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ENTRE O PASSADO E O FUTURO DAS COLEÇÕES E ACERVOS DE MÚSICA NO BRASIL *
BETWEEN PAST AND FUTURE OF MUSIC COLLECTIONS IN BRAZIL
ENTRE O PASSADO E O FUTURO DAS COLEÇÕES E ACERVOS DE MÚSICA NO BRASIL *
Revista de História (São Paulo), núm. 173, pp. 457-484, 2015
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História
Recepção: 08 Dezembro 2014
Aprovação: 10 Junho 2015
Resumo: A cultura digital que se instaurou no século XXI trouxe novos parâmetros para a criação, difusão e preservação da música no Brasil e no mundo. Investigar as narrativas que se criam neste ambiente contemporâneo, em suas construções da memória e da história, exige do historiador da cultura uma nova postura conceitual metodológica, institucional e discursiva. Este artigo se propõe a diagnosticar e sistematizar esses desafios com o objetivo de matizar algumas perspectivas para este novo cenário conceitual, em torno dos conceitos desenvolvidos aqui da "memória em disputa" e da "memória equivalente".
Palavras-chave: Memória, história, música, MP3, acervos sonoros, coleções sonoras, cultura digital.
Abstract: The digital culture that has taken place in the twenty-first century brought new standards for the creation, dissemination and preservation of Brazilian music. In order to investigate the narratives that are created in this contemporary setting, in their constructions of memory and history, the cultural historian requires a new conceptual, methodological, institutional and discursive approach. This research aims to diagnose and systematize these challenges in order to hue some perspectives for this new conceptual scenario, around the concepts developed here of "memory in dispute" and "equivalent memory".
Keywords: Memory, history, music, MP3, sound collections, digital culture.
O prazer e a obsessão em colecionar registros musicais atravessam os tempos e parecem ser definidores para a criação de acervos sonoros construídos sob diferentes perspectivas da memória, da história e do esquecimento. Vejamos duas experiências que nos revelam algumas semelhanças e muitas diferenças entre as práticas e os hábitos dos mundos analógico e digital1 em torno da criação, difusão e preservação do sons:
As coleções do meu avô me fizeram um colecionador. Mas o que ele fez com os livros, eu fiz com os discos. Tudo começou com os Beatles, quando eu era criança. Quando eu era adolescente, eu amava Black Sabbath e vendi todos os meus discos dos Beatles. Quando eu me tornei um hippie, eu adorava os Grateful Dead e vendi todos os meus discos do Black Sabbath. Quando eu me tornei um punk, eu amava os Sex Pistols e vendi todos os meus discos dos Grateful Dead. Quando eu me tornei um vanguardista, eu amava John Cage e vendi todos os discos do Sex Pistols. Eu nunca vendi os meus discos de John Cage, mas, eventualmente, fui comprando de volta todos os meus Beatles, Black Sabbath, Grateful Dead e Sex Pistols. Eu aprendi que, no final do jogo, um colecionador nunca deve vender qualquer coisa. Porque todas as aquisições constituem uma história pessoal, uma maneira de traçar a vida intelectual 5 .
O site "Ubu Web" é território em que Goldsmith experimenta os limites das leis de direito autoral compartilhando arquivos livremente. O site dá acesso grátis e universal a obras que estavam "desaparecidas" ou eram itens exclusivos de colecionadores que guardavam o conteúdo restrito à esfera privada. Só quando reivindicado por seus autores (ou representantes) é que são negociadas, caso a caso, as permissões de uso. Em 2011, o site foi atacado por hackers , deixando-o fora do ar por alguns dias, o que fez com que Goldsmith transferisse seus provedores para o México 6 .
Analógicodigital
No Brasil contemporâneo, uma experiência semelhante à de Kenneth Goldsmith, mas numa escala bem menor, é a do blog "Um que tenha" (UTQ), administrado por Fulano Sicrano ( persona hacker de seu autor desconhecido). Na última década, o blog tornou-se um polo referencial para a pesquisa e compartilhamento na internet da música popular comercial brasileira do final da década de 1960 até os lançamentos atuais. O UTQ se comporta como um imenso banco de dados organizado unicamente por uma lista alfabética, a partir de um critério pessoal de escolhas, isto é, do gosto do seu autor. No início do ano de 2012, o blog saiu do ar deixando seus usuários, do dia para a noite, sem acesso ao seu acervo. O bloqueio foi realizado pelo servidor do blog, a empresa Rapidshare, por infringir as leis brasileiras atuais que proíbem a reprodução de obra musical sem a autorização prévia dos detentores dos direitos autorais (no caso, grandes gravadoras como Universal, Sony, entre outras). Toda a coleção foi "perdida". Mas voltou ao ar, desafiando novamente a lei, porque Fulano Sicrano tinha feito um backup parcial num HD ( hard disk ) e seus usuários foram solicitados a participar da reconstrução do blog recompartilhando os arquivos MP3 que haviam baixado 7 .
Entre idas e vindas, estes arquivos possivelmente serviram para o desfrute de audiófilos ou foram usados para criar mashups e remixes8 ou, ainda, talvez tenham sido reorganizados em um pen drive como presente afetivo. Este trânsito intenso de troca é prática comum neste cenário que se convencionou chamar de "cultura digital" 9 .
É claro que a prática da criação e troca de coleções musicais não é novidade da nossa geração. Como vimos com o exemplo de Almirante, colecionar música é uma herança cultural do mundo do disco. Freud notou isso no momento em que se popularizavam os equipamentos de registro sonoro, em O mal-estar na civilização (1930), ao reconhecer que o disco de gramofone guarda as "transitórias impressões sonoras do homem" que, "no fundo, (...) são materializações de sua faculdade de lembrar, de sua memória" 10 . Depois de mais de um século de criações e registros sonoros dos mais diferentes interesses e resultados estéticos, nos acostumamos a "materializar" nossa memória sonora em suportes físicos. Selecionamos, organizamos e guardamos discos em coleções pessoais ou acervos institucionais como memória ou história musical do mundo 11 . Criou-se, assim, uma cultura em torno do disco que, como observou Lorenzo Mammí: "já não era mais um som: era um mundo para o qual con corriam diferentes linguagens, um sistema de códigos, um modelo de vida" 12 .
Ao longo do século XX, o fonograma tornou-se um documento importante para a pesquisa acadêmica nas áreas da musicologia (música), sobretudo no subcampo da etnomusicologia, dos estudos culturais (sociologia/ antropologia) e da história cultural (história) 13 . Como observou o etnomusicólogo Samuel Araújo, os acervos fonográficos "passaram, de certa forma, a representar para as músicas ágrafas o que os acervos de manuscritos representavam para música erudita do século XIX" 14 . Para os historiadores da cultura, a música e os sons conservados em discos abriram um grandioso campo de pesquisa que obrigou uma nova postura teórico-metodológica para a sua incorporação e tratamento 15 . Os historiadores José Vinci de Moraes e Elias Thomé Saliba apontam que
o desenvolvimento no século XX da "música em conserva" materializada nos fonogramas significou enorme impacto nestas relações e transformou profundamente os processos de memorização, registro, divulgação e reprodução da música, criando um novo mundo de sons, técnicas, sociabilidades e escutas. Ao lado das inumeráveis fontes indiretas, os fonogramas aparecem assim como recursos valiosos e mais acessíveis para os historiadores chegarem aos sons do passado. Porém, seria a associação de todos esses elementos, certamente em condições desiguais e distintas, a depender da época e temática abordada pelo historiador, que nos levariam à "sensibilidade dos sons" do passado 16 .
No Brasil, as coleções de discos de alguns obstinados pesquisadores serviram de base material para a construção de narrativas sobre a história da música brasileira. Os casos mais eloquentes e complexos são, sem dúvida, os de Mário de Andrade e José Ramos Tinhorão, mas o pesquisador Humberto Franceschi e, como vimos, Almirante também criaram, em escala diferente, suas narrativas 17 . Destaco intencionalmente estes quatro nomes porque suas coleções tornaram-se institucionais, diferentes de tantos outros colecionadores que mantiveram ou mantêm ainda hoje suas coleções no âmbito privado. Foi durante a década de 1960 que Mário de Andrade 18 e Almirante tiveram suas coleções incorporadas pelo poder público através do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (em 1968) e do Museu da Imagem e do Som do Estado do Rio de Janeiro (em 1965), respectivamente, e, no final da década de 1990, que as coleções de Tinhorão e Franceschi foram incorporadas pelo Instituto Moreira Salles, uma instituição privada. A despeito da natureza pública ou privada dessas instituições (assunto que não é o foco de nossa discussão, embora seja importante reconhecer a pertinência do tema para a compreensão dos processos mais amplos de institucionalização na cultura no Brasil) o que ocorreu nestes casos foi a transformação de arquivos coletados e guardados como memória pessoal (tanto individual como coletiva, de acordo com Maurice Halbwach 19 ) em documentos institucionais, portanto, "históricos".
Contudo, não podemos perder de vista que os processos de construção ou invenção da memória e da história passam muitas vezes por aquilo que Michael de Certeau definiu como a criação dos "discursos estratégicos" e dos "exercícios de guerrilha". Opostos entre si, sem dúvida, mas complementares sob um ponto de vista mais amplo. O primeiro assume as bases institucionais e se apoia, sobretudo, em documentação escrita para que os discursos da memória e da história assumam posição hegemônica, muitas vezes como a voz do Estado, enquanto que o segundo se realiza no campo das experiências não letradas, de transmissão oral ou, genericamente, tradicionais 20 .
Os parâmetros de Certeau são estimulantes também para pensarmos sobre os processos de criação dos acervos musicais do Brasil no século XX e suas perspectivas para o século XXI. Para além das questões técnicas envolvidas no tema, institucionalizar uma coleção de partituras ou fonogramas significa inventar uma memória. E a base material que serve para o historiador construir sua narrativa nem sempre se encontra nesse acervo. Do projeto modernista de Mario de Andrade de invenção e preservação da cultura musical brasileira, passando pelos colecionadores de fonogramas do século XX, às novas questões colocadas pela música digital do século XXI, é preciso matizar e interpretar os processos dos "discursos estratégicos" e os exercícios de "guerrilha" pelos quais foram criadas a memória e a história da música do Brasil.
Neste ponto, volto ao exemplo do blog UQT. A experiência de construção, desconstrução e reconstrução do site é indicativa de uma nova dinâmica que precisa ser investigada a partir de parâmetros contemporâneos que lhes são próprios. Neste texto, procuro identificar alguns fios narrativos deste processo atual e complexo mais comumente visitado por sociólogos, filósofos e comunicólogos do que por historiadores da cultura 21 . Neste sentido, o exercício de reflexão que se faz aqui está próximo também daquilo que se convencionou chamar história do tempo presente. Isto significa assumir os riscos e reconhecer suas necessidades, como observou o historiador Eric Hobsbwam: "na medida em que o começo da compreensão histórica é uma apreciação da alteridade do passado, e o pior pecado dos historiadores é o anacronismo, dispomos [no tempo presente] de uma vantagem inerente para compensar nossas muitas desvantagens" 22 .
Memória em disputa - memória equivalente
A experiência relatada do blog UQT é uma entre tantas que ocorrem na internet, um lugar que se apresenta virtualmente como um espaço fluido, descontínuo, altamente instável e em permanente movimento, como indicou o sociólogo Mike Featherstone: "dada a natureza incompleta da internet, sua metáfora arquitetônica mais adequada é a de um canteiro de obras aberto, com partes que já estão caindo em ruínas, ao invés de algo que foi planejado e concluído" 23 . Como exercício de um primeiro olhar que se proponha a organizar e analisar a dispersão natural dos arranjos e desarranjos das coleções e dos acervos de música brasileira que surgem e desaparecem na rede, é possível indicar um mapeamento empírico a partir das noções de Certeau sobre os "discursos estratégicos" e os "exercícios de guerrilha". Nesta perspectiva, tanto os sites dos institutos culturais privados (como os institutos Moreira Salles e Itaú Cultural, por exemplo) como os das instituições públicas (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Fundação Joaquim Nabuco, Museu da Imagem e do Som - RJ e SP, entre outras) assumiriam dentro da rede a voz dos "discursos estratégicos". Em sua volta estariam centenas de sites ou blogs, como o UQT, dispersos em vozes que trariam as experiências dos "exercícios de guerrilha". Vejamos mais de perto.
No transcorrer do século XX, os principais centros de memória da música brasileira surgiram das iniciativas individuais e coletivas. O Estado sempre se aproximou deste universo posteriormente, absorvendo e encampando vários destes trabalhos, transformando-os em museus, bibliotecas e discotecas, como ocorreu com a Divisão de Música e Acervos Sonoros da Biblioteca Nacional, a Discoteca Oneyda Alvarenga e o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Mesmo assim, diante da permanente riqueza e multiplicidade da produção dos registros musicais e das "urgências em protegê-los e guardá-los", as ações do Estado foram insignificantes e reclamadas pela sociedade.
Nestas circunstâncias rarefeitas, no final da década de 1980, surgiram dois importantes institutos culturais criados direta ou indiretamente por grandes empresas da área financeira: o Instituto Itaú Cultural (1987), do Banco Itaú, e o Instituto Moreira Salles (IMS, 1990), da família Moreira Salles, proprietária, na época, do Unibanco 24 . O processo de redemocratização do país e a abertura da economia para o capital globalizante ajudam também a compreender o contexto do surgimento destes institutos. Evidentemente, a análise detalhada revelará um processo histórico mais complexo, mas não é o tema de nossa investigação. De qualquer modo, estes institutos culturais tornaram-se protagonistas 25 , a partir de 1990, como instituições referências para: a) preservação - o IMS destacando-se como principal instituição voltada para o investimento na criação e digitalização de acervos musicais; e b) difusão da música brasileira contemporânea popular - o Itaú Cultural, com a criação do projeto "Rumos musicais" que se propõe a realizar um mapeamento da cena musical contemporânea 26 .
Simultaneamente ao processo de criação desses institutos, que de certo modo realizavam a tarefa de institucionalização da memória e dos acervos musicais, as relações e as práticas culturais informais continuaram a se multiplicar na sociedade brasileira. Neste sentido, o parâmetro de "guerrilha" de Michael de Certeau sugere uma imagem certeira para descrever a dinâmica das novas ações promovida na internet pelos "colecionadores-guerrilheiros digitais".
Como sabemos, a rápida evolução tecnológica e sua expansão imediata na primeira década do século XXI foram determinantes para expansão deste processo. Neste período, a internet de banda larga foi potencializada e se ampliou, ao mesmo tempo em que ocorria o barateamento dos equipamentos de digitalização de imagem, áudio e vídeo. Isto possibilitou que os amantes da música pudessem criar sofisticadas ilhas de produção em suas casas (os chamados homestudios ) 27 , antes restrito somente aos profissionais. E, em seguida, permitiu a vertiginosa proliferação de blogs com conteúdo musical digitalizado no formato MP3. Na realidade, trata-se de uma prática não muito diferente daquela dos colecionadores da era analógica que guardavam seus discos e fitas magnéticas em suas casas, mas com a grande diferença de um considerável aumento no volume dos registros, na possibilidade do acesso imediato e na magnitude de uma difusão universal. Outra dinâmica muito comum no ambiente digital é a formação de coleções pessoais criadas a partir de outras coleções já existentes disponíveis na internet. Como se fossem metacoleções , coleções feitas pela "curadoria" do selecionador a partir do conteúdo da própria rede. Como veremos adiante, estas metacoleções são a principal dinâmica de seleção de memórias musicais na internet.
Em suma, os colecionadores digitais conseguem atualmente, com incrível rapidez e custos baixíssimos, publicar seus acervos na internet. Neste sentido, o emaranhado dos blogs que se conectam entre si tornou-se o campo de "guerrilha" dos amantes/colecionadores de música. Formam, assim, um grande mosaico a partir de pequenos recortes temáticos: os amantes do jazz, da música clássica, do rock, da MPB etc. Alguns deles assumiram nítida opção e vocação para a pesquisa histórica e criaram rigorosos acervos 28 .
Entretanto, é preciso assinalar que, embora eficiente como chave interpretativa mais geral, as noções de "estratégia" e "guerrilha", quando aplicadas ao contexto da cultura digital, se revelam ambíguas. Como a rede da internet é, sobretudo, uma experiência horizontal de navegação, as infinitas possibilidades que se apresentam sugerem para o usuário/pesquisador certa experiência que chamarei aqui de equivalência . Isto é, as coleções pessoais de música ("guerrilha") e os acervos institucionais ("estratégico") têm suas fronteiras e seus limites nebulosos e confusos num ambiente em que tudo se apresenta de modo similar ou equivalente.
No mundo analógico, isto não ocorria, pois os colecionadores amadores de música só tinham acesso aos fonogramas disponíveis no mercado e suas coleções só se tornariam públicas, como acervo, se fossem adquiridas por uma instituição. Isto significa que colecionar uma memória musical era guardar um suporte físico (discos ou fitas magnéticas) na esfera privada. Por outro lado, existia uma clara distinção, natural e intuitiva, entre os fonogramas guardados por um desejo de memória pessoal daqueles conservados por instituições. Estes eram entendidos nitidamente como documentos "históricos", fonogramas que resultaram de uma seleção da história como memória oficial, cuja organização e cujos critérios para divulgação e acesso eram definidos e utilizados pela comunidade de "profissionais" da pesquisa.
No mundo digital, uma situação corriqueira de busca é suficiente para exemplificar essa zona nebulosa em que se encontram o "estratégico" e a "guerrilha". Para um usuário comum que procura arquivos de música brasileira, a localização, por exemplo, da gravação original de Orlando Silva interpretando Carinhoso , tema composto por Pixinguinha em 1917, que ganhou letra de João de Barro (Braguinha) em 1937, provavelmente se iniciaria com a principal ferramenta de busca da internet: o Google. Digitando as palavras-chave "Carinhoso, Orlando Silva, Pixinguinha", este usuário seria direcionado a blogs como o UTQ ou ao "330 discos importantes da música brasileira", em que, neste último, acharia a gravação original realizada em 1937 por Orlando Silva relançada em CD pela RCA/BMG em 1995 29 . Outra possibilidade é que esse usuário fosse direcionado ao site do IMS. Uma vez ali, ele entraria no sistema de busca específico de acervos do próprio site, onde localizaria com certa facilidade o fonograma original gravado em 78 RPM pela RCA, disponibilizado como arquivo digital no banco de dados do acervo
"Humberto Franceschi" (fonograma, aliás, que provavelmente foi utilizado para a remasterização em CD encontrada no blog citado). Não obstante, é preciso considerar que o sistema de busca do Google é baseado no cálculo algorítmico de relevância de ocorrências externas, tanto quantitativa como "qualitativa", que se direcionam para uma página ( PageRank ) 30 . De modo que os primeiros resultados de busca por este sistema apresentarão aqueles com maior índice de relevância, no caso os blogs que, conectados entre si por links de indicação e comentários/mensagens ( posts ), atraem um fluxo maior de atenção em relação aos sites institucionais que têm menos visitação.
Este exemplo indica que tanto uma coleção pessoal disponibilizada em um blog como um arquivo "histórico" oferecido por uma instituição se mostram no universal e horizontal mundo digital como um lugar de memória equivalente . Esta percepção de equivalência é, a meu ver, o principal ponto de distinção com o mundo analógico em que a memória se constrói em um campo permanente de disputa . Para investigar esta hipótese proponho um pequeno recuo conceitual que nos distanciará um pouco do nosso objeto inicial de investigação - coleções, acervos e arquivos de música brasileira na internet. Contudo, ele se faz necessário para desenvolvermos a noção de equivalência como uma característica específica da cultura digital.
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O sociólogo franco-austríaco Michael Pollak, do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS), sinalizou para um aspecto que me parece importante para o percurso da discussão do nosso tema: a condição da memória como disputa . Pollok identifica que "na tradição europeia do século XIX, em Halbwachs, inclusive, a nação é a forma mais acabada de um grupo, e a memória nacional, a forma mais completa de uma memória coletiva" 31 .
Entretanto, o sociólogo indica que Halbwachs insinua um processo de "negociação" para conciliar memórias coletivas e memórias individuais, embora, pela sua tradição durkheimiana, pese mais a construção da memória coletiva como um lugar ligado à duração, à continuidade e à estabilidade. Na realidade, Pollok enxerga aí o anúncio de uma inversão de perspectiva que marca os trabalhos atuais sobre o fenômeno, pois "numa perspectiva construtivista, não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade" 32 . Esta abordagem aplicada à memória coletiva privilegia, assim, as vozes excluídas, os marginalizados, as minorias ou temas à margem do discurso tradicional da história "oficial", como as artes, em geral, e a música, em particular. No entendimento de Pollok, "a memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes" 33 . É o lugar que Michael de Certeau identificou, em outro contexto, como os "exercícios de guerrilha" em contraponto à memória coletiva dos "discursos estratégicos" do Estado.
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Esta tradição teórica, de fundo construtivista, que tem como horizonte uma narrativa histórica mais totalizadora, a partir dos rastros da negociação, ou da disputa , entre memórias individuais e coletivas concorrentes, está intimamente ligada a uma dinâmica de criação, difusão e preservação de coleções institucionais e arquivos pessoais (musicais ou não) anteriores à era da internet. O historiador Robert Darton identificou dinâmica semelhante no contexto da relação entre os processos do conhecimento e as bibliotecas: "para o estudante dos anos de 1950, as bibliotecas pareciam cidadelas do saber. (...) O conhecimento vinha organizado em categorias-padrão, que podiam ser vasculhadas em catálogos de fichas e páginas de livros. Em quase todas as universidades, a biblioteca ficava no centro do campus . Era o prédio mais importante, um templo delimitado por colunas clássicas, onde a leitura era feita em silêncio". No mundo digital de hoje em dia, o historiador reconhece uma dinâmica diferente de construção do conhecimento:
estudantes modernos e pós-modernos fazem a maior parte de suas pesquisas nos computadores de seus quartos. Para eles o conhecimento está on-line , não em bibliotecas. Sabem que as bibliotecas nunca poderão conter tudo entre suas paredes, porque a informação é infinita e se estende por todos os cantos da internet, e para encontrá-la é preciso usar um mecanismo de busca, não catálogo de fichas 34 .
Os principais acervos de música popular brasileira construídos no século XX como o MIS do Rio de Janeiro e o IMS, por exemplo, foram criados numa lógica pré-internet. Seus arquivos fazem parte do mesmo mundo compartilhado pelas categorias-padrão de organização e exposição das bibliotecas citadas por Darton. Mesmo no caso do IMS, onde existe um trabalho pioneiro de criação de banco de dados de registros sonoros on-line , a sua dinâmica de ocupação do espaço digital se resume à divulgação, através da internet, de suas coleções analógicas, catalogadas segundo critérios de hierarquia analógicos. Na realidade, um espelho virtual daquilo que de fato existe como lastro material. Resultado, por assim dizer, de um processo inexorável de mudança de suporte midiático que visa, sobretudo, a divulgação em um novo meio tecnológico. Sabemos que se trata de uma operação grandiosa e complexa, cujos cuidados técnicos giram em torno de um debate próprio dos campos da teoria da informação e da ciência arquivística sobre conversões analógico-digitais, metadados, critérios de catalogação, manutenção etc 35 . Em suma, uma discussão sobre mudança de meios. Entretanto, o princípio de construção e organização de seu acervo é essencialmente analógico. Isto é, lugar de conservação de uma memória institucional coletiva construída pela disputa de memórias individuais, cujos rastros historiadores contemporâneos podem seguir e interpretá-los para formar, assim, uma leitura totalizadora de um processo histórico.
Acervos de instituições com essas características, que permitem entendimentos que abarcam totalidades, ainda não se originaram dentro e/ou a partir do próprio conteúdo do ambiente da internet 36 . Talvez por falta de tempo, considerando, grosso modo , os trinta anos de existência da rede, ou porque talvez a própria natureza do meio digital estimule outras dinâmicas de criação, difusão e preservação, hipótese que eu prefiro seguir. Portanto, parece ser na dispersão dos "colecionadores-guerrilheiros-digitais", que habitam o dia-a-dia da internet, onde se desenham os caminhos e os descaminhos das disputas entre as memórias no ambiente da cultura digital. Mas, seriam disputas ? Olhemos mais de perto para tentarmos compreender essas dinâmicas.
No caso particular da cultura digital contemporânea que se criou no entorno da música e dos arquivos sonoros, destaco o início de uma entrevista de Kenneth Goldsmith. Indagado sobre as mudanças da linguagem musical na era digital, ele direciona sua resposta para outro aspecto:
Não acho que a mudança na música seja somente estética, mas sobre distribuição. Ninguém liga mais para o que algo é. O importante é como está sendo distribuído. Isso é que é radical. Ninguém liga para o conteúdo, mas como ele é publicado. É por isso que os sites mais importantes não são aqueles que criam conteúdo original, mas aqueles que apontam qual o melhor conteúdo. No blog Boing Boing , por exemplo, os editores não criam nada, mas sabem apontar quais são as coisas mais legais. Então quem seleciona se torna mais poderoso que os criadores. As pessoas que sabem gerenciar informação e te mostrar o que é melhor. São os verdadeiros artistas de hoje. Todos fazemos isso, porque o arquivo digital é a nova arte popular. É algo que todos fazemos, todos somos arquivistas agora 37 .
No fundo, Goldsmith descreve certo nivelamento de ações individualizadas (criações originais) que, em suas equivalências , parecem formar um coletivo homogêneo regido por uma lógica de distribuição e redistribuição ad infinitum . Com o espírito guerrilheiro e entusiástico de um militante, a sua própria fala se confunde com o objeto que tenta analisar:
Sua coleção de mp3, suas fotos são seus arquivos. Você cuida deles, organiza, arranja, remove coisas. Todos fazemos isso, todo mundo. Viramos todos grandes arquivistas de foto, músicas, filmes e mesmo da correspondência do gmail. É um momento louco. As pessoas passam a maior parte do dia colecionando: movemos o arquivo para nossas máquinas, então o guardamos em alguma pasta, depois enviamos para algumas pessoas para que eles possam ir até o arquivo e fazer o download . Compartilhamos informação e damos retweet, reblog etc. E pela sua influência nestas redes, você se torna muito poderoso. A arte mais interessante e relevante está lidando com arquivos, com distribuição, copyright , essas questões 38 .
A despeito do engajamento da fala de Goldsmith, o que acredito ser importante neste depoimento é o reconhecimento de uma cultura de abundância e redundância de informação criada através da acumulação. Esta obsessão por colecionar já foi identificada como uma das principais características da era da informação 39 .
Fausto Colombo, num estudo pioneiro e visionário, publicado em 1986, Gli Archivi imperfetti40 , quando a internet estava longe de assumir em nossas vidas a centralidade que ocupa hoje, reconheceu que vivemos numa era obcecada pela memória - uma verdadeira "paixão arquivística" 41 . Os processos de equivalência exaltados por Kenneth Goldsmith na cultura digital como "novas" formas de criação (música) e distribuição (coleções, arquivamentos) ganham outro significado se olharmos pela lente da memória desenvolvida no estudo de Fausto Colombo. Numa surpreendente síntese avant la lettre , Colombo toca com precisão no xis do problema da nossa experiência digital contemporânea:
Os grandes sistemas sociais de memória - aos quais é confiada a lembrança global - são utilizados sim pelo indivíduo, mas não para reconhecer sua própria subjetividade. Esta tarefa é confiada prevalentemente ao processo pessoal e privado de gravação, que imita o processo social, rejeitando, porém, as informações e relações que este último implica. O paradoxo das insistências atuais [grifo meu, isto é, em 1986] que consideram o usuário o centro de um sistema de redes informativas, televisivas, informáticas e telemáticas é o de não haver percebido que ele não tende a interpretar a si mesmo como tal, e sim como um acumulador diletante e arquivista, para quem a importância das informações que é capaz de reunir não consiste na informatividade em relação ao mundo, mas na possibilidade de fruir da atividade de armazenamento social, criando um armazém-álbum de recordações próprio e autônomo, externo, amiúde inútil, e todavia tranquilizador e negador do esquecimento 42 .
Colombo sistematizou quatro categorias de estrutura de memorização (mnemotécnicas) ao longo do século XX: a gravação - memorização de um fato por meio de imagem (visual, acústica ou acústica-visual); o arquivamento - a tradução do evento em informação cifrada e localizável dentro de um sistema; a gravação do arquivamento - tradução de uma imagem-recordação, de um signo mnemônico em um signo arquivístico e localizável no sistema; a regravação do arquivamento - produção de cópias dos signos já arquivados a fim de evitar-se um possível esquecimento 43 . Seu estudo parte deste aspecto técnico sobre processos de memorização em busca de suas construções culturais: o itinerário do arquivo, a imagem-recordação e os lugares da memória, da identidade e do esquecimento.
No contexto particular de nossa investigação sobre as narrativas das memórias da música, acredito que, no cenário que se desenha atualmente, passados quase trinta anos do estudo de Fausto Colombo, as categorias de memorização propostas ali poderiam ser compreendidas, essencialmente, em duas: o registro (analógico) e o processamento (digital). Nesta perspectiva, a memorização pela gravação ( registro ) parece traduzir muito bem aquela "cultura do disco" de que falamos no início do artigo, em que a memória em conserva gravada nos fonogramas tornou-se um rastro para investigação a partir de diferentes narrativas individuais e/ou coletivas em disputa por um entendimento totalizante da experiência histórica. Já a memória pelo arquiva mento ( processamento ) parece exprimir a lógica da cultura digital em torno do MP3, lugar em que a obsessão pela coleção e pelo arquivamento, em constante processamento, sugere uma experiência equivalente das narrativas de memórias. Entretanto, isto não quer dizer que essas memórias sejam inúteis, como insinuou Colombo, mas incapazes, pela neutralidade de suas disputas, de construir narrativas sob uma perspectiva totalizante.
Em torno do MP3
Hoje em dia, penso não ser exagero enxergar no MP3 o substituto do disco. Não há dúvida de que ele simbolize uma nova era na história da criação, percepção e reprodução dos sons. Mais do que um formato de mídia contemporâneo de compressão de áudio, o MP3 está vinculado a um novo comportamento cultural, social e econômico em torno dos sons no século XXI, assim como foi o disco para o XX, caracterizado com precisão pela historiadora Sophie Maisonneuve:
da máquina falante ao disco, da fascinante invenção de laboratório ao médium musical domiciliar, a história do fonógrafo na primeira metade do século XX é uma invenção complexa e coletiva, onde o objeto se inventa conjuntamente com as suas práticas, onde o mercado é criado juntamente com a mídia e seus usos. É por essa tripla inovação [técnica, comercial e cultural] que o disco e a escuta hedonista doméstica da música tornaram-se o que são hoje: tanto transparente quanto onipresente na cultura cotidiana. No momento que essa mídia está se tornando história, alcançada pelas novas mídias, não é inútil voltar a entender a sua trajetória: ela permite não somente avaliar a medida dessa revolução do século passado, mas também entender melhor a conjuntura das novas mutações em processo no universo audiovisual atual 44 .
A abundância de informação que a cultura digital trouxe para o mundo contemporâneo tem no MP3 seu maior ícone: nunca se ouviu, se criou e se compartilhou tanta música como agora. Com sua baixa resolução e seu pequeno porte, o MP3 é capaz de navegar com rapidez e eficiência pela rede da internet atravessando centenas de países com suas leis locais, políticas e acordos de licenciamento. E é claro que, na viagem, este pequeno "pacote" sonoro transforma e é transformado por quem cria, escuta e compartilha.
O MP3 tornou-se assunto na pesquisa acadêmica no momento em que foi compreendido como um artefato pela tradição da chamada escola de Toronto 45 . Jonathan Sterne, professor de história da arte e estudos de comunicação da McGill University (Montreal, Canadá), herdeiro mais contemporâneo deste pensamento crítico, que gira em torno das relações entre tecnologia, sociedade e cultura, faz uma síntese e acena perspectivas:
O MP3 é um artefato também em outro sentido. O MP3 é um conjunto cristalizado de relações sociais e materiais. Ele é um objeto que "trabalha para" e é "trabalhado por" um grupo de pessoas, ideologias, tecnologias e outros elementos sociais e materiais. Escritores das tradições de construção social da tecnologia e da teoria do ator-rede (por exemplo, Bijker, 1995; Latour, 1996; Pinch e Biker, 1984) têm focado na relação entre atores humanos e não humanos na construção de tecnologias, mostrando como elas se agrupam com o que poder-se-ia considerar, de outra forma, elementos díspares. Estudos culturais de tecnologia têm se preocupado com análises mais abrangentes e como as tecnologias estão envolvidas nestes contextos (ver, por exemplo, Slack 1984; Sabile, 1994; Wise, 1997). Mas todas essas abordagens apontam para a natureza de artefato de tecnologias como o MP3. Elas impelem-nos a considerar o MP3 como resultado de processos sociais e técnicos, ao invés de algo além disso.
[...] Ainda assim, na maioria das análises, pesquisadores tratam o MP3 como um objeto inerte, mudo, que "impacta" uma indústria, um ambiente social ou um sistema legal. Não raro, textos sobre o assunto usam o formato do MP3 como "dado" óbvio, como pouca reflexão aprofundada no assunto, requisito para endereçar problemas reais legais e econômicos. Ao mesmo tempo, surpreendentemente, pouca discussão tem ocorrido sobre as dimensões estéticas dos MP3, seja entendido por isso a experiência de escutar MP3, o próprio som do MP3 ou os significados que o formato MP3 pode ter 46 .
Em seu estudo MP3 the meaning of a format47 , Sterne amplia esse entendimento do MP3 como artefato, procurando historiar, grosso modo , as experiências de "audibilidade" ( audibility ) das relações culturais em torno desta, como ele gosta de chamar, "tecnologia de contêiner" - uma tecnologia de mídia desenvolvida para fazer uso de outras tecnologias de mídia, isto é, um armazenador para gravações sonoras. Antes do MP3, Sterne desenvolveu um estudo sobre a "audibilidade" do passado em The audible past: cultural origins of sound reproduction48 . Com isso, Jonathan Sterne vem delimitando, com a colaboração de outros pesquisadores, um campo de estudos reconhecido nas áreas da etnomusicologia e dos estudos culturais, em países como EUA, Canadá e Holanda, como Sound studies49 .
Uma vertente de discussão deste entendimento do MP3 como artefato surgiu em torno das primeiras questões que a cultura digital trouxe sobre as ideias de liberdade, de direitos autorais e certa noção de democracia calcada no acesso universal da internet 50 . Eliane Costa resume a problemática:
Partindo do fato que os sistemas tecnológicos são socialmente produzidos e a produção social é estruturada culturalmente, Castells considera que o que se pode chamar de cultura da internet reflete a cultura de seus criadores, que sendo, simultaneamente, seus primeiros usuários, reintroduziram sua prática na tecnologia que construíram. Essa cultura colaborativa e retroalimentadora, presente nos primórdios da internet, é a inspiração para muitas das lutas de caráter libertário que se travam, hoje, no ciberespaço 51 .
Sintomático que, no mundo economicamente globalizado de hoje, as relações entre os sons e a nova cultura digital tenham recaído com maior força e destaque sobre as questões econômicas dos direitos de propriedade da obra musical que o MP3 carrega. Em abril de 2011, o Berkan Center for Internet and Society, ligado à Faculdade de Direito da Harvard University em Boston (EUA), sediou a conferência Rethink music (www.rethink-music.com). A indústria da música no mundo digital foi o grande tema do encontro. As discussões sistematizadas no artigo assinado institucionalmente pelo The Berkman Center 52 partiram do reconhecimento, já constatado em outras áreas de pesquisa sobre o impacto da internet na cultura contemporânea, de que, com a difusão do uso das tecnologias da informação e comunicação, novas possibilidades de acesso e produção de conhecimento passaram a existir, desafiando as leis, os modelos de negócios e as políticas públicas tal como são apresentados hoje em dia. A partir desta constatação foi proposta uma agenda de pesquisa/discussão sobre: 1) sampling, mashups e a emergência da cultura do remix ; 2) relação entre artistas e selos de música digital; 3) lei, política e distribuição de música digital - subtemas: 3.1) direito de execução pública e gravações sonoras em mídias digitais; 3.2) licenciamentos coletivos, p. ex. creative commons ; 3.4) combate à pirataria e cumprimento de direitos on-line -; 4) o papel dos provedores de internet; 5) streaming e nuvens de armazenamento de música digital; 6) neutralidade da rede.
A resposta para essa excessiva atenção ao produto tem sido, por outro lado, em torno de discussões de origem sociológica e estética 53 sobre as possibilidades de experiências coletivas que as novas tecnologias permitem - uma noção específica de "democracia" muito calcada na percepção empírica do acesso universal da internet e o entusiasmo com os novos procedimentos estéticos chamados de pós-produção ( mashups e remixes) , como vimos nas falas de Kenneth Goldsmith 54 . Entretanto, pouco se fala do novo lugar da autoria (não dos direitos de autor) neste novo cenário que sugere, como venho tentando demonstrar, certa equivalência de experiências - tanto de memórias como de criação autoral 55 .
Até agora nota-se que, parecendo mimetizar a lógica de multiplicação horizontal da experiência da internet, os temas em torno da cultura do MP3 sugerem um cenário amplo e complexo, sistematizados aqui em suas principais direções. Vimos que essas questões (por exemplo, o compartilhamento de arquivos, o acesso universal, a cultura do remix ou as características técnicas da mídia digital simbolizadas no "pacote" do arquivo MP3) se relacionam diretamente com os hábitos de colecionar ou criar acervos institucionais de música na internet. Portanto, se relacionam com certo tipo de memória e esquecimento específicos da cultura digital.
Mapeado o terreno, grosso modo de um ponto de vista mais teórico, podemos nos arriscar numa investigação específica para testar os limites das hipóteses de um campo de estudos do presente, que só terá resposta mais concreta no futuro, quando a cultura do MP3 se tornar história; talvez num processo análogo ao que Sophie Maisonneuve identificou contemporaneamente em relação à cultura do disco do século passado.
Movimento em rede - anotações de pesquisa de campo
Proponho agora um olhar preliminar e panorâmico com nossas fontes, digamos, primárias: os sites e blogs de coleções e acervos de música brasileira. Na realidade, nossa problemática surgiu, primeiramente, da observação concreta das experiências coletivas do blog UQT e do acervo do IMS, assim como das trajetórias individuais, que narramos no início do texto, de Almirante e Kenneth Goldsmith.
As considerações que farei são parte dos primeiros resultados de uma investigação que está em curso 56 . O levantamento realizado ao longo de 2013 de sites e blogs que disponibilizam acervos de música brasileira se concentrou no campo que convencionamos chamar aqui de "exercícios de guerrilha". A escolha deste recorte justifica-se pelo nosso interesse específico nas dinâmicas de compartilhamento de arquivos musicais como práticas de um tempo presente próprias da cultura digital, da qual os acervos institucionais participam de um modo específico. Pois, os sites que detêm os discursos "estratégicos", como discutimos anteriormente, têm objetivos claros em "salvar" a(s) memória(s) em disputa contra o esquecimento daquilo que "restou" em seus arquivos físicos, sob uma lógica, é claro, própria de sua cultura analógica. Neste sentido, os critérios de digitalização e disponibilização definidos pelo IMS, por exemplo, dizem respeito à obsolescência de mídias. Segundo a coordenadora da área de música do IMS, Beatriz Paes Leme,
[o] principal foco do acervo sonoro disponibilizado pelo IMS é a discografia brasileira em 78 rotações. Nesse sentido, o "conceito" que nos norteia primordialmente é a preservação da memória musical brasileira mais ameaçada. Bem ou mal, o que foi gravado em 33 rpm e, depois, já em CD, tem sua sobrevida bem mais garantida 57 .
Como apontei no início deste artigo, o blog UTQ tornou-se um lugar referencial na internet para a disponibilização de música popular brasileira comercial produzida a partir de 1960 até hoje. Antes da "perda" de seu conteúdo, o UTQ tinha cerca de 1,3 milhão de páginas vistas por mês 58 . Isso é indicativo da importância e da relevância que o blog ocupava na rede. Por esta razão restringimos o mapeamento nos blogs e sites que, de algum modo, estão conectados pela rede de links que partem do UTQ. Seu administrador, Fulano Sicrano, se mostra como um colecionar consciente do seu poder de influência:
O critério para seleção e publicação de álbuns é meramente pessoal, procuro atender a todos os gostos, tendências, gêneros musicais, sem cair no popularesco, no modismo. Não gosto de tudo o que é publicado, porém, a meu ver, tudo o que é publicado tem importância cultural e social. A maioria dos visitantes quando se refere ao UQT diz que ele se dedica a promover a música brasileira "de qualidade". Mas, afinal, o que significa "de qualidade"? No caso de música, é um termo muito vago, impreciso, tem critérios pessoais de seleção e exclusão, com certeza, mas quem frequenta o UQT gosta muito mais do que desgosta do que é publicado. É dificílimo agradar a todos - eu mesmo já disse que não gosto de tudo -, mas, na média, acho que cumprimos nossa missão 59 .
Ao mesmo tempo em que blogs como UTQ se esforçam em criar recortes temáticos em suas coleções (música brasileira "de qualidade", por exemplo), outros se propõem apenas a republicar arquivos copiados de diferentes "fontes" da internet ou a publicar novas informações (arquivos sonoros) sem nenhum critério temático. Em vista deste cenário naturalmente fluido e fragmentado, agrupamos essas iniciativas em dois grupos de comportamento: 1) formadores de opinião60 blogs/sites de coleções de música brasileira com um enfoque específico de abordagem (recorte de gênero ou temporal) que adquiriram reconhecimento e influência na rede (internet); 2) conteudistas ( me tacoleções61 ): blogs e sites que reúnem o maior número de documentos fonográficos digitais aleatórios, sem critério algum de recorte temático, temporal ou qualquer outro que possamos imaginar. A origem dos arquivos sonoros entre os dois grupos também é diferente: o primeiro, em geral, costuma digitalizar LPs ou "ripar 62 " CD de suas coleções pessoais (físicas) para o formato de arquivo MP3 e permite o download gratuito (à revelia dos direitos autorais) em seus blogs/sites enquanto que o segundo apenas copia links já existentes de outros blogs/sites, por isso nossa denominação aqui como metacoleções , multiplicando, assim, as possibilidades infinitas de consulta na internet.
Identificado este cenário inicial, que lembra, como já foi dito, mais um "canteiro de obras" do que uma ocupação planejada, surge a questão de como lidar com essa fonte de um tempo presente altamente instável. Um desdobramento possível da pesquisa seria, por exemplo, seguir na direção de um estudo etnográfico, com as ferramentas metodológicas tradicionais da antropologia. Poder-se-ia definir um grupo de usuários desses blogs/sites que compartilham música brasileira - as análises de suas práticas indicariam, talvez, escolhas e preferências musicais ou narrativas que pudéssemos identificar como rastros de memórias e/ou esquecimentos. Ou, numa inversão contemporânea inspirada pela antropologia simétrica de Bruno Latour 63 , partiríamos da hipótese de que a própria internet seria o sujeito que age em grandes redes sociotécnicas, como agente imerso em cadeias de relações com outros inúmeros agentes - neste caso, os rastros da memória seriam sem dúvida bem mais complexos.
Contudo, e não muito distante da perspectiva de Latour, neste mundo digital em que habitam os colecionadores-guerrilheiros da música brasileira em estado de certa equivalência , existe um rastro digital que pode se revelar como um surpreendente registro de memória na internet: o metadado - as informações (dados) que o documento digital (dado) armazena em si próprio. Memória, entendida aqui nos dois sentidos discutidos anteriormente: 1) como processo específico de registro (por exemplo, informações técnicas sobre gravação e processamento do áudio); e 2) como experiência individual e/ ou coletiva, portanto sociocultural, de história e esquecimento. Diferente da ficha analógica do documento de uma biblioteca que é fixa em catálogos, o metadado viaja com o arquivo digital e é capaz de memorizar, além de outras potencialidades, a sua própria viagem. Hoje em dia, os metadados de arquivos musicais são sobretudo técnicos com informação sobre data de gravações, tipo de conversão e compressão da onda sonora ou sobre o registro dos direitos autorais do fonograma, interesses, sobretudo, do mercado fonográfico. Mas poderiam ser diferentes com a incorporação, por exemplo, do mesmo mecanismo técnico (XML) dos metadados utilizados nos textos 64 . Isto é o que faz, grosso modo , com que buscadores como o Google achem qualquer palavra-chave ou frase digitada na internet em artigos, livros ou textos, em geral. Seria aberta, assim, uma alameda com possibilidades "infinitas" de recursos para a descrição arquivística e para a crítica histórica de arquivos sonoros digitais. Porém, não pretendo iniciar esta discussão aqui porque fugiria demais dos objetivos deste artigo. Mas lanço esta hipótese de investigação que, com o rigor de pesquisa necessário, certamente anunciaria "novas" fontes digitais para uma historiografia em torno da memória musical na cultural digital.
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Se voltarmos às duas narrativas iniciais de Almirante e Kenneth Goldsmith veremos que ambos foram radialistas. No fundo, o radialista é um seletor de memórias musicais influenciado pelos modismos de uma época, interesses do mercado fonográfico ou simplesmente pelo gosto pessoal. Em geral, radialistas são colecionadores. Poderia dizer que, desde o início do texto, procurei identificar as características desses dois radialistas/colecionadores, cada qual em seu tempo, um analógico e outro digital. Entretanto, as diferenças entre as práticas do colecionador/criador de acervo analógico ( memória em disputa ) em relação ao digital ( memória equivalente ) serviram mais como uma estratégia metodológica de caracterização, por contraste, para aquilo que é novo - a cultura da internet - do que propriamente como uma chave interpretativa. Do ponto de vista da memória, da história e do esquecimento, os mundos analógico e digital parecem coexistir na cultura contemporânea. Pois, a inserção na internet, por exemplo, dos discursos estratégicos dos acervos institucionais de música, como o do IMS, são essencialmente analógicos e permanecerão assim porque seu conteúdo é a cultura do disco disputada ao longo do século XX como memória ou esquecimento. Já os blogs e sites dos guerrilheiros-colecionadores de música atuais sugerem uma dinâmica própria do meio em que foram criados, em que compartilhar (memória) e perder (esquecer) arquivos musicais de MP3 parecem ser o verso e o reverso da mesma moeda, isto é, uma experiência equivalente.
Notas
Autor notes
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