Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a polêmica teológica que emergiu com o advento da piedade a Maria, cujo cerne do debate se resumiu à adoção, ou não, do título de Theotókos, e provocou sérios conflitos político-culturais na ekklesia, culminando com o Concílio de Éfeso (431), no qual os bispos Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria foram os protagonistas. Entretanto, nesse caso faremos especificamente um exame dos textos eclesiásticos de Nestório e a defesa de Cristótokos, além das concepções de Cirilo e a contraproposta de Theotókos para apreender a doutrina mariana vigente com o objetivo de interpretar os escritos levando em consideração as escolas teológicas às quais estavam filiados.
Palavras-chave: CristianismoCristianismo,Cirilo de AlexandriaCirilo de Alexandria,Nestório de ConstantinoplaNestório de Constantinopla.
Abstract: This article aims to analyze the theological controversy that emerged with the advent of devotion to Mary, whose heart of the debate came down to the adoption, or not, to the title of Theotokos, and caused serious political and cultural conflicts in the ekklesia, culminating in the Council of Ephesus (431) in which the bishops Nestorius of Constantinople and Cyril of Alexandria were the protagonists. However, in this case, we specifically do an examination of ecclesiastical texts of Nestorius and the defense of Christotokos, beyond the conceptions of Cyril and the counter-proposal of Theotokos, in order to learn the current Marian doctrine interpreting the written considering the theological schools to which they were affiliates.
Keywords: Christianity, Cyril of Alexandria, Nestorius of Constantinople.
ARTIGOS
ENTRE CHRISTÓTOKOS E THEÓTOKOS: A CONSTRUÇÃO DA FIGURA DE MARIA EM NESTÓRIO DE CONSTANTINOPLA E CIRILO DE ALEXANDRIA (SÉC. IV-V)
BETWEEN CHRISTOTOKOS AND THEÓTOKOS: THE CONSTRUCTION OF THE FIGURE OF MARY IN NESTORIUS OF CONSTANTINOPLE E CIRILO OF ALEXANDRIA (IV-V. CENTURIES)
Recepção: 07 Outubro 2015
Aprovação: 14 Dezembro 2015
Filho de um casal persa, Nestório nasceu em 381, na cidade de Germanícia, na Ásia Menor. Durante a juventude, mudou-se para Antioquia, onde morou em um mosteiro, exercendo as funções de monge e de sacerdote sob a supervisão de Teodoro de Mopsuéstia.1 Nesse tempo, Nestório ganhou grande reputação por sua eloquência e sua oratória impecáveis, fatores que podem ter influenciado o imperador Teodósio II (408-450) a escolhê-lo para ocupar a cadeira episcopal. Em abril de 428, após a morte de Sisino, Nestório foi consagrado bispo de Constantinopla, a segunda maior sé da ekklesia nicena. Entre as primeiras medidas tomadas pelo novo bispo estava o combate ao avanço daqueles considerados por ele heréticos. Com apenas um mês de consagração, Nestório já tinha destruído uma capela ariana e convencido o imperador a emitir um decreto contra os cismáticos. Algum tempo depois, o bispo de Constantinopla ordenou a destruição do reduto quartodecimano da Ásia Menor, além de perseguir com avidez os novacianos e os pelagianos.2 Sobre esse assunto, Nestório escreveu duas cartas ao então bispo de Roma,3 Celestino.4
Ao final de 428, com menos de um ano de episcopado, Nestório pregou seu primeiro sermão contra a utilização do termo Theotókos, detalhando sua doutrina sobre a encarnação. O primeiro a se posicionar contrário a Nestório foi Eusébio, um leigo que, mais tarde, tornou-se bispo da cidade de Dorileia, na Ásia Menor. Em seguida, Filipe de Sidetes escreveu alguns trabalhos combatendo a doutrina que Nestório pregava. No mesmo período, Proclo, que também estava ressentido por não ter sido escolhido como titular da sé de Constantinopla, proferiu sermões em que acusou abertamente Nestório de herético.5 O embate entre os bispos resultou em grande comoção entre os cristãos constantinopolitanos, momento em que um dos principais e dos mais vorazes adversários de Nestório se levantou: Cirilo de Alexandria.
Sobre a tenaz participação de Cirilo na controvérsia, precisamos salientar que, muito embora o envolvimento do bispo esteja diretamente relacionado ao fato de a polêmica permear uma questão cristológica concernente à unidade da pessoa de Cristo e ao papel de Maria, tão cara ao bispo, a frágil relação diplomática entre as sés de Constantinopla e de Alexandria também contribuiu para acirrar a disputa entre os episcopados. Alexandria tinha, tradicionalmente, autoridade sobre todo o Egito e a Líbia, obtida por meio de uma reivindicação ratificada pelo Concílio de Niceia. Com a chancela conciliar, o bispo de Alexandria acabou exercendo domínio e controle de maneira muito mais contundentes sobre suas paróquias do que os demais patriarcas o faziam em suas jurisdições. Talvez isso tenha se dado também porque as bases materiais do poder do patriarca de Alexandria encontravam-se, especialmente, na economia do Egito, com destaque para o papel estratégico no fornecimento de alimentos para o norte da África e para diversas outras regiões do Império. Constantinopla, uma das cidades que dependiam do fornecimento de produtos advindos de Alexandria, depois de ter se convertido em residência imperial e, ainda, ter sediado o Concílio de Constantinopla em 381 - ponto de viragem no Estado eclesiástico da cidade - tornou-se, depois de Roma, a principal sé do cristianismo. A posição de Constantinopla nas encruzilhadas políticas e geográficas permitiu ao patriarca converter a sé em uma "casa dos sínodos" - uma espécie de tribunal permanente ad hoc, que poderia lidar com debates eclesiásticos e teológicos variados. A posição então ocupada motivou Nestório a não se sujeitar aos ditames episcopais de Alexandria e, muito menos, às opiniões pessoais de Cirilo. Como detinha poder geopolítico e econômico de destaque, o bispo de Alexandria fez questão de desafiar a crescente soberania de Constantinopla - em especial, quando esta foi liderada por Nestório, integrante da escola de Antioquia - e travar, de tal modo, uma batalha que, aparentemente, seria apenas cristológica, mas que geraria repercussões políticas, jurídicas e econômicas.6
Em um contexto de acirramento político, Cirilo enviou duas cartas a Nestório, advertindo-o das possíveis consequências de suas opiniões e da incidência em heresia. Nas cartas, Cirilo convoca-o a se retratar, o que não foi feito. Em meio a constantes ataques, Nestório conseguiu sustentar seu episcopado por três anos, até o Concílio de Éfeso, em 431.
Logo após o encerramento do Concílio, Nestório foi deposto do cargo episcopal e enviado a um mosteiro de Antioquia, onde permaneceu em reclusão por poucos anos. Em 436, Teodósio II o desterrou para a cidade de Tebas, Egito, onde Nestório permaneceu até falecer, em 451.7
Nestório foi um profícuo escritor de língua grega. No entanto, a maior parte dos seus escritos, que chegaram até nós de maneira lacunar, se encontra em tradução siríaca. A primeira coleção de manuscritos de Nestório foi editada em meados do século XVII pelo escolástico Garnier.
De acordo com F. Loofs (1914), primeiro pesquisador a examinar minuciosamente todo o corpus nestoriano, a reuni-lo e a editá-lo, em 1905, restaram 15 cartas e 30 sermões das obras de Nestório.8
Antes de iniciar a análise documental, parece-nos pertinente fazer uma digressão sobre a escola de pensamento cristã de Antioquia - berço intelectual do bispo. O centro de estudos teve sua origem com o trabalho de Doroteu e Luciano de Samósata, por volta do ano de 290, quando este último resolveu publicar uma edição crítica da Septuaginta a partir da compilação de uma série de manuscritos gregos, supostamente9 traduções dos escritos massoréticos.10 A escola de Antioquia se consolidou por meio do apoio de seguidores provenientes de diversas partes do Império, configurando-se em polo de produção intelectual e doutrinal. Entre os pupilos mais ilustres da escola, destacam-se: Eusébio de Cesareia, Maris de Calcedônia, Leôncio de Antioquia, Eudóxio, Teognides de Niceia, Teodoro de Mopsuéstia, João Crisóstomo e o próprio Nestório. Do século III ao V, Antioquia era o único centro intelectual do cristianismo que poderia rivalizar com a escola de pensamento de Alexandria. Após o Concílio de Éfeso, o centro de estudos antioquenos entrou em declínio e foi transferido para Edessa e, posteriormente, para Nisibe, ambas localizadas na Mesopotâmia.11
Sobre a formação do centro de estudos, é válido salientar que a cidade de Antioquia abrigava a maior comunidade judaica da Síria e se destacava como um dos centros de estudos rabínicos mais renomados.12 Lá, a religião judaica se dividia entre diferentes sinagogas e centros culturais. Assim como em Alexandria, ali havia um oficial (archon) que liderava o conselho dos anciãos (gerousiarchos), e este, por sua vez, chefiava os demais judeus.13 A influência da sinagoga, inclinada ao literalismo, foi sentida na interpretação das Escrituras por parte dos clérigos cristãos desde o início do século II. O mais provável é que o judaísmo tenha sido determinante para a formação exegética dos líderes da escola, condicionando, decisivamente, sua formulação doutrinária.
Longxi Zhang (1998), com base nas pesquisas de Meeks e Wilken (1978),14 vai além ao notar que a influência judaica no pensamento antioqueno ajuda a compreender a ideia de que as escolas de pensamento de Alexandria e de Antioquia não se colocavam em oposição doutrinária, como se houvesse dicotomia entre helenismo e hebraísmo. Um exame mais atento do contexto histórico de tal rivalidade, bem como da doutrina apregoada por ambas, revela que a interação entre as escolas não se estabeleceu com base em uma oposição tão rígida. Não obstante a inegável rivalidade entre os centros de estudo do cristianismo, a antítese radical foi mais uma construção do que uma realidade, pois ambas as escolas partiam de um background judaico. Apesar disso, as nuances entre elas eram inegáveis: em Alexandria havia um judaísmo helenístico filônico e em Antioquia, por sua vez, um judaísmo rabínico ortodoxo.15 Com isso, a diferença entre elas era mais evidente na prática exegética do que na soteriologia e na cristologia adotadas.
O centro de estudos tornou-se popular por seu método exegético que evitava superinterpretações em detrimento do método de leitura e de comentário "literal" ou "histórico". Os adeptos da escola de Antioquia prezavam pelo estudo das línguas originais, como o grego e o hebraico, e tinham como base uma leitura tipológica de sentido literal, para manter-se o mais fiel possível aos textos da Escrituras.16
No que concerne à exegese em si, apesar de não excluir o recurso interpretativo da alegoria e o caráter metafórico de algumas passagens bíblicas, o centro de estudos de Antioquia recorria, predominantemente, à filologia, à lógica e à história para estabelecer uma explicação textual das Escrituras,17 tendo em vista que os alicerces epistemológicos apregoados eram a dialética e a retórica de Aristóteles.18
O método interpretativo antioqueno consistia em duas operações: em primeiro lugar, fazer uma análise linguística para entender as variações na forma textual, observando o estilo, a dicção, a etimologia e as figuras de linguagem presentes no texto; em segundo lugar, procurar por informações de fundo, em um esforço para compreender o contexto do documento.19
Os integrantes da escola de pensamento de Antioquia não se opunham a uma leitura "espiritualizada" das Escrituras, desde que esta não contradissesse a historicidade da passagem. Os antioquenos recusavam-se a decifrar qualquer texto sagrado, uma vez que o valor da mensagem estava naquilo que fosse dito abertamente. Não era legítimo que a lógica da própria história contada fosse negligenciada em favor da interpretação alegórica.20 Ou seja: o recurso alegórico se restringia àquilo que já havia sido reiterado pelo próprio documento, o que os mestres de Antioquia chamavam de aplicação da theoria. Assim, por exemplo, as passagens ditas messiânicas encontradas no Antigo Testamento só eram consideradas legítimas quando referenciadas pelo Novo Testamento.21
A cristologia formulada pela escola antioquena passava pelo crivo da exegética lógica com ênfase na palavra escrita.22 Ademais, havia uma tendência de concentrar-se nos aspectos factuais e históricos da vida humana de Cristo, o que incentivou muitos escritores de Antioquia a tratar do Jesus histórico. No que diz respeito à cristologia propriamente dita, a defesa pautava-se na distinção entre Deus (Logos) e Jesus (homem), pois se imaginava uma separação entre a realidade humana e a realidade divina de Cristo, na condição de dois atores distintos. Essa clivagem, de igual modo, era marcada por atributos e condições distintas, mas que, por vezes, eram imperceptíveis. Teodoro de Mopsuéstia defendia a ideia de que Deus (Logos) e Jesus (homem) eram compostos por realidades plenas que integravam naturezas distintas (divina e humana respectivamente).23 Em um de seus escritos, o bispo afirma:
[Jesus] nasceu de Maria e foi crucificado nos dias de Pôncio Pilatos (...). Ele nasceu da virgem Maria como um homem, de acordo com a lei da natureza humana, criado de uma mulher (...) Ele entrou no mundo por uma mulher segundo a lei dos filhos dos homens: "Ele estava sob a lei, para remir os que estavam sob a lei, a fim de que fôssemos adotados como filhos" (...). [o apóstolo disse] que ele foi feito a partir de uma mulher para nos mostrar que foi formado da própria natureza humana, nascendo de acordo com a lei da natureza (...) Ele veio a Terra como uma semente de Abraão e por meio de quem Ele realizou tudo (...). Ele foi quem primeiro ressuscitou dentre os mortos, sendo transferido para uma vida imortal e imutável, tornando-se o cabeça e o renovador de toda a criação.24
No excerto anterior, Teodoro trata de enfatizar a natureza humana de Jesus com base em sua constituição biológica, em sua condição de filho de Maria e de descendente de Adão. Ele admite que Jesus foi crucificado - morto - e que ressuscitou com o intuito de garantir à humanidade a possibilidade de salvação.
Nestório, por sua vez, defendia a tese de que, se Deus era imutável, seria impossível haver uma união substancial hipostática de duas naturezas perfeitas: a divina e a humana. Ele alegava que, em vez de haver uma integração hipostática absoluta, a união entre o filho de Deus e o filho do homem era explicada pelos seguintes conceitos: "união de habitação" (o Logos veio à Terra e habitou no corpo de Jesus); "união de afeição" (a relação entre Deus e Jesus seria como a de dois amigos); "união de operação" (o Logos teria se servido da humanidade de Jesus para cumprir seu propósito); e "união de graça" (a união só seria possível por meio da graça).25 Logo, Jesus Cristo, portador dessas duas naturezas, teria também duas filiações específicas e separadas, por ter nascido de Maria (filiação humana) e ter sido gerado por Deus (filiação divina), conforme o trecho a seguir:
Mais uma vez, eu digo claramente: a ignorância é um perigo para a doutrina da fé. E eu vejo que muitos participantes de nossas assembleias são modestos e cultivam uma piedade ardente, mas são ignorantes e escorregam no ensino da fé. Eu digo isso não como uma repreensão para o povo, mas, de fato, os professores não têm tempo para estabelecer um ensino exato da fé. Nosso Senhor Jesus Cristo é uma divindade consubstancial com o Pai, sendo Este criador da bem-aventurada Maria e o criador de tudo. Mas, na sua humanidade, Jesus é o filho de Maria santíssima; no entanto, ele é o nosso Senhor Jesus Cristo, duplamente divino e homem (...) sendo um filho por adesão. Então, ele nasceu nu de Maria, na condição de Filho de Deus. (...) Este Filho de Deus apresenta uma dupla natureza: a de Deus e a do homem.26
Jesus de Nazaré não poderia ser chamado de Deus, partindo-se de tal pressuposto, pois seria apenas um homem em que Deus habitava (Logos), e Maria não poderia ser intitulada mãe de Deus (Theotókos), porém mãe de Jesus, isto é, christotokos ou antropotokos.27
Nestório se recusava a aceitar, portanto, que Deus tivesse sofrido, morrido e ressuscitado. Para ele, Jesus - homem - foi o único a ter passado por isso. Ele acrescenta, ainda, que o nascimento de Jesus não tinha um caráter divino, porquanto tivesse vindo ao mundo naturalmente por meio de Maria, uma simples mulher. Assim, no pensamento do bispo, Maria havia dado à luz, simplesmente, a um ser humano chamado Jesus.
Na obra Bazaar de Heráclides, ao travar um embate direto contra Cirilo, Nestório assevera:28
E eles [os hereges] desejam honrar o nome da "mãe de Deus", já que dizem que Deus morreu. Apesar de os Pais da ekklesia terem resistido até a morte se opondo ao uso desse termo, os hereges insistem em dizer "mãe de Deus", mesmo que em nenhum lugar foi empregado o vocábulo, nem o encontramos em quaisquer dos documentos dos conselhos (...). Quem, simplesmente, tem o título de teólogo, não deve ser chamado de teólogo, uma vez que um teólogo de fato e de nome deve estar pronto para lutar e para fazer o que tem que ser feito; ele não deve ser canal para a prática da blasfêmia, nem admitir a doutrina de que o Logos de Deus saiu da virgem Maria, como se alguém que sempre existiu nascesse na forma natural (...). Jesus é aquele que, segundo a própria Palavra de Deus, apresenta duas naturezas: a de Deus e a do homem.29
A questão que ocupava Nestório não era tentar explicar a função de Maria como mãe de Jesus. O bispo estava interessado em explicar como tal função deveria ser interpretada com vista a não deixar brechas para a prática de uma sagração que ele considerava errônea: Maria ser celebrada sob o título de Theotókos.30
Ao desconstruir a função de Maria como aquela que havia gerado Jesus Cristo, o próprio Deus, Nestório esvazia completamente a importância devocional a ela conferida. É preciso salientar que, em um contexto de paulatina domesticação e de vitalidade do culto mariano na ekklesia, o discurso contundente e agressivo do bispo de Constantinopla não passaria isento de censura. Sob tal aspecto, parece-nos oportuno abordar a vida e a doutrina defendida por Cirilo de Alexandria - o mais destacado opositor de Nestório, bem como alguns elementos próprios da escola de pensamento alexandrino, com o intuito de estabelecer paralelos entre as cristologias praticadas em Constantinopla e Alexandria.
Cirilo, que nasceu em Alexandria, ao que parece era sobrinho de Teófilo, bispo e monge na mesma cidade. O vínculo familiar com o bispo permitiu que Cirilo, ainda jovem, mantivesse contato com os círculos eclesiásticos. Ele, por exemplo, chegou a acompanhar Teófilo a Constantinopla por ocasião do Sínodo do Carvalho, em 404, evento em que foi deposto João Crisóstomo. Teófilo morreu em 15 de outubro de 412. E, três dias depois, em 18 de outubro, Cirilo foi consagrado seu sucessor episcopal, embora não houvesse unanimidade entre os fiéis.31
Uma das primeiras medidas do novo bispo foi saquear e fechar diversas congregações novacianas. Além disso, os judeus, que haviam formado uma comunidade florescente em Alexandria, foram expulsos da cidade a mando de Cirilo.32
As medidas impopulares adotadas pelo bispo causaram grande indignação a Orestes, o então governador do Egito. Este, que certamente rivalizava com Cirilo pela hegemonia do poder local, resolveu atacar a ekklesia nicena de Alexandria. Com o objetivo de proteger Cirilo e de garantir a manutenção de seu episcopado, quinhentos monges saíram da Nitria para defendê-lo das investidas do governador. Em meio a uma intensa batalha, Orestes foi ferido na cabeça com uma pedra lançada por um monge chamado Amônio, capturado e torturado até a morte.33
Depois desse evento, a animosidade entre Cirilo e Orestes acendeu novamente, em decorrência de outro fato específico. Sobre tal episódio, Sócrates afirma que havia, em Alexandria, uma mulher chamada Hipácia, famosa filósofa, literata e professora, admirada por todos os homens públicos. A filósofa foi alvo de represália política em virtude de sua posição, bem como de sua popularidade. Por causa de suas frequentes reuniões com Orestes, Hipácia foi caluniada entre os cristãos, sob a acusação de impedir Orestes de se reconciliar com o bispo Cirilo, com o qual havia rompido relações. Por conseguinte, em uma tarde, na Quaresma de 415, Pedro, um leitor da ekklesia de Alexandria, instigou uma turba de cristãos a empreender um atentado contra a filósofa, retirando a jovem de seu carro e levando-a à congregação de Cesareia, onde foi despida, torturada e morta com cacos de cerâmica. O caso prejudicou a reputação de Cirilo, que passou a ser acusado da morte de Hipácia.34 Sócrates não sugere que o próprio Cirilo tenha sido o culpado; no entanto, autores como Damáscio acusam o bispo de cumplicidade na morte de Hipácia pelo fato de ele estar ocupando a posição episcopal naquele tempo. Afora o episódio mencionado, Cirilo deixou um legado mais importante: sua atuação contra Nestório e sua performance no Concílio de Éfeso de 431, sobre as quais veremos mais detalhes no próximo tópico. Cirilo morreu em junho de 444.35
Para melhor compreender as raízes do pensamento do bispo, é necessário fazer um breve excurso aos primórdios de sua escola de filiação: o centro de estudos de Alexandria. Durante séculos, a chamada escola de pensamento de Alexandria intriga estudiosos e estimula uma série de especulações sobre suas origens e suas práticas. As hipóteses sobre ela, por vezes, excederam muito os limites das escassas fontes de informação que restaram. A primeira referência a essa instituição foi feita por Eusébio de Cesareia:
Naquele tempo, a escola dos fiéis dali era dirigida por um varão celebérrimo por sua instrução, cujo nome era Panteno. Existia, entre eles, por costume antigo, uma escola das sagradas letras. Esta escola continua prolongando-se até nós e, pelo que ficamos sabendo, é formada por homens eloquentes e estudiosos das coisas divinas. Mas uma tradição afirma que, entre os daquela época, brilhava sobremaneira o mencionado Panteno. E procedia da escola filosófica dos chamados estóicos.36
Panteno fundou um instituto superior de filosofia e teologia no século II, cuja função era não apenas ensinar princípios de geometria, astronomia, letras clássicas, por exemplo, mas também as bases do cristianismo com base em uma experiência de interpretação das Escrituras atrelada a fundamentos filosóficos e exegéticos próprios.
Vários estudiosos discutiram se a escola estava, ou não, atrelada à ekklesia. O mais plausível seria que a escola funcionasse aos moldes da paideia greco-romana e independente da ekklesia; porém, cooperando com ela na medida em que o centro de estudos estabeleceria uma relação entre as comunidades, beneficiando a coesão doutrinária do próprio cristianismo alexandrino, até porque o instituto, posteriormente, será reputado como sede da escola de pensamento cristão de Alexandria.37 Ademais, a instituição tornou-se um tradicional instituto filosófico na Antiguidade, conhecido pela prática da successio de paedagogi.38 A successio, ao garantir a continuidade imediata dos mestres, permitia que uma tenaz corrente intelectual se articulasse, impedindo que ideias em desacordo com os ditames da ortodoxia permeassem o ensino alexandrino. No caso do círculo de estudos em foco, sabemos que Orígenes foi pupilo de Clemente, que, por sua vez, fora aluno de Panteno.39
Na instituição, funcionava ainda um scriptorium, onde eram produzidas traduções, compilações e comentários de textos sagrados, baseados em métodos e crítica textual associados aos da cultura grega clássica. Orígenes, por sua vez, patrocinado por Ambrósio, aumentou o volume de sua produção literária ao contratar taquígrafos responsáveis por registrar aquilo que era ditado por ele.40 A Hexapla de Orígenes, por exemplo, foi resultado desse trabalho.
Os professores da escola construíram uma teologia baseada em uma combinação cultural de raízes egípcia, grega e judaica. Entretanto, a filosofia e a cultura grega, principalmente a vertente estoica, predominavam - com destaque para a filosofia de Fílon, que influenciou diretamente a divisão curricular, como já abordado.41 No tempo de Orígenes, a formação curricular apresentava cinco etapas: 1) purificação moral; 2) dialética aplicada à lógica; 3) física, incluindo a geometria e a astronomia; 4) ética; 5) teologia.42
Em geral, na escola de Alexandria ensinava-se que o estudo da Bíblia era uma jornada para o conhecimento do espírito do homem, a partir do desenvolvimento de uma tipologia exegética cuja base era a interpretação alegórica. Embasado em tal interpretação, um evento do Novo Testamento, por exemplo, seria um reflexo de uma figura ou de um acontecimento do Antigo Testamento. Assim, a título ilustrativo, o sacrifício de Isaque por Abraão seria a prefiguração do sacrifício de Jesus na cruz por seu Pai, e o dilúvio do tempo de Noé, bem como a passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho, seriam profecias que apontavam o batismo cristão e a remissão dos pecados.43
A cristologia adotada pelos alexandrinos dava ênfase à divindade e à unidade da pessoa de Cristo. Sob o lema Logos-sarx (Palavra-carne), o Logos de Deus teria assumido o corpo mortal na encarnação (Jo., 1, 14; Fil., 2, 7). Em sua forma extrema, postulada pelos apolinaristas (condenados como heréticos em 381 pelo Concílio de Constantinopla), Jesus não teria uma alma humana racional. Ou seja: pelo fato de a unidade entre o Jesus humano e o Jesus divino ser intrínseca, ela teria permitido a formação de uma única pessoa, até porque, no ato da encarnação, o Logos teria assumido a mente de Jesus.44
Atanásio, um dos grandes expoentes dessa vertente, em sua obra Sobre a encarnação do verbo, não só confirmou a fé da ortodoxia nicena, foi além: para o bispo, a encarnação seria o clímax do trabalho criativo de Deus, a espinha dorsal da história sagrada. Por meio de tal ato, Cristo teria recebido a mesma substância que o Pai, apresentando uma mente e uma alma divina, motivo pelo qual não habitava verdadeiramente um corpo humano.
Ainda segundo ele, havia uma relação essencialista entre o Pai e o Filho, em virtude de Cristo ter a mesma natureza de Deus. Ademais, ele argumenta que Deus teria se tornado humano a fim de que a humanidade se convertesse à doutrina de Cristo.45
No tratado denominado Sobre a encarnação do unigênito, Cirilo expõe com bastante clareza sua cristologia. Pautado em uma minuciosa exegese do Novo Testamento, ele propõe a ideia de que Cristo foi gerado segundo a natureza humana, apesar de não abandonar sua condição divina, já que o Logos teria uma natureza imutável.
Por sua vez, a união entre a natureza humana e a divina se estabeleceria a partir da completa união hipostática que se consumaria em um único sujeito: Jesus Cristo - este, ao mesmo tempo, humano e divino.46
Na mesma obra, Cirilo oferece uma amostra de seu dogma sobre a encarnação:47
A Palavra de Deus (...) foi gerada de alguma forma inefável (para além de toda compreensão) (...) concebida como o próprio Deus gerador, pois é por isso que ele também é chamado Filho de Deus (...). Ele foi feito, portanto, homem, passando por um nascimento segundo a carne por meio de uma mulher; mas, por causa de sua assunção, a virgem santa acabou se unindo a ele na verdade: por essa razão que se diz que a virgem santa é Theotókos, pois esta forneceu a ele um corpo carnal e uma sabedoria humana (...) Portanto, o verbo era Deus, mas também se fez homem, uma vez que Ele nasceu segundo a carne, em virtude da natureza humana, por meio de Theotókos.48
No excerto citado, o bispo, na condição de guardião da ortodoxia, procura ensinar qual seria a função desempenhada por Maria. Segundo ele, Maria, que teria colocado sua condição virginal a serviço de Deus, era a colaboradora do Espírito Santo na efetivação da encarnação.49
O excerto demonstra, por outro lado, que o ensino de Cirilo gravita entre o mistério da encarnação e o papel desempenhado por Maria nesse contexto.50
Para Cirilo, o Logos tomou uma forma humana, servindo-se do corpo de Maria como seu templo. Então, Theotókos seria um veículo essencial para a vinda do Messias e a agente central para a salvação da humanidade.
A fim de embasar sua dogmática, Cirilo utiliza-se da alegorização, própria da escola de Alexandria, associando Maria à ekklesia, porquanto ambas seriam canais pelos quais a salvação se efetivaria.
A posição defendida por Cirilo fica ainda mais evidente na obra Contra as contradições e blasfêmias de Nestório. Nessa obra escrita em cinco tomos, o bispo de Alexandria revela os principais atributos de Maria, conforme observamos no quadro a seguir:51
Aqui, realizamos um levantamento sistemático da ocorrência, nos cinco tomos, dos termos: Parthénos, Theotókos, Hágios, Eulogēmenē e teleío̱skatharó, com o objetivo de propor um esquema analítico-quantitativo.52 De tal modo, fizemos um inventário dos atributos reputados a Maria, que foram empregados por Cirilo, com o objetivo de detalhar o discurso do bispo e de definir uma visão geral sobre a composição retórica do autor.
Em primeiro lugar, observamos que os tomos I e II são os volumes centrais da obra. Não por acaso, no entanto, são os que mais fazem referências a Maria. Ao final do tomo I, excerto 4 do quadro, Cirilo afirma que Nestório teria dito não se importar que chamassem Maria de Theotókos, desde que se recusassem a considerá-la uma deusa. Mais do que em outras partes, Cirilo mostra-se exasperado. Com um discurso enfurecido, o bispo de Alexandria vocifera, dizendo que, de maneira alguma, concordava que Maria fosse reconhecida como uma deidade. O teor do discurso, assim como o fato de Cirilo ter tentado sanar a questão logo na primeira homilia e, ainda, encerrar o texto com ela, demonstra que a acusação de Nestório estava no cerne do debate. Nessa parte, especialmente quando Maria é evocada, ela não é reputada como Theotókos ou Hágios, mas como virgem, mulher e abençoada. Utilizando termos menos polêmicos, Cirilo coloca Maria em paridade com as outras personagens citadas ao longo do texto, também julgadas como "abençoadas".
Quando a imagem de Maria é evocada ao longo das homilias, na maior parte das vezes, está associada a dois ou mais atributos, como vimos nos excertos selecionados, demonstrando que Cirilo tinha a necessidade de cercá-la de elementos simbólicos que garantissem a ampla defesa de Theotókos, mesmo porque a cristologia do bispo estava para além de simplesmente solidificar uma doutrina, perpassando o âmbito da liturgia eclesiástica, pois a mesma Maria deveria ser honrada pelos cristãos, mas não na forma deificada.53
Enquanto Nestório intentou desconstruir a imagem de Maria, Cirilo, em completa oposição, buscou consolidar um marianismo em vias de domesticação. É preciso considerar que tanto a apoteose de Maria quanto sua depreciação estavam envoltas em um discurso de poder forjado por aqueles que diziam proclamar a verdade da fé e combater uma doutrina dita desviante e um suposto herege. Para além de uma disputa entre episcopados, a controvérsia entre os bispos de Alexandria e de Constantinopla ganhará ampla projeção política e religiosa, acabando por irromper no Concílio Éfeso.
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