Resumo: O Brasil, em toda a sua história e de diferentes maneiras, foi local de convergência de distintas relações étnicas que destacaram sua contribuição na formação do país. O Rio de Janeiro, sua cidade mais importante no século XIX, era também um emaranhado de sabores, cheiros, culturas e gente de todos os tipos. A capital do Império traduzia, nos seus estabelecimentos de alimentação, a complexidade e variedade do seu significado para o país. O objetivo deste estudo é identificar as produções comercializadas nos restaurantes e confeitarias da Corte no século XIX - especificamente entre 1854-1890 - procurando apontar aspectos acerca das influências e referências culturais, assim como as adaptações e acomodações utilizadas na alimentação desenvolvida por ambos os espaços no Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Rio de JaneiroRio de Janeiro,restaurantesrestaurantes,confeitariasconfeitarias,alimentaçãoalimentação,históriahistória.
Abstract: Brazil, throughout its history and in many ways, was a place of convergence of different ethnic relations which had an outstanding contribution in the formation of the country. Rio de Janeiro, its most important city in the 19th century, was also a medley of flavors, smells, cultures and all kinds of people. The capital of the Empire translated, in its food establishments, the complexity and variety of its meaning for the country. The objective of this study is to identify the products commercialized in the restaurants and confectionery stores of the Court in the 19th century - specifically between 1854 and 1890 - trying to point out aspects about influences and cultural references, as well as the adaptations and accommodations used in the food developed by both spaces in Rio de Janeiro.
Keywords: Rio de Janeiro, restaurants, confectionery stores, food, history.
ARTIGO
O RIO DE JANEIRO À MESA: A ALIMENTAÇÃO NOS RESTAURANTES E CONFEITARIAS DO SÉCULO XIX (1854-1890)
RIO DE JANEIRO AT THE TABLE: FOOD IN RESTAURANTS AND CONFECTIONERY STORES OF THE 19TH CENTURY (1854-1890)
Recepção: 22 Janeiro 2018
Aprovação: 13 Setembro 2018
Ao som das caçarolas e das marmitas chocando-se mutuamente, à luz das chamas que lambem as chapas férreas de Perry e C. e ao fumegar das altas chaminés dos hotéis, casas de pasto, cafés, restaurantes etc. eu procuro o meu herói, o Rio de Janeiro gastrônomo e beau-vivant que deixei encaminhando-se para... a mesa.1
A cidade mais importante do Brasil no século XIX era, também, um emaranhado de sabores, cheiros, influências e gente de toda sorte. A capital do Império traduzia, nos seus estabelecimentos de alimentação, a complexidade e variedade do seu significado para o país. Em uma crônica intitulada "O Rio de Janeiro à mesa", o Diário do Rio de Janeiro, de 23 de janeiro de 1857,2 muito bem apontou essas particularidades.
O cronista, que procurava pelo beau-vivant e gastrônomo, descreveu alguns locais de alimentação e, por que não dizer, de diversão, pois em muitos momentos se confundiam. Essa não seria uma jornada fácil. A definição por um estabelecimento era o primeiro empecilho e uma penosa busca por ambientes que não deixavam claro a que se dispunham. As dúvidas sobre as características do menu eram comuns entre os frequentadores, apontou o texto. Ao mesmo tempo em que chamou uma série de estéreis descrições proporcionadas de "fanfarronices", ele advertiu: "não seria mais proveitoso para o público um letreiro que dissesse qual o sistema culinário adotado, quais as suas vantagens, quais as suas proporções para satisfazer o público que paga?".3
Uma breve ideia dos potenciais clientes que procuravam pelos locais também foi relatada pelo cronista que, nessa jornada, identificou "alguns flaneurs de casaca preta e luva cor de gema de ovo que representam o público ocioso", ou ainda "alguns gordos ministros de Rotsehild, sustentáculos do gordo comércio", além de "uma porção de estrangeiros de todas as nações"4 que buscavam, como o escritor, um local de paragem e alimentação. Sem dúvida, um público marcadamente burguês circulava pelo centro do Rio de Janeiro do século XIX, característico da sua situação enquanto capital e centro econômico nacional. Não significava, no entanto, que restaurantes e confeitarias servissem somente essas endinheiradas camadas sociais ou vendessem dispendiosos pratos. Havia ambientes em que "qualquer pode comer bom e barato, o que não sucede em toda a parte",5 concluiu o metódico crítico.
É nessa incansável odisseia que a crônica nos aponta uma cidade plural, com uma quantidade e variedade condizente com a sua população vasta e diferenciada. Nos exemplos destacados, essas peculiaridades ficam bem marcadas. O Exchange Hotel fazia com que os ingleses sentissem um "ar de quem depara enfim com um canto da cara pátria sobre estranho solo".6 Aos amantes da culinária franca caberiam os restaurantes dos hotéis des Frères Provenceaux, Chevet Brésilien, dos Estrangeiros ou La Bourse, representantes da tradicional culinária francesa, "a mais celebrada no mundo". O texto ainda apontou os sabores do Damiani e Angelo que trazia como especialidade o "macarroni, le salsiocie e outros primores de arte culinária que dispensam a aplicação do velho rifão italiano appetitto non vuol salsa". Da mesma forma, "os nababos felizes, os herdeiros parvenus e os afilhados da fortuna" tinham como espaço cativo o Hotel del´Europe.7 Associavam-se a eles inúmeros outros locais, cada qual com suas características, mas com a atividade principal em comum - a alimentação.
O quase anônimo cronista, que somente assinou ao final do texto com a letra "C", fazia uma busca pelo lugar perfeito, talvez jamais encontrado. Todavia, esses foram apenas alguns exemplos de estabelecimentos ligados à alimentação citados em uma crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro no início da segunda metade do período oitocentista que nos remete a aspectos de uma cidade em franca expansão e que recebia no seu seio os mais distintos sotaques.
O Brasil, em toda a sua história, com maior ou menor ênfase, foi local de convergência de diferentes relações étnicas que destacaram sua influência na formação do país. Concomitantemente com o desenrolar do período oitocentista, a atuação de distintos elementos estrangeiros se tornou marcante na alimentação do país (RIOS FILHO, 2000).8
Belluzzo (2010)9 destaca que os novos moradores adventícios aplicaram um inédito ritmo à cidade e foram responsáveis pela inauguração de novos espaços de alimentação, como mercearias de secos e molhados, padarias, confeitarias, restaurantes e rotisserias. Aliado e miscigenado10 às diferentes especificidades regionais brasileiras, esse hibridismo cultural nacional, que se reflete diretamente nas práticas alimentares, pode ser interpretado e percebido através da análise dos restaurantes e confeitarias, locais fundamentais para compreendermos os simbolismos que envolvem a prática de comer.
Para além das relações mercantis, com o desenvolvimento do século XIX, ingleses e franceses se instalaram no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras, dando feição nova e progressista ao comércio que, até então, era dominado pelos portugueses. Os lusitanos eram os principais proprietários. Os "armazéns, cafés, bares, padarias, açougues, leiterias, quitandas, papelarias, armarinhos pertenciam, em sua maioria, a estes imigrantes, que os administravam juntamente com seus familiares mais próximos"(FREITAS FILHO, 2002, p. 169).11
Os ingleses se destacavam como atacadistas e possuíam armazéns localizados principalmente na rua Direita, atual Primeiro de Março. Eles também foram fundamentais para o processo de modernização da cidade, principalmente com as suas empresas importadoras e responsáveis por inovações como a energia elétrica e os primeiros bondes (FREYRE, 2000).12
Já os franceses estavam inseridos de forma mais enfática no comércio a varejo, nas ruas dos Ourives e Ouvidor, com lojas reconhecíveis pela graça dos mostruários e elegância do arranjo interno. Para cá também vieram imigrantes das províncias hispânicas, americanos do norte, suecos, alemães e italianos, mas em escala menor e poucos se dedicaram aos negócios (CRULS, 1949).13 Eles transformaram o comércio e criaram novas necessidades, hábitos, usos e práticas no cotidiano da cidade. "A presença desses novos moradores repercutiu no ordenamento urbano, na arquitetura das casas, na disposição e na decoração dos cômodos internos, na moda e na maneira de comer e de se vestir" (TOSTES, 2009, p. 46).14 Como não poderia ser diferente, dentre os hábitos estava a alimentação que, como procuramos demonstrar, tem origens e contribuições diversas.
Divergimos, portanto, de pesquisadores que não consideram essas variáveis e restringem as suas análises. É o caso de Chaves e Freixa, no Larousse da cozinha brasileira, quando apontam que "as influências da cozinha carioca são basicamente portuguesas e africanas"(2007, p. 105).15 Da mesma forma, Belchior e Poyares (1987)16 limitam a complexidade do assunto quando afirmam que, naquele período de tempo, a cozinha portuguesa era predominante na cidade e hegemônica na maior parte dos hotéis. Ainda, Menezes declara que "o Rio de Janeiro é o estado brasileiro que resume toda a tradição culinária portuguesa"17 e que a "gastronomia é uma química entre o espaço, os sentidos e os sentimentos. Devemos aos portugueses os segredos desta alquimia"(MENEZES, 2002, p. 559 e 578).18 Não nos resta dúvida de que tanto os aspectos da cultura lusa quanto aqueles procedentes de vários pontos do continente africano foram significativos. No entanto, nos negamos a limitar nossa análise baseados somente nessas informações, visto a considerável quantidade de indicações contidas na documentação recolhida e, consequentemente, os apontamentos a uma série de considerações que ainda não foram apuradas pela historiografia recente. Neste contexto de desenvolvimento de uma indústria do entretenimento, assim como da própria gastronomia que estava em gestação, uma série de mudanças paralelas acontecia em um ambiente gradativamente mais plural e refinado (KARLS, 2017).19
Levando em consideração essas questões, o objetivo deste estudo é identificar as produções20 comercializadas nos restaurantes21 e confeitarias da Corte no século XIX, especificamente entre 1854 e 1890, procurando apontar aspectos acerca das influências e referências culturais, assim como as suas adaptações e acomodações na alimentação desenvolvida por ambos os espaços na cidade do Rio de Janeiro. Procuramos perceber como se davam estas relações em um ambiente de amplo desenvolvimento de uma indústria do entretenimento e modernização da principal cidade brasileira.
O nosso recorte temporal se dá entre os anos de 1854, quando o Código de Posturas do Rio de Janeiro apresentou as primeiras preocupações com os alimentos produzidos e comercializados na cidade, e 1890, quando um novo código e um novo edital foram aprovados estabelecendo modificações estruturais na relação entre os estabelecimentos e a alimentação. Acreditamos, portanto, que estas novas normas publicadas em 1890 encerrariam um primeiro ciclo de funcionamento desses empreendimentos com características diferenciadas daquelas que seriam vistas dali em diante.
Para esta abordagem, utilizamos como fontes os periódicos publicados no Rio de Janeiro no período em tela, especialmente Correio Mercantil, Diário de Notícias, Diário do Rio de Janeiro, Folhinha das Flores, Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, O Globo, O Mequetrefe, O País, O Programa Avisador, Periódico Caricato, Satírico e Popular e Revista de Engenharia. Como destaca Luca (2011),22 a imprensa, assim como qualquer outra forma de documento, não é uma fonte completa e inquestionável. Em contrapartida, os jornais nos trazem aspectos sensíveis de uma época, representações de um período que são apresentadas nas páginas dos folhetins. Enfim, os periódicos são relevantes testemunhos de um tempo, trazendo aspectos do cotidiano da capital fluminense e, por conseguinte, mostrando esta relação que buscamos compreender entre os restaurantes e confeitarias com eminentes modernização e crescimento urbano que progressivamente se colocavam como destaque nacional e mundial.
Nossa intenção não é delimitar fronteiras entre as práticas dos restaurantes e das confeitarias ou mesmo rotular seus pratos a partir de determinadas convenções, mas, sim, compreender e analisar de que maneira uma série de diferentes orientações e características se organizava. Buscamos entender de que forma hábitos importados e nacionais se acomodavam e se adaptavam à realidade brasileira em uma cidade com grande trânsito de estrangeiros, gente de toda sorte, cores e sotaques. Enfim, qual a relação dos pratos, doces e alimentos dos restaurantes e confeitarias com a realidade social.
Uma peculiaridade presente em toda a nossa pesquisa, mas que, notadamente, no início do período, teve uma maior preponderância entre as ocorrências verificadas nos periódicos, foi a culinária francesa ou ao menos a referência a este país que se destacava nos restaurantes e confeitarias da Corte. É bem verdade que a França teve um forte prestígio, principalmente cultural, sobre grande parte do mundo ocidental, o que incluía a culinária no Brasil. Como já nos apontou Sandra Pesavento (2002),23 o Rio de Janeiro buscava, se espelhando na capital francesa, ser uma "Paris-sur mer na sua vertente tropical" (p. 161).24 Mesmo que os resultados, no geral, fossem um tanto distantes da "cidade luz", o prestígio que os hábitos franceses exerciam sobre a capital fluminense do século XIX é inegável.
Esse status parece se comprovar quando verificamos que vários anúncios eram publicados em francês, como uma provável tentativa de vincular o estabelecimento a um refinamento superior. É bem possível que grande parte da população não tivesse acesso a esses locais que apresentavam em seus menus uma série de pratos tradicionais franceses considerados refinados. Parece-nos claro que um restaurante que tivesse o seu cardápio totalmente francófono, como o de André Long, oferecendo como refeições "galantine de dinde à la gelée, jambons, vollailles trufées, gibier, poisson, patés de foie-gras-trufée, vols-au-vent, aspics, pièces froides",25 por exemplo, tinha como público alvo uma parcela da população um tanto selecionada. Mesmo nesse restaurante, que se identificava fortemente com a culinária francesa, pode-se notar que o comunicado incluía ao menos um item nacional: o "bolo brasileiro", mesmo assim descrito em francês como "gateaux brésiliens".26
Esses não eram casos isolados, principalmente na década de 1850. O Hotel Restaurant Des Frères Provenceaux destacou, no seu anúncio em francês, que estavam inaugurando a sua casa de alimentação com os melhores e mais procurados pratos do país, à semelhança do sistema dos irmãos Provenceaux de Paris. Sublinhava que, às sextas-feiras e sábados, oferecia "aura en plus brandade de morue bouillabaisse et ayoli",27 pratos típicos da culinária francesa.
A aproximação com a França não era uma característica única dos restaurantes. As confeitarias também mostravam grande predileção pelas receitas francas. É o caso do estabelecimento que trazia no próprio nome essa característica: a Confeitaria Francesa. Esta anunciou, em 16 de abril de 1853, no jornal O Globo,28 que diariamente oferecia pão de Paris, totalmente novo na cidade, pão de Provença e pão de Cabeça. A missiva destacava que tudo era elaborado por um padeiro francês recentemente chegado.
Outro anúncio, desta vez mais completo, foi publicado pelo mesmo comércio em 29 de março de 1854, exaltando um novo "hábil cozinheiro-pasteleiro" chegado recentemente da França que, além de preparar as já tradicionais receitas de petiscos de carnes, de aves e variado sortimento de pastéis, também era recomendado aos "amantes do bom paladar" pelas preparações pouco ou nada conhecidas na cidade:
(...) pastéis de sumos de carne, presuntos ornados à francesa, mayonaiser de frangos, mayonaiser de peixe, filét de boeuf santés, filét sauce tomates, poules a la merbuche, blanquettes de poulet, brioches, nougats, savarins, babas, croquettes de viz, pets de nones, gateaux flamas, fartelettes.29
A Confeitaria Francesa, mesmo se apresentando como uma casa de confeitos, também oferecia refeições características de restaurantes, o que pode ser indício de uma relativa convergência de serviços prestados entre os dois, em que restaurantes e confeitarias confluíam suas atividades em muitas oportunidades, ficando suas funções um tanto quanto sobrepostas. A "Francesa" mais uma vez publicou um anúncio no periódico O Globo, de 5 de julho de 1854, enaltecendo o seu confeiteiro europeu e destacando o aumento dos interessados no serviço, além de oferecer jantares e outros tipos de trabalhos ao modo europeu, como podemos verificar:
O confeiteiro francês vendo que sua freguesia vai-se aumentando nada poupou para obter de seus correspondentes da Europa produtos novos e de bom gosto: ele acaba de receber um novo sortimento de perfumes e matérias primas que lhe permitem de oferecer a seus fregueses doces, pastéis e confeitos de gostos novos e delicados. No mesmo estabelecimento há um excelente cozinheiro de Paris, que apronta, sendo encomendados, quaisquer petiscos, jantares, ceias etc., etc. O mesmo cozinheiro obriga-se a ir em casa particular preparar um jantar grande ou alguma ceia de baile com todos os usos da Europa preparando-se na confeitaria as sobremesas.30
O anúncio testemunha o quanto a introdução de hábitos europeus e franceses era frequente, principalmente no que se refere aos itens produzidos nas confeitarias, que tinham uma declarada inspiração no Velho Mundo e, por isso mesmo, a sua valorização. No entanto, também percebemos que, em alguns casos, interseções das funções inerentes aos restaurantes e confeitarias eram comuns. Existia, portanto, uma aproximação entre eles, não somente na orientação francesa, mas também nos serviços que, em diversas oportunidades, eram os mesmos, como a organização de festas sob encomenda.
Mais uma amostra pode ser dada através do Restaurant e Pastelaria Ao Chevet Brasileiro. Este estabelecimento possuía nove salões para refeições e oferecia jantares, bodas, banquetes, pastelaria, doces e refrescos "para fora". Apesar de se denominar como um restaurante e pastelaria, ele oferecia artigos característicos de confeitaria como "pastéis variados, voul-au-vent de pombas, de galinha, de caça, de camarão e peixe, pastéis quentes e frios de toda espécie, petit fours nougats, biscoitos, peças montadas, brioches sacarins", além de funcionar como armazém de comestíveis,31 o que ratifica nossa constatação anterior.
A referência à França continuou sendo uma constante. A Confeitaria Braço de Ouro, pertencente à viúva Castagner, é um exemplo. Ao anunciar brioches parisienses, fez questão de informar que A. Castagner, filho da viúva, retornou de uma viagem a Paris, onde "aprendeu e pode hoje oferecer aos seus clientes o que há de mais saboroso e melhor nesse gênero".32
Da França, além das receitas, também chegavam equipamentos para as confeitarias fluminenses. Uma máquina "inteiramente desconhecida neste país" desembarcava de Paris para a Confeitaria da Águia. Sua função era a fabricação de amêndoas cobertas e confeitos de todas as qualidades. Segundo o anúncio, a fábrica poderia, agora, rivalizar com as melhores da Europa.33 Também na Confeitaria Francesa, uma máquina da mesma procedência era anunciada e prometia dar à iguaria "uma qualidade e uma delicadeza superior a tudo o que tem aparecido até hoje". O comercial destacava que o equipamento era empregado na França para a fabricação de chocolates de qualidade superior e de altos preços, porém a facilidade de se encontrar o cacau no Brasil fazia com que se fabricasse um ótimo chocolate com preços bem mais em conta que na Europa.34
É interessante perceber a insistência que muitos estabelecimentos tinham em mencionar uma vinculação à cozinha francesa, mesmo que esta não fosse a principal linha de atuação do restaurante ou confeitaria. Como já apontamos anteriormente, essa característica poderia ser um indicador da proximidade desses espaços com o mundo civilizado e evoluído e a sua principal referência, a França.
É o que podemos constatar no anúncio acima do Restaurant Popular que, apesar de uma denominação que pode referenciá-lo a um local um tanto comum, apontava uma tentativa de aproximação a um ambiente refinado. A imagem, pouco usual para a maioria dos comunicados da época, representava um homem bem vestido como cliente, com elegantes trajes e cartola - claramente a reprodução de um burguês. Em uma mesa retangular individual, ele se alimentava, tendo, a sua frente, uma garrafa de vinho e, ao seu lado esquerdo, um suporte com temperos. À direita do cliente, um garçom com mais dois pratos à mão que, provavelmente, representavam o(s) prato(s) principal(is) e/ou a sobremesa.
As opções do menu, totalmente escrito em francês, mais uma vez procuravam manter o vínculo com a culinária francesa, mesmo que alguns pratos tivessem outras referências culturais, como o ravioli à la Genoise, claramente um prato típico italiano, e a salade russe, muito famosa na cozinha russa, mesmo sendo lançada por um celebrado chef francês no renomado restaurante Ermitage de Moscou, em 1860 (FOLHA DE SÃO PAULO, 2005).35 Ainda, o reclame ressaltou que "todos os pratos são cuidadosamente preparados por um dos mais acreditados chefs de cuisine desta capital", mais uma vez a referência francesa que buscava atestar a qualidade e refinamento ao empreendimento.36
Como pudemos notar, a aproximação com a França era frequente, mas não era a única. Os restaurantes e confeitarias da capital recorriam às mais diversas especialidades e orientações para atrair o seu público. Outra referência culinária reconhecida mundialmente também tinha seus representantes e era bem expressiva: a italiana. As pastas eram o principal alvo dos anúncios, destacadamente raviólis (também chamado de rabiolis) e talharins. Já em 1851, o Hotel e Restaurant Nicolao oferecia o "famoso rabioli".37 Até mesmo em francês, o prato era divulgado pelo mesmo estabelecimento: "Nicolas prévient ses habitués que demain dimanche on trouvera chez lui la fameuse rabiole".38
Esses pratos, aparentemente, tinham uma aceitação positiva, visto que eram constantemente mencionados em anúncios de diferentes empreendimentos comerciais, como o Grande Café Restaurante e Bilhares, que oferecia "sopa de rabioli e talharim à italiana".39 O Hotel Garibaldi destacava que o seu restaurante servia, como especialidade, "sopa de tagliaris e rabiolis e variadas iguarias".40 Ainda, o Café du Jardin Public destacava, juntamente com pratos reconhecidamente franceses, as especialidades italianas: "on trouvera tous les vendredis et dimanches - ayolis, bouillabaisse, ravióli et taillarini".41 Por meio desses exemplos, é possível verificar que as massas italianas transitavam em diversificados modelos de restaurantes do Império, desde aqueles situados no interior de hotéis, passando por estabelecimentos de alimentação e diversão com bilhares e cafés. Dividindo espaço com os pratos franceses, a culinária italiana tinha uma considerável aceitação. Identificamos até mesmo uma confeitaria comercializando massas italianas. A Confeitaria ao Quinze de Novembro fornecia massa fresca de farinha de trigo à moda de Genova, entre as quais: ravióli, tag olini, lasanha e gnocchi.42
Apesar de o Rio de Janeiro ter, à época, uma quantidade considerável de moradores portugueses e de ser esta a colonização oficial do país, não podemos afirmar, ao menos pelos anúncios dos periódicos, que foi de origem lusitana a culinária predominante da época. Apesar de não termos um número exato, é visível que a quantidade de ocorrências citando restaurantes e confeitarias que tinham como referência Portugal é bem inferior as já citadas francesas e italianas. Este dado não nos induz a dizer, todavia, que essas casas comerciais existiam em número menor. Podemos apenas confirmar que, nos anúncios dos periódicos, essas não possuíam uma quantidade que as apontasse como predominante. É possível que o status dessas casas não estivesse no mesmo nível dos restaurantes e confeitarias francesas ou que essas atendessem um público diferenciado que não tinha a sua fonte privilegiada de consulta nos jornais. Também é uma possibilidade supor que a culinária portuguesa fosse a alimentação do cotidiano da população menos endinheirada da cidade e fizesse parte de estabelecimentos mais populares. No entanto, ficamos apenas no campo das suposições para essas questões. O fato é que locais dessa referência não eram comuns nos anúncios dos periódicos. De toda forma, alguns indícios foram encontrados acerca da culinária portuguesa.
Mesmo muitas vezes dissolvida em restaurantes de especialidades diversas, os alimentos de inspiração portuguesa podem ser percebidos. O restaurante denominado Pension Bourgeoise destacava que servia "ceia à portuguesa", sem identificar os pratos específicos. Ao mesmo tempo, informava que ofertava "jantar parisiense", "rabioli e tagliarini".43 O Restaurante Feliz Acaso identificava, no seu anúncio, pratos ligados à culinária lusa, como "sarrabulhada à portuguesa e bife à portuguesa".44 Podemos notar, também, que o Restaurante Ypiranga oferecia, no seu menu "papas à portuguesa, bacalhau e vinho verde d'Amarante".45 No Resturante Lisbonense, a promessa era de servir, nas quartas-feiras e sábados, "belas tripas à moda do Porto"; nas quintas-feiras e domingos, "feijoada completa" e canja de galinha, todos os dias.46 A canja de galinha foi um prato muito apreciado pelo imperador d. Pedro II que a tinha presente em seu cardápio diário e também o hábito de consumi-la nos intervalos teatrais (CASCUDO, 2004; BELLUZZO, 2010).47 É o mesmo caso de um restaurante situado à rua Sete de Setembro que, ao mesmo tempo em que comercializava pratos identificados com Portugal como "buchas do Alto Minho", "carapuças de Braga" ou "granadas do Alentejo",48 também incluía nos seus comerciais preparados de alguma maneira um tanto exóticos e miscigenados, pelo menos no nome, como o "russinho à baiana".49
Quando perscrutamos acerca dos alimentos produzidos nas confeitarias da cidade fluminense, notamos uma ligação mais efetiva com Portugal do que pudemos verificar com os restaurantes. Essa afirmação se constata, principalmente, a partir da grande quantidade de anúncios que ofereciam empadas e pastéis, artigos de grande popularidade no país europeu. Pelo que podemos perceber por meio da bibliografia, esses preparados já faziam parte do cardápio português e acreditamos que foram trazidos por eles para o Brasil. Escassos registros do século XVI apontam que os portugueses endinheirados consumiam, para a época, uma grande quantidade de alimentos. No seu cardápio diário constavam "ovos mexidos, pastéis de forno recheados de carne, frango ou pombo; empadões de pombo ou de codornas", apontou Menezes (2002, p. 560).50Renault (1978) também sinalizou que "nossa imaginação nos permite ver sobre a mesa os pudins51 trabalhados e as empadas saborosas resultado de um artesanato originário de Portugal e aperfeiçoado pela preta escrava"(p. 88).52
A variedade desses era grande. No caso das empadas, as mais comuns eram de galinha, de palmito e camarão, as quais possuíam grande divulgação em todo o período pesquisado.53 Já os pastéis mais tradicionais eram os de ovos e nata, de carne,54 além dos conhecidos pastéis de "Santa Clara".55 Os anúncios dessas iguarias eram os mais diversos, presentes em praticamente todas as confeitarias. É possível identificar que não existia uma referência determinante para o que era servido nas confeitarias. Até mesmo a Confeitaria e Pastelaria Francesa destacava que "fez vir um oficial das primeiras casas de Paris tanto para pastelaria como para confeitaria",56 evidenciando que esses não estavam ligados a uma origem étnica, mas, sim, se caracterizaram justamente por não ter uma identificação ou por ser um emaranhado delas.
De fato, o que se pode perceber, principalmente na década final do Império, é que uma culinária praticada na capital da Corte começava a criar laços com as questões nacionais e se identificar com o Brasil. Num primeiro momento, não podemos declarar que se trata de uma afirmação nacionalista, mas, aparentemente, que nos remete à criação de hábitos que ficaram reconhecidos enquanto questões regionais brasileiras, fruto de uma formação extremamente fragmentada, como é a do Brasil e, em especial, de sua capital na época.
Nas fontes pesquisadas, notamos que uma primeira referência a um prato "à moda brasileira" se deu no ano de 1880, quando o Restaurant Comercial ofereceu "leitão recheado à brasileira". Essa constatação pode nos ajudar a afirmar que características que estavam relacionados aos hábitos culinários no Brasil identificavam, neste período, uma maneira peculiar de cozinhar, praticada ao menos no Rio de Janeiro e que foi rotulada como brasileira.57 Infelizmente, não temos mais detalhes sobre a preparação desse prato para que pudéssemos analisar mais minuciosamente a afirmação.
É marcante que, paralelamente a uma ascendente identificação nacional da culinária oferecida na cidade, aspectos regionais brasileiros também começaram a ser divulgados a partir da década de 1880. Um dos casos é o do Restaurante Baiano, o qual anunciou na Gazeta da Tarde, de 9 de novembro de 1881, que "se acha funcionando com muita regularidade desde o dia 05 do corrente".58 No anúncio, não percebemos nenhum prato específico, mas é provável que o nome estivesse fazendo menção ao tipo de culinária servida no estabelecimento. Esse fato pode ser comprovado em 30 de novembro de 1881, no mesmo jornal que divulgou "Mocotó, nos domingos; Vatapá, nas terças e sábados; Feijoada, nas quintas; e Caruru, às segundas e sextas-feiras"59. O mocotó, o vatapá e o caruru60 são considerados pratos típicos da culinária baiana.
Todavia, existiam locais que faziam questão de mencionar as características regionais em suas cozinhas. O Restaurante Estellita recorrentemente apresentava os seus pratos tradicionais, fator diferencial segundo eles: "pela primeira vez a boa e suculenta Moqueca. Assim, cheguem, baianinhos, que as boas petisqueiras à moda de lá só aqui no Restaurante Estellita que se encontram".61 Também o vatapá era destacado em outro anúncio, além de enfatizar que na sua cozinha havia "o que há de bom, bem feito e picante" e valorizar a qualidade dos seus produtos, anunciando "todos os dias uma iguaria à baiana de X. P. T. O., isto é, de comer, chorar e pedir mais".62 A grande variedade de especialidades regionais do Estellita continuava a ser manifestada, como o "apetitoso angu bem picante" e a "rabada à baiana".63 O Restaurante Castellar também promovia o seu mocotó, que, de acordo com o comercial, era "como se faz na Bahia".64
Wätzold (2012)65 destacou que os diversos movimentos migratórios ocorridos no Brasil têm suas raízes no significado da alimentação para a identidade cultural de um povo e explica que "a colonização, da mesma forma, deve ser entendida como migração, como a introdução de escravos como migração forçada e as ondas migratórias caracteristicamente europeias no século XIX e XX"(p. 92).66 Ainda aponta que a migração interna, principalmente pelas diferenças regionais, também desempenhou um papel importante, como, por exemplo, os imigrantes do Nordeste que vieram para a capital do Império e mantiveram a sua cultura regional. Conseguimos visualizar esses aspectos nas fontes que foram e serão apresentadas a seguir. Esses imigrantes contribuíram também para o desenvolvimento de uma culinária local a partir de diversas regionalidades que se fundiam na cidade mais importante do Brasil.
Mesmo que de forma mais tímida, foi possível perceber a aproximação das confeitarias com a culinária regional brasileira antes mesmo dos restaurantes, já na década de 60 do século XIX. Em 1860, a Confeitaria do Leão anunciava "bolos de São João à moda de Pernambuco".67 É interessante perceber que as comidas de milho, tradicionais do Nordeste, tinham uma vinculação muito forte com a cidade do Rio de Janeiro, principalmente nas festividades religiosas (LODY, 2002).68 As celebrações de São João fazem parte do calendário português e foram trazidas por eles para o país. O milho é um dos alimentos mais apreciados nessas festas, o que nos faz acreditar que os bolos de São João vendidos nas confeitarias se tratavam, na verdade, de bolos de milho. De qualquer forma, constatamos que esta aproximação aos "temperos" regionais brasileiros foi um processo que envolveu tanto os restaurantes quanto as confeitarias, não somente em relação aos pratos produzidos, mas também nos artigos alimentícios comercializados.
Foi possível perceber, com notoriedade, um prato que se apresentava em vários tipos de restaurantes e, pela sua recorrência nos anúncios, é permitido afirmar que era uma das receitas mais praticadas: a feijoada. Em que pesem as inúmeras versões e discussões acerca da sua origem, o que nos interessa aqui é entender como esse prato se inseria nos restaurantes do período investigado.
Câmara Cascudo (2004) destacou, em seu livro História da alimentação no Brasil, que a feijoada é o prato mais gloriosamente nacional do país e que este é "(...) um modelo aculturativo do cozido português com o feijão e carne seca iniciais" (p. 242).69 O autor ainda apontou que o porco e seu consumo no Brasil foram inseridos pelos portugueses.
Para Freixa e Chaves (2009),70 é comum ler e ouvir falar que a feijoada era comida dos escravos e que teve sua origem na senzala. No entanto, as autoras salientam que a comida de escravos era pobre em nutrientes e que os europeus apreciavam e valorizavam partes do porco como orelha, rabo, língua, pé e miúdos, ou seja, itens presentes em uma feijoada. Elas afirmaram que "quando e onde se fez pela primeira vez a feijoada completa é fato desconhecido. Mas recortes de jornais da época mostram que o prato apareceu entre o final do século XIX e começo do século XX no Rio de Janeiro" (p. 218).71
Refutamos as indicações das autoras, pois temos evidências da feijoada presente em uma barraca na festa de Nossa Senhora do Socorro, na igreja de São Cristóvão, destacado pelo periódico: "uma barraca, na qual, se achará bons petiscos, entre eles boa feijoada (...)".72 Neste mesmo sentido, também havia uma casa de pasto na década de 1840 que já servia o prato.
É interessante verificar que, já na primeira metade do século, uma casa de pastos que anunciava a sua abertura colocava a feijoada como destaque entre outros pratos.73 Esse pode ser um indício de um conhecimento e gosto pela iguaria, já que estava fazendo parte do menu de um local de alimentação que estava inaugurando e procurava divulgar seus principais produtos, objetivando atrair o público. Em um banquete preparado para a futura eleição do sr. Anselmo, o mesmo ordenou que "em lugar de Haricots verts sautes, façamos a costumada panelada de feijão, conhecida pelo nome popular de feijoada com cabeça de porco, mocotó e entrecosto salpresado. Isto é nacional e democrático: deixemos de francezias".74
Já inserido no nosso recorte e objeto, o primeiro anúncio de uma feijoada a que tivemos acesso em um restaurante se deu no ano de 1862. O Restaurant Estrela do Rio anunciava "uma bela feijoada todas as quintas-feiras, para que tem um bom cozinheiro italiano".75 É possível, através de indícios, inferir que esse era um prato que não deixou de ser ofertado e de ter uma considerável predileção popular. Percebemos que essa era uma prática usual, já que o comunicado do Restaurant do Thesouro destacava que "às quartas-feiras continuará a haver a saborosa feijoada preparada com todos os seus pertences". Outro indício de que o prato já era um preparo consagrado é que, na mesma página do periódico, o Hotel do Triumpho exaltava: "hoje a afamada feijoada".76 Constatamos, com considerável convicção, que a feijoada já estava no círculo do comércio de alimentos no Rio, mesmo que não possamos identificar mais claramente a data da sua inclusão nos restaurantes.
Outra verificação é que o prato circulava livremente por inúmeros tipos de restaurantes, independentemente das suas vinculações culinárias. O Restaurante Estellita, apontado como tradicional e que anunciava pratos baianos, também não deixava de oferecer feijoada completa aos seus clientes.77 O Restaurante Baiano, em meio ao seu reclame que noticiava "comida baiana de qualquer qualidade", destinava as maiores letras à divulgação de "angu78 e feijoada completa"79. Da mesma forma, o Restaurante Rivas exaltava o seu chef "Panqueca, bem conhecido nas principais cozinhas desta corte", ao mesmo tempo em que divulgava, em letras garrafais, "suculenta feijoada".80 Até mesmo o Restaurante Lisbonense, em meio a sua divulgação de "tripas à moda do Porto" ou "canja de galinha", também deixava em destaque a "feijoada completa".81
Esses exemplos ratificam nossa afirmação de que a feijoada circulava por diversos perfis de restaurantes, assim como era elaborada por distintos cozinheiros. É impossível quantificar, mas é plausível identificar que esse era um prato que tinha uma aceitação relevante, não verificável em apenas uma camada social ou mesmo em um perfil de clientes. Pelos indícios dos restaurantes em que ela foi encontrada, percebe-se que a feijoada serpenteava entre diversos estabelecimentos que tinham como foco distintos tipos de clientes. O tradicional prato passava pela cozinha regional brasileira, pelo chef reconhecido, assim como pelo mesmo restaurante que elaborava especialidades europeias.
Por outro lado, também tivemos pelo menos duas oportunidades em que nos deparamos com feijoada sendo comercializada em confeitarias. Ficou claro que o local privilegiado do seu preparo e consumo em espaços públicos eram os restaurantes. No entanto, em 1860, percebemos a confeitaria da viúva Castagner que oferecia não só empadas, tortas, pudins e pratos sob encomenda, como peixes assados e a feijoada.82 Em 1865, a Confeitaria Braço de Ouro também ofertava feijoada em conserva, entre outros pratos, especialmente àqueles que estavam de partida para a Europa e que desejassem levar alguma lembrança do Brasil.83 Não nos cabe levantar essa discussão aqui neste momento, mas é interessante constatar que a feijoada estava se tornando um prato referência da culinária brasileira.84
Outros pratos muito populares nos restaurantes do período oitocentista foram aqueles à base de tartaruga, principalmente sopas, fillets e fricassés. É possível que a inspiração para estes preparos fosse europeia, já que alimentos à base desse animal já existiam e eram comuns no Velho Continente. No entanto, não podemos descartar o gosto pelos pratos com tartaruga tradicionais do norte brasileiro que poderiam influenciar o que se fazia na Corte. De acordo com a Coleção Cozinha Regional Brasileira (ABRIL COLEÇÕES, 2009),85 na região Norte, a sopa de tartaruga é considerada um prato típico exótico que tem se tornado cada vez mais raro devido ao seu caráter predatório: "a tartaruga, hoje, é criada em cativeiro, e seu consumo voltou aos hábitos alimentares amazônicos" (p. 22).86 Todavia, não se pode desprezar que existisse uma terceira via, em que a culinária europeia teria influenciado fortemente os hábitos locais, mas não sem adquirir traços próprios que seriam características da capital.
A exemplo do que acontecia com a feijoada, os pratos à base de tartaruga também circulavam por distintos restaurantes e, pela regularidade de anúncios visualizados, tinham uma aceitação bastante positiva. As iniciais manifestações nos trazem a iguaria servida por estabelecimentos aparentemente refinados que tinham um preço acima da média87 e que faziam questão de colocar o preparado como destaque nos seus comerciais. O primeiro anúncio verificado foi feito no ano de 1857 e destacava vários pratos e técnicas com a utilização da tartaruga como ingrediente principal, como sopa, bife e fricandó, no restaurante do Hotel des Fréres Provençaux.88 No ano de 1877, a Gazeta de Notícias valorizava a sopa de tartaruga no Restaurant Rocher de Cancale, ao valor de dois mil réis.89 No mesmo ano, o Restaurant de Grand Hotel des Princes servia sopa e fillet de tartaruga ao preço de dois mil e quinhentos réis.90 Somente a título de uma rápida comparação, o Restaurant Democrata anunciava sopa de tartaruga ao preço de quatrocentos réis no almoço ou jantar.91 Também existiam alternativas intermediárias, como o Restaurant Francês, que divulgava sopa e filé de tartaruga ao preço de seiscentos réis.92 De fato, preços bem mais razoáveis que os anteriormente mencionados, mas com o mesmo prato anunciado, o que nos induz a constatar que a iguaria era apreciada por pessoas de diferentes poderes aquisitivos.
É interessante mencionar que o ingrediente principal para os pratos, ou seja, a própria tartaruga, se obtinha através de extração local como comprova o anúncio publicado em setembro de 1886: "tendo aparecido há dias um grande número de tartarugas na nossa baia, o proprietário do Restaurante do Melo convida os amadores a virem segunda-feira, 6 de setembro, saborear uma excelente sopa e um bom fricandó de tartaruga".93 No caso dos pratos à base de tartaruga, não encontramos nenhuma referência que ligasse sua produção às confeitarias. O Mequetrefe, de 10 de janeiro de 1878, destacou o Rio de Janeiro como a "cidade da feijoada e da sopa de tartaruga",94 pratos bem disseminados durante o período pesquisado, como concordamos, visto o grande destaque desses na imprensa local.
Com efeito, mesmo com prestígio diferenciado no que se refere à importância no métier dos estabelecimentos, estava o sorvete, visto como um produto comum aos restaurantes e confeitarias da época. Na Corte, a fabricação do sorvete estava ligada diretamente à importação de gelo do norte do continente americano que era comercializado geralmente nas confeitarias da cidade. Uma pequena crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro, em 5 de novembro de 1853, bem demonstrou a importância da importação desse gênero, essencial no verão fluminense: "A estação torna-se calmosa, que do mês de novembro em diante o Rio de Janeiro sempre assim foi, e o gelo nos falta desta vez. Se não aparecer nenhum navio dos Estados Unidos com este gênero de regalo e de necessidade, mal irão no presente ano os bailes, soirées e reuniões".95 A publicação ainda declarou que o gelo artificial tinha um custo muito alto, não acessível a qualquer um. Um sorvete com gelo fabricado seria praticamente inviável, ao passo que a solução seria enfrentar o calor, dizia o artigo.
No entanto, nos anos de 1863 e 1864, tivemos acesso a comunicados de venda de sorvete feitos em uma máquina que também fabricava o gelo.96 "Máquinas para fazer gelo e sorvete em poucos minutos", diziam os anúncios. A engenhoca estava em exposição nas confeitarias de João Gonçalves Guimarães, nas ruas do Ouvidor e Direita e, todos os dias, ao meio dia em ponto, elas fabricavam sorvete em frente ao público.97
A importação do gelo para a fabricação dos sorvetes era, em muitas oportunidades, um problema. Além de ser uma atividade cara, que envolvia a necessidade de grandes volumes para armazenamento e tempo para transportar, já que vinha via transporte marítimo do norte dos Estados Unidos, também era uma ação que envolvia um relativo risco e que ameaçava o fornecimento do gênero para o Rio de Janeiro.
Foi possível apontar um desses casos, relatado no periódico Correio Mercantil, em 22 de novembro de 1853. Em um anúncio, Antonio Francioni, que se intitulava como o sorveteiro de suas majestades imperiais, proprietário da confeitaria situada à rua Direita n. 9 (atual rua Primeiro de Março), informou que sofreu um substancial prejuízo, visto ter o seu navio, que servia de depósito de gelo, sofrido avarias, tendo três cargas do produto no seu interior se extraviado. Explica, portanto, que a falta de gelo dos últimos dias se deveu a esse transtorno. Por esse motivo, o comerciante adquiriu uma nova embarcação e afirmou que, brevemente, o fornecimento seria regularizado com a chegada de várias cargas de uma das matérias primas do sorvete. Ao mesmo tempo em que fez uma convocação a população para que consumisse os seus produtos, sinalizou firmemente: "de hoje em diante haverá sempre sorvetes na mesma casa".98
De fato, é possível perceber pelos anúncios das confeitarias e dos restaurantes que o sorvete era um item com uma considerável demanda. Inúmeros estabelecimentos destacavam nos seus reclames o produto enquanto um gênero comercializado. O próprio Antonio Francioni, sempre se intitulando como sorveteiro de suas majestades imperiais, anunciava uma série de serviços que sua confeitaria prestava já no ano de 1850. Além dos atendimentos possíveis realizados por sua empresa, como fornecer artigos para festas e bailes como alimentos e pratarias, faria um desconto de 20% no preço dos sorvetes caso o cliente contratasse o pacote completo.99 A confeitaria do sr. Francioni aparentemente era um espaço dirigido às mais altas classes da Corte e tinha no sorvete um dos seus principais produtos. Conjuntamente com os anúncios dos demais da capital fluminense, é possível inferir que, em 1850, o consumo da iguaria já estava consolidado.
No entanto, pudemos verificar os mais diversos comunicados de venda de sorvete durante todo o período investigado. Em 1851, a Confeitaria Castelões já recebia encomendas de gelo e sorvete.100 assim como, em 1871, havia um estabelecimento denominado Confeitaria, Café e Sorveteria que, além de anunciar vários confeitos, dava destaque aos "sorvetes a toda a hora".101
Merece ênfase, o fato de os restaurantes também adotarem o sorvete como um alimento diferenciado. É possível constatarmos que o alimento era preparado no interior desses, assim como nas confeitarias, já que não existiam produtos industrializados do gênero. O Restaurant Bons-Amigos, em 1853, relatava que, após as sete horas da noite, servia belos sorvetes,102 assim como o restaurante situado à rua do Ouvidor n. 107 valorizava o seu cardápio, em que declarava que "o dono tem para oferecer tudo quanto pode desejar um paladar delicado, quer de bebidas, quer de comidas, sem exceção do sorvete e coisas geladas".103 Esses anúncios eram cotidianos tanto no período imperial quanto nas proximidades do século XX, como comprova, em 1890, o comercial do Hotel e Restaurant Riachuelo que, entre outros detalhes, comunicava que todos os dias havia frutas e sorvetes naquele local.104
Os restaurantes e confeitarias da capital brasileira no período oitocentista não podem ser rotulados nem simplificados. Uma heterogênea conjuntura permitiu que esses locais de alimentação se desenvolvessem e assimilassem diferenças e especificidades de um Brasil miscigenado. A capital fluminense, enquanto principal cidade do país, era o espaço de convergência de sotaques e gostos que faziam a culinária local e ajudavam a conceber a cozinha brasileira a partir justamente dessa complexidade.
Da mesma forma como a cidade do Rio de Janeiro se apresentava como um emaranhado de sotaques e origens, assim eram os seus restaurantes e suas confeitarias. Adaptados a uma realidade diferente da europeia no que se refere tanto aos ingredientes necessários ao preparo dos pratos como ao público consumidor, estes ambientes se adequaram. As receitas e técnicas advindas do velho mundo, na capital brasileira, ganharam novas cores e dividiram espaço com as mais diversificadas cozinhas.
A culinária chamada de brasileira acabou surgindo neste ambiente onde o refinado prato francês se misturava com o sabor italiano ou português e assimilava ingredientes nordestinos, por exemplo. O Rio de Janeiro era, por assim dizer, a tradução da diversidade cultural nacional. A cozinha, por sua vez, concatenava tudo isso: era mestiça, rica, diversa e única ao seu modo.
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