Resumo: Escrever é revelar. Forma de se colocar no mundo, de expressar ideias, recorrendo aos fragmentos do passado e às idealizações do amanhã. Ato de manifestação pessoal, pode, contudo, materializar-se pelas mãos de outrem. Por caminhos convencionais ou inusitados, homens e mulheres, em diferentes épocas, deixaram registradas suas versões da própria existência. No esforço de resgatar as lembranças, de fazer sentir os afetos, de expressar crenças e valores, sujeitos iletrados, valendo-se de um mediador, colocaram no papel suas representações do real e, desse modo, atuaram socialmente. Estratégicas ou não, as palavras e as expressões davam passagem, em fatias de textos, aos interiores, aos relacionamentos, às memórias, aos desejos. Aqui, tecemos breve discussão sobre o lugar e a importância da escrita mediada em Minas Gerais, no final do século XVIII e início do XIX, e buscamos destacar a potencialidade dos testamentos post mortem para o estudo dos usos da escrita nesse contexto. Para efeito de análise, dialogamos com autores da linguística e pesquisadores referenciais no estudo da sociedade colonial.
Palavras-chave: Minas colonialMinas colonial,cultura escritacultura escrita,iletradosiletrados.
Abstract: Write is to reveal. It is a form to appear on the world, an expression of ideas, using fragments of the past and some projections of tomorrow. Act of a personal manifestation, it can be materialized with another hands. On a conventional or an unusual way, men and women in a different time, left some records of their own existence. On the effort of rescue remembrance, feeling the affections, beliefs and values, some unlearned person, using some mediation, put on paper some representations of reality; thus they have acted socially. Strategically or not, some words and expressions gave passage in pieces of texts, to the own interior, to relationships, or memories, or desires. On this article, we briefly discuss the place and importance of mediated written in Minas Gerais in the late eighteenth and early nineteenth, aspiring detach the potential of this post mortem testaments for the studies about the uses of write on this context. For analysis purposes, we dialogue with authors of linguistics and reference researchers in the study of colonial society.
Keywords: Colonial Minas, write culture, unlearned person.
ARTIGOS
A VIDA EM FOLHAS DE PAPEL: ESCRITA MEDIADA NA AMÉRICA PORTUGUESA
LIFE ON PAPER SHEETS: MEDIATED WRITTEN IN PORTUGUESE AMERICA
Recepção: 05 Maio 2015
Aprovação: 31 Março 2016
Eu não escrevo português.
Escrevo eu mesmo.
Fernando Pessoa
Sob o céu da capitania de Minas Gerais, com as bênçãos da Santa Madre Igreja, Joana da Silva Gouveia casou-se com José. O acontecimento foi relatado por Joana em maio de 1804, quando ditou seu testamento. Nesta circunstância, evocou aspectos do matrimônio, delineando, na "redação" do texto, sua versão dos fatos:
Declaro que sou casada com José Pereira Cabral, cujo matrimônio considero nulo por ser contra a minha vontade e não ser dado o meu consentimento na ocasião de nos receber só com ameaças e medo de pancadas que fez a forma de casar-me não tendo tal intenção nem dando meu consentimento para isso (...) tendo disso certeza, o sobredito José Pereira Cabral se ausentou da minha companhia levando consigo a metade de alguns bens que possuía (...)1
Para explicar o destino dos bens, a testadora rememora episódios, trazendo à tona componentes da vida pessoal, com a intenção de elucidar a situação na qual vivia, sem a companhia do marido e com apenas parte do patrimônio. Na narrativa feita, independentemente de sua correspondência com o ocorrido, percebemos que o discurso visa o posicionamento perante os acontecimentos, no caso o matrimônio. Joana não se limita a comunicar a ausência de José Pereira, relatando que ele levara "consigo a metade de alguns bens que possuía". Este dado seria o suficiente para declarar o que se encontrava em seu poder. Fez questão, no entanto, de esclarecer porque considerava a união nula. A elaboração do testamento transforma-se, dessa maneira, em motivador para a descrição de eventos, em mecanismo de registro das insatisfações e em meio para justificar atitudes. Mais do que disposições respeitantes aos legados e encomendação da alma, deparamo-nos com memórias do vivido, interpretações de ocorrências ou meros discursos que do oral se estendem e se cristalizam no papel.2
Às normas da escrita padrão mesclam-se, no texto, crenças, expectativas, lembranças e representações da testadora. Sem saber escrever, Joana da Silva colocou na folha em branco, pelo ditado, elementos apropriados a partir da vivência em uma sociedade letrada. Auxiliada por um mediador, soube narrar, tornar inteligível e legitimar sua versão da própria história. A este respeito, explica-nos Chartier3 que saberes de camadas dominantes e formulações de quem pertencia aos estratos menos favorecidos - econômica e socialmente - fundem-se no uso da escrita, denotando as imbricações culturais existentes entre as práticas sociais dos detentores das habilidades de ler e escrever e daqueles que não as possuíam.
Esclarece-nos a historiografia que, na Época Moderna, o poder de grafar autonomamente concentrava-se nas mãos masculinas, brancas e abastadas. Por conseguinte, para determinados sujeitos, dentre eles as mulheres, a ação de escrever realizava-se, grosso modo, de maneira solidária. Não obstante existir as que redigiam individualmente, compuseram manifesta minoria. Destacamos que algumas poderiam ler, mesmo sem saber escrever. Num ou noutro caso, estabeleceram contato com registros grafados. Nessa linha, interessa-nos evidenciar a utilização da escrita por quem não teve acesso ao aprendizado sistematizado das primeiras letras. Com esse intuito, selecionamos os testamentos femininos registrados no cartório do 1º ofício da então comarca do Rio das Velhas, capitania de Minas Gerais, no período de 1780 a 1822.4
Em bom rigor, defendemos que a cultura letrada, enquanto código cultural destinado a determinado segmento da sociedade, tinha seus elementos apropriados inclusive por sujeitos iletrados.5 Ao necessitarem da mesma para administração dos negócios, para a alforria de escravos ou para confidências, empregaram-na via ditado, participando criativamente da dinâmica social, sendo capazes de resistir e/ou apagar o silenciamento a que estariam submetidos.
Ademais de memórias, narrativas e disposições, nos textos estão presentes indícios do "convívio" com a escrita, o qual se deu sob formas variadas. Exemplifiquemos com os testamentos de Rosa Ferreira da Silva e de dona Isabel Josefa do Lago. Rosa Ferreira era natural da vila do Pitangui, filha de Antônio Maia e Ana Angola. Em 18 de janeiro de 1793, ela assinou o testamento com uma cruz e declarou não saber ler nem escrever. Na ocasião, determinou:
(...) mando que meu testamenteiro veja o testamento de meu falecido marido, João Henriques Lopes, que o achará entre os meus papéis e, caso o não tenha eu satisfeito, o satisfará de todo o montante e [ilegível] achará uma carta do dito em segredo que cumprirá também em segredo (...) nesta parte, pelo juramento que der o meu testamenteiro.6
A menção a cartas, cadernos e documentos não é incomum nas narrativas testamentais, sinalizando aproximação com o registro grafado que não necessariamente vinculava-se ao domínio dos códigos alfabéticos. A "lembrança", por Rosa Ferreira, da carta do falecido marido denuncia, se não o saber tácito em relação à escrita, o entendimento de sua importância e dimensão no desenrolar do dia a dia.
Foi este o caso também de dona Isabel Josefa do Lago que, por "temor da morte", solicitou ao filho, o padre Manuel Pires de Miranda, que, em junho de 1807, na fazenda de Bom Jardim da freguesia de Santa Luzia, redigisse seu testamento. Nesta oportunidade revelou:
(...) deixo um caderno com capa de papel dourado que contém oito folhas as quais vão numeradas e rubricadas pelo mesmo que escreve este testamento a meu rogo e quero que tudo o que se acha escrito no dito caderno ou por este mesmo escrevente ou por outra pessoa de minha confiança se cumpra como parte que fica sendo deste meu testamento.7
A convivência com o filho padre indica o possível contato com práticas de leitura e escrita, perceptível pela declaração de posse do referido "caderno de capa de papel dourado". Este suporte guardava conteúdos narrados pela testadora e fora escrito e rubricado "por outra pessoa" de sua confiança, confirmando o hábito de se ditar a matéria a ser grafada, isto é, a prática de se escrever por outras mãos. Nessa medida, mencionar a existência de anotações ligadas a segredos familiares ou à administração dos bens, demonstra atitude de não alheamento às práticas escriturais, além de exprimir participação social. Atuação, não raro, processada pela escrita mediada.
Por certo importa bem menos conhecer se homens e mulheres redigiram por suas próprias mãos do que as intenções subjacentes aos textos. Por isso, objetivamos retirar dos relatos pistas de como, ao recorrerem à escrita, iletrados explanaram suas representações do real.8 Sabemos, entretanto, que os dizeres não são o espelho da realidade. Nossa intenção foi tão somente demonstrar a utilização da escrita por quem não sabia grafar. Daí decorre a compreensão de que os testamentos, por terem sido em sua maioria ditados, configuram-se como fonte privilegiada para o estudo da "redação" de iletrados.9 Terreno onde podemos identificar a formulação de ideias e de textos por esses agentes, confirmando a existência de uma "cultura do escrito mesmo entre aqueles que não sabem nem produzir nem ler um texto".10 Acrescentemos: ou, pelo menos, que são incapazes de fazê-los sozinhos.
Característica comum a todo o Império português no citado período, a possibilidade de se conseguir ler sem saber redigir originou leitores inábeis a escrever. Logo, os registros grafados tiveram sua gênese, teoricamente, em indivíduos leitores.11 A nosso ver, essa realidade pode justificar em parte o maior interesse da historiografia pelos hábitos de leitura em detrimento dos modos de escrita. Seja como for, certo é que os estudos preocupados em compreender as práticas de leitura e aqueles que visam traçar taxas de alfabetização para sociedades pretéritas têm se debruçado sobre os testamentos.12
Em oposição ao enfoque tradicional, não buscamos estabelecer estatísticas, aferir o quão analfabeta ou alfabetizada era a América portuguesa no geral ou em regiões específicas. Julgamos ser mais instigante problematizar a escrita mediada enquanto dimensão da história social. Para tanto, devemos ter em conta a ambivalência do discurso testamentário: se, por um lado, apresenta aspectos de um gênero textual,13 por outro, envolve desejos e afetividades de personagens reais, suas representações e percepções vis-à-vis o contexto em que viviam.
Para Sheila de Castro Faria, os rituais relacionados à morte nos séculos XVIII e XIX no Brasil primam pelo estilo barroco, tendo a pompa como uma das principais características dos processos ligados à morte.14 Naquele contexto, "os testamentos, um dos mecanismos essenciais de se estar em paz com a consciência, seguem padrões homogêneos de redação por todo século o XVIII e início do XIX", o que nos leva a questionar "se a fórmula notarial estaria se sobrepondo ao ato individual".15 Circunstância e condição que, consoante a autora, haviam sido postas por Michel Vovelle, ao indagar "se a fórmula notarial é um estereótipo congelado e maciço (...) ou [é] indício sensível das mutações mentais, tanto do notário como de seus clientes".16
Nos testamentos deparamo-nos, talvez, com o exemplo máximo da escrita como prática social situada. Enquanto faceta do ritual preparatório da morte, revela fatores fundamentais da vida. Em seus conteúdos é possível identificar objetivos, o teor do discurso, reflexões sobre as condições materiais de existência, relações familiares, desejos e crenças.17
Segundo Eduardo França Paiva, "muitos testadores registraram suas últimas vontades quando pressentiram o fim, num momento em que a agonia do corpo e do espírito provocou alterações em seus sentimentos e em seu modo de viver".18 Ideia compartilhada por Faria, para quem, na maior parte dos casos, o documento não era elaborado com grande antecedência à morte, ou seja, "em boa saúde". Para a autora, "testamento e morte combinavam-se, sendo plausível supor que redigi-lo significava estar em risco de vida".19 De acordo com a legislação, poderiam ser escritos em qualquer momento, a partir de certa idade, mantendo-se inalterados, sofrendo reformulações ou até sendo revogados.20 No caso do testador incapacitado de assinar na ocasião da elaboração do documento (geralmente acometido por moléstia dos olhos ou das mãos), uma das testemunhas poderia fazê-lo em seu lugar, a rogo. Cabe lembrar ainda que o testador somente legitimaria o documento (com assinatura ou sinal de seu uso), após ter lido e/ou ouvido, perante as testemunhas, o registro escrito. Ou seja, após ter a certeza de que a matéria grafada correspondia ao conteúdo ditado. Posteriormente, essa leitura (pessoal ou de oitiva) seria legitimada pelo "termo de aprovação". Segundo as Ordenações Filipinas, o tabelião deveria declarar na redação o dia, mês e ano de elaboração do testamento, "lugar e reconhecimento do testador e das testemunhas" e se aquele estava em pleno gozo de suas faculdades mentais.21
A necessidade de preparação para a "hora da morte" fazia parte do que a historiografia consagrou como pedagogia do medo, mecanismo por meio do qual a Igreja católica inculcava nos fiéis a necessidade de obediência às determinações doutrinárias. O católico, para ter "boa morte", deveria consignar em seu testamento a ideia de subordinação aos ensinamentos da Igreja.
Apesar dos "dizeres testamentais" visarem acima de tudo expressar tal aprendizado - não significando sua efetiva realização em vida -, podemos afirmar que, especialmente após o Concílio de Trento (1545-1563) e até o século XVIII, a "arte de bem morrer" passa por transformações. Norteia-se, diferentemente dos séculos XIV e XV, pela noção de que somente tendo-se vida guiada pelos ditames da Igreja católica seria possível falecer em paz. Isto posto, em nosso entendimento, o caminho para a salvação da alma acabou deslocando-se do momento da morte e passou a ser a trajetória vivida.
Em desacordo, portanto, com as afirmações de Faria e Paiva, a elaboração dos testamentos comporia a conduta característica de uma "boa vida" e, por isso, não necessariamente seria realizado na iminência da morte. Compartilhamos da perspectiva analítica de Cláudia Rodrigues, para quem "a partir do século XVII e do XVIII, os textos das artes moriendi apresentaram nova base. Ou seja, os manuais portugueses de preparação para a morte orientavam os fiéis a elaborarem seu testamento em boa saúde, e não esperarem pela enfermidade para fazê-los".22
Outro ponto fundamental a ser considerado diz respeito ao contexto de feitura desses documentos. No nosso caso, a comarca do Rio das Velhas, cenário caracteristicamente urbano.23 Tratava-se de importante lócus comercial, com forte mercado interno, onde, acoplada à circulação de mercadorias e à acumulação de riquezas, seguiu-se o incremento populacional, o fluxo contínuo de ideias, de relações sociais, enfim, de intensificação da vida cultural. Este conjunto de caracteres acabou por levar e, muitas vezes, exigir o envolvimento com a escrita, por parte de diferentes sujeitos, sem embargo de ocorrer em ocasiões pontuais.
Explicitemos: uma das facetas indissociáveis do montante de testamentos e inventários refere-se, justamente, ao desenvolvimento econômico da região. Esta realidade pode explicar o maior número de testamentos lavrados na comarca a partir da década de 1740 (gráfico 1), momento em que se adensaram as atividades agropastoris e comerciais, levando ao crescimento do número de arraiais e de entrepostos comerciais. Parcelas da população dedicaram-se a empreendimentos econômicos de natureza distinta, gerando o acúmulo de pecúlios e de bens (móveis e imóveis) e, de igual maneira, a aquisição de dívidas e créditos, fomentando, por consequência, a produção de testamentos e inventários.
A esses fatores estruturais acrescente-se a informação de que, nas Minas, as mulheres estiveram envolvidas em atividades relacionadas ao comércio, à agricultura e mineração. Penoso para ambos os sexos, o trabalho na faina mineradora apresentou nas grandes empresas uma desproporção entre o número de homens e de mulheres, sendo que estas compunham a minoria. Já nos pequenos empreendimentos, os quais perfaziam a maior parte, a quantidade de escravas muitas vezes igualava-se a de homens cativos, podendo propiciar certa inserção e ascensão social de fração dessas mulheres.25
Sabemos que na capitania de Minas havia expressivo número de forras, informação confirmada na documentação por nós analisada.26 Devido a essa realidade, percebemos que o recurso à escrita denotou e permitiu maior mobilidade social, caracterizando-se, em primeiro plano, pela exposição das relações de poder e de trabalho, pela necessidade de administração da casa e/ou dos negócios, seguidos pela exposição da convivência familiar e social. Tais aspectos são visíveis nos textos testamentários, como veremos mais a frente.
Cumpre reforçar que, na Época Moderna, o testamento apresentava-se como veículo do discurso perpetrado sobre a morte e, em simultâneo, veiculava representações da vida pessoal. Por um lado, continha manancial de gestos, ações e manifestações relativas às crenças e rituais relacionados à morte, configurando-se como atitude de última vontade do indivíduo. Por outro, encontrava-se repleto de visões do cotidiano, de eventos relativos às trajetórias individuais e coletivas, e/ou como essas eram percebidas e narradas.
Diante disso, malgrado suas amarras protocolares, os textos ora analisados emergem com criatividade, vibração e ritmo próprios, trazendo à tona a mentalidade de um tempo. A propósito, sobre o vigor do conteúdo testamental, recorrendo a Vovelle, Régine Robin sustenta: "(...) contra todas as aparências, as fórmulas do escrivão, longe de serem inertes, revelam-se móveis, aptas a traduzir um movimento e, através dele, a refletir mutações da sensibilidade coletiva da clientela notarial".27
Em outras palavras, a análise dos testamentos facultaria a identificação de componentes do imaginário social de dada coletividade. Estudados em série, permitem vislumbrar mudanças e permanências nas crenças e nos rituais, nos valores e nas representações sociais, fazendo-se necessário o emprego de ferramentas analíticas interdisciplinares. Como destaca Marcílio, "(...) o instrumental metodológico, elaborado pela linguística histórica, pela demografia histórica e pela história social quantitativa, é particularmente valioso".28
Mais além das informações de ordem social, do domínio do sagrado e do profano, é preciso frisar que esse gênero textual possui linguagem singular. Isto é, manifesta - quando enunciado - características discursivas peculiares, investe-se da função de expressar demandas e crenças, "escrevendo-as". Momento e evento nos quais a escrita assume posição central, o discurso testamentário, ao ser ditado, revela marcas introjetadas típicas da linguagem escrita.
Disso se depreende que, quem dita "redige", pois, para a verbalização de um texto caracterizado por certo padrão discursivo, os sujeitos - no exercício de suas liberdades condicionadas pela ordem social - não dizem o que pensam de maneira completamente dissociada das formalidades escritas. Os testadores verbalizam suas elaborações invadidos por convenções textuais. São princípios reguladores que permitem a organização pedagógica do pensamento. Há, sob essa ótica, "um ritual social da linguagem implícito, partilhado pelos interlocutores".29
Propugnamos, então, a ideia de que para se dizer as disposições havia o conhecimento da necessidade de se ter postura adequada e modo de falar que carregavam características da comunicação escrita de um momento solene. Quando o indivíduo enunciava o conteúdo, ele colocava-se diante do outro, interagindo, num horizonte comunicacional, com os demais agentes a saber: o redator, as testemunhas e os futuros leitores/ouvintes.30
De acordo com esse raciocínio, para nortear-nos na análise das fontes, elegemos as proposituras de Mikhail Bakhtin.31 A escolha prende-se à compreensão do ditado do testamento enquanto processo de enunciação, no qual pesam os conhecimentos do narrador em relação ao contexto. Desse modo, concebemos a construção do texto como autoria compartilhada, sendo o testador-narrador um coautor.
Bakhtin argumenta que o sentido de determinado conteúdo discursivo/textual só poderá ser compreendido abordando-se a situação social vivenciada pelos interlocutores. Para tanto, pondera em seu texto Discurso na vida e discurso na arte - sobre poética sociológica que o enunciado deve contemplar três frentes fundamentais: o horizonte espacial comum dos interlocutores; o conhecimento e a compreensão do contexto social no qual os indivíduos estão inseridos; e a avaliação comum dessa situação contextual pelos interlocutores.32
Em nossa interpretação, as disposições (testamentárias) verbalizadas (enunciado concreto) formam um texto, conjunto coerente e coeso, integrante de determinado gênero de discurso. A construção desse conteúdo é realizada, e não apenas determinada, com base no contexto social e histórico. A historicidade do discurso é compartilhada por quem expressa os desígnios, por quem irá redigi-los e pelo leitor/ouvinte. Consequentemente, o narrador-testador assumiria o status de coautor, pois mesmo contando com a colaboração do redator, estrutura e organiza seu discurso.
Por esse motivo, voltamos nossa atenção para a historicidade dos "dizeres". Certos vocábulos e expressões constantemente aludidos foram eleitos como fios condutores de nossa análise, quais sejam: enjeitado, cativo, forro/liberto, crioulo, dote, "crias da casa", "carta de corte", "carta de alforria", "carta em segredo", "cadernos de lembranças", "assinei em cruz" etc. Não ficamos, no entanto, presos aos termos. Eles funcionam como pontos de luz. "Seguimos" pelo texto, identificando indicadores do conhecimento e da avaliação da realidade pelo testador. Eis, portanto, a singularidade da abordagem pretendida: afora o padrão discursivo do documento, em todo o "resto" da matéria redacional poderão ser encontradas a compreensão, a avaliação e a originalidade autorais do narrador.
Sem saber ler nem escrever e marcando seu testamento com uma cruz, em janeiro de 1794, na freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Rio das Pedras, Juliana Sanches da Silva registrou a respeito das crias da casa. Sobre elas, declarou:
(...) às minhas crias Helena, Narcisa, Cecília, Perpétua, Bernardo, Maria e Vicência, filhos da escrava Maria, de "nação mina", já falecida, pelos bons serviços que me fizeram e amor que lhes tenho, lhes tenho passado a carta de liberdade a cinco de junho de 1792 anos, com as cláusulas nelas declaradas e que neste meu testamento novamente as expresso (...) Narcisa com a condição que daria para o meu enterro e sufrágios a quantia de quatorze oitavas, a Cecília com a obrigação de dar dezoito oitavas, cuja quantia já recebi e lhe entreguei a sua carta e na qual também libertei as suas duas filhas digo libertei as suas filhas Agostinha, Angélica e Luísa; Perpétua com a condição de dar para o meu enterro e sufrágios a quantia de quatorze oitavas, Helena com a condição de dar para o meu enterro e sufrágios a quantia de quatorze oitavas e na carta que lhe passe de sua liberdade lhes forrei os seus filhos Antônio pardo, Luciano e Hilária crioulos; Bernardo com condição de dar para o meu enterro e sufrágios vinte oitavas de ouro cujas cartas as conserva em seu poder o senhor alferes Eusébio Francisco Lopes e lhes serão entregues depois de cada um satisfazer a parte que lhes toca.33
O modo de Juliana elaborar e partilhar decisões é representativo da autonomia em escolher e compor a matéria a ser firmada no papel. Na verdade, sua narrativa trata-se da socialização de hábitos, crenças, impressões e necessidades. Assume função descritivo-explicativa, referindo-se a relatos do passado e a determinações futuras. Os apontamentos deixam entrever aspectos da convivência com os cativos, expondo os acontecimentos cronologicamente, como, por exemplo, ao datar a oportunidade para a entrega da carta de liberdade aos escravos.
Ainda que tenha sido estimulada e orientada a registrar tal momento, a testadora faz questão de expressar novamente as cláusulas contidas nas cartas. Costume da época, a reafirmação em testamento das liberdades concedidas aos escravos revela o uso da escrita de forma a ratificar inclusive decisões já legalizadas. Nesse sentido, cabe lembrar os esclarecimentos de Ian Watt e Jack Goody quando afirmam que os registros escritos são retomáveis e verificáveis, passíveis de um esquadrinhamento retrospectivo,34 permitindo-se a eliminação de incoerências. Ressaltemos que, neste caso, o esquadrinhamento retrospectivo do conteúdo escrito deu origem a novo texto, o qual nasceu de uma enunciação oral. Revista e examinada, essa escrita compõe quadro coerente, descortinando pensamentos e confirmando intenções.
No conjunto de testadoras proprietárias de escravos, alusões às alforrias das crias, motivadas por supostos sentimentos de amor e gratidão são usuais. Lígia Bellini, ao estudar para a cidade de Salvador a relação senhor-escravo por meio da análise das cartas de alforria, já havia afirmado que muitas dessas manumissões tinham como pano de fundo "a relação de afeto e cumplicidade" estabelecida entre esses agentes. Nessa perspectiva, ressalta a grande proporção de documentos de liberdade nos quais os proprietários "alegam estar alforriando o escravo por tê-lo criado ou ainda o estar criando, pelo fato do escravo ter nascido na casa do senhor e pelos bons serviços da mãe, alguns declarando que 'o amavam como se fosse filho' (...)". E realça: "o fato de um escravo ser criança deve ter favorecido a conquista de afeto e atenção especial dos senhores".35
Destaca a autora que os escravos de ganho, designação atribuída àqueles que trabalhavam em troca de remuneração - fosse por conta própria ou a mando do senhor - tinham a "vantagem" de, muitas vezes, sustentarem os proprietários, vivendo próximos a estes; tal situação permitiria o estreitamento dos laços de convivência e que, possivelmente, tais ligações acabavam por desaguar na concessão de alforrias às crianças nascidas nas casas dos senhores.
Ao refletir sobre a manutenção da família escrava em um mesmo plantel como acerto efetuado entre senhores e cativos, Eduardo França Paiva menciona a existência das crias enquanto alternativa de mão de obra para os pequenos proprietários nas Minas, em especial nas áreas urbanas. Em suas palavras, "os senhores, assim, substituíam, pelo menos em parte, a compra de escravos adultos - africanos e/ou brasileiros - pelas crias da casa".36
Com efeito, as crias serviram à reposição da mão de obra. Mas certo é, também, que seu papel enquanto agente social não pode ser reduzido a tal finalidade. Como viveram e de que forma se relacionaram com seus proprietários no espaço doméstico? Se se prestavam tão somente a substituir a compra de escravos adultos, como se explica o expressivo número de alforrias de crias, principalmente nos testamentos de mulheres?
Pelo que observamos, as características levantadas nos textos em que há menção às crias denunciam a função da escrita enquanto estratégia empregada para o controle da população escrava, a partir da promessa de liberdade para os filhos dos cativos e da declaração de pretensos sentimentos. Visava, ademais, definir o papel e o lugar de pessoas, que, mesmo sem serem consanguíneas, conviveram com as testadoras, podendo, realmente, ter despertado nelas algum sentimento. Ao que nos parece, em ambas as situações, a alforria condicional ganhou a cena e surgiu atrelada aos discursos sociais, mormente aos receios/crenças, afetos e hábitos religiosos.
Outro aspecto relevante no testamento de Juliana Sanches refere-se à ordem assumida pelas disposições. Em contraposição à maioria dos testamentos, a testadora inicia o texto com as determinações acerca das coartações e apenas depois declara os bens. Esta escolha talvez explicite certa hierarquia e lógica conferidas às disposições, em detrimento do usual na elaboração do documento. Em primeiro lugar, evidenciou quem eram as crias e, logo em seguida, dispôs dos bens para favorecimento das mesmas. Imputando novo movimento ao discurso, inverteu o mais comum nos textos, qual seja: encomendação do corpo, disposição dos bens e depois as alforrias, para principiar a narrativa com a declaração das liberdades.
Tendo em vista que deixaria seus legados para Helena, Narcisa, Cecília, Perpétua, Bernardo, Maria e Vicência, é como se fizesse questão de apresentá-los no início do ditado, aclarando as condições das alforrias, para mais tarde dizer sobre aquilo que herdariam. Ao "escrever", subvertendo o habitual do escrito, Juliana deixa-nos perceber rastros da oralidade no papel, pois a redação não se encontra imobilizada pelo ordenamento mais frequente conferido à tipologia textual. Ao contrário, mostra-se flexível e diferenciada. Mesmo existindo protocolos específicos que delineiam o conteúdo, a testadora "redigiu" seus desejos e determinações, utilizando-se da escrita de maneira autônoma e pessoal.
É o que podemos verificar, do mesmo modo, no discurso de Ana Duarte da Silva, natural da Costa da Mina, casada com Teotônio Ramos Pereira, de cujo matrimônio não teve filhos. Ao fazer o testamento, em 7 de fevereiro de 1792, declarou não saber ler nem escrever, marcando-o com uma cruz. Afirmou que quando veio para as Minas, em "tenra idade", foi "batizada no Arraial de Raposos" e mais tarde passou a viver em Congonhas. Morando nesta localidade, criou Joaquina, "moça branca", enjeitada, para quem pretendia deixar seus pertences, entre eles brincos, uma vaca, um boi e dois tachos de cobre pequenos, sendo um "em bom uso e outro furado".37
Não parece de todo impróprio pensar que Ana usou a escrita de forma a ressaltar o fato de Joaquina ser "moça branca". Verbalizou este "detalhe" em testamento, conferindo identidade social a Joaquina. Em uma sociedade marcada pela escravidão africana, esses "pequenos" dizeres assumiam dimensões mais amplas quando fixados em documento. No contexto, a afirmação da cor branca poderia traduzir lugar social privilegiado em relação às pessoas de cor, denotando distanciamento da condição de cativo. Trata-se, portanto, de caminho para se distinguir a "qualidade" do indivíduo. Nesse caso, a testadora se ocupou em destacar aspectos que qualificassem a enjeitada como alguém que não era negra, cativa ou mesmo liberta.
Iniciativa expressiva da narradora diz respeito, igualmente, à afirmativa de que um de seus tachos encontrava-se "furado". Enquanto instrumento de trabalho e de uso doméstico, os tachos apresentavam grande importância para a sobrevivência das mulheres e de seus familiares. Esse utensílio aparece em número significativo de testamentos. Dizer sobre eles na elaboração do texto era, em última análise, escrever sobre si. A existência de "tachos de cobre", tachos "de fazer doces", pequenos ou grandes, novos ou velhos, em "bom uso ou furados" foi constantemente registrada, deixando evidente, nas linhas redigidas, marcas e indícios da indústria dessas mulheres.
A escrita foi empregada para explicitar práticas sociais relacionadas ao mundo do trabalho, onde instrumentos e utensílios assumem valor concreto e simbólico. Os tachos de Ana, deixados para a enjeitada Joaquina, "continham", em sua descrição, o esforço e os sinais da labuta cotidiana. Deixá-los, descrevendo-os, designava muito mais do que a transferência de bens materiais. Tratava-se da transmissão daquilo que era significativo na vida da testadora para alguém com quem possuía ligação estreita.
Os vínculos sociais estabelecidos ao longo da convivência - e as situações daí decorrentes - vieram à tona também nos relatos de Narcisa de Meneses Sodré, natural da vila do Sabará. A testadora era viúva e elaborou seu testamento a 2 de maio de 1796. Afirmou não saber ler nem escrever e assim se manifestou:
Declaro que uma enjeitada que criei por nome Quitéria [casou-se] com Bernardino José de Sena e lhe dei de dote uma crioula, por nome Brígida, para servir, com a condição, porém, de nem terem autoridade a vender, a rematrar (sic), nem alhear, que tudo será reputado se o fizerem [com] remanescentes da dita crioula, que vem a ser [mãe] dos filhos que tem, Francisco e Silvéria, mais que haja de parir, pertencem a uma filha que tem o dito Bernardino e Quitéria, assim por nome Joaquina, que lhe ficam pertencendo por minha última vontade para seu dote. A dita crioula Brígida, que acima faço menção, fica pertencendo aos ditos nomeados acima por dote, porém, com a cláusula referida de não poder dispor.38
O conteúdo textual esclarece-nos que a prática de conferir dote era atitude estabelecida não apenas entre pais e filhas, mas entre "criadores" e enjeitadas, tutores e tuteladas, padrinhos e afilhadas, isto é, entre sujeitos e mulheres com as quais esses indivíduos possuíam algum liame de proteção. A escrita, nesse aspecto, além da função de legar bens, no caso o dote, respondeu à intenção de demonstrar o cumprimento de determinada "obrigação" por aquela que se apresentou como uma das responsáveis pela criação da enjeitada Quitéria. Uma vez mais, porque situados historicamente, os usos da escrita surgiram e se definiram alicerçados no terreno social.
Narcisa discorre sobre as condições de merecimento e manutenção do dote da cativa. Com esta finalidade, em determinadas passagens, reproduz matéria já expressa, como quando diz: "A dita crioula Brígida, que acima faço menção, fica pertencendo aos ditos nomeados acima por dote, porém, com a cláusula referida de não poder dispor". Enquanto materialidade simbólica e produção de um tempo, a escrita elaborada a partir da enunciação tendeu a reafirmar as condições impostas para o recebimento do dote, revelando a importância conferida ao assunto na redação do testamento. A reincidência desse "dizer", sua recorrência e reafirmação constituíram-se em pontos emblemáticos do conteúdo. Destaquemos, todavia, que o recurso a termos como sobredito, dito ou dita, visando evitar as repetições, mas, por vezes, possuindo efeito contrário, era habitual nos documentos produzidos. "Vícios" de linguagem próprios àquela modalidade de escrita na época em questão.
O emprego dessas expressões corriqueiras, que num primeiro momento poderia apresentar-se como embaraço para nosso argumento (o da necessidade de reiteração de certas falas - reafirmando, por isso, sua importância), aflora, na verdade, como aliado da ideia defendida. Os ditos e sobreditos, ao serem observados de maneira mais cautelosa, deixam de cumprir funções meramente mecânicas. Elucidam pormenores que se tornam mais visíveis quando tais expressões aparecem associadas às frases ou a trechos amplos, acompanhados da repetição do próprio conteúdo, detalhando o escrito.
É o que percebemos no trecho do testamento de Narcisa em que se refere à cativa. A testadora deu a Bernardino e à enjeitada Quitéria a crioula Brígida e, inicialmente, alude que o fazia "com a condição, porém, de nem terem autoridade a vender, a rematar (...) nem alhear, que tudo será reputado se o fizerem".39 Na sequência, explicita que os filhos da escrava e aqueles que porventura viria a ter seriam de Quitéria e de Joaquina, a filha de Bernardino. Ao final do texto, reitera, resumidamente, a disposição feita no começo da narrativa. Ela é (re)escrita com novas palavras, mas mantendo-se o sentido: "a dita crioula Brígida que acima faço menção fica pertencendo aos ditos nomeados acima por dote, porém, com a cláusula referida de não poder dispor".40
Remetemo-nos, aqui, às reflexões de Justino Pereira de Magalhães,41 quando aborda o conceito de apropriação, o qual diz respeito à maneira como os vários interlocutores assimilam, interpretam e reagem às representações, reconstruindo-as no cotidiano. Essas representações referem-se à forma como determinada cultura é organizada discursivamente, comunicada e transmitida por meio dos suportes linguísticos. Narcisa atravessa todo o texto impondo condições e fazendo advertências. Depois, retoma disposição inicial para reafirmá-la, expressando a necessidade daquilo que achava importante ser salientado: o não alheamento de Brígida. A escrita serviu, neste caso, para manter a cativa próxima aos seus filhos, fosse por negociação ou solicitação desta, fosse por interesses ou sentimentos desenvolvidos pela escrava. Apropriando-se e interpretando a realidade, em específico a situação familiar de Brígida, Narcisa "deixa" transparecer desejos e valores nas entrelinhas de sua escrita, projetando e confirmando, no papel, o futuro esperado para Brígida e seus filhos.
Na intenção de apresentar seu autorretrato, outra testadora, Maria Ribeiro de Meneses, valeu-se da escrita em documento elaborado no dia 27 de agosto de 1794. À época, manifestou:
Eu, Maria Ribeiro de Meneses, mulher solteira de sessenta para setenta anos de idade, abaixo assinada, de nação mina, liberta e moradora neste Arraial de Santa Bárbara, estando enferma, mas em meu perfeito juízo, faço meu testamento na forma seguinte (...) ordeno que se dê a Antônia, minha cria liberta, dez oitavas de ouro, outro tanto a Joana, irmã da mesma, outras dez oitavas a Luísa, digo a Luzia parda, minha enjeitada, e serão dadas oito oitavas de esmola a Mariana Carneiro.42
A declaração da idade em testamento não era comum, considerando-se que a informação da data exata do nascimento não deveria ser clara para os testadores, quanto mais em se tratando de ex-cativos oriundos do continente africano. De todo modo, gostaríamos de destacar o excerto inicial. Nele, Maria Ribeiro compõe quadro identitário bastante rico. Proporciona ao ouvinte/leitor ausente ou desconhecido quase um "retrato" de como se via ou gostaria de ser vista. Ainda que a organização e a inteligibilidade da narrativa sejam obras de quem redigiu, o detalhamento das características sociais, porque escrito em primeira pessoa, certamente teve origem no enunciador do texto, o qual constrói sua própria imagem. Escrevendo sobre quem era, Maria Ribeiro reconstrói parte de sua trajetória de maneira sequenciada, dizendo, pela ordem, seu nome, sexo, "estado" (solteira, casada ou viúva), quantos anos tinha, "naturalidade" e condição e onde vivia, para depois informar, como de praxe, a respeito de sua saúde. Estando enferma, mas em seu perfeito juízo, ordenou a doação de esmolas à cria, à irmã da mesma e à enjeitada Luzia.
Neste ponto, consideramos as reflexões de Leda Verdiani Tfouni,43 para quem a ideia de autor está ligada "à noção de sujeito do discurso (...)". Este seria (mesmo não alfabetizado) o estruturador da narrativa (oral ou escrita), a partir do princípio organizador contraditório, referente a subjetividades e condicionantes sociais. Pelo que constatamos, Maria Ribeiro estrutura sua narrativa de acordo com tal princípio. Ao falar de si para escrever sobre si, constrói uma autorreflexibilidade crítica, criando uma imagem de si forjada com base na subjetividade e nas ingerências sociais. O discurso não nasce apenas de suas lembranças e entendimentos. Carrega, também, vozes sociais, até mesmo ao construir a autorrepresentação. São entrelaçamentos incontestáveis ainda que discretos. Ao escrever quem era, a testadora pensa a respeito de si, porém, a partir da relação dialógica estabelecida com as vozes emanadas do social. Articula e reelabora os componentes de seu retrato escrito. Isso possibilita, "no próprio texto, um retorno constante à forma como aquele sentido está sendo produzido".44
As lembranças narradas não se deram de maneira "completa", de modo a remontar o passado tal qual ele era. Memórias não são espelhos da realidade, mas (re)construções enraizadas no real. As recordações são sempre fragmentadas, compõem-se de estilhaços do vivido, das seleções e escolhas feitas por quem narra, pelos sujeitos autores das lembranças. Esses "sujeitos-autores" lançam o olhar para o passado, mas alicerçados em novas bases, em experiências presentes, particulares.
Tomemos, agora, o testamento de Quitéria Veloso Carvalho, exarado em 2 de junho de 1794. A testadora rogou para que assinassem o documento e afirmou não saber ler nem escrever, quando declarou:
(...) Deixo coartadas as duas minhas escravas Florência e Inês, ambas angolas, por preço de oitenta oitavas cada uma para satisfazer em quatro pagamentos anuais e fizerem até o terceiro pagamento e [ilegível] alguma coisa do último, querendo mais tempo para a satisfação do resto, lhe dará meu testamenteiro o preciso tempo para satisfação, atendendo sempre para as poucas conveniências que hoje se faz. E a crioula Maria da Trindade, a declaro forra para sempre, pelo muito amor que lhe tenho, e bastará uma certidão desta verba para lhe servir de título de sua liberdade.45
Quitéria dispõe com detalhes de que modo se dará a alforria de Florência e de Inês, além de reforçar que, caso fosse necessário, o testamenteiro aumentaria o prazo com a finalidade das duas conseguirem pagar a quantia estabelecida.
A dimensão deste último argumento manifesta o desejo da testadora em facilitar, de alguma forma, a liberdade das cativas. Como se não bastasse registrar sua vontade em testamento, prevê e adianta supostos obstáculos na compra das liberdades. Esse tipo de precaução, frequente nas disposições testamentárias, atribui à escrita sentido particular, pois coloca a própria determinação em perspectiva, como que antevendo a impossibilidade de sua concretização. Podemos observar que a testadora parte de hipótese certamente fundamentada na realidade, permitindo-lhe tecer considerações e apresentar soluções a respeito de dificuldades no cumprimento das disposições. Utilizou-se da escrita com a intenção de defender as escravas de um possível, ainda que remoto, retorno ao cativeiro, assegurando-lhes melhores condições para se tornarem forras.
Quitéria Veloso registra, também, o sentimento de muito amor que afirmava possuir pela cativa Maria Trindade. Mais do que simples crônica da convivência, o texto dessa testadora revela a existência de possíveis relações de cumplicidade entre a proprietária e a escrava, desembocando, para Maria Trindade, na facilitação da comprovação de sua condição de liberta. Dispensa-se, nesse caso, a carta propriamente dita. Bastaria uma certidão feita a partir da cláusula em testamento para Maria Trindade ver-se juridicamente livre. Esse dado é bastante significativo, visto que a carta de alforria era documento compreensivelmente sonhado pelos cativos e, ainda que a liberdade por ela conferida não possibilitasse aos forros iguais condições de vida às dos brancos, era inequívoco o seu valor. Na interpretação de Sheila de Castro Faria, a escravidão atingiria seu fim ou pela morte natural do escravo ou pela liberdade adquirida, isto é, a alforria, a qual poderia ser comprovada de três maneiras. Com "a carta ou papel de liberdade", pelo testamento ou codicilo e por meio do batismo.46
Não era inusitado haver nos testamentos menção às cartas de alforria ou às cartas de corte. Eram ambas documentos de valor legal, sendo que a primeira outorgava a plena liberdade ao escravo, podendo ser registrada em cartório. Redigida por quem de direito, seria comprada ou concedida gratuitamente e, neste caso, por vezes, a liberdade assumiria a forma condicionada. Em Minas Gerais, tanto as alforrias gratuitas quanto as condicionais foram recorrentes nos testamentos.
No caso dos escravos coartados,47 era concedida a "carta de corte", que se diferenciava da carta de alforria. Aquela permitia ao escravo trabalhar tanto próximo dos domínios do senhor quanto fora deles. A esse respeito, Stuart B. Schwartz informa que o escravo coartado "não era o mesmo que um mero escravo, nem tampouco se igualava ao forro, situando-se de fato num meio caminho entre uma condição e outra".48 Essa autonomia era, na verdade, determinada pelo proprietário, informação não obrigatoriamente presente na carta de corte.
Andréa Lisly Gonçalves sublinha a importância desse documento na garantia do cumprimento do contrato firmado entre senhores e cativos. No entanto, para a autora, parece não existir consenso historiográfico relativamente ao momento de transferência da carta de corte ao seu destinatário, isto é, ao escravo coartado.49 Já Laura de Mello e Souza afirma que o escravo apenas a obteria quando pagasse por todo o valor determinado para a manumissão. Desse modo, esta autora acaba conferindo ao documento proximidade ou quase similitude com a carta de alforria. Ponto de vista diferente é o de Eduardo Paiva, quando esclarece ser inabitual o registro desse tipo de papel em cartório. A carta de corte, portanto, não deve ser entendida como documento comprobatório da manumissão. Ao findar as condições impostas pela coartação, nova carta ou documento seria elaborado, o que poderia ocorrer também copiando-se o conteúdo da carta de corte.
Vale ressaltar que, ainda que os escravos fossem os maiores beneficiados com a alforria, esta também interessava aos proprietários e ao poder metropolitano, dado constituir-se num importante mecanismo de controle. Ao condicioná-las, os senhores teriam, pelo menos durante o prazo estabelecido para a sua efetivação, aquele cativo debaixo de olhar vigilante. Nesse sentido, embora os textos testamentais busquem ressaltar as supostas relações de afeto e cumplicidade entre esses agentes, as alforrias (condicionais e coartações) poderiam significar formas sofisticadas de contenção social. Seja como for, as condições impostas e descritas nos documentos descortinam as negociações estabelecidas, que se definiam como "jogos singulares de poder e sedução".50
A despeito da onipresença do aparelho administrativo metropolitano no território mineiro - que se processou por fatores de ordem diversa -,51 do desenvolvimento de especificidades administrativas e da preocupação das autoridades em manter essa sociedade sob controle na capitania de Minas Gerais, a prática das manumissões foi atestada por diferentes historiadores. Por isso, acreditamos que os procedimentos relacionados às liberdades, porque recorrentes, de certo orientaram e preencheram os conteúdos da fonte selecionada em nossa investigação. No entanto, foge ao escopo deste trabalho discutir as políticas de alforria na sociedade mineira de então, análise que, certamente, requer maior apuro e aprofundamento. Pretendemos, apenas, entender como as liberdades foram escritas e descritas.
A esse respeito, Andréa Lisly Gonçalves, interpreta:
A própria ausência de normas estritas que regulassem os assuntos relacionados às manumissões levava a que os papéis de liberdade, registrados nos Livros de Notas do Tabelião, contivessem uma variada gama de informações tão numerosas quanto os arranjos específicos estabelecidos entre senhores e escravos com vistas à obtenção ou à concessão da alforria.52
Tal variação de informações pode ser conferida, em igual medida, nos testamentos. Entender as escrituras entrelaçadas ao social faculta-nos, pois, a possibilidade de evidenciar a atuação dos sujeitos autores e, paralelamente, de compreender a importância e a função de se "escrever" determinados textos. Em suas análises sobre "os papéis de liberdade", Gonçalves pondera, ainda, que os alforriados poderiam influenciar na forma como a liberdade se concretizaria e afirma que a padronização da redação das cartas de alforria "não impedia que de suas linhas se insinuassem situações particulares, desejos ensejados por situações específicas nas quais se baseavam determinadas relações entre senhores e escravos.53 Bem, se interesses distintos delineavam os caminhos para as manumissões, talvez seja razoável inferir que também as escritas sobre elas, em testamento, apresentassem desenhos múltiplos, materializados em variações e individualizações discursivas.
Retornemos, para exemplificar, à narrativa de Quitéria Veloso. A testadora faz uso da escrita para avalizar a condição de forra de Maria Trindade, eximindo-a da apresentação de instrumento específico. A afirmativa de que "bastará uma certidão desta verba para lhe servir de título de sua liberdade" acaba por reforçar a intenção de alforria e a torna de mais fácil comprovação. Despregando-se da vida e tomando forma no papel - fosse pelo muito amor que Quitéria dizia sentir, fosse pelas negociações existentes entre ela e sua escrava -, os sentimentos, vínculos e "combinados" transformavam-se, pela via da enunciação oral, em textos capazes de alterar as condições de existência dos sujeitos.
Ao dar continuidade às disposições, a testadora afirma:
(...) declaro que devo toda a compra do escravo João angola e é minha vontade que, pelo amor que lhe tenho, fique coartado em [ilegível] libra de ouro que irá dando o seu jornal de mês em mês que tocar [pro rata] daquela quantia, de que se lhe dará recibo para se regular os pagamentos; e com o que der seja satisfeito o preço porque o comprei; e logo se lhe passe carta de liberdade.54
Referindo-se, no caso do escravo João angola, à carta de liberdade, Quitéria Veloso diferencia o caminho da obtenção da alforria para este escravo em relação àquele traçado para Maria Trindade. Particularidades e ocorrências que nos permitem vislumbrar as relações e as negociações estabelecidas entre os agentes. O contexto extraverbal, enquanto constituinte da enunciação da testadora, assume relevo nesse momento. Mesmo declarando possuir amor por este escravo, assim como o fez referentemente à cativa, o texto se modifica e deixa à mostra acontecimentos (a dívida relativa à compra do escravo) e condições (a forma como se daria a coartação) dispostos de maneira bastante clara.
A senhora de João angola demonstra possuir a compreensão do horizonte espacial no qual a escrita acontece, pois num caso realiza a avaliação de que com a escrita testamentária poderia conferir legitimidade à condição de forra de Maria Trindade, dispensando-se a carta de alforria. No outro, determina as condições da coartação de João angola e, por arremate, explicita como se daria o pagamento da dívida, exprimindo conhecimento para a efetivação da negociação. A compreensão, a capacidade avaliativa e o conhecimento da realidade remetem, como visto, a critérios centrais de desempenho autoral numa situação de comunicação.
Analisemos, por último, o testamento de Brites Corrêa de Oliveira, solteira, natural da cidade da Bahia, que exprimiu:
Declaro que o dito meu filho o doutor José Caetano de Oliveira mandou lavrar um papel o qual não sei o que consta e ele o mandou assinar sem eu ser ouvida. Caso os herdeiros [ilegível] queiram repartir alguma quantia de minha fazenda ou seja por modo de doação, eu o hei por nulo e de nenhum vigor por não ter dado ao dito filho consentimento algum para isso, ainda que nele se ache declaração de que eu o assinei com uma cruz e que outra pessoa o escreveu a meu rogo e o assinou. Desde já, digo que o não assinei nem o mandei escrever e que tudo é falso.55
A testadora avalia e se posiciona em relação às atitudes de seu filho José Caetano e emite opinião a respeito. Deixa explícita sua insatisfação e "prevê" ou conjectura possíveis medidas a serem tomadas pelos outros filhos. Muito embora tenha assinado em cruz, Brites Corrêa é enfática ao afirmar o que seria válido, quer dizer, aquilo que teria "escrito" e/ou "assinado" e o que não teria "escrito", tampouco "assinado," sozinha ou por intermédio de outra pessoa.
É preciso que tenhamos em mente o significado das assinaturas e/ou rubricas no período analisado. Elas são entendidas como sinais importantes, principalmente na validação de escritos e/ou documentos.56 Cabe esclarecer, porém, que marcar em cruz ou rubricar não são ações equivalentes à escrita do nome. Isso porque redigi-lo requeria, independentemente de se tratar somente de um "desenho", conhecimento mais elaborado. Exigia maior traquejo e desenvoltura com os materiais destinados a esse fim.
De qualquer maneira, quando a testadora cogita a possibilidade de alegarem que ela teria "assinado" algum documento, demonstra conhecimento sobre as funções e a validade deste sinal. Por isso, fez questão de mencionar a ilegitimidade do suposto feito. Dessa forma, com seu discurso oral - posteriormente escrito - invalida prováveis documentos redigidos por alguém que soubesse escrever. Sua enunciação acaba por criar um texto conexo, objetivo e pragmático, no qual as conjecturas assumem a função de elementos ordenadores da narrativa. Daí se deduz que a experiência com a escrita poderia propiciar a sujeitos iletrados, mesmo pontualmente, a concatenação de ideias com vistas ao posicionamento social.
Pela análise dos testamentos, fica patente que as atividades relacionadas às alforrias, à concessão de créditos e mercadorias, aos empréstimos e empenhos, firmados em anotações particulares, eram comuns na realidade em causa. Como bem nos mostram as pesquisas históricas, os assentos referentes a distintos negócios aproximaram letrados e iletrados dos registros grafados.57 Fenômeno correspondente às práticas financeiras realizadas em Portugal e vivenciadas, sobretudo, no espaço urbano.58 Em especial, as atividades econômicas (dívidas e créditos) eram sustentadas pela palavra, que se ligava aos hábitos da época, aos conhecimentos dos agentes e às relações sociais assentadas na confiança, deixando transparecer valores de ordem moral e social.59
Nesse sentido, os textos dos testamentos encontram-se repletos de referências à existência de negociações e deixam à mostra as redes de sociabilidade. No entanto, chamamos a atenção para o fato de que, a despeito da palavra empenhada assumir importância fundamental no desenrolar dessas ligações (aspecto enfatizado pela historiografia, em particular para a abordagem das atividades econômicas/creditícias), ela acabava consubstanciando-se em texto, ainda que para ser conhecido somente após a morte de um dos envolvidos. Os usos da escrita, em grande parte empreendidos por iletrados, corporificavam, assim, os acordos e os laços estabelecidos, as experiências individuais e os vínculos sociais que, via de regra, fizeram-se conhecer no papel pela "arte" de outrem.
A esse respeito, defende Rita Marquilhas que, apesar de monopolizada por certos grupos em sociedades de alfabetização restrita, a escrita poderia ser utilizada por diferentes estratos sociais. A autora ressalta sua importância como elemento de poder nas esferas administrativas (civil, religiosa, comercial) e demonstra que se, por um lado, era manipulada pelas instituições com vistas ao controle social, por outro, ocupava lugar na sociedade, apresentando algum "grau de familiaridade" com os indivíduos.60
Embasados nessas reflexões, ocupamo-nos em identificar os motivadores da produção dos registros escritos no contexto analisado. Dada a importância da ação de testar, tanto no que se referia à gerência de bens quanto ao ritual de preparação para a morte, é correto afirmar que hábitos e crenças levaram sujeitos letrados e iletrados a lançarem mão dessa forma de comunicação.
Em síntese, interesses, confidências e expectativas despontaram nos textos. Elementos caracterizantes das relações de afeto e desafeto, de poder e trabalho de quem não se assenhorou da pena. No emaranhado de condicionalismos e de subjetividades, foram narradas e registradas histórias únicas, escritos singulares. A autoria coube tanto a quem pelas mãos as colocou no papel, quanto e fundamentalmente aos portadores de seus conteúdos.
Na capitania de Minas Gerais, iletrados utilizaram-se da escrita sem saber escrever. Encontraram, na prática do ditado, mecanismo para vencer a incapacidade de redigir na solidão. A partir da enunciação oral, administraram negócios, resgataram memórias e expressaram vontades. Pela escrita mediada, transformaram-se em coautores e criaram comunidades de escreventes no interior do abrangente contexto de uma civilização escrita.
Na autoria compartilhada, em especial no ato de testar, afloraram registros carregados de informações pessoais. De lembranças e aspirações. Para a interpretação desses conteúdos, enquanto matérias autorais, o diálogo com a linguística tornou-se profícuo ao demonstrar a riqueza contida nas práticas de escrita. Ao exercitarmos análise diferenciada de textos formatados - mas nem por isso limitados - pelo padrão oficial da escrita cartorária, intencionamos reavivar a especificidade de cada trecho documental redigido, das palavras e expressões selecionadas por quem as ditava. Nossa pretensão foi resgatar elementos de escritas originadas das falas de sujeitos comuns, numa abordagem que, se não completamente desconsiderada pela historiografia, parece repousar à sombra da tendência em se analisar os papéis desempenhados pelas elites, autoridades, funcionários régios, ou seja, por protagonistas letrados ligados às redes de poder.
Ao recorrerem à escrita, evidenciando o cotidiano em textos, os atores sociais posicionaram-se e expressaram muito de si. (Re)significaram e transferiram, para as folhas de papel, memórias, representações e desejos. Elaboraram e narraram histórias (mesmo que meramente retóricas) sobre como se viam ou gostariam de ser conhecidos e, nesse rascunho do real, de um modo ou de outro, "escreveram a si mesmos".
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