Resumo: O Saque de Roma de 410 inundou o Mediterrâneo de refugiados e fez com que questões que preocupavam a Igreja latina fossem também levadas à atenção dos cristãos do Oriente. Esse é o caso de Pelágio que, ao buscar refúgio em Hipona e depois na Palestina, levaria Agostinho a enfrentá-lo em uma controvérsia que afetaria toda a tradição cristã ocidental: o debate sobre a graça. As cartas trocadas durante a controvérsia pelagiana nos mostram não apenas o papel das redes epistolares no desenrolar desses debates, mas também de que modo os fluxos habituais de pessoas e de notícias no Mediterrâneo podiam ser mobilizados, ainda que nem sempre controlados, pelos atores desse jogo. O objetivo deste texto é investigar os meios, as formas e os atores envolvidos na comunicação entre Roma, o norte da África e a Palestina durante a controvérsia pelagiana.
Palavras-chave: Redes de informaçãoRedes de informação,controvérsia pelagianacontrovérsia pelagiana,região mediterrânearegião mediterrânea.
Abstract: The Sack of Rome in 410 AD provoked the spread of refugees well around the Mediterranean. As a result, issues that had concern the Latin Church were brought to the attention of Eastern Christians. This was the case of Pelagius, who, by seeking refuge in Hippo and then in Palestine, ultimately forced Augustine to take part in a controversy that would affect the entire Western Christian tradition: the debate on grace. The letters exchanged during the Pelagian controversy show us not only the role of epistolary networks in the course of these debates, but also how the normal flow of people and news in the Mediterranean could be mobilized, although not always controlled by players in this game. The aim of this paper is to investigate the means, the forms and the actors involved in the communication between Rome, the north Africa and Palestine during the Pelagian controversy.
Keywords: Information networks, Pelagian controversy, Mediterranean region.
ARTIGOS
CARTAS E REDES DE COMUNICAÇÃO NO MEDITERRÂNEO DURANTE A ANTIGUIDADE TARDIA: O CASO DA CONTROVÉRSIA PELAGIANA *
LETTERS AND COMMUNICATION NETWORKS IN LATE ANTIQUE MEDITERRANEAN: THE CASE OF THE PELAGIAN CONTROVERSY
Recepção: 01 Junho 2015
Aprovação: 13 Outubro 2015
O Saque de Roma de 410 pelos visigodos de Alarico teve como uma de suas inúmeras consequências provocar um afluxo de refugiados por toda parte no Mediterrâneo. 1 Entre esses desterrados que haviam deixado Roma no verão daquele ano encontrava-se um monge bretão chamado Pelágio que, ao buscar refúgio na África e depois na Palestina, levaria Agostinho de Hipona a enfrentá-lo em uma controvérsia que afetaria toda a tradição cristã ocidental: o debate sobre a graça. Pelágio era um reformador de costumes, célebre por seu rigor ascético e seu talento como diretor de consciências entre os aristocratas cristãos. Pregava um cristianismo voluntarista, exaltando as capacidades da natureza humana e exortando seus discípulos à busca metódica da perfeição. Para Agostinho, porém, à força de exaltar a natureza humana, Pelágio e seus discípulos pareciam negligenciar, senão mesmo negar, a força da graça redentora. Para o bispo de Hipona, a graça não era uma disposição natural, como supunham seus adversários, mas a presença real e o poder atuante de Deus no mundo, a única forma pela qual os seres humanos poderiam ser salvos da "massa de pecado" em que nasceram. 2 Ao "projeto de perfeição cristã para aristocratas" de Pelágio e seus seguidores, Agostinho contrapunha, portanto, uma "espiritualidade da dependência" que via a santidade como um dom escondido de Deus e não como a perfeição manifesta de um "virtuoso". 3
Agostinho não era o primeiro, nem seria o único opositor das ideias pelagianas, mas seu engajamento na controvérsia a partir de 412, quando Pelágio já se encontrava na Palestina, contribuiu para transformá-la, em pouco tempo, em um debate verdadeiramente mediterrâneo. 4 Nas palavras de Peter Brown,
depois de vencida a causa gratiae, o mundo romano ficou atulhado de obras agostinianas: panfletos, declarações formais de fé e cartas que resumiam o "sistema agostiniano" em sua forma mais extrema chegaram a destinatários tão distantes e variados quanto um governador aposentado na Provença, um padre e um advogado em Roma, Paulino em Nola, um bispo de Siracusa e os émigrés latinos em Jerusalém. 5
A esses correspondentes, nós poderíamos acrescentar agora, graças à descoberta de novas cartas, o bispo Cirilo em Alexandria e o patriarca Ático em Constantinopla. 6 Como o bispo de Hipona, assim também Jerônimo, seu maior aliado na Palestina, e seus adversários comuns no Oriente tampouco mediram esforços para influenciar, mesmo à distância, as decisões em Roma ou em Constantinopla, até que o envolvimento da corte imperial, em 418, banisse em definitivo Pelágio e os pelagianos.
A controvérsia pelagiana foi um momento crucial para a afirmação do cristianismo ocidental e a vitória das ideias de Agostinho contra Pelágio, com sua ênfase na doutrina do pecado original e sua insistência no caráter insondável da graça divina, contribuiria em muito para a conformação do que viria a ser mais tarde a Idade Média cristã. Neste artigo, porém, eu gostaria de analisar o desenvolvimento dessa controvérsia em seu próprio contexto como um caso particular da forma como os debates religiosos da Antiguidade tardia mobilizaram as comunicações no Mediterrâneo e também do modo como circulavam habitualmente as informações nesse período, apesar da crescente divisão política entre as partes oriental e ocidental e do início das guerras e invasões que resultariam na dissolução do Império romano do Ocidente. Nesse sentido, a grande quantidade de cartas trocadas durante a controvérsia, ao lado de outros documentos que chegaram até nós, como sermões e tratados, pode ser analisada de duas formas. Enquanto conjunto coerente de documentos relativos aos principais agentes em disputa, esse corpus nos permite compreender as redes de influência e sociabilidade que os líderes religiosos podiam mobilizar no contexto específico de uma controvérsia doutrinária. Mas enquanto indícios de trocas e contatos mais amplos, esses mesmos documentos também podem ser analisados de modo a compreender os fluxos normais de pessoas e de notícias que tornaram possível essa mesma mobilização.
Situar a controvérsia pelagiana no contexto da história do Mediterrâneo é, portanto, uma maneira de abordar a história da comunicação e da mobilidade de pessoas na região. Como Fernand Braudel já ressaltava, a história do Mediterrâneo não pode ser dissociada da constante mobilidade humana que o caracteriza: "O Mediterrâneo só tem unidade pelo movimento dos homens, as ligações que implica, as rotas que o conduzem". 7 Na sua ecologia, nos seus padrões demográficos e nas suas estruturas de poder político e econômico o Mediterrâneo sempre foi um lugar instável e foi essa instabilidade que, desde o início da navegação, levou indivíduos, comunidades e regiões inteiras a buscar, na saída para o mar, uma forma de compensar a sua penúria material e humana. 8 No período romano, a migração, as viagens e o comércio marítimo foram em muito favorecidos pela pax romana e pela integração política do Mediterrâneo. 9 No entanto, os efeitos da crescente separação política e cultural entre as partes oriental e ocidental do Império, a partir do século IV, não deveriam ser exagerados pelos historiadores.
No início do século V, os padrões dos contatos pelo mar estavam por certo se modificando, com o predomínio da navegação de cabotagem e o comércio de porto em porto, associado ao aumento dos ciclos do comércio e à diminuição do tamanho padrão dos navios. 10 Muitos dos deslocamentos de pessoas também começavam a ser impulsionados por fatores novos, como as migrações germânicas, que aumentaram o número de refugiados, e as peregrinações aos lugares santos, que levaram virgens, monges e outros cristãos a se arriscarem por terra e por mar em busca de um novo modo de vida ou das relíquias dos santos. 11 Mas, como Michael McCormick e outros têm ressaltado, as viagens pelo mar e nas regiões vizinhas do Mediterrâneo parecem ter sido muito mais frequentes e menos perigosas durante a Antiguidade tardia e a alta Idade Média do que já se supôs. 12 A fragmentação política da região pode ter dificultado a comunicação oficial. Mas a rápida e ampla divulgação de uma metade a outra do Mediterrâneo das histórias de homens e mulheres santos e das narrativas hagiográficas, como as estudadas por Claudia Rapp, mostra que a comunicação oral e informal assegurada por peregrinos, viajantes e comerciantes permanecia vibrante, a despeito de todas as barreiras linguísticas e políticas. 13
A controvérsia pelagiana ilustra o quanto essas redes de comunicação continuavam a conectar o Mediterrâneo e como elas podiam ser mobilizadas, mas nem sempre controladas, pelos atores em jogo. O objetivo deste texto é investigar os meios, as formas e os atores envolvidos na comunicação entre a Itália, o norte da África e o Oriente durante os primeiros anos da controvérsia pelagiana e, por meio deles, iluminar as condições mais amplas que asseguravam a circulação de pessoas, de mensagens e de notícias ao longo do Mediterrâneo durante a Antiguidade tardia.
Muito antes da chegada de Pelágio à África, um círculo de cristãos letrados se reuniu em Roma, em 404 ou 405. Nessa reunião, um bispo, amigo de Agostinho, citou a famosa prece de seu colega publicada poucos anos antes nas Confissões: "Dá-me, Senhor, o que mandas e manda o que queres". Pelágio, que se encontrava presente, protestou com todo vigor. 14 Nesse embate, nós já assistimos à mesma contraposição de opiniões sobre a moral cristã que mais tarde nortearia a controvérsia sobre a graça: a frase de Agostinho enfatizando a dependência dos homens em relação a Deus, e Pelágio defendendo a capacidade da natureza humana de, por seu livre arbítrio, agir bem. Mas, de que forma e por que caminhos opiniões divergentes como essas deixaram de ser discutidas nesses seletos círculos privados para serem debatidas nas igrejas e na praça pública e não apenas em Roma, mas em grande parte do Mediterrâneo?
Em seu tratado Sobre as atas do processo de Pelágio, de 417, Agostinho retraçava um pouco esse caminho ao rememorar como ele havia tomado conhecimento das ideias de Pelágio e como havia sido levado a discuti-las:
Quanto a mim, portanto, o que posso dizer é que eu já ouvira falar no nome de Pelágio (e com grande louvor) quando ele ainda estava longe e vivia em Roma. Depois é que começou a chegar até nós o rumor de que ele argumentava contra a graça de Deus. Embora a notícia me entristecesse e fosse anunciada por pessoas em quem eu acreditava, ainda assim desejava ouvir essas opiniões dele mesmo ou lê-las em algum dos seus livros para que, se ele viesse a contra-argumentar, não o pudesse negar. Depois, quando ele veio à África, aportou em nosso litoral, isto é, em Hipona, durante minha ausência. Soube pelos nossos, porém, que, durante sua estadia, ninguém o ouviu defender esses propósitos, até porque partiu bem mais rápido do que esperava. Mais tarde, em Cartago, lembro-me o quanto posso de tê-lo visto uma ou duas vezes. Na ocasião, eu estava ocupadíssimo com os cuidados da conferência que tivemos com os heréticos Donatistas. Ele, porém, ainda continuou sua viagem para além-mar. Enquanto isso, pela boca daqueles que se dizia serem seus discípulos, espalhava-se com fervor a sua doutrina, a tal ponto que Celéstio foi levado ao tribunal eclesiástico e recebeu uma sentença digna de sua perversidade. Acreditávamos, no entanto, que o modo mais salutar de agir contra eles seria calar os nomes dos próprios homens que eram refutados, enquanto combatíamos os seus erros, a fim de que eles fossem corrigidos mais pelo medo do tribunal eclesiástico do que punidos por sua sentença. Por isso, não cessávamos de expor nossos argumentos contra aquele mal em livros e em sermões ao povo. Então, foi-me dado um livro dele pelos servos de Deus, varões bons e honestos, Timásio e Tiago. Nele, Pelágio, como se fosse seu próprio adversário, abertamente expunha a si mesmo as objeções que lhe podiam ser feitas a respeito da graça de Deus, pela qual já se levantava contra ele um grande ódio. Ele respondia que a graça não deveria ser entendida de outro modo senão como a natureza e o livre-arbítrio que foram fundados por Deus e, às vezes, mas apenas de forma tênue e nunca clara, acrescentando a ajuda da lei ou ainda a remissão dos pecados. Foi então que me apareceu com clareza e sem a menor dúvida o quanto o veneno dessa perversão era perigoso para a salvação dos cristãos. No entanto, nem por isso acrescentei o nome de Pelágio na obra em que refutei esse seu livro, pois esperava que seria mais fácil e proveitoso se, observando as regras da amizade, poupasse ainda a sua honra, mesmo que já não pudesse poupar os seus escritos. 15
Como vemos, nessa primeira fase mais discreta da controvérsia, os embates parecem ser determinados pelo modo muito particular de difusão das ideias de Pelágio, com seus alvos restritos e muito precisos. Elas parecem ocorrer apenas em cenáculos de cristãos letrados, como o que vimos reunido em Roma em 404 ou 405, ou em cartas de exortação a piedosos aristocratas, como Melânia, Piniano e Demetríades, a quem tanto Pelágio como Agostinho e Jerônimo escreveram. 16 Nesse contexto, as notícias sobre Pelágio e seu "movimento" só podiam chegar a Agostinho por meio de informantes e amigos em comum e, acima de tudo, pela forma oral, do "ouvir-dizer": é assim que Agostinho se refere, primeiro, à boa reputação de Pelágio e, depois, aos rumores sobre suas doutrinas, transmitidas por pessoas em quem o bispo acreditava. Só mais tarde, no outono de 414, é que o bispo de Hipona consegue obter uma cópia de um livro do monge bretão, graças aos jovens Timásio e Tiago que, após terem adotado o modo de vida monástico por influência de Pelágio, foram convencidos por Agostinho do "erro" de sua doutrina. 17 O livro em questão era o De natura, uma obra que, hoje sabemos, deve ter sido escrita muitos anos antes, talvez em 405 ou 406, o que dá bem a ideia das restrições a sua circulação. 18
Durante sua passagem pela África, Pelágio não se engajou em debates públicos, como haviam feito antes dele os pregadores maniqueus. 19 Nas palavras de Agostinho, foi apenas "pela boca daqueles que se dizia serem seus discípulos" que as ideias associadas aos seus ensinamentos se tornaram conhecidas em Cartago. É verdade que o modo de ação de Celéstio, o principal propagador dessas ideias, parece ter sido mais agressivo e menos prudente do que o de Pelágio. Sua defesa da bondade inerente à natureza humana, por exemplo, não poderia deixar de chocar os cristãos africanos que haviam sido sensibilizados pela controvérsia donatista para o problema do batismo e sua necessidade para os recém-nascidos. 20 Mas foi a denúncia de outro refugiado, o diácono Paulino de Milão, que buscava impedir sua ordenação como padre da igreja local, que lhe rendeu a condenação em 411 em um tribunal eclesiástico em Cartago. 21
Celéstio logo partiu para Éfeso, onde obteria a ordenação que pretendia. Poucos anos depois, Agostinho suspeitaria de sua presença na Sicília. Mais tarde, após a condenação do pelagianismo, ele seria expulso pelas autoridades, primeiro de Roma e depois de Constantinopla. 22 Essa mobilidade demonstrada por Celéstio e, sem dúvida, também por outros pregadores itinerantes é reveladora da ação de um grupo de ativistas no interior do movimento que difundia as teses pelagianas com agressividade, mas por canais subterrâneos, de casa em casa, a partir das relações sociais (de igualdade ou de dependência) das elites sociais do momento. 23 É esse modo de ação que levou seus adversários a recorrerem às cartas de alerta, como a que Agostinho enviou ao bispo Hilário de Siracusa, em 414, para preveni-lo contra a divulgação das ideias pelagianas promovidas em sua cidade por Celéstio ou por outros discípulos de Pelágio. 24
Durante todo esse tempo, porém, como Agostinho mesmo sublinhava no excerto citado acima, os principais atores desse embate, o bispo de Hipona e o monge bretão, ainda se moviam dentro das "regras da amizade". Hoje sabemos, graças à descoberta nos anos 1990 do sermão Dolbeau 30 e por uma das cartas descobertas por Johannes Divjak nos anos 1970, que Agostinho de fato mantivera (ou tentara manter) uma correspondência com Pelágio desde a primeira carta de cortesia que o monge lhe endereçara ao aportar em Hipona, em 410, até o ano de 416. 25 Dessas várias cartas (Yves-Marie Duval identifica pelo menos quatro de Agostinho a Pelágio), apenas o texto da carta escrita por Agostinho em 410 chegou até nós. 26 Já nessa ocasião, o bispo de Hipona manifestava prudência nos termos que escolhia ao se dirigir ao monge bretão, mas parecia convidá-lo para o debate.
A correspondência era um ritual social bem definido na Antiguidade tardia. 27 Como Philippe Bruggisser observou a respeito da correspondência do senador pagão Quinto Aurélio Símaco, um contemporâneo de Agostinho, a carta era menos o suporte de uma informação do que um sinal de reconhecimento, o meio para o indivíduo reivindicar e afirmar seu pertencimento a um grupo socialmente elevado. 28 O ritual epistolar respeitava um certo número de deveres e de normas em função da qualidade do correspondente e, embora boa parte da informação fosse transmitida de forma oral pelo portador da correspondência, era a existência mesma da carta, escrita segundo essas normas e deveres da etiqueta, o que permitia aos correspondentes se reconhecerem como pares e manterem o diálogo da amizade à antiga. A preocupação de Agostinho em cultivar essa cortesia e reiterar seus protestos de amizade até mesmo em seus primeiros tratados contra as ideias de Pelágio indica uma preocupação em manter aberto esse campo de debate e reconhecimento mútuo estabelecido por meio da correspondência. Na verdade, no debate entre Agostinho e Pelágio, o respeito às regras do jogo, da arte da correspondência, foi iniciado por Pelágio, mas é também ele quem primeiro esqueceu essas regras no limiar da segunda, mais aberta e violenta, fase da controvérsia.
Instalado em Jerusalém desde 411 ou 412, Pelágio havia encontrado o apoio do patriarca João e de muitos homens ricos, como Ctesífon, mas também a hostilidade de Jerônimo e de outros latinos refugiados. 29 Em 415, a chegada do presbítero Paulo Orósio para continuar seus estudos junto a Jerônimo (e que também lhe trazia cartas de Agostinho e informações sobre a condenação de Celéstio) catalisou a oposição a Pelágio. Acusado em julho, diante do bispo João de Jerusalém, pelos bispos gauleses exilados, Lázaro e Heros, e de novo em dezembro de 415 no sínodo presidido por Eulógio de Cesareia em Dióspolis (Lydda, na Palestina), Pelágio foi inocentado de todas as acusações que lhe haviam sido feitas, embora, para isso, tivesse de se recusar a subscrever as ideias pelas quais Celéstio havia sido condenado. 30 Foi ao receber em Hipona as primeiras notícias dos eventos da Palestina que Agostinho se sentiu livre, pela primeira vez, para atacar nominalmente Pelágio em uma assembleia litúrgica, abandonando a atitude que, como vimos, ele havia cuidadosamente mantido até então, em respeito por seu adversário. 31 Nesse sermão, pronunciado em meados de maio de 416 e que conhecemos graças à sua descoberta por François Dolbeau nos anos 1990, Agostinho explicava aos seus fiéis as razões dessa reviravolta:
Posto isso, irmãos, falarei a vocês abertamente, porque não há nada a esconder: existe uma nova heresia que se insinua às escondidas e serpenteia um pouco por toda parte. Na medida do possível, nós a suportamos em silêncio até que ela irrompesse à luz do dia. Não deixamos de denunciar o próprio erro, mas sem citar nomes, para que, quando denunciávamos o erro, os homens se convertessem. (...) Mas agora, acabamos de saber que o principal autor desse dogma pernicioso, segundo nos disseram, foi absolvido e declarado católico numa reunião de bispos da parte oriental. Ele afirmou que as posições que lhe eram objetadas não eram suas e que não só não concordava com as ideias que outros espalhavam como sua doutrina, mas que também as anatematizava. As atas desse encontro, porém, não chegaram até nós. No entanto, em razão do hábito que tínhamos de lhe escrever enquanto servo de Deus, segundo as regras da amizade (e ele fazia o mesmo conosco), no ano passado, como meu filho, o padre Orósio (vindo da Hispânia, é como nós um servo de Deus), fosse ao Oriente com algumas cartas minhas, eu escrevi uma carta por seu intermédio ao próprio Pelágio, sem lhe repreender no texto da carta, mas exortando-o a ouvir do padre a mensagem que eu lhe confiara. Esse padre encontrou o lugar onde Pelágio estava já gravemente perturbado por sua pregação e pela divisão entre os irmãos. De lá, trouxe-me uma carta do santo padre Jerônimo, que nós respeitamos de modo particular por sua idade, sua santidade e sua erudição, e que todo o mundo conhece. Esse mesmo padre Jerônimo já havia escrito contra ele <uma obra...> livre-arbítrio, que também nos foi trazida. Mas Pelágio, como o disse, foi absolvido pelas atas de um sínodo confessando a graça de Deus que ele mesmo parecia negar e contestar em suas discussões. Em seguida, alguns dias atrás, veio até nós o nosso concidadão de Hipona, o diácono Palatino, o filho de Gato. Muitos de vocês conhecem sua pessoa e seu nome mais ainda. Ele veio para visitar seu pai. Ele está ali no meio dos diáconos, de pé, ele me escuta, é ele! Ele me trouxe do próprio Pelágio um pequeno livro em resposta às objeções que lhe eram feitas. Não se trata, ao que parece, de uma parte das atas, mas de uma defesa que ele sustentou e redigiu, equivalendo, talvez, àquela que ele apresentou durante o sínodo episcopal, cujas atas, como disse, ainda não chegaram até nós. Ele encarregou o diácono de me dar a ler essa sua defesa, mas não enviou nenhuma carta de acompanhamento. Daí minha preocupação de que ele negue depois ter-me enviado o que me enviou. Não quis, portanto, começar uma discussão antes de ler as atas que, com certeza, exprimem a autoridade da Igreja e dos bispos. 32
Como vemos nessa passagem, a mudança de atitude de Agostinho em relação a Pelágio resulta em parte de uma ruptura do ritual epistolar. Primeiro, porque Pelágio, ao contrário de Jerônimo, não enviou a Agostinho, por intermédio de Orósio, uma carta em resposta àquela que ele lhe havia enviado. Segundo, porque o monge bretão enviou ao bispo de Hipona uma obra sua, a chartula defensionis, por meio do diácono Palatino, mas com apenas uma mensagem oral e não uma carta de acompanhamento autentificada. A ruptura desse ritual social, aliada à desconfiança de uma atitude dúbia de seu adversário, faria com que Agostinho ainda escrevesse duas outras cartas a Pelágio, mas muito mais duras e menos corteses do que até então. 33
As notícias sobre a absolvição de Pelágio também exigiam uma resposta de Agostinho e seus colegas na África porque elas representavam ainda outros riscos. Afinal, elas colocavam em dúvida a autoridade dos bispos africanos que haviam condenado as teses pelagianas e, no limite, ameaçavam a ruptura com as igrejas orientais. Daí se segue não apenas a mudança na pregação pública de Agostinho, mas também o início da mais intensa troca epistolar da controvérsia. Desde a primavera de 416, Agostinho escreveria aos orientais sucessivas cartas para obter as atas do sínodo de Dióspolis e angariar outros apoios. Sabemos de cartas enviadas, entre outros destinatários, aos bispos Eulógio de Cesareia e João de Jerusalém, ao padre Paserião, além de Jerônimo, que é constantemente municiado com documentos. 34 À sede apostólica em Roma são enviadas pelos bispos africanos as cartas sinodais de Mileve e Cartago em 416 e uma carta pessoal em nome dos bispos Aurélio, Alípio, Agostinho, Evódio e Possídio. 35 Simpatizantes potenciais de Pelágio, como Paulino de Nola, a nobre Anícia Juliana e o padre (e futuro papa) Sixto em Roma, são alertados nos anos seguintes por cartas de Alípio e Agostinho. 36 Dárdano, o prefeito do pretório para as Gálias que havia participado dos expurgos políticos que resultaram na deposição dos acusadores derrotados de Pelágio em Dióspolis, Lázaro e Heros, também recebe de Agostinho um ataque indireto às ideias pelagianas em uma carta datada do verão de 417. 37 Essas iniciativas vêm complementar a ação de Jerônimo que, desde 415, havia feito chegar à própria corte imperial em Ravena um tratado contendo seus argumentos contra Pelágio, os Diálogos contra os pelagianos. 38 Atitudes como essas respondiam, de certo modo, às iniciativas dos partidários de Pelágio, como os laicos que fizeram chegar ao papa Inocêncio textos em sua defesa. 39
Após a primeira condenação de Pelágio e Celéstio pela sé apostólica, em 27 de janeiro de 417, seus partidários empreendem nova campanha epistolar para obter sua reabilitação. No início do ano, Valeriano, um escravo associado a uma propriedade rural do comes Valério no território de Arimínio (hoje Rimini, na Itália), é encarregado de entregar um dossiê de documentos e de defender a causa dos pelagianos junto ao bispo Cirilo de Alexandria. 40 O próprio Pelágio encaminha ao papa uma profissão de fé (seu Libellus fidei) e uma carta de justificação, acompanhada de uma carta do novo bispo de Jerusalém, Prailo, que se apresenta como garante de sua absolvição. 41 Quando o recurso de Pelágio é aceito por um sínodo romano e o monge bretão e seus seguidores são reabilitados pelo sucessor de Inocêncio, Zózimo, em 21 de setembro de 417, é a vez de seus adversários retomarem a ofensiva. O diácono milanês Paulino, ainda instalado na África, renova suas acusações em um panfleto datado de 8 de novembro e se recusa a comparecer a Roma para se explicar. 42 O bispo de Cartago, Aurélio, não hesita em escrever uma carta a Zózimo para repreendê-lo por seu recuo em relação a seu antecessor. 43
No início de 418, um bispo africano, Vindemial, encontra em Ravena o comes Valério e solicita a ele intervir junto à corte. A resposta favorável do dignitário a essas negociações se deduz pelas três cartas que enviou a Agostinho e seus colegas, mas que o bispo de Hipona receberia apenas em outubro. 44 Em 30 de abril, o imperador Honório se decide a intervir. Por um rescrito endereçado ao prefeito do pretório, Paládio, as teses defendidas por Pelágio e seus seguidores são condenadas e Celéstio é expulso de Roma. 45 Ao papa Zózimo restava apenas recuar, confirmando as decisões do concílio de Cartago de 1° de maio. 46 No final de junho, uma carta circular encaminhada a todas as igrejas condenava em definitivo como heréticas as doutrinas pelagianas. 47
Essas redes epistolares que vemos constituídas ao longo de todo esse processo são reveladoras da existência de redes de sociabilidade prévias entre aristocratas cristãos e seus diretores de consciência, mas também da formação de novas ligações clericais. 48 Num certo sentido, esse foi o resultado do deslocamento de grandes famílias aristocráticas cristãs de Roma para a Palestina durante a crise gótica na Itália. Até 410, Pelágio contava com o amplo apoio em Roma, desde a poderosa família dos Anicii até o padre e futuro papa Sixto III. Jerônimo, ao contrário, influenciava apenas os círculos clericais em torno de Marcela e Pamáquio, enquanto que Agostinho mantinha contato com a Itália essencialmente por meio de Paulino de Nola, ele mesmo simpático, em princípio, a Pelágio. 49 Mas o Saque de 410 e o consequente êxodo dos Valerii e das grandes damas da família dos Anicii provocaram, nas palavras de Charles Pietri, uma "redistribuição das direções espirituais". 50 Com as famílias senatoriais cristãs divididas entre diferentes diretores espirituais e, em parte, afastadas de Roma, foram clérigos como Paulino, o diácono de Milão, Jerônimo, Orósio, Agostinho e Bonifácio (o sucessor de Zózimo como papa) e suas relações pessoais com altos funcionários ligados à corte em Ravena que selaram o destino do pelagianismo no Ocidente. 51
Para tecer esses laços, porém, os principais atores em disputa precisaram mobilizar toda uma rede de portadores de correspondências, conhecidos e confiáveis. É graças a eles que as lideranças religiosas podiam fazer chegar suas cartas, panfletos e documentos a seus destinatários. Em uma das cartas novas de Agostinho datada do verão de 416, por exemplo, o bispo de Hipona relembrava a Jerônimo todas as correspondências que recebera e as que respondera desde o início do ano. Nela, ele nomeava seus portadores, a começar pelo diácono Palatino, que vimos presente na basílica de Hipona durante a primeira pregação pública de Agostinho contra Pelágio:
Por nosso filho, meu concidadão, o diácono Palatino, recebi a carta de tua santidade, bem como outra que tu te dignaste enviar-me por intermédio do santo bispo Lázaro. Mas eu já havia recebido antes notícias tuas por nosso filho, o padre Orósio, que me informou de muitas coisas, da mesma forma que, poucos dias antes, recebi outra carta tua enviada pelo padre Inocêncio. Por intermédio dele, eu já respondi não somente à tua dileção, mas ainda a outros de quem ele me havia dado cartas e a alguns que não me haviam escrito nada por seu intermédio. Eu lhe pedi que levasse à tua santidade as cópias necessárias de minhas cartas que produzi ao mesmo tempo para ele. (...) Agora, portanto, eu encontrei a ocasião de um portador na pessoa do servo de Deus Lucas. O diácono Palatino me assegurou que o conhece muito bem e me prometeu que ele retornará o mais rápido; também me deu garantias de que eu não deveria hesitar em lhe confiar qualquer carta para entregar. 52
A escolha de um portador idôneo, como vemos nessa passagem, dependia de laços prévios ou de testemunhos pessoais que atestassem sua confiabilidade. Isso era necessário não apenas para evitar os extravios, supressões de documentos ou interpolações (descaminhos pelos quais havia passado a própria correspondência entre Agostinho e Jerônimo muitos anos antes), mas também porque o portador de uma carta devia ser o transmissor de uma mensagem oral ao destinatário. 53 Palatino, um cidadão de Hipona expatriado no Oriente, era um antigo conhecido de Agostinho e podia por isso servir como um correio habitual. Mas seu amigo, o monge Lucas, precisava ser apresentado com garantias de que cumpriria sua missão.
A necessidade de contar com mensageiros educados e de confiança também explica porque líderes religiosos como Agostinho e Jerônimo buscavam de preferência seus portadores no próprio clero ou entre os laicos que haviam feito profissão de vida monástica, da mesma forma que os grandes proprietários recorriam ao favor de amigos ou aos serviços de seus escravos. 54 Em todo caso, buscavam sempre portadores que fizessem parte do círculo mais próximo dos remetentes ou de seus destinatários. Esse padrão, que pode ser constatado numa avaliação global da correspondência agostiniana, é ainda mais válido para o contexto específico da controvérsia pelagiana. 55 Entre os portadores das cartas de Agostinho, dos bispos africanos ou de seus correspondentes envolvidos na polêmica, alguns são bispos, como o acusador de Pelágio em Dióspolis, Lázaro, 56 ou os bispos africanos em missão eclesiástica na Itália, como Júlio 57 e Vindemial. 58 A maior parte é composta por clérigos menores, como os padres Orósio, 59 Germano, 60 Inocêncio e Firmo, 61 o diácono Palatino, o subdiácono Marcelino, 62 o clericus Projecto 63 e os acólitos da igreja romana Albino 64 e Leão, 65 ou por monges, como Justo, 66 Lupicino e Concordial, 67 além, é claro, de Lucas, o amigo de Palatino. 68 Há algumas exceções a esse padrão, como o honorabilis filius Paládio, um laico que passa às pressas por Hipona em 416 a caminho de assumir um alto cargo na administração imperial e que transmite uma carta de Agostinho a Hilário de Siracusa, 69 ou o frater Januário, um fidelissimus perlator, que transmite em 417 uma carta e uma mensagem pessoal de Alípio e Agostinho a Paulino de Nola. 70 Na verdade, nesses casos, o que justifica a escolha dos portadores é o fato de partilharem da amizade comum de destinatários e remetentes. 71
A escolha dos portadores também dependia de sua experiência como viajantes, como Agostinho o disse a Jerônimo a respeito de Orósio em uma carta de 415: "Eu buscava mesmo alguém para te enviar, mas não me ocorria facilmente um portador ao mesmo tempo idôneo, movido pela fé, disposto à obediência e habituado a viajar. Por isso, quando soube desse jovem, não pude duvidar que era aquele que pedia a Deus". 72 Confiar uma carta a um viajante habituado significava evitar que o correio se perdesse caso o portador desistisse da empreitada ou se desviasse do caminho planejado, por medo do mar, como aconteceu com o portador da primeira carta de Agostinho a Jerônimo, em 394 ou 395, permitindo, com isso, o seu extravio. 73 Isso explica a frequência de portadores recorrentes, que estão sempre a se fazer ao mar.
O padre Inocêncio, mencionado na carta de Agostinho a Jerônimo de 416 que citamos acima, por exemplo, é um portador frequente de cartas ao Oriente e a Roma, sendo encarregado inclusive de transportar cartas sinodais e documentos oficiais da Igreja africana. 74 Em 418, ele ainda faria o caminho de Roma a Belém, passando pela África, com uma carta de Ripário a Jerônimo. 75 Em 419, ele faz novamente o mesmo caminho, encarregando-se em Roma de uma carta (hoje perdida) do papa Bonifácio para Jerônimo. Passando por Cartago, recebe a missão do concílio ali reunido de levar ao bispo Cirilo de Alexandria uma carta solicitando uma cópia exata dos cânones do concílio de Niceia, além de outras cartas de Alípio e Agostinho também destinadas a Jerônimo. 76
Outro exemplo de portador frequente é Firmo, o padre que em 415 foi enviado por iniciativa de Jerônimo a Ravena, África e Sicília, para cuidar dos negócios das nobres romanas Paula e Eustóquia como seu procurador e para transmitir o tratado de Jerônimo contra Pelágio à corte em Ravena. 77 Esse mesmo padre é também o portador de uma carta do padre Sixto (o futuro papa) a Agostinho e Alípio, e do comes Valério a Agostinho em 418, além de outra no mesmo ano do bispo de Hipona aos monges Abrão e Pedro. 78 Tanto antes como depois da controvérsia pelagiana Firmo é ainda o portador de várias outras cartas: é, na verdade, o mensageiro conhecido pelo epistolário de Agostinho que fez o maior número de viagens, em particular entre a África e a Palestina. 79 Firmo, quase certamente, deve ser identificado ao mercador maniqueu que se converteu ao ouvir um sermão de Agostinho em 395/397 e que se tornou monge, antes de ser ordenado padre a força. Se esse é, de fato, o mesmo personagem, ele teria adaptado suas habilidades de navegante e mercador à sua nova vida eclesiástica. 80
Os casos dos padres Inocêncio e Firmo, que nos parecem quase como carteiros profissionais, ou mesmo do diácono Palatino, que vem do Oriente a Hipona para visitar seu pai, mostram que a rede de portadores mobilizada por Agostinho ou Jerônimo durante a controvérsia pelagiana era apenas um caso especial dos fluxos habituais de mensagens e notícias, orais e escritas, que trafegavam pelo Mediterrâneo. A importância dessa circulação habitual e incontrolada de informações no contexto de uma controvérsia teológica encontra mais de um paralelo em outros debates doutrinários da Antiguidade tardia. Não é por acaso, por exemplo, que, durante a controvérsia ariana, o bispo Atanásio se preocupasse em manter o apoio dos nauicularii de Alexandria e que o próprio Ário tivesse elaborado canções especificamente pensadas para serem cantadas pelos marinheiros. Afinal, era a partir desses agentes informais, móveis e em contato cotidiano com os mais diversos grupos sociais que suas ideias poderiam se difundir. 81
Os navios que desembarcavam em um porto como o de Hipona com mensagens e cartas para um bispo como Agostinho difundiam também, por outros meios, as notícias de além-mar para um número muito maior de pessoas. Viajantes e peregrinos retornavam com novidades para seus familiares e amigos. Marinheiros e mercadores entravam em contato com estivadores e trabalhadores do porto e com artesãos, lojistas e outros trabalhadores na cidade. Os fiéis de Hipona, dizia Agostinho em um sermão, encontravam-se quase que diariamente com marinheiros e viajantes gregos, ouvindo-os jurar por Deus em sua língua ao narrar suas histórias. 82 O que acontecia no porto podia ser rapidamente transmitido à comunidade cristã, como ocorreria em 422 ou 423 quando mais de uma centena de camponeses escravizados por traficantes gálatas seria libertada de um navio por um comando da Igreja de Hipona a partir da denúncia de um fiel que se encontrava presente. 83 Assim, nas conversas informais, do porto ao mercado, do navio às tavernas, das docas à praça pública e à igreja, as notícias mais candentes do mundo exterior podiam circular com muito mais rapidez entre a população do que as notícias oficiais. Aliás, foi mesmo esse fluxo incontrolado de notícias difundidas a partir do porto da cidade que, em última instância, fez com que Agostinho se decidisse a atacar Pelágio numa assembleia litúrgica em meados de maio de 416. Para nos darmos conta disso, retornemos uma última vez àquela pregação.
Após denunciar a "nova heresia" e nomear seu autor no trecho exposto anteriormente, Agostinho concluiu explicando a seus fiéis por que decidira lhes falar naquele dia a esse respeito:
Mas por que razão quis passar essas informações à vossa fé? Porque uma grande perturbação, não sei bem qual, eclodiu em Jerusalém e de lá nos foram dadas notícias cheias de tristeza: dois mosteiros em Belém teriam sido incendiados em um motim popular. Eu não precisaria dizer isso a vocês se não soubesse que a notícia já havia chegado a alguns de vocês. É melhor vocês ouvirem de mim todos os fatos, do que serem afetados por boatos ocultos. 84
Boatos são sempre uma forma de "notícias improvisadas" desenvolvidas em situações em que a demanda por novidades não é plenamente satisfeita. 85 Como um produto da deliberação coletiva, eles se apresentam sempre como a revelação de uma informação que os canais oficiais não oferecem ou que supostamente escondem. "O boato", já o disse Jean-Noël Kapferer, "é o mercado negro (clandestino) da informação". 86 Mas a extensão da difusão de um boato depende da habilidade dos detentores habituais da "verdade" autorizada de autenticar ou, ao contrário, desqualificar essa revelação. 87 A resposta pública de Agostinho em maio de 416 era precisamente uma tentativa de satisfazer, a partir da autoridade do púlpito, a demanda de notícias de seus paroquianos que já haviam sido previamente informados, mas apenas pelos canais informais de notícias que circulavam a partir do porto da cidade. O perigo, para Agostinho, era que as notícias sobre a absolvição de Pelágio fossem vistas pelo povo de Hipona como tendo legitimado os argumentos dos seguidores de Pelágio. Contra essa ameaça, o melhor que o bispo podia fazer para convencer seus fiéis era alertá-los, como ele faria na sequência dessa passagem, para o modo como os ensinamentos pelagianos ameaçavam suas mais queridas tradições de piedade, como as bênçãos e orações, por torná-las inúteis. 88
Voltamos, portanto, aos boatos e rumores propagados, mas agora não mais entre cenáculos de cristãos letrados e, sim, do porto de Hipona à praça e à igreja da cidade! O mesmo mar que conectava Agostinho ao mundo exterior e lhe dava armas para lutar contra seus adversários também representava a maior ameaça que ele e seus colegas deviam enfrentar. Em última instância, as conexões que Agostinho pôde criar dependiam do lugar determinante da África nas trocas e na navegação no Mediterrâneo dos séculos IV e V, o que é atestado não apenas pela ampla difusão da cerâmica africana (em particular a cerâmica fina de mesa) em ambas as partes do Império, mas também pelo custo proporcionalmente baixo das relações entre a África e o resto do mundo (com exceção da Acaia) no Edito de Preços de Diocleciano. 89 De modo inverso, a derrota de Pelágio pode ser, em parte, atribuída à distância em que ele e seus principais apoiadores se encontravam do centro em que as decisões seriam tomadas após 410, entre Roma, Ravena e Cartago. Mas o fato de que Agostinho se encontrasse no centro das rotas que ligavam a África à Itália e ao Oriente não lhe trazia apenas vantagens. Isso porque os navios que aportavam em Hipona não traziam apenas cartas para ele, mas também ideias e notícias para seus paroquianos, discutidas sem nenhum controle nas ruas e praças da cidade. São esses, com efeito, os ambíguos méritos do que Nicholas Purcell e Peregrine Horden definiram como o mar corruptor. 90
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