Resumo: O texto tem como objetivo principal analisar parte dos discursos produzidos sobre a participação de atletas interculturais - de origem africana ou antilhana - na seleção francesa de futebol na última década. Partindo dos referenciais teóricos vinculados aos estudos africanos e pós-coloniais, e fruto de uma investigação de maior dimensão, buscamos analisar a forma como a sociedade francesa - com seus conjuntos populacionais híbridos e complexos - fomenta, interpreta e rejeita, a partir das imagens e ideias construídas sobre os imigrantes africanos/antilhanos e seus descendentes, o entendimento acerca de suas identidades e das relações interculturais e multiculturais geradas pelas diásporas pós-coloniais. Selecionamos, para uma reflexão inicial, notícias veiculadas pela imprensa francesa e europeia sobre a atuação de atletas interculturais na seleção francesa após o campeonato mundial da África do Sul, em 2010.
Palavras-chave: IdentidadesIdentidades,jogadores interculturaisjogadores interculturais,diásporadiáspora.
Abstract: The text aims to propose a reflection on the discourses produced on the participation of intercultural athletes - of African or Antillean origin - in the French football team in recent years. Starting from the theoretical frameworks linked to African and postcolonial studies, and the result of a larger investigation, the intention of this essay is to examine how French society - with its population sets and complex hybrids - promotes, interprets and rejects, from the images and ideas circulating on African / Antilleans immigrants and their descendants, the understanding of their identities and intercultural and multicultural relations generated by postcolonial diasporas. From the listed assumptions selected for an initial reflection reports in the European press about the performance of athletes in intercultural French team after the World Cup in South Africa in 2010.
Keywords: Identities, intercultural players, diaspora.
Articles
IDENTIDADES EM CAMPO. DISCURSOS SOBRE A ATUAÇÃO DE JOGADORES INTERCULTURAIS DE ORIGEM AFRICANA E ANTILHANA NA SELEÇÃO FRANCESA DE FUTEBOL
IDENTITIES IN FIELD. DISCOURSES ON THE PRESENCE OF INTERCULTURAL PLAYERS OF AFRICAN AND ANTILLEAN ORIGIN IN THE FRENCH FOOTBALL TEAM
Recepção: 28 Agosto 2014
Aprovação: 10 Junho 2015
No dia 28 de abril de 2011, o periódico francês Mediapart1 publicou uma reportagem realizando desconcertante denúncia sobre suposta ação racista/xenófoba tramada nos bastidores da Federação Francesa de Futebol (FFF). 2 A matéria, que recebia a seguinte manchete "Exclusivo: dirigentes do futebol francês elaboram plano para embranquecer ' les Bleus '", 3 iria repercutir intensamente nas imprensas francesa e internacional, tencionando os imaginários europeus, inclusive das centenas de jogadores de origem africana4 - magrebina e subsaariana - e antilhana que atuavam nos campos de futebol daquele país e do continente
Segundo revelava a reportagem, em 8 de novembro de 2010, após a tumultuada e fracassada campanha da seleção francesa na Copa do Mundo da África do Sul, houve uma reunião da comissão técnica da FFF com a participação do então selecionador nacional Laurent Blanc. Neste encontro, François Blaquart (diretor técnico nacional da FFF) teria apresentado um plano com a intenção de estabelecer cotas para limitar a atuação/presença de jogadores negros - africanos, antilhanos e seus descendentes - e de origem magrebina na seleção de futebol nacional. As cotas deveriam ser implantadas nas categorias de base da FFF e nos institutos ou academias de formação de jogadores, estabelecendo, por exemplo, que jogadores de origem magrebina deveriam iniciar suas atuações nas seleções francesas no mínimo entre os 12 ou 13 anos de idade. Blaquart estimava ainda em 30% a participação desses atletas na seleção e nos centros de formação. 5
Os dirigentes consultados pelos jornalistas nos dias seguintes negavam a existência formal do plano, alegando ter sido, talvez, um comentário proferido por alguém ao longo de uma reunião qualquer, sem grande importância, ou ainda, não terem tomado conhecimento do fato. No dia 29 de abril, a ministra dos Esportes e da Juventude da França, Chantal Jouanno, anunciou a abertura de uma investigação sobre o caso e François Blaquart foi suspenso de sua função na FFF logo a seguir. 6 No entanto, em 10 de maio, Jouanno comunicava à imprensa que, após alguns depoimentos prestados, o relatório preliminar da comissão de investigação não revelava a existência de discriminação ou de qualquer infração à legislação francesa envolvendo o técnico da seleção nacional Laurent Blanc, apesar de considerar "desastrada e desnecessária" a discussão ocorrida na citada reunião da FFF. 7
Nos dias 1º, 4 e 5 de maio de 2011, os jornais The Guardian, Libération e Mediapart divulgaram a existência de uma fita com registros dos diálogos ocorridos na reunião de 8 de novembro de 2010. 8 A gravação, feita por Mohammed Belkacemi, conselheiro nacional da FFF, foi entregue, segundo alegações de Belkacemi, à FFF no dia seguinte. Independente da concretude das ideias ou dos projetos denunciados, a revelação veio acompanhada por um estilhaçar dos argumentos multiculturais que haviam coberto de glória a conquista da seleção comandada pelo meio-campista " beur " Zinedine Zidane, 9 pelo atacante franco-antilhano Thierry Henry 10 e pelo consciente defensor antilhano Lilian Thuram 11 na Copa de 1998. 12 Um dos discursos produzidos em meio à euforia pelo primeiro título mundial francês professava uma substituição das simbólicas cores da república - bleu, blanc et rouge (azul, branco e vermelho) - pela nova configuração étnica do país, espelhada na própria escalação da seleção campeã do mundo 13 - blanc, noir et beur (branco, negro e beur ). 14
De certa forma, isso era apenas uma frágil representação entusiasta de um tempo de bonança econômica e vitórias futebolísticas. Passados doze anos, dois desconcertantes fracassos (2002 e 2010) e uma grave crise econômica, o entusiasmo pela composição híbrida daquela seleção parece ter arrefecido. Talvez os efervescentes embates étnico-sociais ocorridos no outono de 2005 nos subúrbios de Paris 15 (que se repetiriam com menor intensidade em anos seguintes) já sinalizassem o desencanto e o deslocamento identitário que tencionavam as relações envolvendo os imigrantes africanos/antilhanos e seus descendentes dentro do tecido social francês. Como nos lembra Luís Antonio Groppo, no dia anterior ao início da insurreição de 2005, em 26 de outubro, o então ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, "chamou os moradores de um prédio a ser demolido em Argenteuil, na periferia de Paris, que resistiam à evacuação, de racaille (cujas traduções, como escumalha, gentalha ou ralé, não dão conta de todo seu caráter ofensivo)". 16 A região era habitada por um grande número de imigrantes e seus descendentes.
Ainda sobre os conturbados dias que se seguiram à eliminação da França na Copa de 2010, outro evento desconcertante merece destaque. No dia 25 de junho - três dias após a derrota da seleção francesa em jogo contra a África do Sul -, a sede da FFF foi invadida por um grupo formado por cerca de trinta torcedores que gritavam slogans racistas, islamofóbicos e xenófobos. O grupo reivindicava, entre outras intolerantes exigências, os seguintes pontos: "Diga ao sr. Escalettes 17 que queremos uma seleção francesa branca e cristã, sem bougnoules , 18 muçulmanos e negros... Diga a ele que vamos voltar e quebrar tudo". Os torcedores racistas/xenófobos também exibiam adesivos com os seguintes dizeres: "Aqui é Paris, não é a Argélia". 19
Porém, deixemos nossos diálogos reflexivos acerca dos eventos ocorridos na FFF e sobre a intercultural sociedade francesa para alguns parágrafos à frente. Parece ser o momento adequado de informarmos nossas intenções com o presente texto. Nosso objetivo principal com este ensaio é promover uma reflexão acerca dos discursos produzidos sobre a participação de atletas interculturais - negros (antilhanos, africanos ou de seus descendentes) e magrebinos (ou seus descendentes) - na seleção francesa de futebol. Partindo dos referenciais teóricos ligados aos estudos africanos e pós-coloniais, nossa intenção foi a de analisar a forma como a sociedade francesa - com seus conjuntos populacionais híbridos e complexos - fomenta, interpreta, incorpora e rejeita suas identidades plurais e as relações interculturais e multiculturais geradas pelas diásporas africana e antilhana ocorridas, principalmente, a partir das décadas de 1960 e 1970.
Com o apoio dos pressupostos teóricos citados selecionamos algumas notícias veiculadas pela imprensa - francesa e internacional - acerca da participação de atletas interculturais de origem africana/antilhana na seleção francesa após o campeonato mundial da África do Sul em 2010. A discriminação revelada, a polêmica intrínseca ao fato, a repercussão e os reflexos imaginários e identitários espelhados pela suposta tentativa de implantar um sistema de cotas às avessas na seleção francesa nos remetem para um ambiente europeu marcado pelos seguintes ingredientes: identidades plurais, relações interculturais, diáspora, xenofobia e racismo (e, é claro, pelo esforço lúcido de erradicar esses dois últimos nocivos ingredientes de seus cotidianos).
Tocadas, a partir da segunda metade do século XX, por um processo intenso de imigração originária dos países africanos e asiáticos (ditos por elas como ex-colônias), as sociedades europeias - como em Portugal, Inglaterra e França 20 - se viram forçadas a redefinir suas fronteiras identitárias. O outro - "africano", "negro", "árabe", "ex-colonizado" -, que antes se encontrava no "além-mar", passou a ocupar espaços próximos demais, como as ruas, os centros comerciais, as escolas, as áreas de lazer (como as arquibancadas dos estádios), os locais de trabalho (como os gramados de futebol) e os bairros residenciais das próprias cidades europeias. Segundo a pesquisadora portuguesa Isabel Gil,
(...) a deslocação populacional das periferias para as grandes metrópoles europeias, propiciada pela descolonização e pela necessidade de mão-de-obra sentida por estas sociedades no período posterior à II Guerra Mundial, aumenta ao longo da segunda metade do século XX, motivada por fenómenos económicos e sociais, pela fome, pela perseguição política e pela guerra, que constituem as chamadas diásporas do terror, mas também pela busca esperançosa do conhecimento - as diásporas da esperança - que cultivam e refazem a imaginação do centro na sua relação com as periferias. 21
Mais do que isso, esse outro (seja na figura dos imigrantes ou de seus descendentes), submerso em suas experiências diaspóricas e desterritorializantes, passou a reivindicar, com o passar dos anos, inscrições identitárias que o igualava aos membros das sociedades de acolhimento. Tal iniciativa ocorria tanto pela atribuição de pertencimento a uma identidade nacional - quando se tratava das gerações descendentes daqueles primeiros imigrantes - como pela reivindicação de atributos de igualdade jurídica, econômica e social, pelos imigrantes que passavam a residir legalmente nos países europeus. 22 Segundo Gil, a presença permanente dessas populações estrangeiras "nas sociedades europeias trouxe novos desafios, desde o planejamento urbano à organização dos currículos escolares, da criação artística à cidadania, da convivência religiosa ao cultivo dos valores democráticos". 23 No entanto, como nos lembra Stuart Hall, para uma parte significativa das populações europeias, 24 esses imigrantes continuavam a ser vistos como subalternos, reféns que eram de uma visão de mundo tributária das situações de dominação e dependência que emergiam das "antigas relações de colonização, escravidão e domínio colonial". 25
Para Hall, um dos fenômenos mais marcantes desses deslocamentos humanos contemporâneos tem sido a produção de novas identidades culturais diaspóricas. Nesse caso, como para "outros processos globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos". E um desses efeitos era é o fato de que "as identidades, concebidas como estabelecidas e estáveis", estariam "naufragando nos rochedos de uma diferenciação que prolifera". 26
Por todo o globo, os processos das chamadas migrações livres e forçadas estão mudando de composição, diversificando as culturas e pluralizando as identidades culturais dos antigos Estados-nação dominantes, das antigas potências imperiais e, de fato, do próprio globo. Os fluxos não regulados de povos e culturas são tão amplos e tão irrefreáveis quanto os fluxos patrocinados do capital e da tecnologia. Aquele inaugura um novo processo de "minorização" dentro das antigas sociedades metropolitanas, cuja homogeneidade cultural tem sido silenciosamente presumida. 27
No caso francês, como reflete com propriedade Helisane Mahlke, tanto a sociedade como o governo, desde os anos 1970, têm alternado discursos e práticas que ora se aproximam das teses integracionistas, ora das ações assimilacionistas, ao ponto de "ocasionar um agravamento da divisão no seio da sociedade, entre imigrantes e nacionais". 28
É importante ressaltar, contudo, que integração difere de assimilação. A primeira promove a participação, dentro da sociedade nacional, da expressão da pluralidade e diversidade de seus elementos, tolerando as diferenças e procurando incorporá-las para contribuir com o enriquecimento da sociedade. A assimilação, por sua vez, absorve a cultura diversa, englobando-a e dissolvendo-a dentro da cultura dominante, por isso, considera-se a assimilação como a negação da identidade do outro, através da privação de sua autonomia cultural, social e étnica. 29
Ainda desbravando esse hostil terreno das reinvenções identitárias diaspóricas pós-coloniais, Paul Gilroy nos acena com uma reflexão pontual sobre os possíveis efeitos que as diásporas contemporâneas (inclusive a africana e a antilhana) poderiam causar nas percepções identitárias nacionais europeias. A principal crítica em relação aos discursos que engendravam essas identidades pátrias concentra-se na fragilidade do argumento de que culturas nacionais homogêneas e estáveis concedem às nações históricas autenticidade e prestígio. Está é uma ação fictícia e que mal se sustenta no campo dos discursos. De qualquer forma, para sociedades iludidas com tal perspectiva, "todos os tipos de perigos se manifestavam onde quer que grandes fatias 'indigestas' de assentamentos estrangeiros tivessem lugar. O conflito era visível, sobretudo ao longo das linhas culturais". Os problemas ou distúrbios de ordem social, política ou econômica que poderiam acompanhar ou ser atribuídos à presença desses imigrantes seriam resolvidos "tão somente com o restabelecimento da simetria e da estabilidade que decorreria assim que eles fossem devolvidos aos lugares que pertenciam". 30
Por fim, Gilroy produz uma das mais fecundas definições do conceito de "diáspora", ao descrever e refletir sobre os impactos dessas relações migratórias pós-coloniais sobre os tecidos sociais e identitários europeus.
O termo possibilita uma fissura histórica e experiencial entre lugares de residência e lugares de pertencimento. Isto por sua vez estabelece uma oposição ainda mais profunda. A consciência de afiliação à diáspora encontra-se em oposição às estruturas e formas de poder distintivamente modernas, direcionadas pela complexidade institucional dos Estados-nação. A identificação da diáspora existe por fora e por vezes em oposição às formas e códigos políticos da cidadania moderna. O Estado-nação tem sido regularmente apresentado como o meio institucional capaz de por um ponto final na dispersão da diáspora. Em uma ponta do circuito comunicativo, isto deve ser realizado por meio da assimilação daqueles que estavam fora de lugar. Na outra ponta, consegue-se um resultado semelhante por meio da expectativa de seu retorno ao lugar de origem. 31
Isabel Gil nos lembra ainda que, quando uma sociedade usa a trilha da construção da identidade por meio da defesa de uma suposta cultura homogênea, ela está automaticamente excluindo a alteridade de suas dimensões. No entanto, em paradoxal constatação, parece ser consensual entre os investigadores das questões identitárias que não existe uma cultura nacional ou uma identidade nacional sem a existência de um outro , portador de uma cultura e de uma identidade distintas. Toda cultura/identidade nasce do diálogo (comunicativo, agressivo, conflituoso) com o outro e se funda na relação com o diferente. Mais do que isso, as ações de violência ou rejeição em relação ao outro se tornam mais evidentes em "momentos de perigo ou insegurança para a coesão cultural de um grupo", já que estes são "efetivamente momentos de indiferenciação - entre os limites do que identifica, o que está dentro, e do que diferencia, o que está de fora -, que exigem o restabelecimento das fronteiras como forma de reestruturação cultural da comunidade". 32
Outro dado inegável, quando pensamos os processos identitários, é o de que inexiste uma cultura nacional pura, original e homogênea. Mais do que isso, a tese de que haveria uma identidade nacional que recobriria a todos em uma articulação harmônica entre território, pessoas, valores, práticas culturais, religião e direitos parece ser insustentável. Alguns recentes eventos, motivados por ideias e práticas racistas, sexistas, homofóbicas e xenófobas ou ainda pelas intolerâncias religiosa e política, ocorridos em várias partes do mundo informariam a impossibilidade de que, em sociedades plurais, seus diversos componentes convivessem harmonicamente abrigados apenas sob o manto/argumento de pertencerem a uma "pátria". No entanto, o mesmo não pode ser dito acerca do senso comum sobre esse assunto.
Como Oliva defende em um ensaio publicado sobre o poder transformador dos debates identitários a partir da inclusão de abordagens da história africana nos sistemas de educação de sociedades multiculturais formadas pelas diásporas africanas, "as identidades não passam de representações ou projeções do que acreditamos ser, do que acreditamos ser o outro , e do que esse outro acredita que sejamos". Mais do que isso, "o processo de identificação só pode ocorrer justamente na fronteira (...) entre essas projeções. Imagens, representações e projeções de identidades se encontram nesse espaço relacional, e é nele que as identidades serão construídas". 33
Voltando nossa atenção para os jovens jogadores franceses de origem africana e antilhana, é possível afirmar que muitos desses indivíduos talvez nunca tenham se pensado dentro da categoria de africanos, antilhanos, argelinos ou marroquinos. Nasceram (ou imigraram muitos jovens), cresceram e construíram suas percepções de pertencimento, estranhamento e identidade nas cidades, ruas, escolas, campos de futebol e praças francesas. Fora o contato com os pais, familiares e amigos (muitas vezes também envolvidos nos fenômenos da diáspora pós-colonial), a África ou as Antilhas (ou os países de origem de seus ascendentes) seriam, possivelmente, conjuntos de ideias e imagens tão imprecisos e distantes como para qualquer outro francês.
Porém, se nos anos 1950 e 1960 a presença de africanos nas cidades francesas poderia ser pensada como algo transitório, a aguardar uma solução para os conturbados contextos políticos das lutas de independência em África, as décadas seguintes viram surgir novas formas de convivência entre aqueles que se pensavam franceses e esses outros indivíduos, cada vez mais numerosos e já contando com milhares de descendentes.
Essa nova configuração populacional, com imigrantes que se percebiam (ou tentavam se sentir) integrados às sociedades de acolhimento europeias - por impossibilidade de retorno ou desejo de permanência - e de seus descendentes, fomentou em França, Portugal e Inglaterra, entre outros países, um novo paradigma identitário. Ao mesmo tempo, observaram-se, por parte de intelectuais, ativistas e políticos, tentativas de teorizar e explicar as novas configurações que as identidades nacionais assumiam. É neste contexto que as teses do multiculturalismo passam a refletir a nova realidade das cidades europeias. Segundo Gil "quando surge como teoria legitimadora da ação cultural, nos anos 80, o multiculturalismo vem responder à realidade pluricultural das metrópoles europeias, no final do século XX". 34 As diásporas pós-coloniais haviam fundado outra Europa, mais complexa, híbrida e plural. Stuart Hall nos apresenta uma esclarecedora e didática definição sobre o emprego dos conceitos de multicultural e multiculturalismo, que nos auxilia na reflexão sobre suas intenções e limites.
Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de identidade "original". Em contrapartida, o termo "multiculturalismo" é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais. É usualmente utilizado no singular, significando a filosofia específica ou a doutrina que sustenta as estratégias multiculturais. (...) Longe de ser uma doutrina estabelecida, o "multiculturalismo" é uma ideia profundamente questionada. É contestado pela direita conservadora, em prol da pureza e integridade cultural da nação. 35
Passadas mais de duas décadas do uso inicial desse conceito para descrever os contextos europeus pós-coloniais, tanto as sociedades europeias, reformatadas pelas diásporas, como os cientistas sociais, que procuravam teorizar/explicar essas novas configurações identitárias, demonstravam certo esgotamento compreensivo. Como nos lembra Gil, o multiculturalismo surgiu "como uma força centrífuga, relativamente à cultura do centro, afirmando a defesa incondicional dos direitos das minorias, relativamente a práticas de homogeneização forçada, e sobrepondo as formas de pertença a uma cultura de origem aos modelos de acolhimento num espaço outro". 36
O esgotamento, neste caso, se explicava pelas permanências das tensões étnicas, raciais, religiosas, culturais, identitárias e sociais mesmo diante das afirmações das minorias e das ações de enfrentamento ao racismo, à xenofobia e às práticas correlatas. A ruptura esperada em relação ao passado e às mentalidades coloniais não havia se concretizado (mesmo que agora elas usassem uma nova roupagem) e, em determinados momentos, a violência e o desrespeito contaminavam os cenários europeus, inclusive nos campos de futebol. Os repetidos episódios de racismo nos estádios daquele continente - de Portugal até a Rússia - refletem parcialmente esta realidade. Cânticos que continuam a ecoar ofensas racistas das arquibancadas; a imitação de sons guturais ou simiescos por parte dos torcedores (e que, em ambos os casos, não se ouvem apenas das "curvas" ocupadas pelos "ultras"); bananas que são atiradas nos gramados em direção aos jogadores negros (chamados de macacos recorrentemente); e os xingamentos entre os próprios jogadores são exemplos dessas permanências, recebendo destaque frequente nos veículos de imprensa. 37
Como nos lembra Carmen Rial, a emigração de atletas para a Europa é um fenômeno que se confunde com as primeiras décadas do século XX. No entanto, ocorreu um aumento expressivo na entrada e circulação de atletas estrangeiros (latino-americanos e africanos, principalmente) no continente europeu a partir dos anos 1990, como resultado direto da Lei Bosmam, 38 "que pôs fim a aplicação de cotas de jogadores europeus nos clubes da União Europeia (...) ou do espaço econômico europeu". 39 Portanto, ao lado dos jovens atletas que surgiam das camadas populacionais de descendentes dos imigrantes que se instalaram na Europa no contexto colonial ou pós-colonial (originários, em sua maioria, dos antigos espaços de ocupação colonial), passaram a circular na Europa milhares de atletas que modificaram de forma substantiva a formação dos clubes de vários países europeus. Muitos desses atletas - oriundos desses dois grandes grupos - têm sofrido (e, muitas vezes, reagido às) constantes manifestações racistas e xenófobas protagonizadas por torcidas ultras, dirigentes, torcedores e atletas.
Um caso recente e emblemático (todos o são na verdade) acerca dessa realidade foi protagonizado por "quem" deveria estar atento e ativo no combate a essas práticas: a imprensa. No decorrer do último campeonato europeu de seleções, 40 após a vitória da Itália sobre a Inglaterra nas quartas-de-final do torneio, o jornal italiano La Gazzeta dello Sport publicou uma charge na qual retratava o jogador Mario Balotelli caricaturado como o King Kong em cima da torre que abriga o Big Ben em Londres. 41 O pedido de desculpas efetuado pelo jornal e a reportagem entusiasta publicada após a vitória sobre a Alemanha, conquistada com dois gols do atleta italiano - na qual o título Orgoglio d'Italia ("Orgulho da Itália") era estampado abaixo da foto do jogador sem camisa -, não minimizaram a polêmica e nem esvaziaram a vitrine do racismo internalizado por parte dos europeus. 42
Já no campo teórico, a perspectiva passava a ser uma aposta centrada não apenas no atributo explicativo/conceitual acerca das realidades pós-coloniais, mas na apresentação de uma proposta reflexiva que, efetivamente, transbordasse os muros acadêmicos/intelectuais e inundasse de novas posturas e práticas as sociedades europeias: o debate sobre a interculturalidade. Segundo Isabel Gil, o conceito - "intercultural" - emerge das múltiplas formas que revestem os contatos e as relações entre culturas: "embora o entendimento do contato cultural pressuponha a mediação e a troca, esta não se faz de modo simplesmente unívoco e unidirecional, como uma espécie de modelo hipodérmico de inscrição direta de uma cultura na outra". Neste caso, a interculturalidade seria sempre complexa e marcada pelos fluxos e refluxos. 43 Gil afirma ainda que
a (...) interculturalidade apresenta-se como estratégia plural, refletindo-se nas práticas simbólicas, na interação intermediática, nas formas de sociabilidade, no exercício da cidadania, nos padrões de consumo, no acesso às tecnologias, nas formas de cuidado e de ação ética. Trata-se, assim, de um processo multidireccional, heterogéneo, de agenciamento diferenciado e que assume a pluralidade como gesto de uma renovada hermenêutica cultural e política. 44
Para avançarmos com nossas reflexões precisamos lembrar que a presença de jogadores interculturais nos campeonatos/ligas de futebol e nas seleções nacionais europeias é um caso que, obviamente, transcende as fronteiras francesas. Inglaterra, Holanda, Portugal, Itália, Bélgica e Alemanha, entre outros tantos países, que ocuparam ou não o papel de potências coloniais em um passado recente, revelam em seus tecidos sociais e em suas seleções nacionais as faces multicolores, multiétnicas e plurais de suas identidades pós-coloniais.
Quando o fenômeno se reflete nos eventos esportivos de grande porte vimos surgir algumas polêmicas sobre a suposta autenticidade das seleções que espelham em suas escalações as novas faces dessas sociedades. Percebe-se uma clara confusão revelada/produzida pela imprensa esportiva ou por torcedores sobre dois movimentos diferenciados: uma suposta manobra de algumas federações/treinadores nacionais que tencionam reforçar seus elencos incluindo entre seus selecionados atletas naturalizados - sempre legitimados pelo princípio da soberania de cada país em regular e aplicar as regras de naturalização 45 - ou o processo de refundação das identidades europeias no pós-colonial - que inundam suas cidades e clubes de futebol com os milhares de descendentes dos imigrantes do pós-colonial. Independentemente de qual seja o caso - voltamos a frisar a autonomia e a legitimidade dos processos de naturalização e a convocação desses atletas para as equipes nacionais - é certo que a formação de novas identidades culturais nas sociedades francesa, inglesa, portuguesa, alemã e holandesa nas últimas décadas tencionou e transformou as antigas convicções sobre uma suposta identidade homogênea desses países, revelada entre outros estereótipos pela cor da pela branca, pelo local de nascimento ou pela origem dos ascendentes de seus cidadãos e atletas.
Para ampliarmos brevemente nossos olhares sobre esse movimento de refundação identitária espelhado pelo futebol, podemos sinalizar com os casos das seleções holandesa e alemã das últimas décadas (que merecem, obviamente, uma reflexão mais detalhada). A seleção holandesa, campeã europeia de 1988, e as equipes que participaram das copas de 1994 em diante (a Holanda não se classificou apenas para a Copa de 2002) possuíam, em seus elencos, vários jogadores originários do Suriname 46 ou que eram descendentes de imigrantes desse país sul-americano. Entre os vários jogadores, alguns são facilmente conhecidos como Frank Rijkaard (nascido em Amsterdã, sendo seu pai do Suriname), Ruud Gullit (também nascido em Amsterdã, de pai surinamês), Clarence Seedorf (nascido em Paramaribo, Suriname, em 1976), Edgar Davids (nascido em Paramaribo, em 1973) e Patrick Kluivert (nascido em Amsterdã, filho de pai surinamês).
Já a seleção alemã vem utilizando, desde a última década, vários jogadores descendentes de imigrantes turcos, poloneses, nigerianos e ganeses, entre outros. A equipe que jogou a Copa do Mundo da África do Sul possuía, entre seus 22 jogadores convocados, pelo menos 10 imigrantes ou descendentes de imigrantes. Entre eles podemos citar Lukas Podolski, Miroslav Klose e Piotr Artur Trochowski (nascidos na Polônia), Mesut Özil e Sedar Tasci (descendentes de turcos), Dennis Aogo (filho de pai nigeriano), Jérôme Boateng (nascido em Berlim filho de pai ganês) e Sami Khedira (nascido em Stuttgart, filho de pai tunisiano) 47 . A condição intercultural dessas seleções em grande medida reflete a composição híbrida dessas sociedades. Porém, voltemos nossas atenções para o caso francês.
Em junho de 2006, na véspera do jogo entre França e Inglaterra pelas oitavas de final da Copa do Mundo da Alemanha, Jean-Marie Le Pen, líder da Frente Nacional Francesa (FNF), partido de extrema direita já conhecido por suas posturas e ideias anti-imigração, racistas e xenófobas, fazia a seguinte declaração: "Sentimos que a França não se reconhece totalmente nesta equipe. Talvez o técnico tenha exagerado na proporção de jogadores de cor. Talvez, nessa área, ele devia ter sido mais cuidadoso. Talvez tenha sido influenciado por sua ideologia" 48
As reações e críticas ao comentário xenófobo, protagonizadas tanto por jogadores como pelo próprio selecionador nacional francês, foram velozes e contundentes. 49 Talvez uma parte significativa dos franceses, fosse ou não de origem africana ou antilhana, também tenha repudiado a atitude do político. Talvez (para usar o mesmo ritmo do político francês) outra parte tenha concordado silenciosa ou explicitamente com ele.
De acordo com os resultados de uma pesquisa de opinião realizada na França em 2012, 52% dos franceses afirmavam que havia estrangeiros demais no país. Em 2006, esse número era de 63%. 50 Não esqueçamos que Marine Le Pen (filha de Jean-Marie) conquistou algo próximo dos 18% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais francesas de 2012, ficando em terceiro lugar no pleito. O próprio Le Pen (pai) derrotou o socialista Lionel Jospin no primeiro turno das eleições de 2002, com 16% dos votos. Ambos, pai e filha, defendiam propostas muito semelhantes: a expulsão de imigrantes ilegais; a redução das autorizações de imigração e do número total de imigrantes na França; a "proteção da identidade francesa" e do "modo de vida francês"; e o fim do chamado "direito de solo".
Não parece causar nenhum espanto, portanto, que a declaração de não reconhecimento ou de recusa da autenticidade "multicultural" e multicolor da seleção francesa de 2006 tenha sido proferida por um representante da extrema direita europeia. Paul Gilroy nos lembra que a "Frente Nacional Francesa aceitou em suas fileiras toda uma leva de contestadores do Holocausto e apologistas da brutalidade colonial". 51 Mesmo que possua entre seus quadros políticos negros e imigrantes (como a martinicana Hugette Fatna), 52 ou ainda que tenha, supostamente, com Marine, negado o rótulo da "extrema-direita" (não deixando em nenhum momento de sê-lo), a FNF parece ser um berço fértil para a fabricação de ideias racistas e xenófobas.
No entanto, no final daquele ano de 2006, outra declaração causaria enorme desconforto no país. Georges Freche, um político do sul da França, afirmava que era contra a grande quantidade de jogadores negros que atuava na seleção francesa. Freche teria proferido o seguinte comentário durante uma reunião com dirigentes esportivos de sua região: "nove dos onzes jogadores da seleção francesa são negros. O normal seria ter três ou quatro. Tenho vergonha por este país. Desse jeito, logo serão onze negros". 53 O desconforto causado pelas declarações tinha origem em dois motivos: o primeiro, obviamente, era a clara demonstração de racismo; já o segundo era o fato dela vir de um político socialista e não da FNF. No início do ano seguinte, Freche seria afastado do Partido Socialista. 54
Para além das fronteiras ideológicas e partidárias parecia haver, por parte de alguns políticos, uma clara demonstração de desconforto e incompreensão acerca da nova configuração populacional e futebolística francesa. Por parte da FNF, isso era fruto de suas ideias extremistas (vício de origem). Por parte do líder socialista, isso era um sintoma de que as novas imagens refletidas nos espelhos identitários franceses, criadas a partir do período pós-colonial, incomodavam.
O argumento de que o certo seria ter "de três a quatro jogadores negros" na seleção nacional demonstra uma percepção similar à debatida na denunciada reunião de novembro de 2010 na FFF: o estabelecimento de uma cota. Ou seja, aceitava-se o outro rosto da identidade francesa - negro ou magrebino -, mas na "dose certa". Fosse isso resultado de uma compreensão estatística da composição da população francesa, fosse ainda a defesa de um princípio de representação de imagens - já que as seleções representam nações, a princípio - que não colocasse em risco alguns princípios da identidade nacional em França. Defendia-se, assim, um pressuposto ou crença de que existiria uma identidade ou uma cultura considerada puramente francesa. Tese essa que deve ser considerada extremamente perigosa, etnocêntrica e excludente.
Voltando à excludente reunião ocorrida na FFF em novembro de 2010, a imprensa francesa e internacional relatava que o selecionador nacional, Laurent Blanc, teria se mostrado favorável à ideia do senhor Blaquart ou, pelo menos, teria defendido uma mudança nos critérios de escolha dos jovens e futuros atletas da seleção francesa de futebol. Para Blanc seria preciso favorecer os jogadores que tivessem "a nossa cultura, a nossa história". 55
Em nossas reflexões sobre as identidades somos forçados a insistir no argumento de que todas as sociedades, culturas e identidades são híbridas e plurais. Nosso reforço sobre esta perspectiva envolve uma evidente chamada de atenção para a persistência de uma crença que entorpece grande parte dos discursos sobre os pertencimentos nacionais: a da pureza ou homogeneidade das culturas e das identidades ditas nacionais. Convencidos do contrário, ou seja, da heterogeneidade e da pluralidade das identidades, chamamos a atenção para um aspecto que não deve ser negligenciado. A reflexão aqui apresentada não se sustenta na tese de "que não temos 'uma identidade nacional'. 'Ela' ou 'elas' existem". 56 Inscrevemo-nos em uma identidade ou a refletimos perante as situações cotidianas que nos exigem uma autodeclaração ou autopercepção sobre nossas relações. Porém, mesmo nos momentos em que somos absorvidos ou forçados a divulgar o pertencimento a uma identidade - como a francesa, senegalesa, argelina ou marroquina -, ela não nos explica na totalidade.
Ou seja, os indivíduos se consideram ou são considerados franceses ou argelinos, mas estes mesmos indivíduos possuem outras inscrições identitárias, mais reveladoras, marcantes e coparticipantes em relação àquela primeira quando operam as categorias de definição e identificação. Não defendemos, dessa forma, um revirar ou negligenciar das faces ou identidades nacionais, apenas reforçamos o argumento de que essa definição "só pode ser entendida quando vista como um mosaico, composto por outras múltiplas faces", como as diversas inscrições religiosas, políticas, comportamentais, étnicas, com a presença de maiorias e minorias. Identidades plurais que talvez se articulem, se atraiam ou se rejeitem embaixo de um "guarda-chuva" de reconhecimento maior. 57 Neste sentido, as identidades individuais obviamente se relacionam com as identidades coletivas, já que sem elas seríamos socialmente incomunicáveis.
Segundo Kathryn Woodward, no caso das identidades nacionais, percebe-se também uma assimétrica relação entre as contestações do presente e os discursos produzidos sobre a história e sobre o passado. Na fabricação dos pertencimentos nacionais, "a contestação no presente busca justificação para a criação de novas - e futuras - identidades nacionais, evocando origens, mitologias e fronteiras do passado", em um exercício muito próximo ao que Benedict Anderson denominou de "comunidade imaginada". 58 Sendo assim, "a diferença entre as diversas identidades nacionais reside, portanto, nas diferentes formas pelas quais elas são imaginadas". 59
No mundo contemporâneo, essas "comunidades imaginadas" estão sendo contestadas e reconstituídas. A ideia de uma identidade europeia, por exemplo, defendida por partidos políticos de extrema-direita, surgiu, recentemente, como uma reação à suposta ameaça do "outro". Esse "outro" muito frequentemente se refere a trabalhadores da África do Norte (Marrocos, Tunísia e Argélia), os quais são representados como uma ameaça cuja origem estaria no seu suposto fundamentalismo islâmico. 60
Já para Kwame Appiah, "as identidades coletivas fornecem o que podemos chamar manuscritos: narrativas que as pessoas podem usar ao moldar os seus planos de vida e ao contar as histórias das suas vidas". 61 Ascendência, origem, religião, bairro, escola, convivências na infância e adolescência permitem que comecemos a formar nossas identidades ao longo da vida, permitem que passemos a inundá-las de autenticidade. Appiah afirma ainda que "a ética da autenticidade nos exige que expressemos o que centralmente somos", e isso apenas ocorre quando somos reconhecidos "na vida social enquanto mulheres, homossexuais, negros, católicos". No entanto, o fato das práticas discriminatórias persistirem em grande parte das sociedades contemporâneas revela a tendência de certos grupos ou indivíduos em ignorar ou desrespeitar as autenticidades individuais ou coletivas. Neste caso, parece ser de fundamental importância que façamos da cultura (inclusive as nacionais), um espaço de resistência "a estereótipos, que desafie os insultos, que suspenda as restrições". 62
Para podermos seguir adiante, pelo menos no esforço reflexivo deste ensaio, as análises de outro intelectual híbrido, o indo-britânico Homi Bhabha, nos permitem um entendimento mais abrangente sobre a questão das identidades relacionais. Bhabha defende a ideia de que o "que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais". 63 Chamados de "entre-lugares", esses momentos forneceriam "o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação que dão início a novos signos de identidade". O imaginário que construímos sobre nós e sobre os outros parece participar dessa relação ativamente, pois a imagem que construímos sobre nós mesmos possui uma "estreita relação entre as duas formas de identificação associadas com o imaginário - o narcisismo e a agressividade". 64
Portanto, não querendo desapontar o treinador da seleção francesa, seria improvável, ou indevido, julgar (ainda mais de forma tão arbitrária) quais dos jovens atletas de origem antilhana e africana inscritos nas academias ou nos clubes seriam membros de "nossa cultura" ou conhecedores de "nossa história". Essa é uma questão relacional, construída no espaço definido entre os instrumentos da autodefinição e do reconhecimento. Será que os franceses seriam apenas os brancos e católicos? Ou ainda, talvez, juntamente com uma avaliação das condições e habilidades técnicas e táticas dos jogadores, as academias de futebol devessem aplicar uma prova de história da França?
Na visitada reunião da FFF, Laurent Blanc teria sugerido ainda que um dos problemas enfrentados pelo futebol francês era o estilo ou o perfil dos jogadores negros formados pelos institutos espalhados pelo país. Este estilo estaria se infiltrando nos esquemas táticos e no padrão de jogo francês, caracterizando-se por privilegiar os jogadores "grandes, fortes e poderosos". E, nas palavras do próprio Blanc, "quem é o grande, forte, poderoso? Os negros. Essa é a maneira que é. É um fato atual. Deus sabe que nos centros de formação e academias de futebol há muitos". Mais do que isso, parecia invejar a situção da seleção campeã mundial de 2010, tanto pelo título conquistado como pela composição étnica da equipe: "os espanhóis, eles dizem, nós não temos esse problema, nós não temos negros ". 65
A preocupação com a formação de jogadores que se adequassem ou representassem um certo "estilo futebolístico" poderia estar contaminando também os centros de formação de atletas de alguns dos grandes clubes franceses. Os jornalistas do Mediapart perguntaram ao diretor técnico do Olympique Lyonnais, Rémi Garde, sobre a possibilidade de imposição das cotas étnicas nas divisões de formação do clube. Sua resposta foi emblemática:
Não é uma questão de cor, mas uma questão de perfil. Nós sempre tentamos recrutar jogadores que possuem uma certa inteligência para o jogo. Mas você pode ser grande, forte e inteligente. Vamos ouvir as mensagens do DTN, mas para o momento nós ainda não discutimos nada. 66
Sobre a mesma temática, Blaquart afirmou em uma conferência de imprensa ser preciso "priorizar a inteligência no jogo em relação à capacidade técnica e, acima de tudo, em relação ao aspecto atlético". 67 Todos os argumentos apresentados repercutem uma mesma preocupação em relação aos estilos de se jogar futebol: estratégia, inteligência, disciplina e raciocínio espelhariam um modo europeu de jogar; já o excesso de técnica e estética, indisciplina tática e força física seriam modos não europeus. Subjaz desse discurso uma inquietante/desconcertante lógica do colonialismo ou da colonialidade e de suas ideologias/teorias fundantes. O antrópologo José Paulo Florenzano nos fornece uma valiosa perspectiva sobre essa questão ao analisar uma declaração concedida pelo técnico italiano que dirigiu a seleção da Tunísia na Copa das Seleções da África em 2000.
(...) Francesco Scoglio explicava de forma didática que tipo de contribuição trouxera para os afro-árabes: "Cultura tática, capacidade de variação no jogo", mas, também, "a humildade em compreender como a constância no trabalho recompensa sempre mais do que um golpe de gênio esporádico". Ou seja: ao jogador despojado de razão, considerado inconstante, mas capaz de iluminar uma jogada com o talento considerado inato, a civilização europeia oferecia a disciplina do corpo, a ética do trabalho e os valores necessários para mover a engrenagem [do] jogo (...). 68
Gilroy defende uma percepção semelhante acerca desse processo relacional normativo entre europeus e africanos (negros e árabes) no período pós-colonial. Ao discutir os impactos midiáticos e comerciais do que seria denominado de efeitos do "multiculturalismo empresarial", afirma que "a proeminência atual conferida a corpos excepcionalmente bonitos e glamorosos, porém racializados, não faz nada para mudar as formas cotidianas de hierarquia racial". Mais do que isso, nos lembra que as "associações históricas da negritude com a infra-humanidade, brutalidade, crime, preguiça, fertilidade excessiva e ameaçadora, e assim por diante, continuam imperturbáveis". 69 Portanto, o que poderia ser a valorização de um outro padrão estético ou o reconhecimento de uma norma não-branca implícita - reflexo da proeminência que "os corpos negros" estariam recebendo na mídia, inclusive a esportiva 70 - deixava de ser um espaço de valorização ou "um sinal de oportunidade, vitalidade, inclusão e alcance global". Dessa forma, suas consequências passaram a ser justamente opostas a tal expectativa, já que o "ideal de destreza física a que os negros fizeram jus especial em troca de se verem desassociados da atividade mental assume um significado destacado". 71
Para Florenzano teríamos "de um lado, a cultura tática da civilização branca" e do outro lado, "as técnicas corporais do mundo negro". Justamente a "disjunção entre destreza física e atividade mental" lembrada por Gilroy, só que agora "levada a cabo nos aparelhos de produção dos clubes". Dessa forma, reproduzia-se no discurso dos dirigentes técnicos da FFF e de alguns clubes franceses a mesma "operação que destituía o corpo negro da condição humana, associando-o à animalidade". 72 Ou, como argumentava o diretor técnico do Lyonnais, um jogador negro até poderia ser "grande, forte e inteligente". Neste caso, a "cartografia do racismo (...) circunscrevia a área de atuação dos jogadores da diáspora, prescrevia-lhe os papéis possíveis, depurava-lhes os excessos estilísticos, curava-os dos desregramentos e das transgressões". 73 No entanto, as marcas deixadas pelas atitudes racistas e xenófobas, o processo da globalização do futebol e da desterritorialização enunciada pela diáspora lançava os jovens jogadores descendentes de imigrantes em um entre-lugar identitário nebuloso e incerto.
Outro fato revelado pela imprensa francesa naqueles dias de abril de 2011 poderia ser tomado como um claro reflexo das tensões identitárias contemporâneas que convulsionam as imagens de pertencimento e repulsa na França. Para tentar conceder alguma objetividade ao tema levantado poderíamos voltar a uma pergunta realizada alguns parágrafos atrás: afinal de contas quem são os franceses? Argumento de retórica para alguns, princípio seminal para outros, a resposta a essa questão não pode ser dada em uma única linha. No entanto, para alguns franceses, inclusive o selecionador nacional, haveria uma possibilidade fatídica de se responder a essa questão de forma linear e simplista. Sem transcender ao estilo do jogo, à origem dos jogadores ou à cor de suas peles, os franceses seriam, como já vimos até aqui, brancos/europeus, inteligentes e disciplinados. Vejamos como o componente religioso se associa a essa leitura desfocada da identidade francesa.
No verão de 2010, logo após assumir o comando dos Les Bleus, Laurent Blanc tomou a decisão de retirar do cardápio preparado aos atletas a carne halal . Talvez, para minimizar o impacto de sua decisão, a carne de porco também seria abandonada, como sinal de respeito aos jogadores muçulmanos. No entanto, a retirada dos dois tipos de carne do menu apenas aguçava o paladar da incompreensão acerca da nova dinâmica identitária francesa. O agravante nisso tudo era o fato de a carne de porco quase nunca ser servida nas refeições dos jogadores por ser considerada gordurosa demais. Outra denúncia que rondava a FFF acerca da intolerância com os atletas muçulmanos foi protagonizada em 1997, quando alguns funcionários da DTN ordenaram a revista das bolsas pertencentes aos jogadores de origem magrebina da seleção nacional sub-17 para verificar se estariam carregando seus tapetes de oração. 74
Tais posturas refletem outro intenso debate, recentemente ocorrido em França, relacionado à polêmica proibição do uso do véu de rosto inteiro pelas mulheres muçulmanas nos espaços públicos daquele país. 75 Porém, os ingredientes anteriormente citados (os retirados do cardápio da seleção) são ainda mais picantes, já que não se discutia a questão dos direitos humanos ou dos "seculares valores franceses de igualdade" - que segundo alguns legitimariam a proibição dos véus integrais, a burca e a niqab . Quando nos referimos à retirada da carne halal das refeições dos jogadores ou ao constrangimento de alguns jovens atletas terem suas bagagens fiscalizadas para saber se transportavam tapetes de oração, a atitude se transforma em uma clara demonstração de intolerância e desrespeito em relação a um outro tão próximo, mas que, por estar em uma zona de fronteira identitária mista - como a da religião minoritária -, se torna distante.
Ou seja, apesar de ser a segunda maior religião praticada em solo francês - por milhões de imigrantes e franceses -, o islamismo não é percebido como parte integrante da identidade francesa. Neste caso, assim como nas outras três dimensões anteriormente abordadas - a da cor, a da origem e a do estilo -, o problema estaria, fundamentalmente, no olhar lançado sobre a França pós-colonial. A nova França está lá. Nas ruas, praças, escolas, mesquitas, restaurantes, mercados, nos nomes e sobrenomes, nos campos de futebol e na seleção nacional. No entanto, muitos não conseguem vê-la, ou não querem vê-la.
Em 18 de novembro de 2009, após a vitória por um gol no jogo extra contra o Egito, a seleção argelina de futebol se classificava para disputar uma Copa do Mundo depois de 24 anos. Naquela noite, milhares de torcedores (imigrantes ou franceses) comemoram o feito em festejos que avançaram pela madrugada e tomaram conta de uma das mais simbólicas avenidas de Paris, a Champs-Elysées. 76 Mais emblemático do que as comemorações entusiáticas 77 pela classificação da seleção magrebina era o fato de que, dos 23 jogadores argelinos que disputariam o mundial no ano seguinte, 17 haviam nascido na França, sendo descendentes de argelinos deslocados para o continente europeu na diáspora pós-colonial. 78
A opção pela seleção nacional de seus ascendentes quebrava ou invertia uma tendência de naturalizações de atletas para a disputa de competições de grande expressão e que se explicavam, em sua grande maioria, por questões comerciais, pela certeza de poder jogar uma copa do mundo ou pela grande concorrência de atletas em seus países de origem. Havia, no caso argelino, algo distinto, mesmo que os fatores anteriores não devam ser desprezados em absoluto. Pela primeira vez, a competição organizada pela Fifa testemunhava um fato como este: uma seleção ser representada por uma maioria de jogadores que nasceu fora do país. Um desses atletas, o defensor Habib Bellaid concedeu a seguinte declaração à imprensa argelina:
Já vesti as cores de todas as seleções de base francesas, até a sub-21. Apesar disso, não sinto nenhuma ligação com estas equipes. Estou persuadido de que, no fim das contas, para eles somos apenas uns árabes. Então, estes jogadores que escolhem o país de suas famílias estão respondendo a uma chamada do coração. 79
As explicações para o fenômeno que construiu a seleção argelina de 2010 não podem desconsiderar a condição identitária desses jovens jogadores ao longo de suas vidas. Lançados para a zona fronteiriça do hibridismo da identidade francesa, ou seja, para a fronteira relacional onde o eu (o "legítimo" francês) e o outro (imigrante, antilhano, negro, muçulmano, árabe, afro-francês, franco-antilhano) projetam seus reflexos identitários, os jogadores franco-argelinos optaram pela identidade daqueles que talvez tenham sido rejeitados como eles mesmos foram, ou seja, os imigrantes argelinos. Como afirma Homi Bhabha a "identificação (...) é sempre o retorno de uma imagem de identidade que traz a marca da fissura no lugar do outro de onde ela vem". 80 E foi justamente a fissura, o desconforto, o não-lugar que possibilitaram um refluxo identitário desses indivíduos que se sentiam desenraizados e produziram um fenômeno até então não conhecido pelo mundo do futebol. Enfim, como reforça Pereira, "os argelinos e os seus descendentes continuam a ser vistos sob o prisma do colonialismo, da guerra da Argélia que se saldou pela independência argelina e pelos sentimentos antimuçulmanos". 81
É claro que essa situação não ficou de fora da denunciada reunião de novembro de 2010 na FFF. Em 6 de maio de 2011, na sequência das reportagens e da polêmica causada pelas manchetes do dia 28 de abril, o jornal Mediapart publicava outra matéria que abordava justamente tal questão. Segundo revelava a reportagem, funcionários da FFF teriam elaborado um gráfico no começo daquele ano no qual identificavam em todas as seleções nacionais jogadores que, devido à origem de suas famílias, poderiam atuar em outras seleções mediante a obtenção da dupla nacionalidade. 82
Ao ser questionado sobre os critérios que embasaram a produção do gráfico, o senhor Blaquart afirmou que os jogadores identificados como possíveis naturalizados eram aqueles que "poderiam ser atraídos, sentimentalmente, afetivamente, pela nação de que um membro de sua família veio". 83 Laurent Blanc também teria se manifestado sobre o assunto alertando para o perigo de os jovens cidadãos franceses de origem estrangeira optarem por jogar pelos países do norte da África após terem sido formados pelas academias francesas de futebol. De fato isso ocorreu, mas os motivos revelam, para além da relação emocional com os países de seus pais, uma clara demonstração dos efeitos causados pelos conflitos psicológicos de indivíduos marcados pelas ações racistas e xenófobas no interior do tecido social francês, como vimos no depoimento do jovem Habib Bellaid.
Apesar de se preocupar com a emigração de quadros futebolísticos formados nos institutos franceses, o treinador Blanc questionou a precisão do gráfico, afirmando que, no caso dos jogadores negros, tirando os antilhanos, todos eram de origem africana, podendo assim jogar pelas seleções africanas. Para finalizar a discussão, Blaquart reconhecia a imprecisão do gráfico, alegando que o "estudo não era 100 por cento categórico". Por fim, para faciltar o entendimento sobre os critérios, ele afirmou: "Olha, não é difícil saber. Ele está ligado ao nome, por exemplo". 84 Parece ser desnecessário comentar os critérios do senhor Blaquart.
No dia 6 de maio de 2011, na sequência causada pela polêmica do caso da reunião da FFF, o jornal francês Libération publicou em sua capa a seguinte manchete: " Le foot français est-il raciste? " (O futebol francês é racista?). No esforço de digerir o impacto dos eventos relatados pela imprensa naqueles dias e tentar refletir acerca das amplas apreensões e alcances dos motivos que teriam alimentado a proposta de criação de cotas na seleção francesa - mesmo que desmascarada ainda em fase inicial ou sendo um mero comentário acatado por muitos em uma reunião - o jornal trazia uma série de reportagens e opiniões sobre o assunto. 85
Parece-me que as ideias expostas em parte dos vários artigos publicados e as próprias evidências deixadas pela reunião de 8 de novembro de 2010 concedem as seguintes respostas à questão estampada na manchete: sim, o futebol francês convivia com casos de racismo e xenofobia; sim, o futebol europeu convivia com casos de racismo e xenofobia; e, para completar o quadro, sim, a sociedade francesa convivia cotidianamente com casos de racismo e xenofobia. A perspectiva da "convivência" - não contra o outro , mas respeitosamente com o outro - é, no caso apresentado, o objetivo a ser perseguido.
Este é um aspecto central da (re)fundação de alguns dos princípios relacionais das sociedades contemporâneas. Os esforços do multiculturalismo produzidos nos anos 1980 e 1990 foram incapazes de (re)fundar os paradigmas identitários e as relações cotidianas nos espaços franceses e europeus. Como resume Gil, na última década, diante do agravamento das situações de conflito e violência nos interiores de seus tecidos sociais, tornou-se imperioso "demonstrar a falibilidade do isolamento, ou de formas encapotadas de uma nova hegemonia, reforçando a política da hospitalidade, da reciprocidade, do reconhecimento, da convivialidade, da interculturalidade". 86 Enfim,
Trata-se de pensar as culturas inseridas em tradições particulares, de as entender na sua especificidade e de partir do conhecimento da sua diferença, pelo respeito e não pela condescendência, para um projeto de habitabilidade comum, sem negar a crítica, a inevitabilidade do conflito, mas igualmente a universalidade da dignidade humana. A este projeto intercultural dá Paul Gilroy o nome de convivialidade. 87
Talvez, em algum ponto de um futuro próximo, consigamos seguir os princípios da convivialidade, construídos a partir do reconhecimento da "universalidade da dignidade humana", do "cosmopolitismo", do respeito e valorização das singularidades (e não apenas dos valores nacionais, dos signos de origem ou dos fundamentalismos religioso e político).
Talvez, nesse dia, o sonho do atuante ex-jogador da seleção " blanc, noir et beur ", Lilian Thuram, não precise ser mais enunciado, podendo ser compartilhado: "Sonho com um mundo no qual sejamos todos iguais na própria diversidade". Ou ainda, possamos compartilhar da libertadora perspectiva do lúcido Clarence Seedorf ao definir sua identidade: "Quando me perguntam da onde sou, respondo que sou do mundo. Nasci no Suriname, com dois anos fui para a Holanda, depois vivi na Espanha e na Itália, amanhã posso estar na Tailândia". 88
Talvez nesse dia, as manchetes dos jornais estampem outra notícia: "Jogos comemorativos entre as seleções francesa, argelina e senegalesa celebram mais um aniversário dos últimos casos de racismo e xenofobia registrados no futebol francês".
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