido organizadas no século XVI e princípio do século XVII. Deixamos de lado a discussão relativa à distinção entre "entradas" e "bandeiras" estabelecida pela historiografia da primeira metade do século XX.14 Na verdade, tal distinção faz pouco sentido, umas e outras tendo praticamente o mesmo objetivo de prender índios, sejam elas organizadas a fins de exploração e busca de minas ou de repressão. A intensidade dessas entradas no sertão baiano foi grande depois de 1570 e vem lembrar a importância da escravização dos índios, mesmo depois da chegada de escravos africanos, e apesar da legislação régia.15 Organizadas localmente, elas se beneficiavam por vezes da supervisão do próprio governo-geral.16 A despesa da expedição era igualmente assumida localmente.17 Segundo o jesuíta Fernão Cardim, milhares de índios tinham sido assim descidos do sertão. Na voz dos colonos, tais entradas eram expedições de paz destinadas ao resgate de índios do sertão.18 Mas na sequência dos abusos cometidos, a lei de 1587 mandava fechar o sertão, declarando que ninguém poderia ir mais ao sertão buscar índios com armas sem licença do governador.19 No entanto, a sucessão de leis sobre os índios durante esses anos tanto indica a preocupação régia com o assunto quanto revela o seu não respeito e o vigor da governança local.20
É importante lembrar que muitas dessas entradas devem ter escapado ao registro. Importa ainda observar que, mesmo quando ficaram documentadas, poucas têm recorrido ao conceito de guerra justa.21 No princípio do século XVII, a justificativa das entradas, que precisavam doravante ser autorizadas pelo governador-geral, era antes de mais nada a busca de minas e os escravos fugidos, ou ainda o "gentio da Santidade".22 Em 1627, o governadorgeral Diogo de Oliveira ainda menciona esse "gentio da Santidade" para dar conta da entrada que ia fazer o capitão Afonso Rodrigues Adorno no sertão da Bahia, mas a expressão acaba por desaparecer da documentação.23 Nos meados de Seiscentos, o "gentio da Santidade" deixa lugar a outro, falando-se então cada vez mais do "gentio bárbaro". Entretanto, houve o conflito luso-holandês, durante o qual o papel dos indígenas foi tudo menos anódino.24
A agência dos índios, sejam eles aldeados, aliados ou inimigos, foi determinante no decorrer da guerra do Brasil, influenciando-a de diversas maneiras.25 O surgimento dos "brasilianos" ao lado dos holandeses, o peso das alianças com as nações indígenas independentes, a política de atração de que foram objeto por parte dos holandeses como dos luso-castelhanos e, finalmente, as próprias lógicas indígenas vieram interferir nas rivalidades europeias, e acabaram por alterar as políticas imperiais.26 O reconhecimento unânime da sua importância para a colonização vai, no entanto, de par com a denúncia dos seus malefícios. Se alguns foram agradecidos pela Coroa, na esteira de dom Antonio Felipe Camarão, nomeado capitão-mor de todos os índios, e integraram a economia da mercê vigente no Império português, a guerra do Brasil veio igualmente favorecer as críticas dirigidas contra os índios, justificando em breve nada menos de que a sua destruição.27 Como escrevia a Câmara da Bahia logo em 1640, "os índios gentio natural da terra da banda do norte foi o que mais apressou a ruína da capitania de Pernambuco e o que maiores crueldades uzou com os moradores".28 E muitos concordariam com a opinião daquele colono, escrevendo ao rei, que " se bem se considerar os males que ao Estado do Brazil vieram causados pelos índios, não somente os derão por cativos mas também se mandarão acabar por hua vez".29
De fato, as alianças de algumas nações indígenas com os holandeses e a conversão de outras à fé reformada foram bastante ressentidas, tornando-as então rebeldes ao rei e à fé católica.30 A guerra do Brasil gerou assim medos e suspeitas, levando à sua designação como inimigo interior. E essa acusação abrangia, por vezes, todos e quaisquer índios, que necessariamente teriam trato com os do sertão.31 Essa ideia permanece e encontra-se ainda na segunda metade do século XVII, na carta que Antonio de Couros Carneiro escreveu ao rei em 1665, pedindo a sua intervenção na conquista do sertão baiano, porque "se Vmgd não acodir com se mandar castigar com brevidade arriscado esta o Brasil; este gentio pelo que temos alcançado he o que esta entre nos muito ladino e não duvidamos que se comunique com o do sertão".32 De fato, na esteira da guerra do Brasil, das vicissitudes da campanha e do caos provocado, os movimentos indígenas pelo interior intensificaram-se, aproximando-se do Recôncavo e ameaçando as freguesias mais distantes de Jaguaripe e Paraguassu. Tal situação deu lugar a um assento do governador geral Telles da Silva, logo em 1643, no qual se refere à ação dos Tapuias , às suas "crueldades e latrocínios com os moradores", ficando planejada a guerra contra eles.33 Na verdade, nem sempre esses bárbaros, como foram desde então designados, desciam para fazer guerra. Mas, como observava anos mais tarde o governador-geral Francisco Barreto, "o receio de sua ferocidade obra o mesmo efeito que a experiência dela".34
Assim, se os levantes indígenas aparecem muitas vezes, nas décadas seguintes, como reações às provocações e aos ataques injustificados dos moradores, é preciso ter em conta alguma mudança no comportamento desses chamados Tapuias.35 As suas alianças com os holandeses, como a incorporação de técnicas militares europeias, tornaram manifestas não só a sua importância como a sua resistência. Barleus referia assim como "a força de armas defendem os indígenas do sertão as suas terras contra os portugueses".36 E se muitos fugiram para o interior, uma vez os holandeses expulsos, outros resistiram, multiplicando-se os ataques contra os portugueses da Bahia até
o Maranhão.37 De algum modo, eles também fizeram então a sua aprendizagem política do Império.38
Finalmente, a guerra do Brasil contribuiu claramente para fazer evoluir estas entradas ao sertão de um assunto local, decidido e levado a cabo localmente, para sua projeção imperial. A sua integração nos circuitos de comunicação política com a Coroa testemunha o processo de institucionalização que conhecem então essas entradas, convergindo para a conquista do sertão baiano. A partir da segunda metade do século XVII, multiplicam-se as cartas enviadas do Brasil ao rei sobre o assunto, emanando tanto do governador-geral, quanto da Câmara de Salvador, ou ainda dos moradores das freguesias mais afastadas. A sua intensificação, durante os anos 1660, deve ser notada. Chegam então ao rei, como jamais antes, vários papéis referentes ao sertão baiano, entre os quais a "representação dos moradores da Bahia queixando-se de ataques do gentio bárbaro que destrói os engenhos";39 a carta de António de Couros Carneiro ao rei sobre os ataques do gentio bravo na Bahia;40 ou ainda a carta dos oficiais da Câmara da Bahia para o rei queixando-se dos ataques do gentio em Maragogipe, Cachoeira, Jaguaripe e Boipeba, datada de 1669.41
Essa crescente solicitação perante a Coroa vem reforçada pelas instruções dirigidas aos sucessivos procuradores da Bahia junto à Corte sobre a necessidade da guerra e da extinção do gentio bravo.42 Acabada a guerra dos holandeses, a defesa contra os ataques indígenas vai ligada, na correspondência com a Coroa, nada menos que com a conservação do próprio Estado do Brasil, sendo a Bahia a sua cabeça. Assim, segundo o procurador da Bahia, "bem se verifica que destas hostilidades se vai originando a infalivel ruyna não so daquella capitania mas de todo o estado do Brazil porque da cabeça delle depende a sua conservação".43 Não entraremos no relato pormenorizado dos eventos que já foram devidamente estudados.44 Basta aqui lembrar brevemente a cronologia das guerras levadas contra o índio gentio no sertão baiano. Se foi decidida logo em 1643 pelo governador-geral Telles da Silva, ela foi adiada até a década seguinte. Entre 1651 e 1656, realizam-se várias jornadas do sertão contra os Tapuias rebelados que ameaçavam o Recôncavo baiano atacando as freguesias de Paraguaçu, Jaguaripe e Cachoeira. Entre 1657 e 1659, decorre a guerra do Orobó contra os mesmos Tapuias no médio Paraguaçu. De 1669 até 1673, é a guerra do Aporá. Entre 1674 e 1679, ocorrem as guerras no São Francisco. A partir de 1687, e até 1709, tem lugar a guerra do Açu no Rio Grande do Norte, que é geralmente considerada como o início da guerra dos bárbaros.
Importa sublinhar que aparecem sempre, na documentação, como "entradas" no sertão da Bahia. A supervisão dividida entre o governador-geral e a Câmara de Salvador lembra ainda as expedições do período anterior. Da mesma maneira, poucas patentes militares foram emitidas para a ocasião. No entanto, das entradas do final do século XVI ao final do século seguinte, se a prática costumeira continua, a evolução da sua "formalidade" é evidente.45 A sua oficialização, junto com o envolvimento dos sucessivos governadoresgerais e a participação de soldados pagos pela Coroa e, sobretudo, a busca de legitimação a que dão agora lugar, testemunham uma mudança profunda. O empenho em legitimar essas expedições, durante a segunda metade do século XVII, leva ao uso e abuso da guerra justa. Este vai de par com a mobilização oportuna da categoria de bárbaro.
De fato, tratava-se de uma justificativa necessária, na esteira da lei de 1611 "sobre a liberdade do gentio da terra e a guerra que se lhe pode fazer".46 Constituindo um retrocesso em relação à lei anterior de 1609, que declarava a liberdade dos índios sem condição, a lei de 1611 recolocava a legalidade do cativeiro em caso de guerra justa ou de resgate. A partir de então, a guerra justa poderia ser declarada por uma junta composta pelo governador geral, o bispo, os membros da Relação da Bahia, assim como representantes dos missionários. Ao estabelecer títulos legítimos de redução à escravidão, abria-se, na verdade, a via para acomodamentos locais, que os colonos sempre souberam explorar.47
Este é o processo que foi encaminhado pelo governador geral Telles da Silva em 1643, referindo-se expressamente à lei de 1611. Em cumprimento dela, Telles da Silva mandou reunir uma junta, "e votando cada hum pera sy com as rezões que se lhe offerecerão na materia concordarão uniformes que a guerra se devia fazer logo ao dito gentio (...) porque a guerra conforme a direito he justa pellas causas que se appontão e sircunstancias que se declarão".48 Como dissemos, a guerra então decretada pelo governador geral não foi empreendida. No entanto, este assento estabelece claramente o quadro da justificativa da conquista do sertão baiano. Este mesmo documento é assim rememorado uma década mais tarde no governo do conde de Atouguia, tratando-se de legitimar uma nova jornada contra o índio gentio.49 Ele constitui a partir daí uma referência inegável. Seguindo o mesmo padrão, planejando-se a guerra contra os índios de Cayru, em 1671, a guerra justa é novamente decretada.50 Afinal, a decretação da guerra justa perdura até 1701 com a conquista do sertão dos Maracás.
Essa preocupação com a justificativa da guerra ao gentio na Bahia da segunda metade do século XVII vem, antes de tudo, lembrar a atualidade da escravização dos índios. Uma atualidade que não se restringia ao Estado do Maranhão, ou às bandeiras paulistas.51 Não por acaso, a Crônica de Simão de Vasconcelos, publicada em 1663, fazia justamente da escravização indígena um ponto central que dizia respeito a toda a sociedade luso-brasileira.52 O interesse na decretação da "guerra justa" é evidente. Ela significa, antes de tudo, a autorização do apresamento de escravos.53 Ao atribuir um caráter legal a essas entradas, ela garantia os direitos dos conquistadores de manterem os cativos e lhes fornecia estímulos para continuar a conquista.54 A legitimação da conquista enquanto guerra justa permitia a sua institucionalização, as solicitações feitas à Coroa visando a sua participação e, sobretudo, a remuneração de serviços. Assim, como sublinhou Pedro Puntoni, "o debate sobre a guerra justa não pode ser tomado como uma luta pela justiça (...) mas antes de mais nada como uma busca de legitimação".55 É nessa busca de legitimação que se devem entender os seus deslizes, e entrever algo mais acerca dessa conquista do sertão baiano.56
O assento, estabelecido na Relação da Bahia em março de 1669, em resposta às representações da Câmara de Salvador e dos moradores de algumas freguesias ameaçadas, permite entender melhor como essa construção vai sendo movimentada entre o recurso jurídico da guerra justa e o investimento da categoria de bárbaro, recorrendo ainda à própria experiência da colonização e às imagens desde já constituídas em torno dos índios.57 Assim, este documento começa por uma longa digressão pelo passado, recuando até o final do século XVI, para lembrar "os damnos e traições que fizerão sempre as nações bárbaras do gentio da terra" e as suas "hostilidades costumadas". As referências recorrentes à crueldade, ao canibalismo, ou ainda à inconstância desses índios, pontuam a evocação dos latrocínios, mortes, e danos ocorridos em várias partes do Recôncavo. No meio, a referência aos autos passados por António Telles da Silva, em 1643, e pelo conde de Atouguia, em 1654, referindo-se, por sua vez, ao anterior, assim como à carta régia de d. João IV, aprovando esse mesmo assento, vêm reforçar a legalidade da guerra que se pretende.58 A experiência ganha, por seu turno, força de autoridade, "pois que eram tão notórios os exemplos que havia na América, de que só com o rigor padecido se aquietarão as insolências dos bárbaros que nellas conquistarão".59 Contudo, o coro da argumentação reside nas" gravíssimas consequências de uns e outros despovoarem suas fazendas e lavouras de que tão principalmente pende o total sustento desta praça e conservação dos engenhos delas, lenhas e farinhas, que de uma e outra parte lhes vem".60 A guerra, portanto, era justa e assim foi outra vez decretada.61
Não encontramos aqui nem sequer uma referência à evangelização do gentio.62 Estamos, pelo contrário, resolutamente, no registro da guerra. Falase de invasão, de "assaltos do gentio bravo", de "indomável bárbaro", "matando e roubando".63 O "atrevimento do gentio" legitima, afinal, a aplicação do direito bélico, para "castigar a (sua) insolência".64 Estes trechos repetem o que encontramos então nas atas e nas cartas do Senado de Salvador ao rei. No entanto, importa observar a ligação explícita estabelecida entre os "damnos dos índios" e a "lavoura impedida". Segundo os oficiais da Câmara de Salvador, a guerra é necessária "athe que de todo se extingue a crueldade deste barbaro gentio que se senão atalhar a elle temos por certo que faltarão os engenhos com que se despovoarem os destrictos".65 Este mesmo raciocínio é desenvolvido por Juan Lopes Sierra no seu conhecido panegírico fúnebre, onde não faltam as referências aos "ataques do gentio barbaro que destroi os engenhos".
Este laço fundamental implica logo outro, devidamente explorado pela câmara, ligando-o à própria Fazenda Real, e estreitando assim a sua relação com a Coroa. Como lembra a Câmara de Salvador, "só com sua extinção viverão estes moradores quietos as terras se cultivarão a fazenda de Vmgde hira em crescimento e os frutos hirão em maior número as alfândegas desse reino que são os de que depende sua conservação".66 Por esse viés, afirma-se nada menos que os destinos ligados do sertão, dos engenhos e do próprio reino. Por fim, recorda-se a relação de serviço ligando a cidade da Bahia ao monarca português, obrigando de alguma maneira o envolvimento da Coroa. Porque, segundo os oficiais da câmara,
este povo se acha em tão mizeravel estado com as grandes contribuições que paga pedimos umildamente a Vossa Alteza mande assestir com sua real fazenda ao dispendio desta guerra e que se fação com os soldados desta praça porque não he izento que se lhe pague soldo estando ociozos nella e que os moradores a vão fazer e os sustentem.67
Finalmente, perpassando o discurso todo, a referência constante ao inimigo, enquanto bárbaro, vem legitimar, em última instância, a sua destruição.
Para descrever as populações indígenas que não tinham sido integradas na órbita colonial luso-brasileira, esse gentio "vizinho daquele estado", usava-se os termos de "bárbaros", "selvagens", "bravos", "gentio", ou ainda "tapuia" sem muita distinção.68 No entanto, durante a segunda metade do século XVII, tanto nos discursos da Câmara de Salvador, quanto na correspondência do governo geral, os "índios gentios" deixam de ser somente uns "selvagens", como eram ainda descritos nesses mesmos anos pelo capuchinho Martin de Nantes, para se tornar uns "bárbaros".69 A recorrência desse termo não pode deixar de ser significativa no quadro da comunicação política da cidade de Salvador com a Coroa. Com ele, pretendia-se reforçar a legitimidade da dita guerra justa, investindo-a num sentido de algum modo diferente.70
A construção do Tapuia, durante as décadas anteriores, como alteridade absoluta, foi, com certeza, essencial nesse processo.71 As características desses índios do sertão baiano também favoreciam o uso da palavra bárbaro na sua versão clássica.72 Na sua maioria, não sedentários, eles caracterizavam-se por sua heterogeneidade, suas migrações sazonais e sua diversidade linguística.73 Sendo assim, o termo de bárbaro, no contexto peculiar da conquista do sertão baiano, permitia evitar o de Tapuia e ocultar nomeadamente que a guerra conduzida então pelos luso-brasileiros contava, de fato, com o apoio e a aliança de algumas dessas nações, tanto contra outros Tapuias quanto contra Tupis, considerados eles também inimigos.74 Ocultava-se ainda a sua conotação por muito "brasileira", e o desprezo geralmente associado à guerra contra os índios, em relação à guerra europeia.75 O seu uso preferencial sugere assim a tentativa, por parte dos atores baianos, de revalorizar a guerra contra os índios em relação à guerra holandesa. Para tanto, era necessário negar que se tratava de simples selvagens, tornando-os adversários dignos de serem combatidos segundo as regras da lei, legitimando ainda a pretensão dos conquistadores em relação às terras assim adquiridas e aos poderes associados a elas.76
Importa assim ter em conta a flexibilidade e até o relativismo contido no termo de "bárbaro".77 Afinal, por detrás deste termo, encontra-se uma variedade de nações indígenas, que as autoridades coloniais sabiam muito bem distinguir quando isso fosse necessário.78 Essa redução semântica deve ser entendida enquanto parte de uma estratégia discursiva, procurando eficácia política, ao designar o "inimigo interior" a ser combatido e extinguido. Ela ainda tem outra função. Não por acaso, o gentio tornado bárbaro aparece na documentação claramente como inimigo da República. República enquanto território e lugar de jurisdições.79 Ou seja, a cidade da Bahia e o seu Recôncavo. Mais uma vez, voltamos a encontrar essa mesma ideia no texto de Juan Lopes Sierra, ao falar dos bárbaros "que são o mal desta república", e desenvolvendo os "públicos e grandes danos que ocasionam os bárbaros a esta república".80 Por isso mesmo, as guerras provocadas entre as diferentes nações de Tapuia podiam o ser com o pretexto de serem perturbadores da paz pública, permitindo reduzi-los à escravidão, ou ainda despojá-los das suas terras.81
Afinal, a diferença entre o bárbaro e o selvagem reside nesta relação.82 Importa lembrar que esse período corresponde a uma fase de institucionalização importante da América portuguesa, levando à sua plena integração política no Império. A maior densidade do sistema político-administrativo vigente vai acompanhada da intensificação notável da comunicação política com a Coroa, envolvendo ainda as relações de serviço e a sua remuneração.83 E este movimento torna-se mais particularmente evidente na "cabeça do Estado do Brasil". Junto com este processo, verifica-se, na América portuguesa, uma atenção maior para a sua própria história. Surgida na esteira da perda e restauração da Bahia em 1624-25, tal preocupação intensificou-se com a guerra do Brasil, dando lugar a vários escritos históricos.84 E é exatamente depois de 1650 que vem expressa a pretensão da Câmara da Bahia de ver escrita a história da América portuguesa, solicitando para tanto a nomeação de um cronista-mor.85 Desde então, ao falar de bárbaros, procura-se igualmente conferir à guerra contra o índio gentio outra dimensão, projetando-a no próprio império.
A importância das dinâmicas locais na conquista do sertão baiano já foi realçada por alguns autores.86 Isso não significa, porém, que este processo esteja "desconectado". Antes pelo contrário, o empenho na própria justificativa da guerra e a busca de legitimação que lhe diz respeito, revela uma interação importante com a Coroa, e a importância do quadro do Império. O investimento imperial por parte dos atores locais e, em primeiro lugar, da Câmara de Salvador, acaba por dar certa coerência ao processo todo, para além do "conjunto disforme de ações de grupos semiautônomos".87
Assim, a Coroa tal como o governo-geral na Bahia, não faziam mais que responder às demandas locais.88 O já referido assento de 1643, tomado por António Telles da Silva, vinha em resposta das "cartas que tinha do capitão de Jaguaripe e de outros moradores". O próprio governador-geral é quem lembra que
os ditos moradores requerem a elle governador e capitão geral com grande carecimento lhe mande dar guerra e senão que despovoarão suas fazendas e assy lho requerem tambem os officiaes da camera desta cidade por hum requerimento que por escrito lhe fizerão de que se inviara o treslado a sua mgde com o deste assento em que lhe representão alem das prezentes causas que são notorias a todos outras rebelliões, alevantamentos e treição dos indios deste estado contra a nação portuguesa de que sam crueis e capitaes inimigos, e pedem lhe dem guerra e os hajam por captivos na forma da dita ley.89
Da mesma maneira, a decretação da guerra justa, em 1654, segue a representação dos moradores do Peroassu e de Jaguaripe.90 Na década de 1660, o governador comunicava ao rei o novo requerimento da câmara, voltando a referir "estes danos e os que se seguiam aos engenhos se se nam evitasse o despovoarem aquellas duas freguezias de que elles tinham tam conhecidas dependencias".91
No entanto, o papel dos governadores-gerais deve ser realçado, ao responder, e até liderar com os anseios desses vassalos. Verifica-se, com efeito, que nem todos os governadores-gerais deram a mesma ênfase ao problema do gentio bárbaro durante os seus governos respectivos, nem privilegiaram da mesma maneira as jornadas do sertão. Devemos ainda ter em conta as relações que os governadores-gerais estabeleciam localmente, procurando assentar a sua própria influência política. Essas guerras contra os índios bem podiam constituir um mecanismo de poder importante no meio das relações de poder locais, mas também um lugar de tensão. Assim, não devemos esquecer que muitas das tropas de "índios mansos", indispensáveis para essas jornadas, eram de particulares.92 Por fim, como veremos, a concessão de sesmarias, que estava nas mãos dos governadores-gerais, acompanhou estreitamente o decorrer das entradas no sertão baiano.93 Este quadro vem sugerir as imbricadas relações que envolvem a conquista do sertão baiano e o jogo complexo das dinâmicas locais.94
Sendo assim, avalizando os pedidos reiterados daqueles vassalos, o Conselho Ultramarino, tal como o próprio monarca, acabam por considerar nos mesmos termos "os danos referidos feitos pelo dito gentio naquelles moradores", declarando, em 1665, "ser muito justo e conveniente que se acuda ao remedio dos vassalos de Vmgde moradores no Brazil que tão avexados se vem com as tiranias deste gentio barbaro".95 A carta régia de 1668, ordenando ao governador geral do Brasil, Alexandre de Sousa Freire, que se façam entradas contra os gentios nas vilas de Camamu, Cairu e Boipeba, reitera o mesmo raciocínio, ao encarregar-lhe "que se execute este negocio em forma que fique remediado por assim convir a quietação desses meus vassalos e conservação desse estado".96 A resposta do rei aos moradores de São Bertholomeu de Maragogipe, em 1677, é ainda do mesmo teor.97 Assim, o governo metropolitano integra a mesma expressão de "gentio bárbaro", e o campo semântico que lhe era associado. De fato, é somente no final dos anos 1660 que se levanta o problema dessa guerra contra o índio gentio e que surgem algumas dúvidas acerca do seu cativeiro. Aparecem, na verdade, à margem de uma consulta do Conselho Ultramarino no parecer do procurador da Fazenda, que declarava que "estas materias do gentio do Brazil trazem consigo grandes escrupulos de consciencia".98 No entanto, o Conselho Ultramarino permanece por muito tempo pragmático, pronunciando-se claramente em favor da continuação da guerra.99 Afinal, esta busca de legitimação resultou às mil maravilhas, obtendo não só a autorização da Coroa, mas igualmente a sua participação financeira, aceitando nomeadamente o desvio do dinheiro de dote e paz de Holanda para este fim.100 Talvez ainda mais importante para os atores locais fosse o reconhecimento dos serviços feitos na guerra aos índios, levando portanto à sua remuneração.101 Voltamos assim às dinâmicas locais e às suas ligações imperiais.
A guerra do Brasil desdobrou-se através do Atlântico com a tomada pelos holandeses do forte de São Jorge da Mina, em 1637, e do reino de Angola, em 1641, provocando uma interrupção do tráfico negreiro para a América portuguesa.102 A falta de negros de Angola aumentou, com certeza, a pressão econômica ressentida na Bahia. Mas a relação estreita estabelecida entre a ruptura do tráfico e o recrudescimento do cativeiro indígena não parece tão evidente.103 Houve, no entanto, quem estabelecesse oportunamente uma ligação entre esta falta e os índios do sertão, num arbítrio de 1644 sobre os remédios à miséria do Brasil, ao declarar que
a experiência tem mostrado o damno que recebe o Brazil com a falta de Angola (...) pello que pellas particulares noticias que tenho das cousas do Brazil hey alcançado que o unico remedio daquelle estado consiste em Vmgde dar licença aos moradores que conquistem o sertão para trazerem Indios com que se sirvão.104
A ligação estabelecida aqui entre tráfico atlântico e sertão prolonga-se na relação entre índio gentio e mocambos, sugerindo outros processos de interação.
Outra ligação do sertão baiano com o Império atlântico reside na relação estabelecida entre as entradas ao sertão e a segurança do Recôncavo baiano. Tal relação aparece de maneira recorrente na correspondência dos governadores gerais desde a década de 1650.105 Nesta, como em outros documentos, desenvolvendo os danos dos índios e o previsível despovoamento, referemse essencialmente às vilas de Cairu, Boipeba, Camamu e Jaguaripe. Ora, essas vilas encaminhavam diversos gêneros alimentícios para a cidade da Bahia, nomeadamente a farinha, mas não só; elas contribuíam ainda aos tributos e forneciam lenha para os engenhos. A dependência da cidade da Bahia em relação a elas era desde então bastante evidente. Ela aparece claramente exprimida, em 1665, na carta de António Couros Carneiro ao rei, em que pedia a intervenção breve e maciça do monarca, lembrando que "o Estado do Brazil inda he mayor muito do que he sua fama, acuda-lhe Vmgde que estas quatro villas em que assisto he do sustento da Praça da Bahia e a Bahia he a cabeça do Brazil". Depois de ter largamente demonstrado esta sua importância, ele termina declarando: "O meu intento não he mais que dizer a Vmgde o quanto util são estas quatro villas [Cairu, Boipeba, Camamu, Jaguaripe] e quanto importa porse cobro, com castigo neste gentio".106 O assento tomado na Relação da Bahia em 1669 volta a insistir, por seu turno, nas "gravíssimas consequências de uns e outros despovoarem suas fazendas e lavouras de que tão principalmente depende o total sustento desta praça e conservação dos engenhos pelas lenhas e farinhas, que de uma e outra parte lhes vem".107
No mesmo momento, a tensão em torno da fábrica de novos engenhos aumentou. A proibição da construção de novos engenhos conseguida por alguns provocou a protestação de muitos outros, chegando ao rei por via de uma petição dos senhores de engenho e lavradores de canas.108 Para além da pressão econômica que ela manifesta, esta petição é também interessante pela trama tecida entre o sertão, o gentio bárbaro e o comércio atlântico, a conquista e a lavoura do açúcar. Ela leva também a ter em mente a complexidade dos jogos de poderes locais, não dando lugar a uma frente comum na defesa da guerra aos índios. Para além da oposição dos religiosos, e dos vários conflitos com as missões dos capuchinhos e dos jesuítas presentes no São Francisco, existem também divergências no meio dos colonizadores em torno da conquista do sertão baiano.109 Por muito protocolares que sejam as atas da câmara, apagando muitas vezes os conflitos existentes em torno das várias questões discutidas no seu seio, ainda desvelam algumas divergências.110 Encontramos aí a expressão de posições divergentes em torno da continuação dessa guerra contra os gentios, revelando interesses particulares, visando a apropriação de novas terras, denunciados, de fato, por uma parte da população.111 Ficaram assim registradas, em 1657, "as rezoens que dam os moradores que ficam da parte donde o gentio custuma fazer entradas". Esses moradores declaravam que
convem não se dê fim a petiçam que em nome de João Peixoto Viegas e dos mais nella assignados se fes a este senado cuyo fim se derige a que os tapuyas que de presente estão nesta cidade por virtude das pazes com elles feitas o capitam mor Thome Dias vam acompanhado de alguns homens de suas aldeias para trazerem todos os tapuyas que nellas estam para baixo e pera se não haver de diferir a esta petição e requerimento se representam por parte dos suplicantes muitas rezões.112
Por sua vez, a relação escrita por Martin de Nantes sobre a missão dos capuchinhos no sertão baiano nos dá conta dos trâmites dos "homens poderosos da Bahia".113 Assim chamados na própria época, muito deles envolveram-se de alguma maneira na conquista do sertão baiano; todos estão igualmente ligados à gente da governança.114 Como vimos até agora, a Câmara da Bahia participou ativamente na conquista do sertão baiano. Para além das suas representações ao governador-geral e ao próprio rei sobre a necessidade da continuação da guerra contra os índios, sobre as razões que a justificavam e a sua plena legitimidade, a Câmara de Salvador assume ainda uma evidente função de organização neste empreendimento.115 Este tema ocupa bastante lugar nas atas da câmara desde os anos 1650.116 À margem das sucessivas jornadas organizadas, seguindo de perto o processo de conquista, e até misturando-se a ele, vemos multiplicarem-se os pedidos de concessão de sesmarias situadas no sertão baiano.117 Lembramos que a carta de sesmaria constitui o ato legal de legitimação da posse condicionada da terra. Mesmo assim, não era sistematicamente solicitada, o que torna os pedidos referentes ao sertão baiano tanto mais significativos. A estes pedidos devemos juntar as estratégias jurídicas para despojar os índios de suas terras, fazendo deles rebeldes.118 Por outro lado, as sesmarias concedidas durante este período, entre a faixa litorânea baiana e o médio São Francisco, eram de dimensões bastante importantes e até desproporcionadas, a ponto de serem chamadas de "sesmarias continentais".119
Beneficiando da benevolência dos sucessivos governadores-gerais, a concessão dessas sesmarias continentais vinha ao encontro da busca de prestígio social que imperava na Bahia seiscentista. Eram assim procuradas tanto por homens diretamente envolvidos nas expedições, como Garcia d'Ávila ou Antonio Guedes de Brito, quanto por outros sem nenhuma experiência da guerra dos sertões, a exemplo de Bernardo Vieira Ravasco. Conjuntamente com os pedidos de confirmação de sesmarias, deparamo-nos com um número significativo de pedidos de privilégios associados a estas terras. Oficiais da câmara e gente da governança procuravam, assim, novos privilégios, pretendendo obter jurisdições e títulos honoríficos, pedindo o senhorio poderes de donatário ou ainda cargo de alcaide-mor das vilas que prometiam erigir.120 É o caso de Lourenço de Brito Correa, pedindo licença para fazer vila à sua custa nas terras do Recôncavo para a parte de Sergipe do Conde e Peruassu, "comprando com o seu dinheiro para que possa gozar o senhorio dela com a jurisdição do cível e crime como os outros donatários".121 Ou Antonio de Brito de Castro que pede licença para fazer vila e se intitular senhor dela logo que tiver construído aquilo a que se obriga.122 E ainda Antonio Guedes de Brito que pede licença para levantar vila e ser senhorio com o título de alcaide-mor para si e seus descendentes.123
Ficam assim estreitamente ligadas "guerra ao gentio", territorialização e busca de privilégios por parte da elite baiana da segunda metade do século XVII.124 Dessas interações chegamos assim à representação dos "nobres brasilienses" invocados por Juan Lopes Sierra no seu panegírico.125 A guerra contra o chamado gentio bárbaro dá finalmente lugar a novos processos de identificação. Já foi realçado o papel da conquista na construção dos "homens bons" da América portuguesa, e a sua importância na relação destes com a Coroa.126 O caso do Rio de Janeiro é bem conhecido;127 a mesma valorização encontra-se quando da conquista do Maranhão no meio da união das Coroas;128 a guerra do Brasil suscitou ainda maior investimento por parte dos pernambucanos. Segundo Evaldo Cabral de Mello, é na segunda metade do século XVII que passaram a reivindicar o estatuto de nobreza da terra.129 Sem dúvida, os "homens bons" da Bahia aproveitaram essas mesmas virtualidades perante a Coroa. E foi nessa perspectiva que exploraram essa "invasão bárbara", tornando essa guerra contra o índio gentio um alto serviço feita à Coroa.130 Ao evocar, não mais o "gentio vizinho daquele estado", mas uns bárbaros, inimigos da República, invadindo, roubando e matando, o quadro imperial ficava envolvido, afirmando-se no caminho a Bahia como fragmento de Império. No entanto, o fundamento mercantil da sociedade da Bahia nunca é negado. Ele aparece antes como dissolvido na equação da conquista proposta na segunda metade do século XVII e profundamente incorporado na relação de serviço constantemente lembrada ao rei pelos "leais obedientes vassalos" que são os moradores da Bahia. É importante lembrar o investimento, no mesmo momento, da cidade da Bahia no seu estatuto de "cabeça do Estado do Brasil", realçando a sua dimensão imperial e aproveitando a criação, em 1676, do Arcebispado, participando do governo do Império e da reflexão sobre o seu funcionamento, preocupando-se ainda com o seu urbanismo e novas realizações arquitetônicas.131 Tal investimento no Império tinha outra faceta, implicando algures algum bárbaro.
Nessa perspectiva, o texto de Juan Lopes Sierra é mais uma vez bastante esclarecedor do que está a passar na Bahia seiscentista.132 Esse panegírico fúnebre, escrito por ocasião da morte de d. Afonso Furtado Mendonça, para celebrar a sua atuação enquanto governador geral, dirige-se, na verdade, ao referir o interesse público, aos "nobres brasilienses" da Bahia.133 Aí, não faltam as referências ao Império romano, e às suas invasões bárbaras.134 Relatando a ação do herói, durante o seu governo e no momento da sua morte, o autor evoca largamente dois temas: a busca de minas e a guerra ao gentio. Ou seja, temas que, de fato, aparecem muito rapidamente nas instruções régias confiadas ao governador geral, mas que fazem o objeto de um largo desenvolvimento no texto de Lopes Sierra. Elogiando a decisão do governador de continuar a conquista dos bárbaros, o autor invoca o serviço de Deus e de sua majestade, assim como o bem público. A guerra que se lhes faz tem a sua justificativa na referência ao "bem comum". No meio, surgem os "nobres brasilienses" baianos cujo poder se legitima. Um poder que não deixa de crescer durante a segunda metade do século XVII.135 Por coincidência, a sucessão do governo do Estado do Brasil, em 1676, vem dar-lhe a mais inesperada expressão. Morto d. Afonso Furtado Mendonça, o governo fica em breve assumido por homens todos eles naturais da Bahia.136
Desde então, a conquista do sertão baiano aparece mais do que um simples processo de limpeza do território, ou ainda uma resposta à demanda de espaço para a expansão pecuária. Ficar por aqui não permite entender plenamente a situação toda. Pelo contrário, o que vem sugerido leva igualmente a encarar a conquista do sertão baiano e a exploração da "fronteira do gentio bravo" como um verdadeiro rito de colonização, produzindo novas fronteiras, e reatualizando a relação desses vassalos com o rei.137
No final do século XVII, a extinção dos chamados Tapuias está na ordem do dia, da Bahia até os confins do Maranhão.138 De fato, instaurou-se uma linha duradoura que nos leva para além do chamado Brasil colonial.139 No entanto, a interpretação dos conflitos com os grupos indígenas, como sendo uma política da Coroa portuguesa ávida de expansionismo, não deixa de ser redutora. Tentou-se mostrar aqui, pelo contrário, as várias interações que envolvem a conquista do sertão baiano, o jogo complexo das dinâmicas locais, o papel dos índios e os efeitos das rivalidades interimperiais e, por fim, a relação com o próprio Império.140 Fica por entender melhor essa situação de violência institucionalizada na Bahia seiscentista, focando conjuntamente as suas várias escalas e os seus vários atores.
Ao estudar as estratégias discursivas locais e as representações que elas incorporavam, pudemos aproximar os rearranjos e a reavaliação pragmática a que foram submetidas, e encarar de outra maneira o processo de territorialização em curso, integrando aí a cultura política elaborada na Bahia da segunda metade do século XVII. Ficou assim esclarecido o recrudescimento do poder senhorial na Bahia da segunda metade do século XVII, tal como a intensidade renovada do problema da escravização.141 O uso da "guerra justa" e os seus deslizes na Bahia seiscentista veio igualmente mostrar a profunda interação entre as dinâmicas locais e imperiais. Na verdade, a justificativa dessas entradas nunca encaixa bem com os requisitos tradicionais da doutrina da guerra justa. É certo que realça a injúria, a hostilidade e as extorsões do "gentio bárbaro", referindo a guerra como sendo essencialmente defensiva. Mas a invocação da justa causa como motivo da guerra justa acaba por tornar-se quase sempre meramente retórica, deixando entrever contornos mais pragmáticos, fundamentados em preocupações econômicas e estratégicas. O recurso de outros critérios, como a conservação do Estado, a segurança, as necessidades econômicas, ou ainda o sossego dos vassalos, vem remeter de outra maneira para uma razão de Estado econômica.
Ainda é preciso aprofundar o desvio que constitui esta justificativa da conquista do sertão baiano.142 Tal desvio não podia deixar de suscitar tensões, nem deixaria tampouco de influir no próprio Império português. Afinal, a instauração de um sistema imperial passa pelo reconhecimento e a aceitação das realidades e conceitualizações locais de organização social, numa relação dialógica não só de negociação como de tensão.143
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