Resumo: O artigo analisa as pesquisas científicas realizadas no Instituto Agronômico do Norte (IAN), instituição criada pela política desenvolvimentista do governo brasileiro para a utilização agrícola da Amazônia nas décadas de 1940 e 1950. Discutimos especialmente as pesquisas relacionadas à chamada “teoria do ecossistema florestal”, desenvolvida pelo limnologista alemão Harald Sioli na instituição. A teoria orientou a agenda de pesquisa do IAN naquelas décadas: policultura, construção de canais de colmatagem no rio Amazonas, aproveitamento de áreas de várzea para a produção de alimentos, e o desenvolvimento da bubalinocultura nas terras firmes da região. O IAN projetava a Amazônia como celeiro do mundo e solução para a fome planetária. O principal instrumento dessa transformação seria o conhecimento de sua ecologia.
Palavras-chave:AmazôniaAmazônia,ecologiaecologia,Instituto Agronômico do NorteInstituto Agronômico do Norte,Harald Sioli - agronomiaHarald Sioli - agronomia.
Abstract: This article addresses scientific research conducted at the Agronomic Institute of the North (IAN), an institution created under the Brazilian government’s developmentalist policy to promote the agricultural use of the Amazon in the 1940s and 1950s. We place special emphasis on the research related to the so-called “forest ecosystem theory”, developed at the institute by the German limnologist Harald Sioli, which guided the following institutional research agenda during those decades: polyculture, the excavation of siltation channels along the Amazon river, the cultivation of food crops, and the buffalo ranching. The IAN projected the Amazon to be the breadbasket of the world and a solution to world hunger. The main instrument of this transformation would be the knowledge of its ecology.
Keywords: The Amazon, ecology, the Agronomic Institute of the North, Harald Sioli, agronomy.
ARTIGO
AMAZÔNIA BRASILEIRA, CELEIRO DO MUNDO: CIÊNCIA, AGRICULTURA E ECOLOGIA NO INSTITUTO AGRONÔMICO DO NORTE NOS ANOS 1940 E 1950*
BRAZILIAN AMAZON, THE BREADBASKET OF THE WORLD: SCIENCE, AGRICULTURE AND ECOLOGY AT THE AGRONOMIC INSTITUTE OF THE NORTH IN THE 1940s AND 1950s
Recepção: 25 Abril 2018
Aprovação: 26 Novembro 2018
Este artigo discute as pesquisas científicas realizadas no Instituto Agronômico do Norte (IAN), em Belém do Pará, instituição criada pela política desenvolvimentista do governo brasileiro para a utilização agrícola da Amazônia nas décadas de 1940 e 1950.
Com este trabalho, dialogamos com perspectivas analíticas recentes sobre a história do desenvolvimento. Tradicionalmente, os programas de desenvolvimento que vigoraram dos anos 1930 aos anos 1970 foram objeto de estudo em pesquisas sobre diplomacia internacional, conflitos militares e tensões políticas entre Estados Unidos da América (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Nos últimos anos, bibliografia ampla tem examinado a ação global das agências multilaterais envolvidas em disputas geopolíticas, assim como o caráter internacionalizante e reformista do desenvolvimento enquanto programa de fomento ao crescimento econômico, à reforma da agricultura e à promoção da saúde pública. Outra linha de investigação, conhecida como antropologia do desenvolvimento, busca compreender, explorando diferentes contextos nacionais, apropriações culturais e aplicações locais de padrões desenvolvimentistas globais.1
Essa agenda de pesquisa dialoga com os trabalhos de Eric Carter sobre os usos do pensamento ecológico em projetos desenvolvimentistas, sobretudo em programas de controle da malária nos EUA e na Argentina no século XX. Nesses trabalhos, Carter aborda as formas pelas quais enunciados de pretensão universalista, como foram os do desenvolvimentismo, articularam-se às circunstâncias locais pelo próprio estatuto da abordagem ecológica, calcada na observação de interações específicas entre fatores bióticos e abióticos do ecossistema. O autor analisa trabalhos de pesquisa de cunho ecológico levados a cabo por séries de profissionais de diferentes áreas, como geógrafos, agrônomos, economistas e médicos, em inventários espaciais detalhados para manejo de ambientes e administração total de paisagens regionais em obras para a construção de barragens. A incorporação da ecologia, nas experiências históricas abordadas por Carter, visava à planificação completa para uso eficiente de recursos naturais (CARTER, 2007, p. 619-650; 2014, p. 111-127).
Há muitas similaridades entre os estudos de caso analisados por Carter e o exemplo brasileiro representado pelo IAN, foco de nossa análise neste artigo: problemas regionais também foram enquadrados em perspectiva ecológica na Amazônia dos anos 1940 e 1950.
Neste trabalho, discutiremos especialmente as pesquisas relacionadas à chamada “teoria do ecossistema florestal”, desenvolvida pelo limnologista alemão Harald Sioli na instituição. A teoria orientou a agenda de pesquisa institucional naquelas décadas: policultura, construção de canais de colmatagem no rio Amazonas, aproveitamento de áreas de várzea para a produção de alimentos, como arroz, milho, feijão e mandioca, e o desenvolvimento da bubalinocultura nas terras firmes da região. O IAN projetava a Amazônia como celeiro do mundo e solução para a fome planetária. O principal instrumento dessa transformação seria o conhecimento de sua ecologia, como um mecanismo para o desenvolvimento regional.
Os estudos críticos do desenvolvimento geralmente acusam sua tendência de privilegiar os modelos ocidentais em detrimento de especificidades locais e de defender uma abordagem niveladora, etapista e teleológica, extremamente confiante nas pretensas realizações da tecnociência. Apenas recentemente vêm explorando as repercussões e aplicações locais dos projetos inspirados pelo desenvolvimentismo. Ao abordar o caso brasileiro tendo o IAN como objeto de estudo, buscamos contribuir com essa perspectiva.
Obras de modernização com uso de alta tecnologia balizaram projetos político-econômicos em escala global entre as décadas de 1930 e 1970. Esses projetos tinham relação com a ideia de desenvolvimento, que significava, na ocasião, o caminho que a humanidade deveria trilhar, depois das crises econômicas perpetradas pela Primeira Grande Guerra e pela crise de 1929, rumo a conquistas que caracterizariam as sociedades ‘avançadas’: industrialização, urbanização, modernização da agricultura, aumento da oferta de serviços sociais, altos padrões de produtividade material e elevados níveis de qualidade de vida e saúde (COOPER; PACKARD, 2005; LLEYS, 2005). A adoção e promoção desses projetos, especialmente no pós-Segunda Guerra, figuraram como condições indispensáveis para vencer o “subdesenvolvimento”, cujas principais marcas seriam atraso econômico, crescimento populacional, desindustrialização, doenças, analfabetismo, desnutrição, fome, pobreza e prevalência de práticas agrícolas extrativistas (STAPLES, 2006).
Programas e agências regionais, nacionais e internacionais foram, então, criados naquelas décadas para a viabilização desses projetos que envolveram disputas geopolíticas, especialmente para a promoção da influência, econômica e cultural sobre a América Latina e a Europa, da principal potência industrial então existente: os EUA (STAPLES, 2006). Aparatos estatais e internacionais tinham a finalidade de induzir, financiar e planejar os rumos da modernização em diferentes países. Envolveram a criação de programas econômicos nacionais de desenvolvimento, como o New Deal nos EUA (1933); de agências multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) (1945), a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) (1945) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) (1948); e de programas bilaterais, como o Ponto IV, de cooperação técnica internacional entre os Estados Unidos e os países latino-americanos proposto pelo presidente Harry Truman em janeiro de 1949.
A ampla historiografia especializada chama essas décadas de a “Era do Desenvolvimento” (ANDRADE, 2012). Em escala mundial, apregoava-se a industrialização, o combate à pobreza e a erradicação de doenças, e, no Brasil, a formação de um capitalismo moderno a partir de rígido planejamento da economia pelo Estado, seu principal agente propulsionador e interventor.
Importantes projetos e planos estatais foram implementados nesse período visando dar fôlego à expansão industrial e agrícola no Brasil: Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Conselho Nacional do Café, Instituto do Cacau, Ministério da Educação e Saúde Pública, Departamento Nacional do Café, Instituto do Açúcar e do Álcool, Conselho Federal do Comércio Exterior, Código de Minas, Código de Águas, Plano Geral de Viação Nacional, Instituto de Biologia Animal, Conselho Nacional de Geografia, Departamento Administrativo do Serviço Público, Instituto Nacional do Mate, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Plano de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa, Comissão de Defesa da Economia Nacional, Instituto Nacional do Sal, Companhia Siderúrgica Nacional, Companhia Vale do Rio Doce, Instituto Nacional do Pinho, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, Coordenação da Mobilização Econômica, Fundação Brasil Central, Usina Siderúrgica de Volta Redonda, Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, Consolidação das Leis do Trabalho, Serviço Social da Indústria, Plano de Obras e Equipamentos, Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, Serviço de Expansão do Trigo e Superintendência de Moeda e Crédito (FERREIRA; DELGADO, 2003).
Além da criação de agências estatais para a planificação da economia, duas outras diretrizes gerais podem ser depreendidas da política econômica do Estado brasileiro nessas décadas, ou do que Bielschowsky denominou de ciclo ideológico do desenvolvimentismo (BIELSCHOWSKY, 1988). A primeira delas, o primado da ocupação e aproveitamento econômico das fronteiras geográficas do Centro-Oeste e da Amazônia, tidas como “vazios demográficos” e áreas atrasadas. A segunda diretriz era a convicção de que seria necessário promover o desenvolvimento da ciência nacional e da tecnologia, pois viabilizariam o crescimento do país. Desse modo, o período conheceu grande investimento em ciência, tecnologia e inovação (CT&I) e fomentou centros de pesquisa agrícola, que eram concebidos como molas propulsoras para o desenvolvimento econômico.
Uma das maiores expressões dos planos de desenvolvimento para a agricultura brasileira do período foi o Decreto-Lei nº 982, de 23 de dezembro de 1938, que criou novos órgãos no Ministério da Agricultura, com protagonismo para o Centro Nacional de Ensino e Pesquisas Agronômicas (CNEPA), cujas funções precípuas e em âmbito federal eram:
ministrar o ensino agrícola; orientar, dirigir e coordenar todas as pesquisas que visem à individualização dos fatores naturais e artificiais da produção agrícola; aumentar e melhorar o rendimento das plantas cultivadas, modificando, no sentido positivo, o meio físico, o clima e solo, e criando, mediante seleção e cruzamento, os tipos das diferentes variedades de plantas cultivadas, particularmente adaptáveis às diferentes regiões; coordenar todos os fatores da produção agrícola, com o fim de adaptar a agricultura ao ambiente, aumentando e melhorando as colheitas. (BRASIL, 1938a)
O Centro era formado pela Escola Nacional de Agronomia, Instituto de Química Agrícola, Instituto de Ecologia Agrícola e Instituto de Experimentação Agrícola. Em 30 de dezembro de 1943, foi reorganizado e passou a ser constituído por dois órgãos centrais: a Universidade Rural e o Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas (SNPA). O SNPA tinha como metas: coordenar as pesquisas agronômicas efetuadas no Brasil, inspecionar os órgãos de experimentação agrícola e demarcar as regiões naturais do país, de acordo com as características climáticas. O Serviço era composto por uma rede nacional de pesquisas experimentais, formada pelos institutos regionais e suas respectivas estações experimentais (BRASIL, 1938a). Eram cinco os institutos agrícolas regionais: o IAN foi o primeiro a ser criado em maio de 1939, e, de 1943 a 1946, outros quatro institutos regionais foram fundados: o Instituto Agronômico do Nordeste (em Pernambuco), o do Oeste (em Minas Gerais), o do Sul (no Rio Grande do Sul), e do Leste (na Bahia).
Ressalte-se que o Norte era especial prioridade. A Amazônia era área estratégica de Estado, pois, tal como era definida na ocasião, a região significaria mais da metade do território brasileiro, mais de dois terços de suas fronteiras, e mais de quatro quintos de suas florestas. Além disso, naquele período, a economia da borracha já tinha encerrado o seu período áureo no Brasil. No início do século XX, o centro da produção mundial de borracha tinha se deslocado do Pará e do Amazonas para os seringais da Malásia. Natural da Amazônia, a seringueira, ou Hevea brasiliensis, produzia mais no sudeste asiático. Dentre outros motivos, porque lá não era atacada por pragas, como o fungo denominado “mal das folhas”, que havia no Brasil (DEAN, 1989; WEINSTEIN, 1993). Em função de grave decadência econômica, a região era vista por muitos homens de Estado brasileiros como a área mais subdesenvolvida do país (BRASIL, 1954).2
Esse diagnóstico do atraso econômico da região amazônica levou à criação de diversas instituições estatais dedicadas ao desenvolvimento regional, como o próprio IAN. O instituto foi idealizado para solucionar os problemas da economia da borracha na Amazônia, assim como para impulsionar a agricultura na região. O programa federal ainda incluía a produção local de alimentos e de matérias-primas para a economia nacional.
Nesse mesmo período, podemos acompanhar a formação, a incorporação às fileiras do Estado e a ação política no Ministério da Agricultura do agrônomo Felisberto Camargo (1896-1977), que se tornaria diretor do IAN logo após a criação do instituto. Era formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz3 (Esalq) (1917), com pós-graduação em fruticultura tropical na Universidade da Flórida (1919-1920), nos Estados Unidos. Foi ainda fundador da Escola de Agronomia da Amazônia (1945), diretor do Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas (1952-1957) e do Centro Nacional de Ensino e Pesquisas Agronômicas (em comissão, 1955-1957) (FERREIRA; QUADROS, 2011).
Uma das marcas de sua direção no IAN foram as pesquisas científicas e políticas públicas que visavam à utilização agrícola da Amazônia, com destaque para os ensaios de introdução e domesticação de espécies animais e vegetais que promoveu, por meio do IAN, nas Plantações Ford de Belterra e Fordlândia, espólio da Companhia Ford no baixo Amazonas.4 Essa região era um latifúndio com 1 milhão de hectares, situado às margens do Rio Tapajós e distante, ainda hoje, um dia e meio de viagem de barco de Santarém, no Pará.
O Instituto Agronômico do Norte foi criado através do Decreto-Lei nº 1.245, de 4 de maio de 1939. Idealizado para impulsionar a agricultura na Amazônia, obteve um volume de recursos considerável na ocasião. Em discurso pronunciado em Belém nos anos 1940, o então presidente do Brasil Getúlio Vargas expôs as atribuições do IAN:
um centro completo de pesquisas da riqueza florestal do Vale amazônico, com o propósito de classificá-la, aperfeiçoar e desdobrar nos campos de multiplicação, para substituir pela indústria agrícola, metódica e científica, os velhos processos extrativos. Destinado a servir a toda à região, esse instituto deverá promover o plantio sistemático, não só da seringueira, (...), como, ainda, os das variadas espécies nativas e aclimadas (...), a fim de fornecer, gratuitamente, mudas de precoce produção (...) e desenvolver, ao mesmo tempo, os modernos processos de cultura e aclimação dos vegetais”. (VARGAS, 1941, p. 55-58)
A escolha do local foi objeto de debate em meios técnicos e políticos do Ministério da Agricultura, pois discutiam-se as vantagens de sua localização no Maranhão, Pará ou Amazonas. Optou-se por Belém do Pará. Uma comissão integrada por agrônomos da pasta da agricultura deu início a estudos para a escolha do local inicial da sede, a Fazenda Murutucu, com 3 mil hectares, banhada pelo rio Guamá, e com terrenos de várzeas, terras firmes e igapós. Em dezembro de 1940 foi feito o preparo da área da instituição para a formação de viveiros e recepção de material de seringueira e abacá.
Apenas um ano depois, em 1941, as primeiras atividades do IAN tiveram início com uma equipe de técnicos procedentes do Instituto Agronômico de Campinas. Eram especialistas em citologia, genética e horticultura, dentre eles o diretor nomeado em abril daquele ano, Felisberto Camargo. A sede do IAN transferiu-se para Fordlândia a partir de 1945 e contou com a direção de Camargo até 1952.
O programa do IAN incluía a conversão gradual da economia extrativista em economia agrícola. Era sinônimo de colonização, povoamento e integração nacional da região amazônica.
O Instituto contava com forte financiamento do governo Vargas, mas também com apoio do Departamento de Agricultura dos EUA (Usda) desde 1940, cuja política externa para a América Latina visava consolidar a hegemonia na região por meio de cooperação técnica permanente para “aperfeiçoamento” dos seus índices de produção agrícola (GARFIELD, 2009, 2014; MENDONÇA, 2010). O Bureau of Plant Industry e o Office of Foreign Agricultural Relations, encarregados da promoção e desenvolvimento da agricultura tropical nas Américas para comércio privilegiado com os EUA, elaboraram um amplo programa de pesquisa e incentivo ao cultivo sistemático da borracha e combate a pragas por meio do IAN (BRASIL, 1943b, p. 51; 1943c, p. 142). A partir de 1942, com o Acordo de Washington, para incentivo ao fornecimento de borracha e minerais para a economia e indústria bélica americanas como parte do esforço de guerra (CAMPOS, 2006; DEAN, 1989), o IAN passou a receber ainda mais fundos, apoio de infraestrutura e técnicos americanos para montagem de laboratórios. A colaboração científica mais estreita foi firmada por meio da Comissão Brasileiro-Americana de Gêneros Alimentícios, acordo bilateral assinado em setembro daquele ano (BRASIL, 1943a, p. 2139). Por meio desse acordo pretendia-se fornecer, ao Norte e Nordeste do Brasil, assistência técnica, sementes, maquinário agrícola e crédito para o incremento à cultura de cereais, horticultura, avicultura e pesca, mas especialmente aumentar as safras de milho, feijão, arroz, mandioca e batata nessas regiões (BRASIL, ano 32, n. 5, maio de 1943c, p. 143). O foco do programa, em colaboração com governos estaduais, foi a Amazônia, ou melhor, os estados de Amazonas e Pará (BRASIL, ano 32, n. 5, maio de 1943c, p. 146). Pretendia-se a transformação da região amazônica em laboratório e fazenda, sob a orientação do IAN (GARFIELD, 2009, p. 30).
Sua agenda de pesquisa aplicada enfatizava a investigação de elementos relacionados à perturbação do equilíbrio biológico. Esse tema era constante em áreas do conhecimento batizadas na ocasião como ecologia agrícola ou “agricultura científica”, e em institutos de pesquisa regional de diferentes países (PALLADINO, 1996). Pressupunha-se que toda prática agrícola era agressiva à dinâmica natural da vegetação, mas que o papel desses institutos seria, exatamente, minorar os malefícios da simplificação de ecossistemas, de modo a preservar a produtividade das espécies vegetais (ACOT, 1990).
O IAN funcionava por meio de dois grandes serviços com suas seções específicas de trabalho. O primeiro deles era o serviço de pesquisas biológicas, subdividido nas seções de fitopatologia, química, tecnologia da borracha, trabalhos experimentais, entomologia e parasitologia, citologia, horticultura, introdução de plantas, botânica agrícola e genética. O segundo era o serviço de engenharia e tecnologia rurais, subdivido nas seções de solos, irrigação e drenagem, climatologia agrícola e conservação do solo. Havia ainda os setores de desenho e fotografia, de documentação e estatística, e as comissões de coordenação experimental e de seminários e palestras (ALBUQUERQUE; LIBONATI, 1964, p. 13-33).
O Instituto tinha seções experimentais no Acre, no Maranhão e no então território federal do Guaporé, hoje estado de Rondônia. Em 1943 foram criados a Seção de Expansão Econômica, o laboratório de Tecnologia da Borracha e, em 1944, surgiu a Seção de Melhoramento de Plantas. Com o acervo de Fordlândia, o IAN criou um Serviço de Fitopatologia e investiu em pesquisas de introdução e hibridação interespecífica com diferentes espécies do gênero Hevea. O objetivo era criar clones de alta produtividade e resistentes ao mal-das-folhas (CAMARGO, 1948).
Estudos de seleção artificial, melhoramento genético e aclimatação de variedades de espécies vegetais foram prioritários de 1942 a 1949 no IAN, segundo os relatórios técnicos consultados. Em 1942, investiu-se em enxertia de seringueiras e em ensaios de espaçamento, variedades e adubação de arroz e milho (INSTITUTO AGRONÔMICO DO NORTE, 1942). Entre os anos de 1943 e 1945 não foram localizados relatórios técnicos. Em 1946, privilegiaram-se experimentos de melhoramento de batata doce e cacau (INSTITUTO AGRONÔMICO DO NORTE, 1946). Em 1947, do cacau, mandioca e banana (INSTITUTO AGRONÔMICO DO NORTE, 1947). No ano de 1948, da juta, arroz, mandioca, tomate, abacaxi e coco. Neste ano, houve discriminação de atividades específicas concernentes à agricultura florestal nas áreas firmes do terreno do Instituto, com ensaios de melhoramentos de castanha do Pará e palmeira de dendê e pesquisas na área de química sobre as propriedades pesticidas do timbó (INSTITUTO AGRONÔMICO DO NORTE, 1948).5 Em 1949, as atividades concentraram-se em pesquisas de aclimatação e seleção de variedades de babaçu, cacau, arroz e mandioca (INSTITUTO AGRONÔMICO DO NORTE, 1949). Em 1950, o relatório enfatizou trabalhos na área de pedologia e limnologia (INSTITUTO AGRONÔMICO DO NORTE, 1950). Sobre essa área de atuação, destaca-se a criação do laboratório hidroquímico do IAN, em 1945, para análise da água dos igarapés e rios da Amazônia. Essas pesquisas foram feitas inicialmente no rio Tapajós com a contratação do limnologista alemão Harald Sioli no mesmo ano. Grande parte dos estudos desenvolvidos por Sioli no período em que esteve no IAN, de 1945 a 1954, consistiram em coleta de material hidrobiológico por meio de várias expedições ao interior amazônico. A partir do estudo das águas da Amazônia, ele elucidou os principais processos envolvidos na conformação do ecossistema da região. Com base em seus achados, passou a defender iniciativas de fomento agrícola que levassem em conta as dinâmicas que abrangiam as águas, a vegetação, a fauna e o solo.
O biólogo e limnologista alemão Harald Felix Ludwig Sioli (1910-2004) dirigiu-se ao Brasil em 1938, com o objetivo inicial de pesquisar o fenômeno de “hibernação” observado em uma espécie de sapo durante o período da seca na caatinga nordestina. Esse fenômeno despertou sua atenção quando acompanhou, na qualidade de assistente, a expedição do biólogo Friedrich Lenz pelo nordeste brasileiro entre os anos de 1934 e 1935.6 O retorno ao país três anos depois foi possibilitado por acordo de intercâmbio firmado entre o Conselho de Pesquisas do Reich (Reichsforschungsrat) e o Instituto Biológico de São Paulo, graças às articulações do então diretor, Henrique da Rocha Lima.7
A pesquisa sobre a “hibernação” dos sapos durante as secas não vingou. Durante uma das excursões ao Nordeste, Sioli rumou para a Amazônia, mais especificamente para Belém, onde estabeleceu contato com o zoólogo suíço Gottfried Hagmann no Museu Paraense Emílio Goeldi.8 Hagmann apresentou-lhe pela primeira vez a região amazônica. Em suas memórias Sioli qualifica aquela como uma “experiência decisiva”, que conferiria novo rumo à sua trajetória (SIOLI, 2007). De volta a São Paulo, solicitou ao Conselho de Pesquisas do Reich bolsa para pesquisar as águas da Amazônia. O acordo entre o Conselho e o Instituto Biológico de São Paulo duraria até agosto de 1939. A deflagração da Segunda Guerra impediu o retorno de Sioli à Alemanha. Em outubro de 1940 ele foi para Belém, quando iniciou um périplo por várias regiões da bacia amazônica. As viagens foram interrompidas com a entrada do Brasil na guerra em 1942: acusado de ser espião, Sioli foi encarcerado no campo de prisioneiros de Tomé-Açu, onde ficavam detidos os cidadãos do Eixo. Ali ficou até setembro de 1945. Antes disso, já havia solicitado uma posição no Instituto Agronômico do Norte. Do campo de prisioneiros, Sioli foi diretamente para Belém assumir o novo cargo. Acomodou-se nas próprias instalações do Instituto, nas cercanias da capital paraense, as quais incluíam uma “república” para moradia dos pesquisadores. Segundo Sioli, a recepção foi calorosa, o que não era trivial mediante o clima de hostilidades que presenciara no período de guerra.
Os laboratórios do IAN, de acordo com ele, eram bem equipados. Em suas memórias registra como fator especialmente favorável a flexibilidade da divisão científica e a “ampla visão geral da pesquisa agrícola” de Felisberto Camargo (SIOLI, 2007, p. 132). Sioli assinala ainda a liberdade e a autonomia que lhe foram conferidas por Camargo, o que é possível confirmar pela amplitude das questões e interesses de pesquisa às quais o biólogo alemão se dedicou no período em que atuou no IAN. Um grande e bem equipado laboratório foi colocado à sua disposição. Ali poderia dar sequência às pesquisas sobre as águas da Amazônia, que até então haviam se restringido à coleta de material hidrobiológico com o parco equipamento que trouxera da Alemanha ou que adquirira em São Paulo. No IAN, poderia realizar análises hidroquímicas das águas coletadas nos diferentes rios, lagoas, lagos e riachos que percorrera entre 1940 e 1942.
Para Sioli, o estudo da química das águas representava um ponto de partida ideal para compreender a ecologia das paisagens da bacia amazônica, uma vez que atuariam como elos dessa “unidade maior” - das paisagens - “das quais elas obtém suas características individuais”.9 Com esse objetivo começou a equipar seu laboratório hidroquímico no qual poderia determinar quantitativamente os componentes presentes nas águas.
Grande parte dos estudos desenvolvidos por Sioli no período em que esteve no IAN consistiu, além das análises químicas feitas em seu laboratório, na coleta de material hidrobiológico e nas observações in loco do interior amazônico.
Durante o meio ano em que ficou em Belterra, Sioli realizou uma série de curtas expedições para as regiões vizinhas. Concentrou-se na pesquisa das águas: coleta hidrobiológica e análises químicas, como medida do pH, do teor de gás carbônico, de bicarbonato e de substâncias orgânicas. Constatou a pobreza química das águas, que interpretou como sinal da pobreza dos solos, a qual foi confirmada por experimentos e estudos agronômicos (SIOLI, 1951, p. 4-32).
Esses achados representaram o pontapé inicial para uma das principais contribuições científicas de Sioli sobre a ecologia da Amazônia. Segundo ele, as águas que circulavam naqueles ecossistemas atuavam como “sistemas renais” de suas áreas de captação, cujos metabólitos finais eram removidos e conduzidos ao oceano. A pobreza das águas - e, consequentemente, dos solos - foi interpretada pelo biólogo alemão como um sinal de que não havia formação de reservas de substâncias nos solos, as quais seriam liberadas pela decomposição por ação atmosférica ou por ação biológica e então disponibilizadas como nutrientes para o crescimento das plantas. Contrariamente ao que poderia sugerir a exuberância daquelas formações vegetais, o solo amazônico caracterizar-se-ia por uma extrema carência de nutrientes e de reservas.
De imediato, impôs-se a questão: como era possível a manutenção da densa floresta tropical amazônica em terra firme, com um solo tão pobre? Observando o sistema radicular de uma árvore caída, Sioli notou que ele era extremamente superficial, não havendo raízes profundas. Aliado a isso, constatou que a maior parte dos animais da região desenvolvia sua vida nas copas das árvores. O produto de sua digestão não alcançava o solo da floresta, mas escoava, através da água da chuva, pelo tronco, caindo direto na raiz. Dessa forma, o solo não atuava como repositório de nutrientes.
Para Sioli, o crescimento e manutenção da floresta devia-se ao fato de haver um ciclo extremamente fechado de circulação de nutrientes entre plantas, animais, microorganismos, etc., em meio ao qual as perdas eram reduzidas ao mínimo. O solo amazônico seria então somente o suporte físico da floresta. Apenas uma camada superficial mínima estava envolvida nessa circulação de metabólitos. Em vez de formar húmus, a decomposição de matéria orgânica era imediatamente levada de volta para a biomassa da floresta. Essa circulação fechada de substâncias, segundo Sioli, era decomposta em vários ciclos menores, através dos quais teria sido possível o desenvolvimento de toda a biodiversidade característica da região amazônica. O mesmo sistema não se aplicava às regiões de várzea, onde as cheias ensejavam o depósito de compostos orgânicos e consequente renovação dos nutrientes do solo. Ele considerou essa teoria fundamental para a compreensão da ecologia da floresta amazônica. “Ela me parece hoje o resultado científico mais importante de meu trabalho na Amazônia”, escreveu em suas memórias (SIOLI, 2007, p. 153).10
Além das pesquisas que levaram ao desenvolvimento dessa ideia, Sioli fez observações em Belterra do processo de formação da chamada “terra preta”. Atribuiu-a à atividade ancestral de povos indígenas, principalmente da queima de madeira. Também visitou os chamados “campos” localizados entre as margens do Tapajós e os platôs, e observou a fisionomia do chamado Lago Grande Curuai. Notou que ali se praticava a criação de gado. Na Fordlândia, analisou riachos que percorriam as regiões de plantação de borracha. O pH mais alto daquelas águas, comparado com os indicadores de Belterra, assinalava que naquele subsolo havia mais formação de reservas de nutrientes.
Interessado em comparar a composição das águas de Belterra com outras localizadas em terreno de formação geológica semelhante, Sioli rumou para Tomé-Açú. Constatou que o pH das águas dessa região era tão ácido quanto o das águas de Belterra, mas diferentemente destas, lá corriam em região já desmatada.
De volta a Belterra, em análise das possibilidades de desenvolvimento agrícola da Amazônia, Sioli apontou que a falta de nutrientes e de reservas no solo das regiões de terra firme as tornavam inadequadas para o cultivo de gêneros agrícolas; eram mais aptas para a silvicultura.11 A produção anual de gêneros de ciclos mais curtos, em sua opinião, deveria se concentrar nas regiões de várzea, fecundas em razão dos solos de aluvião, jovens e ricos em nutrientes. “Atualmente, a várzea é a zona mais importante para uma agricultura racional no vale amazônico e sua importância para tal fim tende a crescer no futuro cada vez mais”, vaticinou Sioli (1951, p. 17).
Ganhou vulto a ideia de utilização das áreas da Fordlândia, outrora empregadas no cultivo das seringueiras, para a criação de gado. Felisberto Camargo chegou a introduzir gado Nelore em alguns pontos. Sioli considerava problemático o procedimento. Seria mais oportuno para a Fordlândia integrar as áreas de pastagens em terra firme com regiões de solo aluvião do baixo Tapajós. No período seco, estas poderiam complementar a área de pasto do gado Nelore e durante todo o ano poderiam servir para a criação de búfalos aquáticos, que no século XIX haviam sido introduzidos na Ilha de Marajó, mas que haviam se tornado selvagens. Para Camargo, a criação de búfalos seria ideal para os terrenos de aluvião, sem prejudicar o potencial de produtividade biológico destas áreas.
Camargo e Sioli realizaram excursões às cercanias do Tapajós e à região dedicada à plantação da borracha. Tinham em mira avaliar qual seria a melhor forma de aproveitar aquelas áreas do ponto de vista agrícola. No início de 1949, Camargo decidiu comprar um pedaço de terra maior nas proximidades do Tapajós com a finalidade de dar início à criação de gado. Novamente envolvido em suas atividades de pesquisa em Belém, Sioli logo realizou outra viagem de estudos: desta vez à várzea do baixo Amazonas. Segundo ele, Felisberto Camargo já havia compreendido que as várzeas se diferenciavam da terra firme em virtude de seu solo rico em nutrientes, depositados pela ação das constantes cheias de águas claras repletas de sólidos em suspensão. Por conta disso, eram mais adequadas à atividade agrícola que a terra firme. Ainda de acordo com o biólogo alemão, Camargo visava uma utilização agrícola racional e otimizada da várzea, de modo que se dedicou à assistência e aperfeiçoamento dos métodos de plantio adotados.
Para o IAN, os resultados das pesquisas de Sioli, apesar das evidentes discordâncias, não esvaziaram a clássica tese de Alexandre von Humboldt, elaborada no século XIX, sobre a Amazônia como o celeiro do mundo, pela exuberância e fertilidade do solo em terras tropicais. Foram mesmo festejadas, por Felisberto Camargo, como a grande contribuição científica do IAN para a promoção da agricultura na Amazônia. E não só isso. Essa foi a tese que Camargo defendeu em eventos internacionais dos quais participou naqueles anos, como a Conferência Interamericana sobre a Conservação dos Recursos Naturais Renováveis, no Colorado, Estados Unidos, em 1948. Camargo a chamou de “teoria do ecossistema florestal” e a definia como incontornável para entender a circulação de recursos minerais e a conservação da fertilidade dos solos das regiões tropicais úmidas. Em 1949, a mesma teoria era defendida em Wisconsin, EUA, em encontro sobre a “Agricultura Itinerante nas Florestas Tropicais” (CAMARGO, 1949). Nessas ocasiões, Camargo ainda indicava que monoculturas não teriam grande futuro em clima tropical úmido. Nessas regiões, ele argumentava, um enorme número de espécies animais e vegetais estaria interligada por múltiplas e frágeis relações mútuas. Ao se remover esse ecossistema com a implantação de monoculturas, haveria grande probabilidade de uma espécie exótica tornar-se invasora e devastar as plantações.
A teoria de Sioli levou a uma reclassificação espacial das áreas de cultivo do IAN, em várzeas do estuário e várzeas do interior, e à aposta na sua especialização econômica, a partir da reprodução artificial dos fenômenos naturais das marés e cheias dos rios. Se o pressuposto, como vimos, era o de que a várzea estaria preparada para culturas anuais, pois teria a fertilidade renovada pelas enchentes, bastaria, pois, “provocar” cheias em períodos controlados de tempo para que o cultivo de plantas de curto ciclo, como o arroz, mas também milho, feijão e mandioca, fosse multiplicado nas várzeas ricas em nutrientes localizadas às margens dos rios amazônicos (SIOLI, 1951, p. 17).
As várzeas do interior seriam as áreas que sofreriam com grandes inundações, com profundidades de 4 a 5 metros, decorrentes da cheia do rio Amazonas de seis a sete meses seguidos por ano. Elas foram o alvo do mais grandioso projeto realizado no IAN a partir das pesquisas de Sioli: os canais de colmatagem, também com o objetivo de expandir áreas de cultivo agrícola.12
Apesar da extensão razoável, os terrenos do IAN, dedicados aos experimentos de cultivo de animais e plantas, não incluíam áreas com perfil semelhante à várzea do baixo Amazonas. A fim de adquirir um terreno com essa característica, foi comprada, em outubro de 1949, uma fazenda na margem setentrional do Amazonas, entre Santarém e Cacoal Grande. Nela Felisberto Camargo desenvolveu os planos de formação desses canais. Tinham por finalidade escoar a água do Amazonas para o interior do Lago Grande de Monte Alegre, seguindo processo no qual um furo drenava as águas do rio acarretando a formação de depósitos de sedimentos no lago. Os canais de colmatagem aumentariam a sedimentação do material sólido carregado pelo Amazonas, impedindo que este os transportasse para o mar. Os sedimentos serviriam para ampliar a área de cultivo da fazenda do IAN, sobretudo aquela sobre a qual se pretendia cultivar a juta e manter pastagem para o gado. Nesse empreendimento de grandes proporções, coube a Sioli determinar a quantidade de sólidos em suspensão transportados pelo rio Amazonas rumo ao interior do lago. Dessa forma, poderia avaliar o tempo necessário para o processo de formação dos terrenos sedimentares (SIOLI, 1951, p. 45-55).
No total foram criados cinco canais de colmatagem, mas o plano de Camargo era rasgar dez canais até dezembro de 1952, com o objetivo de desviar água e lama do rio Amazonas para o interior do lago Maicuru, em Monte Alegre. Em perspectiva otimista com os resultados desses empreendimentos, o programa básico de pesquisas da instituição diversificou-se. Estudos de seleção artificial, melhoramento genético e aclimatação de espécies vegetais passaram a contemplar também pimenta do reino, dendê, soja, cana de açúcar, feijão, algodão e frutas, como abacaxi, coco e abacate, além do arroz, cacau e juta, que já vinham sendo objeto de estudos sistemáticos (ALBUQUERQUE; LIBONATI, 1964).
Relatório circunstanciado sobre o “Aproveitamento das várzeas da Amazônia para a produção intensiva de alimentos” foi apresentado em 1951 ao CNEPA, demonstrando a aplicação da teoria de Sioli na diversificação das áreas de atuação do Instituto:
As matas de terra firme da região amazônica serviram, nesses 4 séculos, desde a descoberta do rio Amazonas, para despertar apenas a fantasia dos literatos e de alguns cientistas. Esse imenso manto verde que cobre a planície amazônica tem iludido os homens, filhos ou não da região, e só recentemente a verdade vem sendo esclarecida. Em regra geral as terras firmes da Amazônia, formadas em sua maioria de sedimentos milenários, são pobres, destituídas dos elementos minerais indispensáveis para sustentar culturas intensivas. Especialmente as terras do “terciário”, que formam a parte de terras firmes da planície amazônica, são muito pobres e não dispõem de reservas minerais capazes de sustentar culturas intensivas. Nessas regiões, a disponibilidade de minerais, que realmente existe, reside nos tecidos vegetais das plantas e na água em circulação no solo. A terra em si é extremamente pobre. Sua fertilidade se esgota em menos de 4 anos. As terras inundáveis da Amazônia (...) constituem todavia a grande reserva de terras amazônicas destinadas à produção intensiva de gêneros alimentícios e ao desenvolvimento de uma agricultura capaz de tornar em feliz realidade o velho sonho de Humboldt. (CAMARGO; CARVALHO, 1951, p. 1)
A propósito, na imprensa, mais dados foram apresentados valorizando a aliança entre ciência básica e aplicada no IAN, especialmente na produção de alimentos, de forma que, em curto prazo, a região seria mesmo capaz de contribuir para matar a fome do mundo:
O arroz será o grande cereal da Amazônia, o IAN colhe, sem adubação, de 3.500 a 5.000 quilos de arroz por hectare. A média brasileira é de 1.500 kg, norte-americana 2.390, Índia 1.180, Japão 3.570, Europa 4.080, Argentina 3.390. (...) A Amazônia poderá produzir quantidades incalculáveis de banana (...). A Amazônia ainda pode produzir, em escala quase astronômica, feijões, favas, soja, manilha, mandioca, batata doce, abóboras, melancias, e muitas outras culturas anuais (VALORIZAÇÃO..., 1952; AMAZÔNIA..., 1955).
Ainda sobre a cultura do arroz, Camargo garantia que, em área de 10% das várzeas florestais do estuário do Amazonas, seria possível produzir 400 mil toneladas de arroz em anos de culturas consecutivas, sobre o mesmo terreno e sem irrigação artificial. A produção, segundo ele, seria mais do que suficiente para cobrir o déficit mundial desse cereal.
O projeto, então, capitaneado pelo IAN, era o de investir em policultura, ou na chamada “agricultura florestal”; esquema geral que serviria para aproveitamento econômico de terras em todas as outras regiões tropicais úmidas do mundo. Esse modelo significava que as plantações deveriam ser organizadas sob a forma de núcleos de pequenos produtores, dedicados a culturas específicas. As áreas destinadas a residências rurais deveriam ser localizadas nos limites divisórios entre as várzeas e a terra firme (CAMARGO, 1967). Esse projeto de colonização, para a Amazônia, no entanto, não saiu do papel.
Outro desdobramento dessas pesquisas sobre as diferentes potencialidades das áreas da região, foi o destino das terras firmes de Fordlândia, as de solo pobre, projetadas pelo IAN para receber gado. O programa de pecuária da instituição, como já mencionamos, inicialmente incluía o Nelore, para criação em larga escala. Posteriormente, os búfalos aquáticos foram direcionados às terras baixas para reprodução e fornecimento de carne, leite e tração. Em 1951, o IAN ampliou esse universo, adquirindo rebanho Jersey, considerada entre especialistas, na ocasião e ainda hoje, a melhor raça leiteira existente. Em 1952, Camargo foi ao Paquistão selecionar grupos do gado Sindi, também considerado de excelente produção leiteira. Seu projeto era o cruzamento entre Jersey e Sindi, para criação e desenvolvimento na Amazônia de uma nova raça de gado leiteiro, provavelmente “a melhor de todo o mundo” (APERFEIÇOAMENTO..., 1950; CAMARGO, 1956).
Essa viagem de 1952, especificamente, foi um verdadeiro escândalo e projetou a saída de Camargo do IAN. Ocupou páginas de jornais do Pará e da revista O Cruzeiro (MOREIRA, 1952). Camargo enfrentou oposição do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, de pecuaristas do Triângulo Mineiro e do Departamento de Pesquisa Animal do Ministério da Agricultura, que certificavam que a importação do plantel de gado Sindi traria peste bovina para o continente americano. Depois de 2 meses no Paquistão, Camargo realizou a viagem de volta. O avião, que o trouxe com os animais, não pousou em Belém, mas na ilha de Fernando de Noronha, para quarentena. Camargo ficou detido 2 dias na ilha e o gado 15 meses. O plantel só foi liberado quando ele já tinha deixado a direção do IAN para assumir o Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas, onde permaneceu até 1957. Sobre o assunto, foi inclusive convocado no Senado Federal, em 1955, para prestar esclarecimentos.
Apesar do esforço do IAN em promover o desenvolvimento por meio de ações sensíveis às características do ecossistema amazônico, houve muitos efeitos não antecipados nas suas ações, tanto em termos ambientais quanto para as reputações individuais e da instituição.
Os relatórios do IAN no período aqui abordado não mencionam apenas grandes projetos. Pragas, restrições orçamentárias, disputas com o Banco de Crédito da Borracha pela titularidade no comando das seringueiras de Belterra, disputas constantes com a Associação Comercial do Pará e falta de pessoal também marcaram o cotidiano do Instituto. A rigor, nenhum desses projetos do IAN sob a direção de Felisberto Camargo vingou. A Segunda Guerra Mundial recolocou a borracha amazônica no centro dos interesses internacionais, mas, com o fim do conflito e a emergência da borracha sintética, o produto brasileiro enfrentou novo colapso. Findava o acordo firmado com os Estados Unidos que garantia às vendas brasileiras o dobro do preço corrente no mercado. O gado Sindi não conheceu qualquer expansão. Os canais de colmatagem, por sua vez, criaram assoreamento em partes do leito do rio Amazonas, ampliando as áreas para cultivo da juta e da pastagem, mas a bubalinocultura e a juticultura levaram ao desmatamento de largas áreas da região. O assoreamento estendeu-se por toda a extensão do lago Maicuru, comprometeu a fauna aquática e, consequentemente, a atividade pesqueira da região.
A memorialística do Instituto Agronômico do Norte batiza a ecologia que a instituição praticou como uso sustentável dos recursos naturais. Como esse anacronismo permite, além da coexistência, a sinonímia entre desenvolvimentismo e ecologia nas políticas públicas para a Amazônia foi uma das muitas questões que nos instigaram nesta pesquisa.
Procuramos mostrar aqui que concepções de cunho ecológico tiveram lugar no arsenal de conhecimentos que informou esses projetos de desenvolvimento na região amazônica e conformaram adaptações do próprio programa desenvolvimentista; o IAN efetivamente pretendeu equacionar projetos modernizantes à ecologia da região amazônica. Além disso, essas apropriações contribuíram de forma decisiva para a própria estruturação da ecologia como especialidade científica e para sua acolhida em espaços institucionais do Estado brasileiro.
Os estudos de Sioli sobre a região amazônica, por sua vez, abrangeram as intrincadas relações entre os diferentes componentes da paisagem e as populações humanas. Numa só mirada, foram do nível mais microscópico de análise - o dos componentes químicos das águas e de sua microbiota - até os processos de formação geológica, seu papel na formação do perfil da bacia hidrográfica, e as possibilidades de aproveitamento econômico e ocupação dos espaços. No tocante à sua trajetória individual, ele pôde aprofundar suas pesquisas em sua trajetória posterior. As linhas gerais de sua agenda sobre a ecologia da Amazônia haviam sido dadas a partir do percurso pelos rios e florestas da região. Inicialmente, como bolsista do Conselho de Pesquisas Alemão, como pesquisador do IAN e, a partir de 1955, como diretor da seção de limnologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Nesse período, ele combinou as observações em campo com as análises de laboratório. Em 1956, retornou à Alemanha, onde assumiu a direção da Estação de Limnologia ligada ao Instituto Max Planck.
A Amazônia permaneceu sua especialidade e principal foco de atuação. Sioli firmou-se um dos principais nomes nos estudos da ecologia da região e na conformação do campo referido como “ecologia tropical”, nome do departamento que passou a dirigir a partir de 1966 no Instituto Max Planck de Limnologia, em Plön (hoje Instituto Max Planck de Biologia Evolutiva). Ele reuniu em torno de si um grupo de pesquisadores que se dedicou à investigação dos mais diversos aspectos ligados aos ecossistemas da Amazônia. Em 1969, a densa cooperação transnacional entre brasileiros e alemães foi formalizada por meio de acordo firmado entre o Instituto Max Planck e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O INPA figurou como núcleo institucional dessa colaboração.13
Sioli contribuiu ainda para a institucionalização das ciências ligadas ao ambiente amazônico através da criação, em 1965, com Djalma Batista, da Amazoniana, periódico dedicado especialmente à divulgação de pesquisas em limnologia e ecologia das paisagens.
As pesquisas desenvolvidas no IAN por Sioli conformaram um modo de abordagem da ecologia amazônica que o projetou como um dos maiores especialistas internacionais no assunto. Tal reputação chancelou sua atuação como ferrenho crítico dos projetos de desenvolvimento para a região nas décadas posteriores, principalmente durante a ditadura civil-militar, quando houve uma escalada de intervenções apresentadas como símbolos da modernização e ocupação daquele suposto “vazio demográfico”. Ao identificar a centralidade das águas não só na formação natural, mas também social e cultural da Amazônia, Sioli desvendou as complexas engrenagens que tornam sua ecologia única. A partir daí, procurou formular estratégias de desenvolvimento via atividade agrícola e otimização da prática extrativista. Sua voz em defesa de um desenvolvimento sustentável, quando esse conceito ainda não estava em uso, reveste-se de enorme atualidade. A defesa de iniciativas de promoção de melhores condições de vida dos amazônidas - dos povos da floresta aos migrantes que lá se estabeleceram - sensível ao delicado modus operandi do ecossistema e dos costumes das sociedades tradicionais é, mais do que nunca, premente, pois projetos de celeiros na Amazônia são ainda uma ameaça. É surpreendente a permanência dos leitmotiven, que desde o período aqui analisado, ainda insuflam as ações de promoção do desenvolvimento na Amazônia, não obstante já estarem mais claras as consequências da enorme devastação daquele bioma.
Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos
Amazônia Global: Espaços de Circulação e Representação da Fronteira:
Nelson Sanjad (MPEG)
Érico Silva Muniz (UFPA)
Júlio Schweickardt (Fiocruz)
Os dois autores conceberam o argumento do artigo, realizaram a pesquisa documental e o levantamento bibliográfico, desenvolveram a sustentação teórica e a redação do texto. Essa pesquisa só foi possível graças ao apoio do edital Proep – CNPq/Fiocruz/COC/Nº4/2015-2018. Todas as obras e todos os documentos utilizados na pesquisa e na elaboração do artigo são citados nas notas e na bibliografia.
Fundação Oswaldo Cruz – Casa de Oswaldo Cruz CDHS (Centro de Documentação e História da Saúde) Av. Brasil, 4365 – 3º andar 21040-360 – Manguinhos – Rio de Janeiro – Brazil dominichi.sa@fiocruz.brandre-felipe.silva@fiocruz.br