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INTERAÇÕES ATLÂNTICAS ENTRE SALVADOR E PORTO NOVO (COSTA DA MINA) NO SÉCULO XVIII*
ATLANTIC INTERACTIONS BETWEEN SALVADOR AND PORTO NOVO (COSTA DA MINA) IN THE EIGHTEENTH CENTURY
INTERAÇÕES ATLÂNTICAS ENTRE SALVADOR E PORTO NOVO (COSTA DA MINA) NO SÉCULO XVIII*
Revista de História (São Paulo), núm. 176, a02716, 2017
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História
Recepção: 31 Março 2016
Aprovação: 29 Agosto 2017
Resumo: O artigo discute as dinâmicas atlânticas entre Salvador e Porto Novo, na Costa da Mina, durante o século XVIII. A despeito do foco da historiografia brasileira no tráfico baiano em Uidá, os portos a leste - os chamados “portos de baixo” - foram importantes terminais de deportação de africanos para as Américas. O artigo explorará ainda as dinâmicas entre Porto Novo e o Daomé, principal reino traficante do golfo do Benim no século XVIII, que reivindicava o “monopólio” do tráfico na região. O jogo político do tráfico de escravos envolvia entidades africanas locais, traficantes de diversas carreiras e autoridades coloniais. Observar as interações entre a Bahia e Porto Novo iluminará as diferentes fases do comércio atlântico no golfo do Benim no século XVIII.
Palavras chave: Tráfico atlântico, Bahia, Porto Novo, Daomé, século XVIII.
Abstract: The article discusses the Atlantic dinamycs between Salvador of Bahia and Porto Novo in eighteenth-century bight of Benin. In spite of the focus on the Bahian trade at Ouidah, the eastern ports of trade - the so-called “portos de baixo” (lower ports) - represented important points of deportation for Africans to the Americas. The article will also explore the dinamycs between Porto Novo and Dahomey, the major enslaving kingdom of the bight of the Benin in the eighteenth century, who claimed the “monopoly” over the trade in the region. The slave trade’s political game involved local African polities, slave traders of several European powers and colonial authorities. To look at the interactions between these two regions in the Atlantic will shed light upon the different phases of the Atlantic commerce in the bight of Benin during the eighteenth century.
Keywords: Atlantic slave trade, Bahia, Porto Novo, Dahomey, eighteenth century.
As interações atlânticas entre Brasil, Portugal e suas possessões na África têm há muito sido objeto de estudos. As relacões políticas, sociais, culturais, econômicas e administrativas entre a metrópole e áreas de influência cultural e comercial como a Senegâmbia (através dos portos de Cachéu e Bissau), na Alta Guiné, e Angola, na África Centro Ocidental, vêm sendo discutidas há anos, tendo ganhado novo frescor nas últimas décadas.1 O mesmo não pode ser dito, no entanto, a respeito das relações entre a Bahia (ou mais estritamente o porto de Salvador) e a Costa da Mina, na África Ocidental, no século XVIII.
Um historiador português escreveu que “a [C]osta da Mina ligava-se muito diretamente ao Brasil”.2 Luiz Felipe de Alencastro foi além, argumentando que “[o]s baianos transformaram a Salvador setecentista em metrópole da Costa da Mina”.3 Metrópole não em sua acepção vernacular, uma vez que não havia controle de Salvador stricto sensu sobre o golfo do Benim, mas em termos de sua influência política, econômica e social. A partir do final do século XVII e nos dois séculos seguintes, uma combinação de fatores geográficos (a relativa proximidade entre as duas áreas atlânticas) e econômicos (uma oferta abundante de um produto altamente apreciado no litoral da África Ocidental, o tabaco) converteu a Bahia no principal parceiro comercial da Costa da Mina, malgrado a competição com outras potências europeias.
Ao longo da costa ocidental africana estabeleceram-se comerciantes e degredados; para Uidá a Coroa portuguesa enviava não apenas um diretor, responsável pela administração do forte, mas outros súditos portugueses em seu auxílio. Alguns deles constituíram famílias atlânticas, casando-se com mulheres locais e constituindo descendência.4 Em outras palavras, formaram-se verdadeiras comunidades atlânticas no golfo do Benim, reforçadas pela chegada dos africanos libertos retornados a partir do século XIX.5 Desse modo, qualquer análise sobre as relações bilaterais entre a Bahia e a Costa da Mina deve enfatizar essa região enquanto um espaço atlântico português, internacional e multicultural.
O trabalho de fôlego de Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, enfatizou as conexões atlânticas entre a Bahia e esta porção da África Ocidental.6 Verger focou seu estudo sobre Uidá, no golfo do Benim, principal porto negreiro da África Ocidental, responsável pela deportação de mais de 50% dos africanos escravizados na região.7 Malgrado a importância da obra, ainda são necessários trabalhos mais direcionados às conexões que uniam estas duas partes do Atlântico.
O impacto do tráfico de escravos sobre as sociedades nas duas margens do Atlântico é melhor apreendido a partir de uma perspectiva de história atlântica. Essa abordagem visa a entender o mundo atlântico não como várias ilhas nas quais os diferentes atores sociais e políticos interagiam. Como observou Alison Games, a história atlântica “coloca as pessoas no centro, seguindo a transmissão de todos os elementos culturais, da identidade política aos bens materiais, linguagem e religião, ao redor da bacia atlântica”.8
Embora essa abordagem busque unir o Atlântico, deve-se reconhecer as especificidades do desenvolvimento dos diferentes atores globais na região.
Alguns autores, como Márcia Berbel, Rafael Marquese e Tâmis Parron, por exemplo, identificam dois sistemas atlânticos distintos: o sistema ibérico e o sistema do noroeste europeu. “Esses dois sistemas atlânticos da modernidade coexistiram como duas estruturas temporais singulares - mas estreitamente articuladas pela arena mais ampla da economia-mundo capitalista - da segunda metade do século XVII em diante”, frisam os autores.9 Nesse sentido, a diferença entre o Atlântico Norte - o espaço das trocas comerciais e culturais de ingleses, franceses e holandeses par excellence na costa ocidental africana e no Caribe - e o Atlântico Sul - que tinha no Brasil e em Angola seu centro nervoso - é crítica, pois realça o funcionamento das conexões imperiais no espaço atlântico. Entretanto, o reconhecimento dessas especificidades não significa, em absoluto, exclusividade. Navios luso-brasileiros também participavam das interações comerciais no Atlântico Norte, da mesma forma que comerciantes ingleses, holandeses e franceses navegavam e influenciavam eventos ao sul do Equador.
Entretanto, a África é frequentemente relegada à condição quase exclusiva de fornecedora de matéria-prima (i. e., cativos) para a montagem e posterior desenvolvimento do complexo escravista nas Américas. Apesar da abordagem atlântica preconizar a interação entre as diferentes partes, Alison Games nota que um dos desafios mais urgentes é “restaurar a África ao Atlântico”.10 Nesse sentido, a perspectiva do Atlântico Sul, ao mesmo tempo em que reconhece as especificidades das dinâmicas comerciais e culturais ao sul do Equador, também ressalta o papel dos agentes africanos (escravos, mas também as elites locais e os comerciantes da costa e do interior do continente) como atores fundamentais no desenvolvimento do mundo atlântico.11
Assim, o estudo dos portos africanos de embarque revela alianças e disputas entre portos rivais pela primazia no comércio atlântico. Uma perspectiva comparativa de análise, portanto, lança luz sobre as dinâmicas entre os principais portos atlânticos do golfo do Benim.12 Ademais, essa abordagem cumpre um papel vital para a compreensão das rotas terrestres do interior para o litoral da África Ocidental, uma vez que a maioria desses portos servia como intermediários. Por sua vez, estas informações permitem avançar no conhecimento acerca das origens dos africanos na diáspora durante a era do tráfico de escravos.13
Neste texto, proponho-me a discutir as relações entre Porto Novo e Salvador no século XVIII.14 Porto Novo era mais um dos denominados “portos de baixo” da Costa da Mina, os portos de comércio que se encontravam a leste de Uidá, como Ekpe, Badagri, Apá e Lagos.15 A partir da década de 1750, Porto Novo e Badagri começaram a representar uma ameaça ao controle que o Daomé tinha do tráfico na Costa da Mina através de Uidá. E, nas últimas duas décadas do século, Porto Novo se consolidou como o principal rival daomeano no tráfico negreiro na região, principalmente após a destruição de Badagri, em 1784.
Há, por razões óbvias, uma tendência a analisar os portos africanos a partir de uma perspectiva quantitativa, enfatizando o número de escravos exportados para as Américas. Embora importante por apresentar os padrões demográficos do tráfico transatlântico, o foco quantitativo costuma negligenciar as mudanças sociais e políticas no interior das sociedades africanas como resultado do comércio de escravos. Assim, ao abordar a participação de Porto Novo - que, como veremos adiante, participou modestamente do tráfico em termos demográficos -, pretendo relacionar o desenvolvimento tardio desse porto negreiro com as transformações mais amplas em curso na Costa da Mina - e no mundo atlântico - durante os séculos XVIII e XIX.16
A ascensão de Porto Novo no circuito do tráfico coincide com um conjunto de transformações em escala global. Era um momento crucial para o tráfico negreiro na região, pois o mundo atlântico encontrava-se em convulsão durante a chamada “era das revoluções”. No breve período de 39 anos (1776- 1815), o Atlântico assistiu à independência dos Estados Unidos (1776); à Revolução Francesa (1789); à revolta escrava em Saint-Domingue que pôs a pique a principal colônia açucareira das Américas - abrindo novamente espaço para o incremento da produção baiana de açúcar com o consequente aumento nas importações de escravos (1791); o jihad de 1804 em território haussá, que resultou na deportação de milhares de africanos ocidentais para a Bahia e seu posterior desdobramento em território iorubá; a abolição do tráfico inglês - outro duro golpe nos negócios do tráfico africano - e a proibição do tráfico português ao norte do Equador, em 1815.17 Junte-se a isso as ofensivas militares do Daomé, que desorganizavam o comércio de escravos no golfo do Benim.
De uma perspectiva diaspórica, Porto Novo foi o terminal de saída de milhares de africanos de diferentes grupos étnicos, como os haussás, iorubás, mahis, baribas, entre outros. Como a historiografia do tráfico de escravos e da escravidão na Bahia tem demonstrado, as populações falantes de gbe foram os principais deportados da Costa da Mina para a Bahia durante o século XVIII. A partir de meados desse século - principalmente depois da ascensão de Porto Novo e Badagri -, pessoas de outros grupos étnicos e linguísticos foram introduzidas na Bahia. Na virada do século XIX, a participação de haussás e iorubás (os nagôs) na escravidão baiana aumentou progressivamente e, na década de 1820, os últimos já eram maioria entre os africanos escravizados. Assim, a história das relações entre Porto Novo e Salvador conta mais um capítulo da presença afro-ocidental na Bahia no século XVIII e início do século XIX.18 Ademais, ela representa, talvez, um caso emblemático da presença dos traficantes baianos, sediados em Salvador, no golfo do Benim, e de sua importância para a abertura de um porto negreiro atlântico. Esse trabalho contribui, dessa forma, para o entendimento das interações entre os comerciantes baianos, bem como de outras carreiras, e as autoridades africanas no desenvolvimento do tráfico em Porto Novo, além de apresentar as dinâmicas entre os diversos portos da Costa da Mina pelo mercado de escravos.
Sobre a fundação de Hogbonu/Porto Novo
Tradicões orais do Daomé e de Porto Novo atribuem a Tê Agbanlin, da linhagem de Aladá, a fundação de Hogbonu. Há controvérsia, no entanto, sobre os motivos de seu estabelecimento. Tradições daomeanas afirmam que uma disputa entre príncipes de Aladá resultou na migração de dois deles em busca de novas terras. Um seguiu para o norte, estabelecendo-se entre os guedevis (habitantes originais da área), dando origem ao reino do Daomé, enquanto Tê Agbanlin migrou para o sudeste, criando a vila de Hogbonu. A tradição corrente em Porto Novo, por outro lado, afirma que após a morte de Kokpon, primeiro rei de Aladá, um de seus filhos (Tê Agbanlin) decidiu construir uma cidade à semelhança de Tado - local onde grande parte dos povos da área gbe reivindicam suas origens -, fundando Hogbonu.19
Esse relato canônico, ancorado nas tradições orais locais, tem sido questionado por historiadores que estabelecem a fundação de Hogbonu no século XVIII, após a conquista de Aladá pelas tropas daomeanas.20 Segundo essa interpretação, um príncipe da linhagem de Aladá, fugitivo do ataque do Daomé em 1724, que resultou na conquista daquele reino, estabeleceu-se na margem norte da laguna que ficava a leste do lago Nokué, por volta de 1730, fundando um novo reino de Aladá, ou Porto Novo.21
Os refugiados de Aladá estabeleceram-se na vila de Aklon (Okoro), que ficava na costa entre Jakin, a oeste, e Apa, a leste.22 Eles deram ao local o nome de Hogbonu (ou Xogbonu, “perto da praça principal, a grande casa”), enquanto os vizinhos iorubás, a leste, chamaram-na Adjatché (Adjasé).23 Tradições orais de Porto Novo relatam um conflito entre Tê Agbanlin e grupos iorubás ali instalados antes de sua chegada. De fato, como observado por Robin Law, Aklon era um assentamento iorubá antes de ser ocupado pelos refugiados de Aladá.24 É possível ainda que esta narrativa refira-se às disputas entre esse grupo de refugiados e os grupos holli que habitavam aquela região. Estes provavelmente não aceitaram pacificamente o estabelecimento Aladá, o que pode ter levado a um conflito mais sério, sendo os holli submetidos à força pelos contingentes de soldados que escaparam ao ataque daomeano em 1724.25 Somente em meados do século XVIII, com a chegada do traficante português Eucaristus Campos (ou talvez um pouco depois), o local passa a ser conhecido como Porto Novo.26
Vale ainda notar que o padre português Vicente Ferreira Pires, que visitou o Daomé em 1797, não mencionava a versão consolidada pelas tradições orais. Ao contrário, o padre Pires confirmava o ataque a Aladá como responsável pela migração e estabelecimento de Porto Novo.27 Isso significa que a versão oficial só veio a ser estabelecida mais tarde, a partir dos reinados de Adandozan (1797-1818) ou mais provavelmente de Gezo (1818-1858) - embora Law identifique algumas tentativas já na década de 1790, provavelmente como meio de criar laços entre as duas dinastias. No final do século XIX, o comandante inglês Alfred Ellis relatou que o rei de Porto Novo era chamado de “irmão” pelo rei do Daomé, obviamente uma tentativa de estabelecer uma origem comum com Aladá, legitimando assim seu direito de exercer a soberania na região.28 Informações contemporâneas de Porto Novo afirmam não haver dúvidas de que o Daomé e Porto Novo eram “parentes”, ainda que reconheçam que a fundação de Porto Novo foi resultado da migração pós-1724.29
Muitos viajantes - e aparentemente os próprios soberanos de Hogbonu - consideravam Porto Novo um estado sucessor do antigo reino de Aladá. Archibald Dalzel, ex-governador do forte inglês em Uidá, por exemplo, informou que Porto Novo era o “porto marítimo pertencente a Ardra”. Ademais, ele se referia ao reino de Hogbonu como “Ardra”, assim como o viajante inglês John Adams, já na virada do século XVIII.30 Pierre Verger afirmou que o rei de Porto Novo seria conhecido como rei de “Nova Ardres”, evitando a confusão com o rei de Aladá, chamada de “Grande Ardres”, ou de seu porto (Offra/Jakin), conhecido como “Pequeno Ardres” pelos franceses.31 Patrick Manning afirma que, no decorrer da segunda metade do século XVIII, Porto Novo passou a ser conhecido como “Grande Ardra”, e Semé, sua praia, 12 quilômetros ao sul de Porto Novo, de “Pequeno Ardra”.32 De todo modo, o nome de “Ardra Grande” como referência a Porto Novo reforça sua relação com o antigo reino de Aladá, ao passo que indica ter sido conhecido pelos traficantes luso-baianos já em meados dos Setecentos.33
O tráfico de escravos tornou-se a porta de entrada de Porto Novo para o mundo atlântico.34 O comércio negreiro, no entanto, foi uma atividade tardia, se comparada com os outros portos do golfo do Benim. Somente na segunda metade do século XVIII, após a chegada dos portugueses em seu litoral, Porto Novo tornou-se um importante fornecedor de cativos para os mercados atlânticos. Convém examinar, portanto, as condições que conduziram os navios baianos até seu litoral.
Os novos ventos do tráfico baiano no golfo do Benim, 1743-1756
Na década de 1740, o tráfico de escravos com a Costa da Mina enfrentava um período de dificuldades. Segundo reclamações dos homens de negócio da Bahia, o número excessivo de navios das capitanias da Bahia e de Pernambuco em direção a Uidá desorganizava o comércio naquela área.35 Por essa razão, escreveram ao rei de Portugal, d. João V, sugerindo que: 1) apenas 24 navios (chamados “navios do número”) pudessem realizar o comércio na Costa da Mina - número já previsto no alvará de 1699; 2) o tráfico fosse organizado em comboios de oito navios; e, finalmente, 3) os navios autorizados partissem a cada três meses. O rei aceitou suas demandas, conforme Provisão de 8 de maio de 1743. Como resultado, os donos dessas embarcações (que eram, não por acaso, os mesmos homens de negócio mencionados acima) passaram a controlar o tráfico com a Costa da Mina.36 Essa decisão beneficiava diretamente os traficantes baianos, pois apenas seis navios de Pernambuco e um navio do Rio de Janeiro receberam permissão para traficar na região.37
A ascensão do primeiro ministro português Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, resultou num conjunto de medidas que afetavam o tráfico português. Pombal estabeleceu uma fiscalização mais rígida para a saída de navios da Bahia em direção à Costa da Mina, criando para este fim um organismo regulatório (a Mesa de Inspeção); reduziu o poder dos negreiros titulares do “número” e, em março de 1756, terminou definitivamente com esse monopólio, tornando o tráfico uma atividade aberta. No entanto, ele estabeleceu novas diretrizes ao tráfico, estimulando a competição entre os negreiros e a procura por novas fontes de escravos no golfo do Benim. Por exemplo, determinava o limite de três mil rolos de tabaco por navio e, mais importante, proibia que dois navios negociassem em Uidá ao mesmo tempo. Com essa última medida, evitava-se a competição e, como resultado, a desvalorização do valor de compra do tabaco baiano e o aumento do preço das “peças”.38
Em decorrência dessas diretrizes, os negreiros baianos buscaram novos portos de tráfico na região. Apá, ativo porto negreiro, assumiu por um curto período o posto de principal centro escravista a leste de Uidá depois da destruição de Jakin (Djeken) em 1732. Sua posição foi logo ameaçada - e mais tarde suplantada - por Badagri que, por volta de 1736, assumiu essa condição.39 Era uma época conturbada no golfo do Benim, pois as constantes invasões da cavalaria de Oyó em território daomeano impediam - ou pelo menos dificultavam - o andamento do tráfico em Uidá, que outrora desfrutara da hegemonia comercial na região. Acrescente-se ainda o porto de Ekpe, onde negreiros da Bahia realizavam operações comerciais já na década de 1730. Nos pareceres da Mesa do Bem Comum da Bahia de 1743, sugeria-se que os navios procurassem primeiro por Uidá, e depois por Ekpe e Apá.40 Nessa mesma ocasião foi sugerido que os navios da Bahia buscassem Ekpe e Uidá, “que são hoje os principais para o dito Resgate [de escravos]”, e, em seguida, Badagri, Apá ou Popo (certamente Pequeno Popo). 41 A posição de importância desses portos continuou durante a década de 1750.42
Note-se que Porto Novo não era nem mesmo mencionado nas fontes oficiais portuguesas até meados do século XVIII. No entanto, a partir de segunda metade dos anos 1750, ele passaria a desempenhar um papel estratégico nesse negócio. Porém, antes de examinar a presença portuguesa, algumas palavras são necessárias sobre o contexto africano que permitiu o desenvolvimento do tráfico naquele entreposto negreiro.
De Uidá a Porto Novo
Desde a década de 1730, a Costa da Mina tornara-se um local inseguro para o comércio de escravos. Os constantes conflitos regionais envolvendo o Daomé, Oyó e seus vizinhos tornavam o tráfico de escravos uma atividade perigosa naquela região, comprometendo o fornecimento de cativos, afetando as redes internas do tráfico. Em 1728, Vasco Fernandes César de Menezes, vice-rei do Brasil (1720-1735), admitiu que o atraso no retorno das embarcações era resultado das guerras “em que estão envoltos aqueles negros [do Daomé]”.43 A “confusão” e as “desordens” vigentes na Costa da Mina afetavam diretamente o tráfico de escravos para a Bahia, a ponto de o vice-rei lamentar, em tom de desabafo, a dependência comercial dos baianos em relação àquela região.
Tegbesu (1740-1774), filho mais novo e sucessor do rei Agajá (c. 1716- 1740), assumiu o trono em condições bastante delicadas. O novo rei buscou a paz com os reinos vizinhos, promovendo assim o florescimento do tráfico negreiro. Ele firmou, em 1748, um acordo de paz com Oyó - poderoso reino iorubá no interior do golfo do Benim e principal ameaça ao Daomé - visando atrair novamente os navios europeus ao litoral de Uidá. Entretanto, invasões de outros grupos, como os huedas (grupo étnico predominante em Uidá no tempo do ataque daomeano) e de grupos armados de Pequeno Popo, sobretudo a partir de 1752, terminaram por converter novamente Uidá em local pouco seguro para o comércio de escravos.44
Ao mesmo tempo, a política de Tegbesu - o “comércio antes da guerra” - fê-lo descuidar-se do exército, meio de defesa contra o ataque dos inimigos e principal instrumento para aquisição de escravos. “O exército tinha deteriorado grandemente, tanto em número quanto em treinamento, desde os gloriosos dias de Agajá”, escreveu o historiador Isaac Akinjogbin.45 A desatenção com o aspecto militar significava, por um lado, que o exército daomeano era incapaz de garantir a segurança dos navios em Uidá; por outro lado, implicava na diminuição dos cativos de guerras e de raides.46
Sem condições de suprir totalmente a demanda por escravos, o Daomé passou a depender do suprimento de escravos trazidos pelos vizinhos, como os mahis, ao norte da capital Abomé, e mesmo de Oyó, mais a leste.47 A partir da década de 1760, no entanto, Oyó decidiu estabelecer seus próprios portos de comércio, traficando diretamente com os europeus na costa. Essa atitude, intensificada durante o reinado de Abiodun (a partir de 1774), privou o Daomé de sua principal fonte de escravos. O resultado óbvio foi a migração de navios para outros portos do golfo do Benim, dentre os quais Porto Novo.48
A presença francesa em Uidá constituiu-se em fator adicional para o êxodo de navios luso-baianos para o litoral leste da Costa da Mina. O Atlas of the transatlantic slave trade mostra que, entre 1727 e 1863, navios da Bahia e de Nantes disputavam a primazia do tráfico de escravos naquela localidade. Estima-se que 26,2% das embarcações ancoradas em Uidá tiveram a Bahia como local de origem, enquanto 25,7% saíram de Nantes, principal porto negreiro francês.49 A lei de 30 de março de 1756, que estabelecia um limite sobre o número de rolos de fumo permitidos a bordo das embarcações, restringia-se aos navios oriundos da Bahia. Os franceses, que não estavam sujeitos a tal proibição - embora seu fumo não fosse tão apreciado quanto o da Bahia -, inundaram o litoral de Uidá com tabaco. A oferta abundante encareceu o preço dos cativos naquele porto, de modo que os traficantes da Bahia buscaram alternativas viáveis para o comércio de seres humanos.
Neste cenário, a partir da década de 1750, os traficantes baianos buscaram progressivamente os “portos de baixo” da Costa da Mina, longe do controle do rei do Daomé e da concorrência francesa. Insatisfeito com a decisão da Coroa portuguesa, que feria os interesses ecônomicos daomeanos, Tegbesu enviou dois embaixadores à Bahia em 1750. Essa embaixada visava requerer da Coroa portuguesa que toda a negociação de escravos se realizasse em Uidá. Contudo seu pedido não foi atendido, pois esse “exclusivo africano” não interessava a Portugal.50 A recusa portuguesa em concentrar o tráfico em Uida gerou vários conflitos com os oficiais daomeanos - e com o próprio rei - ao longo da década de 1750. A deportação do diretor da fortaleza de Ajudá, Teodózio Rodrigues da Costa, em 1759, após uma discussão com o yovogan, “governador negro da terra”, foi a gota d’água nas já deterioradas relações com o Daomé.51
Foi nesse contexto - embora em data incerta - que os primeiros navios baianos alcançaram o litoral de Porto Novo. Tradições locais afirmam que o primeiro navio negreiro (provavelmente português) ancorou em Porto Novo durante o reinado de Dè Houyi (1757-1761).52 Mas têm-se notícias de um embarque de escravos em Porto Novo no ano de 1760 - o primeiro identificado no banco de dados Voyages. Nesse ano, a sumaca Nossa Senhora da Conceição e Almas, capitaneada por José Lopes de Siqueira, carregou 335 escravos em Porto Novo com destino à Bahia.53 No entanto, Porto Novo já era conhecido pelos portugueses desde pelo menos 1755. Nesse ano, parecer do Conselho Ultramarino aconselhava ao rei que tomasse medidas enérgicas para conter as agressões holandesas na Costa da Mina, sugerindo que um navio de guerra português patrulhasse o litoral da Costa da Mina, “de Cabo de Palmas té (sic) Calabar, ou Arda Grande”.54
Em março de 1758, Teodózio Rodrigues da Costa, diretor da fortaleza portuguesa em Ajudá (expulso em 1759), já noticiava ao vice-rei do Brasil sobre o florescimento do comércio no “novo porto”.55 É provável, portanto, que o tráfico de escravos em Porto Novo tenha se iniciado em 1757, no reinado de Dé Mèssè (1755-1790), em cujo reino o primeiro navio português (provavelmente da Bahia) chegou a Porto Novo, recordam as tradições orais. É ainda possível que as primeiras atividades negreiras tenham ocorrido durante os anos de Dé Houyi, sucessor de Dé Mèssè.56
Fontes orais de Porto Novo atribuem a abertura do comércio de escravos em Porto Novo a um traficante português de nome Eucaristus Campos (ou Eucaristus de Campos).57 Segundo as tradições locais, Eucaristus ancorou em Semé após uma forte neblina, atraído pelo fogo dos fabricantes hulas de sal, e, em seguida, estabeleceu relações com as autoridades locais, que resultaram no início do tráfico negreiro em Hogbonu, mais tarde Porto Novo.58 Entretanto, em 1770, um ex-escravo africano, João de Oliveira, reivindicava a responsabilidade pelo comércio de escravos, não só em Porto Novo mas também em Onim. Sua atuação nos negócios do tráfico foi confirmada pelo diretor do forte português em 1758 e, anos mais tarde, pelos homens de negócios da Bahia.59 O próprio João de Oliveira, em depoimento, afirmava ter usado seus próprios recursos na construção dos dois portos. E teria ainda servido como “cabeceira”, ou oficial real, nesses dois locais, reforçando seu papel crucial como agente do tráfico.60
Diante da história narrada por João de Oliveira - e atestada pelos contemporâneos -, pode-se sugerir que ele tenha servido como intermediário cultural e comercial entre o dito capitão português, recordado nas fontes orais, e o rei de Porto Novo. A tradição oral coletada por Akindele & Aguessy falava de um escravo por nome Alowou - provavelmente de origem iorubá - que teria sido o intérprete entre as autoridades em Porto Novo e os comerciantes portugueses. Essa narrativa pode refletir a participação de Oliveira, com seu nome africano, nas negociações que resultaram no início do comércio naquele porto. Nos anos seguintes, João de Oliveira investiu dinheiro na construção de uma estrutura para receber navios de grande porte, assegurando a posição de Porto Novo no circuito do comercio atlântico de escravos na região.61
A história de João de Oliveira faz parte de um mosaico de histórias de migrações de afro-brasileiros para o golfo do Benim. Escravos e libertos, africanos e crioulos, bem como traficantes de origem europeia, ajudaram a criar e sedimentar as “comunidades atlânticas” no golfo do Benim durante e depois da era do tráfico. Essas comunidades trans-raciais e trans-étnicas emergiram no contexto do comércio de escravos, influenciando mutuamente as duas margens do Atlântico.62 O relevante papel desempenhado pela Bahia nessas redes atlânticas é expresso principalmente pela participação dos retornados e outros indivíduos para a costa da África Ocidental no século XIX.
A historiografia há muito tem estudado a participação de africanos libertos nos negócios do tráfico na era da ilegalidade.63 Mais recentemente, entretanto, os historiadores têm começado a prestar atenção à formação de “comunidades atlânticas” no golfo do Benim já no século XVIII, e no importante papel de africanos (e crioulos) libertos no comércio negreiro.64 Kristin Mann e Robin Law oferecem vários exemplos de indivíduos que participaram ativamente na formação de redes comerciais, culturais e políticas na chamada “Costa dos Escravos” já no século XVII, e mais intensamente a partir do século seguinte.65 De fato, diversas fontes mencionam ex-escravos estabelecidos na Costa da Mina já no século XVIII, provavelmente em busca de oportunidades abertas pelo tráfico de escravos com o Brasil, e outros que, lá estabelecidos, tiveram alguma participação nas dinâmicas políticas entre os diferentes reinos da região.66 Nesse sentido, a carreira de João de Oliveira na África Ocidental serve como uma “janela” para entender a presença de libertos nos assuntos do tráfico e seu papel em moldar as sociedades do golfo do Benim daquele período.67
Enfim, o tráfico em Porto Novo tornava-se mais vantajoso diante das novas diretrizes da Coroa portuguesa, e ainda contava com o apoio de um agente em terras africanas. Desde meados do século XVIII, o rei do Daomé questionava a ausência de navios portugueses em Uidá, e essa foi uma das razões para a expulsão do diretor do forte português em 1759.68 Porto Novo desfrutava ainda de uma posição geográfica favorável, em área relativamente distante da influência daomeana e ainda contava com um sistema lacustre que dificultava o acesso das tropas do Daomé.69
De uma perspectiva comercial, o preço dos escravos era outro atrativo. O diretor do forte português informava que os cativos custavam entre treze e dezesseis rolos de tabaco em Uidá entre 1757-1758. Em Porto Novo, por sua vez, comprava-se um escravo por algo entre oito e doze rolos de fumo.70 Considerando apenas os rolos de fumo, e excluindo as taxas (Costumes) para o início das negociações e os outros produtos usados para a compra de escravos, isso significa que o tráfico em Porto Novo permitia a aquisição de 250-375 escravos por navio, e apenas 230 em Uidá.71
Do ponto de vista do volume do tráfico em Porto Novo, dados do Voyages demonstram que, entre 1750 e 1760, 54.558 escravos desembarcaram na Bahia vindos do golfo do Benim. Àquela altura, Uidá exportava algo em torno de 8.000-9.000 anualmente.72 Um relatório francês de 1765 informava que a média anual de Uidá era de 5.000 africanos, enquanto a participação de Porto Novo era de 1.200 cativos por ano, superior aos já estabelecidos portos de Ekpe e Badagri.73 Duas décadas mais tarde, as exportações de Uidá alcançaram uma média anual de 4.500 escravos, enquanto os portos de Badagri e Porto Novo respondiam juntos pela deportação de 3.500 africanos.74 A virada de Porto Novo no tráfico ocorreu no último quartel do século XVIII. Segundo estimativas, de Porto Novo saíram 37% dos escravos que deixaram o golfo do Benim entre 1776-1800, ao passo que Uidá exportou 29% desses desafortunados africanos.75
O Porto Novo da Bahia e a disputa pelo tráfico de escravos
Franceses e luso-baianos praticamente controlavam o comércio de escravos no litoral de Porto Novo. Em 1775, o rei de Hogbonu - Dé Mèssè ou Dé Houyi - enviou uma carta ao governador da Bahia convidando-o a estabelecer uma fortaleza em Porto Novo, nos mesmos moldes da de Uidá, visando o “bem comum do Comércio”. Na correspondência, ele jactava-se de ter “um dos melhores [portos] de negócio pela grande ocorrência que a ele vem de escravos”.76
Obviamente, “a grande ocorrência de escravos” referia-se ao suprimento de cativos vindos do interior via Oyó. A historiografia africanista tem destacado as relações entre o reino iorubá de Oyó e Porto Novo, e como este era protegido por aquele. Por exemplo, após uma investida daomeana contra Porto Novo, Abiodun, rei de Oyó, advertiu o Daomé que Porto Novo era sua “cabaça”, e somente a ele era permitido “comer” nela, indicando que aquele reino estava sob sua proteção.77 Sabe-se que Oyó estabeleceu uma colônia em Porto Novo na década de 1750, sem dúvida com vistas ao tráfico de escravos.78 John Adams, negreiro inglês bastante ativo na década de 1780, relata o pagamento de tributos de Porto Novo a Oyó em troca de proteção contra as ofensivas daomeanas. Contudo, parece improvável que Oyó, enfraquecido como se encontrava após derrota para os baribas e o pagamento de tributos a Nupe (1783), tivesse condições de defender Porto Novo.79 De todo modo, parece não haver dúvida de que Oyó extraía tributos de Porto Novo na forma de produtos europeus (“the richest European commodities”, afirma Dalzel).80 Tais gêneros eram o tabaco baiano, rum ou cachaça, búzios - que serviam como moeda na região -, além de armas de fogo e barras de ferro.81
Nesse sentido, Porto Novo funcionava como entreposto para os produtos exportados por Oyó.82 Entre esses produtos estavam não só os escravos mas também os tecidos produzidos na iorubalândia.83 Segundo Adams, grande quantidade de tecido iorubá (de Oyó) era exportado para o Brasil (sem dúvida para a Bahia) através de Lagos e “Ardra” (Porto Novo), e tais tecidos eram de “muita estimação” entre a população africana, pois foram produzidos “em um país em que muitos deles, ou seus pais, nasceram”.84 Outra evidência das relações entre Porto Novo e Oyó: a derrota deste frente ao reino bariba de Kaiama em 1783 afetou o fornecimento de escravos em Porto Novo e Badagri, pois, segundo um observador inglês, “as incursões [escravistas] de Oyó costumavam dar vida e comércio” a estes dois portos negreiros.85
Mas voltemos à carta. O rei de Porto Novo colocava seus súditos à disposição da Coroa portuguesa para a ereção do forte, solicitando apenas alguns poucos carpinteiros e o envio de madeiras para a construção da fortaleza. Pedia ainda 11 a 13 peças de artilharia para a proteção do forte, provavelmente para defender-se das ofensivas daomeanas, como ocorrera em 1763.86 O rei solicitava ainda o abandono do forte de Ajudá e a concentração dos negócios em Porto Novo, por “serem muitos [os escravos] e por isso se comprarem por diminuto preço de Rolos”.87
Ao encaminhar a carta a Lisboa, o governador da Bahia, Manuel da Cunha Menezes, reconheceu que o porto de Semé era um dos mais modernos da Costa da Mina.88 Isso se deve, muito provavelmente, às obras realizadas por João de Oliveira naquele porto. Embora não tenhamos a resposta de Portugal, é de se duvidar que a Coroa aceitasse as condições do rei de Porto Novo, especialmente quanto ao abandono do forte de Ajudá. Quando Tegbesu enviou uma embaixada à Bahia em 1750, sua proposta de tornar Uidá o único porto de comércio negreiro português na Costa da Mina foi rejeitada. Vale salientar ainda que convite semelhante foi feito à França em 1777, como parte da política externa de Porto Novo. Mas os franceses rejeitaram a oferta, como parece ter ocorrido com os portugueses.89 Aliás, a segurança do tráfico em Porto Novo era assunto crucial, e não admira que novos convites tenham sido feitos aos franceses em 1780 e novamente em 1786 e 1787.90 Ademais, os insistentes convites à França indicam a importância do tráfico francês em Porto Novo nas décadas de 1770 e 1780.
Os traficantes franceses em Porto Novo contavam com o apoio de um certo Pierre Tamata, haussá de nascimento, educado na França, que se tornou, segundo Adams, secretário do rei de Porto Novo. Pierre Tamata deve ter desempenhado o mesmo papel que coube a João de Oliveira: homem de confiança do rei, aconselhando-o nos assuntos do tráfico e, provavelmente, favorecendo os negreiros franceses em detrimento dos luso-baianos e ingleses.91
Os convites do rei de Ardra/Hogbonu não foram por acaso. A tabela 1 mostra que entre 1760 - data do primeiro registro de um navio realizando comércio em Porto Novo - e 1800, embarcações da França e da América portuguesa eram as que mais frequentavam o porto de Semé. Os ingleses tiveram uma participação muito modesta quando comparada à de outras nações, embora haja evidência de que navios ingleses frequentassem assiduamente Porto Novo em 1763.92 O pico do tráfico inglês encontra-se na última década do século XVIII, provavelmente em razão da retirada dos navios franceses do tráfico depois dos eventos em Saint Domingue. Ainda assim, seu número (seis navios) equivale à quantidade de embarcações francesas e é levemente inferior à de navios brasileiros (oito).
Brasil/Portugal | # | Inglaterra | # | França | # | Total | Total | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1760 | 1 | 335 | - | - | - | - | 1 | 335 |
1761-1770 | 20 | 6.024 | 3 | 803 | 5 | 1.842 | 26 | 8.669 |
1771-1780 | 5 | 1300 | 4 | 1.704 | 17 | 7.654 | 26 | 10.658 |
1781-1790 | 1 | 304 | 1 | 218 | 41 | 19.248 | 42 | 19.770 |
1791-1800 | 8 | 2.499 | 6 | 1.718 | 6 | 2.546 | 20 | 6.763 |
Total | 35 | 10.462 | 14 | 4.443 | 69 | 31.290 | 115 | 46.195 |
Na década de 1760, os navios brasileiros abundavam no litoral de Porto Novo, em comparação com outras carreiras. Nesse período, Inglaterra e França disputavam a hegemonia no quadro político internacional, e isso atingiu os negócios do tráfico. A Marinha das duas nações estava profundamente envolvida na Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Como demonstra Fred Anderson, a França sofreu um duro golpe em suas possessões na África Ocidental, perdendo os fortes St. Louis, no Senegal, o forte St. Michaels, em Gorée, além de uma feitoria no rio Gâmbia.93 Ainda como notam Márcia Berbel, Rafael Marquese e Tâmis Parron, esse conflito foi o início da crise do sistema atlântico do noroeste europeu, seguido pela revolução americana e, no final do século XVIII, pela revolução em Saint Domingue. Embora num primeiro momento o sistema atlântico ibérico não tenha sido atingido diretamente em seus interesses econômicos, esse conjunto de distúrbios políticos e a crise dos sistemas atlânticos resultariam, no século XIX, no que tem se convencionado chamar de “segunda escravidão”.94
A insegurança decorrente desse conflito também afetou o comércio francês no golfo do Benim. Poucos anos antes do início das hostilidades, o rei Tegbesu enviou seus emissários para o forte inglês a fim de selar a paz destes com os franceses, pois tinha ouvido “relatos de Guerra”.95 É provável que os ataques no golfo do Benim tenham começado antes mesmo de 1756, pois um ano antes o rei declarou que nenhum navio deveria ser “molestado” enquanto estivesse ali ancorado.96 É certo que, mal iniciado, o conflito europeu já afetava o tráfico. Em 1756, o rei daomeano mandou novamente emissários ao forte inglês pedindo que os reis europeus estabelecessem a paz.97 E, no decorrer do conflito, há evidência de ataques ingleses a navios franceses em Uidá, o que gerou a intervenção do rei do Daomé para mediar o conflito, que prejudicava o tráfico em seus domínios.98 O conflito, portanto, se desenrolava tanto no palco europeu quanto no cenário atlântico. Naturalmente, franceses e ingleses utilizaram esse conflito como artifício para ganhar vantagens no comércio negreiro com o Daomé.99
O perigo durante esses anos explica a drástica retração do comércio francês de escravos na Costa da Mina. Se entre 1751 e 1755 os navios franceses carregaram cerca de 34.500 cativos, entre 1756 e 1763 - exatamente o período da ascensão de Porto Novo - esse número reduziu-se para menos de 1.500 escravos.100 Nas décadas seguintes, os navios franceses voltaram a crescer em número. Na década de 1780, estima-se que 41 embarcações francesas estivessem negociando em Porto Novo, contra uma embarcação inglesa e outra dos luso-brasileiros.
Para a segunda metade do século XVIII, as fontes disponíveis demonstram que 69 embarcações, ou 58,5% dos navios ancorados no litoral de Porto Novo, carregavam a bandeira da França. Os navios luso-brasileiros aparecem em segundo lugar (29,6%), e os ingleses são a terceira carreira nacional (11,8%). Analisando individualmente a carreira luso-brasileira, vê-se que dos 35 navios com bandeira de Portugal/Brasil em Porto Novo, 32 embarcações, ou 91%, tiveram Salvador como local de origem. Seu número é igual ao dos que deixaram La Rochelle, na França, principal porto de saída de navios para Porto Novo.
Mais números: o Atlas of the transatlantic slave trade mostra que, entre 1760- 1850, as embarcações luso-brasileiras representavam 31,9% dos navios que ancoravam em Porto Novo. Desse total, mais de 97% tiveram origem no porto de Salvador. Em outras palavras, o comércio luso-brasileiro em Porto Novo era dominado pelos traficantes sediados na Bahia, como de resto o comércio na Costa da Mina.101
Das guerras nas relações Daomé-Porto Novo-Bahia
No quinquênio 1781-1785, o tráfico em Porto Novo sofreu forte retração. Dos quase 18.000 africanos deportados entre 1776-1780, o número caiu para menos da metade. As razões para essa abrupta diminuição não são claras, mas é possível que a ascensão de Kpengla tenha estimulado mais uma vez o florescimento do tráfico em Uidá, pois suas exportações aumentaram no mesmo período.102 Ao assumir o trono em 1774, Kpengla decidiu investir novamente em razias para obtenção dos escravos exportados via Uidá, mas boa parte delas fracassou - seja por falta de armas de fogo, pólvora ou treinamento, este último reflexo dos tempos de Tegbesu, seu pai. Kpengla enviou grupos armados para as estradas entre Porto Novo e Uidá a fim de torná-las inseguras para os mercadores do interior, e novamente estimular a produção de escravos pelos daomeanos, como no tempo de seu avô, Agajá. Embora essa política tenha sido logo abandonada - o Daomé não conseguia produzir a quantidade necessária de escravos -, é possível perceber a disposição de Kpengla no reavivamento do tráfico nas mãos do Daomé.103
Prova maior do desejo de Kpengla em exercer liderança na exportação de escravos na Costa da Mina são os ataques movidos contra os portos concorrentes de Ekpe, em 1782, e Badagri, em 1783-84. Para a empreitada, Kpengla formou uma ampla aliança com Porto Novo (com quem já havia unido forças contra Ekpe desde 1778), Oyó, grupos do país Mahi e com Onim (Lagos), cujo apoio alcançou após o envio de presentes ao ologun (rei) Kutere (1780-1802). O rei de Lagos, no entanto, tinha seus próprios interesses na submissão de Badagri, seu antigo aliado, pois àquela altura Lagos já estava envolvido profundamente nos negócios atlânticos.104 Quanto a Badagri, duas ofensivas, em 1783 e a derradeira em 1784, destruíram a cidade e desarticularam o tráfico naquele porto.105
Após eliminar a concorrência de Badagri, Kpengla voltou sua atenção para seu antigo aliado, Porto Novo, a quem há muito observava com “olhar ciumento”.106 A razão era o profícuo tráfico naquele porto escravista, considerado “um dos principais para o negócio [de escravos]” em meados de 1781.107 Os anos de 1780 representam o ápice do tráfico em Porto Novo.108 Já em 1786, o diretor do forte português Francisco Antônio Fonseca e Aragão reconhecia a importância do comércio naquele porto, advertindo que, após o ataque a Weme, Porto Novo seria o próximo alvo.109 De fato, em 1787, assistiu-se a um ataque daomeano sobre a praia de Semé, onde aguardavam 11 navios franceses e, provavelmente, alguns baianos.110 A ofensiva do Daomé gerou um protesto veemente do rei de Porto Novo ao alaafin de Oyó, a quem ambos pagavam tributo.111
O ataque daomeano sobre Porto Novo pode ser explicado pelas diversas vantagens do tráfico neste porto. Ao contrário do Daomé, onde os traficantes pagavam altas taxas e presenteavam as autoridades daomeanas para obter permissão para atracar, os negreiros encontravam taxas mais vantajosas em Porto Novo do que as praticadas em Uidá. Outrossim, o comércio de escravos não era tão fortemente controlado pelo Estado como no Daomé.112 Além disso, o tempo de espera para o carregamento de escravos - outro aspecto fundamental no cálculo negreiro, evitando doenças, sobretudo no golfo do Benim, e o aumento da mortalidade entre os escravos do porão e a tripulação - era 30% mais curto em Porto Novo do que em Uidá.113 Por fim, no que se refere ao preço dos cativos, fontes contemporâneas afirmam que os escravos exportados via Porto Novo eram mais baratos do que os do Daomé.
O valor dos escravos em Porto Novo atraía os negreiros das diversas potências europeias, ainda que os cativos exportados via Uidá tivessem “melhor valor em touda a parte do Brazil”. Os escravos de Porto Novo, dizia-se, eram “velhos e mancos”, além de chegarem de regiões distantes no interior do golfo do Benim. O estado de saúde dos escravizados era fator crítico no processo de aquisição e venda para o tráfico transatlântico. Portanto, os cativos daomeanos, “Sem embargo de Serem mais caros que os do Porto Novo na sua Reputação vinham a Sahir melhor do que o Barato”.114
O relatório de Bernardo de Azevedo Coutinho, diretor do forte português, deve ser lido com cautela. Afinal, ele tinha grande interesse em concentrar o tráfico luso-brasileiro em Uidá, sob sua supervisão, para benefício da Coroa portuguesa e, quem sabe, seu próprio. Vários diretores foram acusados de negócios ilícitos e/ou de mau comportamento em Uidá no decorrer do século XVIII, para desagrado tanto das autoridades africanas quanto das portuguesas.115 No entanto, o relato do diretor é útil para compreender as origens dos africanos deportados via Porto Novo.
Das origens dos escravos em Porto Novo
Ao contrário de Uidá, local de saída da esmagadora maioria dos gbe-falantes para as Américas, os cativos exportados via Porto Novo tinham origens mais diversas. Segundo Patrick Manning, durante o pico do tráfico no golfo do Benim, entre 1690-1740, cerca de 80 a 90% dos escravos vendidos na costa - a grande maioria através de Uidá - pertencia a povos de fala gbe.116 No caso de Uidá, os cativos eram obtidos principalmente dos vizinhos a norte e nordeste do Daomé, mahis e anagôs, respectivamente.117 Para Porto Novo, por outro lado, temos uma variedade maior de origens étnicas, resultado da participação de Oyó no tráfico atlântico.
Mahis, iorubás e haussás, entre outros, aparecem na lista dos principais cativos exportados por Porto Novo nas décadas finais dos Setecentos, reportou Adams.118 O historiador beninense Michel Videgla confirma a forte presença de iorubás e gbe falantes em Porto Novo, além dos haussás.119 Estes últimos, do Sudão Central, viviam a centenas de quilômetros de distância da costa. O negreiro inglês Adams, que conversou com vários escravos haussás durante sua estada em Porto Novo, relata que eles invariavelmente caminhavam por “dias e noites” do país haussá até Oyó, e de lá para Porto Novo.120 Talvez 20 mil cativos do Sudão Central tenham sido exportados pelo Atlântico no século XVIII.121
O impacto do tráfico baiano via Porto Novo pode ser constatado pelas origens dos africanos na Bahia nas décadas finais do século XVIII. Em trabalho recente, João José Reis salientou a participação dos escravos do Sudão Central na Bahia, notadamente os haussás, no norte da atual Nigéria, mas também de nupes (conhecidos na Bahia como tapas) e baribas (nome dado por Oyó aos habitantes de Borgu). Em comum, todos esses grupos compartilhavam, em maior ou menor grau, a escravização pelas forças de Oyó na região.122 Estima-se que os haussás eram cerca de 6% do total de exportações do golfo do Benim nos anos de 1780 e 10% na década de 1790, aumentando nas duas décadas seguintes (19 e 20%, respectivamente) como resultado do jihad fulani de 1804.123
Porto Novo, Daomé e Bahia na era de Adandozan
A crescente importância de Porto Novo no tráfico resultou em novas campanhas daomeanas durante os reinados de Agonglô (1789-1797) e Adandozan (1797-1818). A desorganização do tráfico foi assunto da correspondência do diretor do forte português em 1788. Nessa missiva, Francisco Aragão mencionava as “Guerras que este Rei ou potentado Dagomé tem feito ao porto de Badagri, e ao de Arda [Porto Novo]”, mas não fica claro se ele se referia ao ataque de 1784 ou se o Daomé continuava a enviar incursões sobre Badagri. Informava ainda que, embora o Daomé pressionasse Porto Novo e os portos vizinhos, buscando concentrar o tráfico em Uidá, seu exército era incapaz de produzir número suficiente de escravos para os navios portugueses.124
Os ataques a Porto Novo intensificaram-se após a subida de Adandozan ao trono. Em 1804, ele enviou uma correspondência ao então príncipe regente d. João, relatando seu ataque a Porto Novo e explicando suas razões para a investida - um ataque prévio de Porto Novo a Abomé-Calavi, que deve ter ocorrido entre fins de 1802 e início de 1803. Sabe-se que o Daomé continuava a pressionar Porto Novo e a sequestrar marinheiros europeus em Semé.125 Além da ofensiva de 1804 contra Porto Novo, a retaliação ao ataque a Abomé-Calavi veio em 1805, quando o Daomé lançou guerra contra Agonsa. Adandozan afirmava que os povos de Agonsa, localizados provavelmente na margem oeste de Porto Novo, às margens do lago Nokué, ensinaram ao exército de Porto Novo o caminho até Abomé-Calavi.126
As constantes investidas do Daomé e a incapacidade de Oyó em defender Porto Novo devido a seus problemas internos devem ter motivado a carta do rei de Porto Novo, Ayikpé, a d. João.127 Nela, o rei solicitava um engenheiro português para avaliar a possibilidade de abertura (ou ampliação) de uma lagoa, distante “cinco braças” (11 metros) do mar. Com isto, ele tencionava vedar o acesso daomeano a Semé e o cativeiro dos “nacionais” bem como dos canoeiros a serviço dos portugueses.128
A carta do rei Ayikpé foi escrita poucos meses após um ataque daomeano em setembro de 1804.129 Isso indica a preocupação do rei de Porto Novo com as constantes investidas do rei do Daomé. Ademais, o pedido para a ampliação da lagoa sugere que, embora protegido pelo sistema de lagunas, para evitar novos ataques era preciso cortar totalmente a comunicação daomeana por terra.
Finalmente, a correspondência demonstra a continuidade das relações diplomáticas entre Porto Novo e Bahia. Vale recordar a carta do rei de Porto Novo ao governador da Bahia na década de 1770, na qual solicitava a construção de um atracadouro. As relações diplomáticas entre os reinos na Costa da Mina e a Bahia não são novidade. Há evidência de troca de cartas entre os reis huedas e o vice-rei da Bahia para a construção do forte de Ajudá. Soso, rei de Aladá, também sugeriu por carta a construção de um forte, provavelmente em Jakin, que nunca se concretizou. A partir da tomada de Uidá pelo Daomé, em 1727, iniciaram-se as conversações entre os daomeanos e as autoridades na Bahia, que logo evoluiríam para o envio de embaixadas. À primeira embaixada daomeana, de 1750, seguiram-se outras em 1795, 1805 e 1811. Onim (ou Lagos) enviou uma embaixada em 1770, acompanhada do já conhecido João de Oliveira, e outras duas em 1807 e 1823 - esta última para reconhecer a independência do Brasil. Por fim, Porto Novo enviou apenas uma embaixada, em 1810, para fortalecer os negócios do tráfico que, àquela altura, começavam a minguar.130
Em resposta à carta de Dé Ayikpé, um parecer de Lisboa sugeria o abandono do forte de Ajudá e o estabelecimento de uma fortaleza em Porto Novo. Este porto reunia as condições necessárias para a continuidade do comércio negreiro em bom termo, ao contrário de Onim (Lagos), que embora também pudesse acolher uma fortaleza, sofria de outros problemas. Particularmente, era preciso “conciliar muitas vontades” e “interesses dos potentados” ao redor de Onim, tornando a construção naquele porto um “inconveniente”. As “muitas vontades” mencionadas no documento sem dúvida fazem menção à influência política do reino do Benim, a leste, sobre Lagos. Tal influência era sentida ainda no início do século XIX, pois “[o] Reino d’Onim [Lagos] é sujeito ao Rei de Benim, o qual eleje, e nomeia o Rei daquele Reino”, afirmou o governador da Bahia em 1807.131
Para o sucesso da proposta de Dé Ayikpé, entretanto, era preciso cortar a comunicação terrestre entre o Daomé e Porto Novo, através da retirada do banco de areia em Adjara, que ficava na margem norte da lagoa costeira entre Jakin e Uidá.132 O parecer sobre a contrução do forte e a retirada do banco de areia foi reforçado no ano seguinte, 1805, mas nenhum estabelecimento português foi construído no local.133
Enquanto isso, Onim/Lagos crescia como porto negreiro no golfo do Benim, assumindo o lugar antes ocupado por Porto Novo e Badagri. Estima-se que Lagos tenha exportado apenas 2.282 indivíduos no intervalo entre 1796-1800; já entre 1801-1805, 21.412 africanos foram deportados, número que cresceu para 28.418 no período 1806-1810.134 Explica-se, portanto, a carta do governador da Bahia, o conde da Ponte, de 1807, informando ao príncipe regente de Portugal que “[o] Comércio do Porto d’Onim foi efeito das Guerras do Dagomé com o Rey de Porto Novo”.135 Era também resultado das transformações políticas já em curso no já enfraquecido império de Oyó, cujos habitantes passaram a ser escravizados e enviados para a Bahia.
O documento não é claro, no entanto, acerca da “pouca fidelidade” de Ekpe e Badagri a Porto Novo, o que contribuiu para o crescimento de Onim. Aparentemente, havia alguma relação entre Porto Novo e seus vizinhos. Baseado numa carta de Inocêncio Marques, Robin Law suspeita que, por volta de 1805, Ekpe e Badagri estariam sujeitos a Porto Novo.136 Entretanto, a dita carta informa apenas que a conservação da “boa amizade” com o rei de Porto Novo garantiria a segurança do tráfico em Ekpe, Badagri e Lagos. Se essa carta não confirma categoricamente a sujeição dos três portos, pelo menos indica o poderio regional de Porto Novo, que ainda contava com o apoio de Oyó. Sabe-se, porém, que, por volta de 1812, o rei de Onim, Adele reivindicava soberania sobre Badagri “pelas Leis antigas”.137
Ao mesmo tempo, não se deve duvidar das tentativas de Porto Novo em impor sua autoridade sobre Ekpe, Badagri e, talvez, Lagos. Em junho de 1786, o rei de Porto Novo, Dè Messè, autorizou a construção de três fortes franceses, sendo um deles em Ekpe. Em abril do ano seguinte, o diretor do forte francês informou que os fortes deviam ser erigidos em Porto Novo, Badagri e Onim.138 Há evidência de uma campanha de Porto Novo, comandada provavelmente por Aikpé ou Houffon, a Badagri, indicando certa resistência deste em aceitar a autoridade imposta por Porto Novo.139 É possível que aqueles dois portos tenham passado a apoiar a causa daomeana contra Porto Novo, talvez temendo represálias. Como hipótese alternativa, comerciantes de Ekpe e Badagri podem ter enviado seus cativos a Lagos, fugindo assim do assédio de Porto Novo e do Daomé.
***
Em dezembro de 1810, uma embaixada de Porto Novo chegou à Bahia, seguramente para discutir questões do tráfico. Mas seu destino final era o Rio de Janeiro, capital do Império português desde a transferência da família real para o Brasil em 1808. Os embaixadores carregavam uma carta do rei de Porto Novo, que devia ser entregue ao príncipe regente. Eles ficaram retidos na Bahia, para evitar gastos e prevenir um “espetáculo” entre a população africana do Rio de Janeiro, sobretudo aquela exportada do golfo do Benim; a carta seguiu seu destino. O governador da Bahia, o conde dos Arcos, devia tratar com os embaixadores e enviar notícias à Corte. Meses depois, em janeiro de 1811, o Daomé enviou sua embaixada ao Rio de Janeiro, também retida na Bahia.140
De fato, no início do século XIX, as exportações de escravos do Daomé e Porto Novo declinaram significativamente. O banco de dados Voyages mostra que, entre 1801 e 1810, quase 100.000 escravos deixaram o golfo do Benim em direção às Américas, a maioria deles em navios luso-baianos (77.880). Os navios ingleses carregaram cerca de 13.000 africanos escravizados para as Américas, mas seu tráfico foi encerrado abruptamente em 1808, como resultado da abolição do tráfico no ano anterior. Os franceses haviam se retirado do tráfico, importando cerca de 1.300 cativos em 1803, número similar ao carregado pelos navios norte-americanos (1.345). Navios de bandeira espanhola - a maioria de Cuba - ainda não se destacavam na pauta de exportações, como aconteceria a partir das décadas seguintes.141
Uma análise por portos de embarque mostra uma importante queda no número de escravos exportados pelos outrora principais portos do golfo do Benim, Uidá e Porto Novo. Entre os portos conhecidos, Uidá participou com o envio de 6.000 africanos, sendo que nenhum navio é registrado entre 1809 e 1810. As exportações via Porto Novo, por sua vez, representaram menos de 3.000 escravos, número semelhante ao de Badagri, cujo tráfico àquela altura tinha praticamente desaparecido.142
Portanto, a embaixada de Porto Novo (e também do Daomé) deve ser entendida dentro do contexto atlântico mais amplo. Nesse caso, ela é uma das consequências das pressões inglesas sobre Portugal para assinatura de um tratado que acabasse - ou ao menos restringisse - o tráfico transatlântico luso. Desde 1807 pelo menos, o governo britânico instava a Coroa portuguesa a seguir seu exemplo ou restringir o tráfico aos locais costumeiros de comércio de escravos. Temia-se que, com a retirada inglesa do tráfico em 1807, os negreiros luso-brasileiros ocupassem as áreas anteriormente sob influência dos traficantes ingleses (como a Costa do Ouro, atual Gana) ou o Golfo de Biafra. Entretanto, uma reviravolta atlântica, notadamente a fuga e estabelecimento da família real no Brasil em 1808, colocou os ingleses em posição mais confortável para fazer novas demandas a Portugal. Segundo Leslie Bethell, uma convenção anterior, de outubro de 1807, impunha certas condições para a manutenção da defesa inglesa em Portugal enquanto a família real residia no Brasil, provavelmente as mesmas condições que aparecem na Carta Régia de janeiro de 1808, abrindo os portos para as “nações amigas”, o que na prática significava a abertura para o comércio inglês. Após alguns anos de negociação, foi finalmente celebrado um tratado entre a Inglaterra e Portugal, em 19 de fevereiro de 1810, restringindo o tráfico português na Costa da Mina apenas a Uidá, afetando diretamente o comércio de escravos nos dois principais rivais daomeanos na região, Porto Novo e Lagos, bem como nos portos mais a oeste, como Pequeno Popo.143
A despeito desse tratado, Lagos assumiu papel proeminente no tráfico na região, deportando mais de 10.000 indivíduos para as Américas. Outros 54.000 cativos foram exportados, mas a genérica denominação “Costa da Mina” não permite saber exatamente o porto de origem. Provavelmente estavam divididos entre o Daomé, Porto Novo e Onim, com vantagem para o último.144 Todas essas transformações atlânticas podem explicar o envio de embaixadas dos dois principais reinos escravistas do golfo do Benim para a Bahia no início dos anos de 1810. As mesmas mudanças no tráfico e o papel cada vez mais destacado de Lagos explicam o envio da carta pelo rei de Onim, Adele, ao príncipe regente d. João em 1812.145
Mariza Soares argumenta de forma convincente que o conhecimento do tratado possa ter motivado o envio das embaixadas.146 Não seria a primeira demonstração do amplo conhecimento dos reinos africanos sobre os acontecimentos na Europa e nas Américas. Adandozan, por exemplo, enviou carta ao príncipe regente por ocasião da fuga da família real para o Brasil, lamentando o ocorrido. Como observou Ana Lúcia Araújo, mais do que mera curiosidade, eles acompanhavam atentos os eventos que podiam afetar os mercados negreiros nas Américas bem como o tráfico de escravos nos portos africanos.147
Enquanto isso, o conde dos Arcos equilibrava-se entre os interesses do tráfico, ainda rentáveis para a Coroa portuguesa, e as pressões britânicas, sobretudo após a assinatura do tratado de fevereiro de 1810.148 A partir dessa data, navios britânicos sistematicamente aprisionaram embarcações portuguesas, permitindo o tráfico tão somente em Uidá, para prejuízo dos negócios em Porto Novo, onde vários navios foram aprisionados entre 1810 e 1812.149 Mariza Soares resume bem o saldo dessas embaixadas:
O rei de Ardra não conseguiu substituir o Daomé no comércio de escravos; o rei do Daomé fracassou em sua pretensão de ganhar o monopólio do comércio de escravos. D. João, por seu lado, parece ter saído ganhando: manteve o comércio de escravos, não só com o Daomé mas com outros portos da Costa da Mina, e não deixou em risco sua aliança com os ingleses.150
As embaixadas não tiveram êxito. A comitiva daomeana retornou a Uidá em novembro de 1812 no navio Pistola, pilotado pelo africano jeje liberto Antônio Narcizo.151 Os embaixadores de Porto Novo, por sua vez, foram informados, em fins de 1812, que voltariam à Costa da Mina no bergantim Constante, tendo retornado em janeiro de 1813.152 Nenhum ganho efetivo fora alcançado durante a missão. Ademais, as restrições ao tráfico pelo tratado de 1810 tiveram efeito negativo sobre o comércio de escravos em Porto Novo. Somente um navio aportou na Bahia, vindo de Porto Novo, entre janeiro de 1815 e janeiro de 1816 (o Testo), segundo notícias do cônsul inglês na Bahia.153 A conjuntura atlântica em transformação afetava irremediavelmente o comércio negreiro na Costa da Mina.
Conclusão
O movimento de navios baianos em Porto Novo envolveu diferentes conjunturas: a política do tráfico de escravos na Costa da Mina pelos traficantes de escravos sediados na Bahia; as determinações da Coroa portuguesa; as rivalidades entre os portos escravistas da Costa da Mina no século XVIII. O controle excessivo do Daomé sobre o comércio de escravos impeliu os negreiros europeus para os portos a leste de Uidá. Em outras palavras, a perspectiva atlântica de análise contribui para compreender os eventos mais amplos do período, seja na África, na Europa ou nas Américas, e como cada um influiu nos acontecimentos que levaram ao desenvolvimento do tráfico nos “portos de baixo” do golfo do Benim. O estudo sobre Porto Novo, portanto, permite escapar de uma abordagem puramente quantitativa, enfatizando as relações diplomáticas, sociais e políticas entre os diversos poderes regionais (principalmente Daomé e Oyó), e destes com os comerciantes e autoridades europeias. Ao mesmo tempo, ilumina as diversas transformações em curso no golfo do Benim durante os séculos XVIII e XIX, em termos de formação de novas entidades políticas e sua participação no mundo atlântico.
Porto Novo, por suas ligações com Oyó, tornou-se um porto fundamental de embarque de escravos vindos do interior do golfo do Benim. Traficantes de diferentes nacionalidades tiveram acesso a um suprimento abundante de cativos. Uidá, por seu turno, teve seu abastecimento comprometido pelas excessivas guerras do Daomé com Oyó, inicialmente; em seguida sofreu com a intensa competição dos “portos de baixo”. Graças a essas condições, Porto Novo consolidou-se na segunda metade do século XVIII como importante rival de Uidá. Seu porto era frequentado por navios de diferentes bandeiras, em especial por franceses e luso-brasileiros.
Entre os luso-brasileiros, os negreiros baianos aparecem em destaque. E apesar dos laços comerciais duradouros estabelecidos em Porto Novo - como observado pelo papel dos retornados no período do tráfico ilegal -, eles nunca abandonaram Uidá. De fato, os negreiros da Bahia traficaram nos diferentes portos do golfo do Benim, beneficiando-se das redes comerciais que ligavam os comerciantes africanos do interior aos portos negreiros na costa. No caso de Porto Novo, seu suprimento de escravos era abastecido principalmente por Oyó; e, ao lado de Onim/ Lagos, Porto Novo contribuiu para as mudanças da configuração étnica da escravidão africana na Bahia do final do século XVIII e, principalmente, nas primeiras décadas do século XIX.
Notas
Contato: Wilberforce Institute for the study of Slavery and Emancipation, University of Hull, Oriel Chambers, 27 - High Street, Hull - HU1- 1NE - Reino Unido - Inglaterra, carlos.ufba@gmail.comContact: Wilberforce Institute for the study of Slavery and Emancipation, University of Hull, Oriel Chambers, 27 – High Street, Hull – HU1– 1NE – Reino Unido – Inglaterra, carlos.ufba@gmail.com