Resumo: Em 1693, uma memória enviada ao rei de Portugal continha denúncias sobre a completa indiferença dos senhores em relação à doutrina, à vida sacramental e às exéquias dos escravos no Rio de Janeiro e em Salvador. Naquele mesmo ano, debates envolveram instâncias civis e religiosas no intuito de colocar noutros termos a desconsideração ritual em relação aos escravos. Nesse processo de reordenamento das atribuições que cabiam às esferas civis e eclesiásticas em relação ao governo doméstico dos escravos, foram particularmente importantes as obras de dois jesuítas - Jorge Benci e André João Antonil - e a normativa estabelecida pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia , em 1707. Neste artigo, pretende-se analisar como as controvérsias estabelecidas em fins do século XVII abriram uma nova perspectiva para a defesa ética do tratamento cristão dos cativos, tendo por base o princípio de autoridade, reivindicado pela Igreja, de governar espiritualmente os miseráveis.
Palavras-chave: EscravidãoEscravidão,PobrezaPobreza,SacramentosSacramentos,CaridadeCaridade,Miserabilis personaMiserabilis persona.
Abstract: In 1693, a memorial sent to the king of Portugal contained denunciations about the complete indifference of slave owners in relation to religious doctrine, the sacramental life, and the funerals of slaves in Rio de Janeiro and Salvador. In that very year, debates were held with civil and religious authorities with the aim of reforming the disregard for rituals of slaves. Of particular importance in this process of reordering the attributes of the civil and ecclesiastic spheres regarding the domestic rule of slaves were the works of two Jesuits - Jorge Benci and André João Antonil -, and the convention established by the First Constitutions of the Archbishopric of Bahia in 1707. In this article, we seek to analyze how the controversies established at the end of the seventeenth century opened a new perspective towards the ethical defense of the Christian treatment of slaves, based on the principle of the authority to spiritually govern the miserable claimed by the Church.
Keywords: Slavery, Poverty, Sacraments, Charity, Miserabilis persona.
ARTIGO
GOVERNAR A MISÉRIA: ESCRAVIDÃO, POBREZA E CARIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA NO INÍCIO DO SÉCULO XVIII*
GOVERNING MISERY: SLAVERY, POVERTY, AND CHARITY IN PORTUGUESE AMERICA AT THE BEGINNING OF THE 18th CENTURY
Recepção: 24 Setembro 2018
Aprovação: 23 Maio 2019
Negro Gegê quando morre vai pra tumba de banguê, os parentes vão
dizendo: urubu tem que comê!
Fonte: Cancioneiro popular
Na década de 1680, surgiram as primeiras leis portuguesas com que se pretendeu controlar de modo mais efetivo o uso excessivo da violência por parte dos senhores em relação a seus escravos.1 O percurso jurídico é conhecido dos historiadores: em 20 de março de 1688 (apud LARA, 2005, p. 198), uma carta régia direcionada ao governador do Estado do Brasil instruía para que nas devassas gerais houvesse inquirições e fossem denunciados os senhores que maltratassem e castigassem seus “pobres escravos” com crueldade. As delações poderiam ser feitas por quaisquer pessoas, inclusive pelos escravos, obrigando os senhores a vender seus cativos a pessoas que lhes garantissem um tratamento justo.
Três dias depois, uma segunda carta de teor semelhante recomendava sigilo sobre a possibilidade de denúncia por parte dos escravos, para “se evitar que com menos justificada causa possam arguir a seus senhores”. O recuo da censura às ações senhoriais veio acompanhado, na letra da nova lei, do apelo à caridade e da defesa do caráter ancilar da Igreja, por meio da atuação do arcebispo. Entretanto, o receio de que as tentativas de interferência no domínio doméstico pudessem provocar problemas de ordem pública levaram, já no início do ano seguinte, à anulação das normas publicadas em 1688.2 O tema do tratamento digno dos escravos seria novamente enunciado em uma ordem de 7 de fevereiro de 1698 (apud LARA, 2005, p. 211), que se limitou apenas a recomendar “prudência e cautela”, a fim de se evitar que senhores abusassem dos castigos.
As regulamentações que pretendiam intervir no governo doméstico dos escravos constituíam uma novidade jurídica depois de quase dois séculos organizados a partir de uma legislação, comum a todo o império, que havia se mantido alheia a maiores ingerências no domínio senhorial, tacitamente considerando o castigo como um direito privado dos proprietários. O súbito (ou tardio) interesse da Coroa portuguesa em legislar sobre o domínio privado dos proprietários de escravos parece relacionar-se à viragem nas reflexões sobre os modos de governar os cativos que se observa a partir da segunda metade do século XVII, com a montagem dos complexos escravistas inglês e francês nas Antilhas e o surgimento de racionalizações específicas sobre os modos mais eficazes de disciplinar a mão de obra. Nessa nova literatura moral e jurídica, o aspecto religioso emerge como um argumento relevante para o governo sem, contudo, interferir nas bases da soberania doméstica dos senhores (MARQUESE, 2004, p. 19-83).
Ao lado das possíveis influências externas, na região açucareira da América portuguesa, o fim do século XVII é marcado pela exacerbação das tensões sociais entre senhores e escravos, sinalizada pelo aparecimento de atos de resistência, dos quais o caso do Quilombo dos Palmares é o mais paradigmático; durante décadas, autoridades régias manifestaram o temor de que o exemplo de Palmares se multiplicasse em outras comunidades quilombolas, agravando assim as tensões latentes (LARA, 2007; MARQUESE, 2004, p. 19-83; VAINFAS, 1986, p. 84-91). Contudo, um evento específico parece ter dado início às tentativas de intervenção por parte da Coroa: em 1684, um “mulato, provavelmente nascido no Brasil, presumivelmente de origem escrava”, Lourenço da Silva, fez, em Roma, à Congregação do Palazzo di Propaganda Fide , denúncias sobre os maus tratos perpetrados pelos senhores aos seus escravos no Brasil, o que, dois anos depois, provocou a pressão do núncio papal ao governo português no intuito de pôr limites aos abusos da oikonomia escravista.3
A decisão da Coroa de se imiscuir nesse assunto doméstico obrigava a uma repactuação das esferas de tal modo que não tutelasse os escravos, esvaziando a autoridade pessoal dos senhores, e que, ao mesmo tempo, coibisse o uso excessivo da força, estabelecendo algum tipo de limite ao mau comportamento dos senhores. Do ponto de vista régio, a imoderação poderia insuflar revoltas nos cativos e, no limite, fragilizar a legitimidade do governo civil; do ponto de vista dos proprietários, a interferência régia em um assunto privado poderia motivar insolência e altivez da escravaria (MARQUESE, 2004, 19-83; ZERON, 2011b, p. 329). O desafio era o de exortar a justa medida nas relações domésticas sem assumir qualquer posição de defesa aberta dos escravos, nem mostrar total indiferença aos abusos dos proprietários.
Esse empenho por parte das autoridades civis em estabelecer limites à atuação dos senhores encontrou o apoio das esferas religiosas, e doravante conjugaram, por meio da moralização da esfera privada e da atuação das leis civis em casos-limite, dois âmbitos de atuação: um relativo à moderação dos comportamentos, cuja jurisdição era a consciência, disciplinada pela Igreja por meio da confissão e da prédica; outro relativo ao controle temporal, cuja jurisdição era secular, objetivado por meio do direito positivo da Coroa. Essa dualidade de obediências, uma política e outra religiosa, exacerbada desde o Concílio de Trento (1545-1563), era conhecida e aceita por muitos religiosos quando foi concretizada na América.4 As tentativas de regular as ações dos senhores encontraram nos textos de dois jesuítas - Jorge Benci (1650-1708)5 e André João Antonil (1649-1716)6 - e nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia - um corpo de leis canônicas, resultado do sínodo ocorrido em 1707, primeiro e único em terras americanas - suas sistematizações mais bem-acabadas.
Este artigo pretende esclarecer como, por meio do direito canônico, a tópica da miséria dos escravos pôde emergir e ser reivindicada pelos jesuítas, tornando-se elemento relevante para legitimar o foro espiritual da Igreja sobre a doutrinação dos africanos. Ao reconhecer o escravo como uma pessoa digna de compaixão, abria-se uma nova frente de ações de evangelização, protagonizada pela jurisdição eclesiástica. No desdobramento desse percurso, o controle moral sobre a oikonomia senhorial se deu pela confissão e pela prédica, e seu principal instrumento foram as associações leigas.
Em 1693, uma memória escrita por frei José dos Mártires, eremita descalço de Santo Agostinho, foi oferecida ao rei e logo chegou ao conhecimento das autoridades portuguesas.7 O religioso havia estado nas missões do Rio de Janeiro e, entre assuntos diversos, denunciava a morte sem sacramentos, a falta de decoro na inumação dos corpos e a ausência de sufrágios aos escravos. Essa completa pobreza ritual foi parte da pauta de discussões de uma junta formada na cidade do Rio de Janeiro, que reuniu, no Colégio dos Jesuítas, o governador, o bispo, o reitor do Colégio, além das autoridades máximas das demais ordens regulares. Meses adiante, o assunto seria também debatido na Bahia, em outra junta convocada pelo governador, composta por jesuítas - entre eles António Vieira - e consultando-se, em seguida, os beneditinos.
Antes mesmo das deliberações das juntas, uma carta régia enviada ao arcebispo da Bahia retomava o problema do tratamento dos escravos a partir da perspectiva sacramental. Os argumentos utilizados nas leis de março de 1688 são relidos de modo a outorgar aos poderes eclesiásticos o dever de cuidar da salvação espiritual dos escravos, resguardando o princípio da caridade como uma forma de universalizar algum tipo de interferência, ainda que subsidiária. Era preciso repreender os senhores que tratassem os cativos com “crueldade no castigo” ou “dando-lhes trabalho tão excessivo que exceda as forças da natureza humana”. Efetivamente, a recomendação ao arcebispo era consideravelmente genérica - “dar o remédio que for conveniente e que pode ser da vossa obrigação” -, mas revelava como, a partir de 1693, estabeleceu-se uma solidariedade entre Igreja e Estado, diante do fracasso em se efetivar as leis publicadas em 1688.8
Em menos de 20 dias, outra ordem régia endereçada aos governadores censurava “a pouca caridade” em relação aos “escravos enfermos”, sendo frequente que os doentes e moribundos se dirigissem às paróquias, ou morressem sem sacramentos. Na lei expedida aos governadores, o descumprimento de ritos era atribuído a duas possíveis causas, com jurisdições distintas. Enquanto o abuso na cobrança de taxas para administração dos sacramentos deveria ser tratado pelo foro eclesiástico, caberia à jurisdição civil punir os senhores pessoalmente responsáveis pela morte sem sacramento de seus escravos. Nesse caso, os governadores deveriam agir conforme o próprio arbítrio - “como vos parecer justiça e razão” - para que o castigo fosse exemplar, de modo a “deixar advertidos os outros do que devem usar com os seus escravos, facilitando-se todos os caminhos da salvação e que não faltem a obrigação da Igreja, nem os deixem morrer sem os sacramentos dela”.9
Em meio ao clima pouco amistoso que vinha sendo produzido pelas tentativas de interferência na esfera doméstica das relações senhoriais, é possível que o governador tenha decidido não abrir mais um flanco para discussões: à revelia de qualquer punição mais ostensiva aos senhores, preferiu-se atuar por meio das associações religiosas, convocando a irmandade do Santíssimo Sacramento para que providenciasse um altar portátil e assim administrasse o sacramento da penitência aos cativos moribundos da cidade. O enterro passou a ser negociado com as respectivas santas casas de misericórdia a fim de que oferecessem um esquife, “para nele serem enterrados os escravos que não tiverem irmandade”.10
A negociação feita pelos governadores com as misericórdias de Salvador e do Rio de Janeiro era um caminho quase natural a ser tomado nas maiores cidades do império português. Criadas a partir do modelo lisboeta de 1498, essas irmandades inspiravam-se nas 14 obras de misericórdia, formando um repertório plástico de ações assistenciais que jamais pressupôs um número mínimo de serviços.11 As semelhanças entre as congêneres limitavam-se à estrutura administrativa organizada pelo compromisso de Lisboa, frequentemente adaptado às condições locais, e à apropriação retórica do princípio da caridade como justificativa das ações institucionais. Enquanto a extensão desigual de privilégios e isenções acabava por hierarquizar o corpo de misericórdias constituído ao longo do império, o caráter discricionário dos públicos de atendíveis particularizava as ações institucionais, estabelecendo localmente um grupo de “pobres”, a partir de critérios de seleção que variavam conforme os serviços prestados (ABREU, 2014; FRANCO, 2014; SÁ, 1997).
Uma das mais controvertidas precedências foi justamente aquela que garantia à Misericórdia de Lisboa, a partir de 1593, o chamado privilégio das tumbas, autorizando a cobrança de taxas em todos os enterramentos acontecidos na cidade, por meio da posse exclusiva dos esquifes que seriam, portanto, alugados. O privilégio fornecia uma fonte regular de financiamento para a prática da caridade, mas esbarrava na autonomia das demais irmandades para gerir os ritos fúnebres dos confrades, razão pela qual o privilégio nem sem sempre se efetivou a contento. Na história dessas instituições, a provisão de 1593 completava um círculo de ações rituais em torno da morte, doravante protagonizadas pelas misericórdias e justificadas tendo em vista o cumprimento da sétima obra de misericórdia corporal - enterrar os defuntos -, tornando-as naturais responsáveis pelo enterro dos justiçados bem como pela inumação dos corpos dos “pobres” que não faziam parte de irmandades.12
A ampla rede de misericórdias que se constituiu do século XVI em diante funcionava como ponto de apoio do poder monárquico em meio às comunidades, garantindo, noutros termos, o papel disciplinador de hierarquizar níveis distintos de dignidade - pobres meritórios - até a mais completa exclusão dos serviços - pobres não meritórios.13 Na medida em que eram identificadas como um paradigma institucional da caridade, as misericórdias forneciam um ângulo relevante de observação de como eram definidos os contornos do que se compreendia por pobreza, uma espécie de metonímia que efetivamente limitava-se a estabelecer localmente os indivíduos e/ou grupos sociais dignos de auxílio.
À semelhança do que vinha sendo praticado até fins do século XVII, as misericórdias americanas mantiveram-se alheias a qualquer interferência nas relações entre senhores e escravos, considerando os últimos como um grupo específico de caridade que não fazia parte do público preferencial de atendíveis. Em um raro exemplo para o império, o concílio provincial de Goa, em 1606, ordenou que a Misericórdia local recolhesse os escravos doentes no hospital dos pobres, autorizando o provedor a alforriar os cativos abandonados, cujos senhores não os quisessem auxiliar:
Declara o sagrado Sínodo que todo escravo enfermo que o senhor lança fora da casa pelo não curar, e requerido o não manda recolher, fica forro conforme direito. E porque se acham muitos escravos lançados pelas ruas que correm ao desamparo, por não haver que os recolha e proveja de sustentação e cura, pede o sagrado Sínodo aos provedores e irmãos das Casas da Santa Misericórdia, deem ordem por meio de algum irmão para isso deputado. (DECRETO…, 2006, p. 61)14
Diferente do que acontecera em Goa, nas misericórdias criadas na América, os escravos não foram reivindicados como alvos específicos de auxílio. As missivas feitas pelos confrades partiam de uma autocompreensão benemerente com “órfãos”, “viúvas”, “donzelas”, “desamparados”…, categorias suficientemente amplas a ponto de, esporadicamente, poder incorporar cativos, mas sem qualquer pretensão de universalidade. No fim do século XVII, as controvérsias estabelecidas em torno do tratamento dos escravos podem ter contribuído, portanto, para o alargamento do que se entendia por pobreza digna de auxílio, na medida em que as negociações articuladas pelos governadores introduziam um fato novo na dinâmica confrarial, determinando o princípio geral - enterro universal - para a comunidade religiosa (e civil), em detrimento do particularismo das soluções que, por incorporar um pequeno número de escravos ao universo cristão, relegavam ao absoluto menosprezo os que estavam excluídos das redes de solidariedade horizontal.
Nessa direção podem ser lidas as negociações estabelecidas pela mesa da irmandade, em outubro de 1693. No dia quatro, a mesa da Misericórdia da Bahia reuniu-se para tratar do assunto do enterro dos escravos:
era muito conveniente ao serviço de Deus e obra que esta Santa Misericórdia [devesse] fazer no particular de dar a sepultura a todos os escravos em um esquife que [novamente] quer usar esta Santa Casa na [forma] do Breve Apostólico de Sua Santidade e [provimento] de Sua Majestade.15
Em fins do século XVII, essa regalia tinha sido abandonada pela Misericórdia de Salvador, deixando a inumação dos corpos a cargo das confrarias particulares ou das igrejas matrizes, que reservavam o adro para a sepultura dos mais pobres.
Ao centralizar o enterro dos habitantes em uma única instituição interessada financeiramente em fazer valer seu privilégio de exclusividade, a Coroa delegava à irmandade o direito de fiscalizar o eventual desmazelo dos habitantes em relação à morte dos cativos; a ação governamental limitou-se, assim, a negociar uma interferência eclesiástica nos privilégios confrariais, anulando quaisquer autorizações pretéritas dadas a outras irmandades que não a Misericórdia, garantindo, desse modo, a efetiva exclusividade sobre os enterros.16 No edital espalhado pelas ruas de Salvador fazia-se referência aos que estavam fora das redes de assistência particular: “a desconsolação da impiedade com que se enterram nesta cidade não só os escravos, mas também muitos homens brancos, levando-os às sepulturas em redes”, razão pela qual toda a população - “brancos, pardos ou pretos” - seria levada em esquifes da Santa Casa.17
A solução estabelecida em Salvador foi negociada com a Misericórdia do Rio de Janeiro em 1695, em uma triangulação envolvendo o governador, a mesa da irmandade e o provincial do convento dos Carmelitas.18 O acerto reservaria ainda mais um capítulo interessante sobre os limites de intervenção em assuntos domésticos: no primeiro acordo, estipulou-se um esquife com pano coberto, exclusivo para os cativos, cujo cerimonial custaria 960 réis, sendo uma pataca para duas missas e 640 réis para esmola do padre e dos carregadores; em caso de pobreza dos senhores, estabelecia-se a inumação gratuita dos escravos.19
O valor foi considerado excessivo, afinal a Misericórdia da Bahia tinha negociado, havia pouco, a quantia de 400 réis pelos enterros.20 O então governador pediu a baixa do preço e retirou a obrigação de se rezarem duas missas pelas almas dos escravos defuntos, porque “sem embargo de serem boas primícias”, os senhores não deveriam ser obrigados a mandar celebrar missas, assim como não estavam os pais obrigados a mandarem celebrar missas em intenção dos próprios filhos.21 A retirada das missas da segunda negociação provocou dúvidas, pois o bispado havia exortado recentemente, em um dos capítulos da visita pastoral, o dever que os senhores tinham de mandar dizer missas para seus escravos, mas o acordo final retirou qualquer referência peremptória, apelando para a “livre vontade” dos senhores: “havia de ser voluntária e de nenhum modo por obrigação e constrangimento”.22 O resultado pareceu satisfatório ao governador, que, em maio de 1696, escreveu ao rei informando o definitivo acordo com a irmandade da Misericórdia e esclarecendo que faria esforços para que se fizesse uma combinação semelhante em São Paulo.23 Datam desse período os dois primeiros cemitérios gerais controlados pelas misericórdias de Salvador e do Rio de Janeiro que se encarregaram de inumar todos os cristãos pobres das respectivas localidades.
A aproximação entre escravos e pobres não era um artifício simples de ser construído. Pobres meritórios constituía uma categoria ampla, de quase direito, beneficiária da compaixão individual e coletiva dos cristãos e forjada com particular empenho pelas instituições de assistência em consonância com a teologia moral, o direito canônico e a literatura piedosa, ao passo que escravos formavam um segmento à parte, cuja misericórdia era papel dos senhores. Em fins do século XVII, o desafio era o de nuançar os limites do domínio senhorial de modo a garantir algum espaço de intervenção por meio do qual fosse possível integrar os cativos.
A complementaridade dos foros que se desenhou para o caso dos escravos nos anos de 1690 vinha sendo ensaiada para o governo dos indígenas desde, pelo menos, a década anterior. Na Companhia de Jesus, no Brasil, uma polêmica dividiu duas facções, lideradas respectivamente por António Vieira (1608-1697) e André João Antonil. Enquanto Vieira defendia o modelo de evangelização dos indígenas iniciado por Manuel da Nóbrega (1517-1570), objetivado pelo princípio de poder indireto (potestas indirecta ) e que previa a inseparabilidade das jurisdições temporal e espiritual sob o mando exclusivo dos regulares, Antonil advogava uma renovação espiritual que pretendia entregar a administração temporal dos índios a particulares, limitando a ingerência dos missionários tão somente à cura das almas, tal como prescreviam as orientações de Trento (ZERON, 2011b).24
A derrota do projeto de Vieira em 1696 provocaria um rearranjo no interior da Companhia de Jesus, que voltou a funcionar segundo o modelo previsto em suas Constituições - assentada na estrutura colégio/residência/missão e desincumbida da gestão temporal dos aldeamentos. André João Antonil e Jorge Benci são autores de duas importantes obras que pretenderam conciliar a piedade cristã com o governo dos escravos. O texto de Jorge Benci será particularmente importante na elaboração de normativas para o tratamento dos escravos, sendo citado de modo textual nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), que dedicou à escravidão africana 38 parágrafos em um total de 1.318.25
Nos sermões de Benci, escritos na Bahia, sobre o justo tratamento dispensado aos escravos, o tema sacramental emerge em claro desequilíbrio, com especial ênfase dada à penitência e ao matrimônio.26 Embora não houvesse referência imediata às controvérsias acontecidas entre 1693 e 1696, no segundo discurso os senhores são exortados a tomar para si a obrigação que lhes cabe de assegurar uma vivência religiosa por meio do acesso dos cativos aos sacramentos cristãos.27 O desdém sobre os rituais de morte integrava, portanto, um universo mais amplo de incúrias dos senhores no governo doméstico que, no limite, implicava a morte eterna dos escravos e o pecado mortal entre os proprietários.
É especialmente interessante a solução encontrada por Benci para garantir a autoridade dos párocos no tocante à evangelização dos cativos. Duas seções interligadas sintetizam uma dupla obrigação - de senhores e de párocos28 - de cuidar da doutrinação. O encargo ético dos senhores, que pecam mortalmente ao se omitir em relação à conversão dos cativos, nasce de outra dupla origem: o dominium dos proprietários sobre os cativos e a oikonomia cristã, cujo principal cuidado reside no dever de um “pai de famílias” ensinar e doutrinar os servos. A morte sem sacramentos implicava, por parte das almas dos escravos, o clamor por vingança, pondo em questão a própria salvação dos senhores.29
A obrigação dos párocos aparece como um aparte, fugindo ao tom geral do texto - endereçado aos proprietários - e permitindo-se um pequeno parêntese direcionado aos curas e padres seculares, intitulado “Digressão exortatória aos párocos para que ensinem a doutrina cristã aos escravos, como têm de obrigação”. Aqui, o dever pastoral justifica-se tendo em vista a isonomia dos fiéis - pobres ou ricos, livres ou escravos - mesmo diante da impossibilidade de pagamento das taxas pecuniárias que envolviam os ritos. Benci é particularmente duro ao sugerir que o desdém em relação à consciência mais profunda da religião ligava-se à expectativa financeira dos párocos na administração dos sacramentos. Diante da constatação, os escravos são incorporados aos pauperes dignos de caridade, de cujo trabalho pastoral estavam obrigados todos os párocos, conforme prescreviam os concílios da Igreja e, o mais recente deles, o de Trento:
Se os párocos e curas se despirem de toda a afeição que podem ter aos interesses e lucros temporais, logo se hão de considerar deputados especialmente por Deus para doutrinar aos pobres, e assim não deixarão de acudir aos pretos, que entre os pobres são os mais pobres e miseráveis. (BENCI, 1977, p. 93)
A utilização do termo “miserável” parece propositadamente associar o escravo à condição de “miserabilis persona ”, uma categoria herdada da tradição jurídica romana e que se sedimentou no direito canônico a partir de um fundo compósito de glosas, durante a Idade Média. Miserabilis é um adjetivo vago, empregado para descrever “todos cuja natureza nos move à piedade”, reunindo um conjunto aberto de interpretações a serem feitas de modo casuístico, mas que ao mesmo tempo se submetiam à autoridade eclesiástica, segundo as prescrições do ius commune . A depender do contexto, poderiam ser percebidos como miseráveis: viúvas, cegos, incapazes, velhos, cristãos-novos, estudantes, peregrinos, mercadores estrangeiros, escravos alforriados, penitentes públicos, órfãos, crianças, leprosos, enjeitados… A partir da Época Moderna, contudo, consagrou-se o princípio de que a jurisdição eclesiástica não gozava de direito privativo sobre os miseráveis, mas limitava-se tão somente a interferir em caso de falha do direito civil, exercendo um poder subsidiário. Na referida passagem do texto de Benci reverbera a posição dualista do Concílio de Trento (Seção 23, Cap. 1, § 1), no sentido de limitar a interferência dos párocos apenas aos aspectos pastorais (CONCILIO DE TRENTO, 1853, p. 265-266; DUVE, 2017; HELMHOLZ, 1996, p. 16-144). De todo modo, diante desse caráter miserável de um segmento dos fiéis - os escravos -, reivindica-se a legitimidade da jurisdição pastoral sobre eles, que, em última instância, não poderia ser impedida pelo poder pessoal dos senhores, pois estava prevista pelo direito canônico, divino e natural (BENCI, 1977, p. 91).
“Miserável” é um termo usado com frequência por Benci para caracterizar a condição passível de misericórdia. Na conclusão à obra, o jesuíta enumera as quatro razões por que o cativeiro é o estado mais infeliz a que pode chegar uma criatura racional, pois o escravo: (1) é incapaz de domínio e, portanto, não pode se valer de sua própria indústria para adquirir bens; (2) não pode fazer uso da razão, na medida em que perde o exercício da vontade; (3) é objeto de desprezo, sendo, no Brasil, os pretos os mais desprezados; (4) vive em uma condição de morte civil, porque não existe como pessoa jurídica (BENCI, 1977, p. 213-224).
Especialmente no terceiro argumento, Benci faz uma referência implícita ao máximo desprezo recebido pelos “pretos”, ou seja, os escravos recém-egressos da África: “todos os escravos, só por serem escravos, são tidos em pouco e tratados com desprezo (…); mas ainda é mais vil e abatido o trato que se dá aos escravos pretos, só por serem pretos”.30 O jesuíta compara o tratamento aos escravos nascidos na América e aos africanos escravizados, a partir do jogo da péla e do pião; enquanto a péla é jogada só por homens, o pião é jogado só por rapazes, “por isso é jogo mais vil”. Em uma referência metafórica à vida dos africanos escravizados, descreve o jogo do pião: “Lançam-no à terra; açoitam-no para que ande; pisam-no para que pare; e até o ferem com os que eles nesta América chamam de quiles, para o destruírem e acabarem de todo, sendo tantas as apupadas, quantas as feridas”. Ao fim, pergunta ironicamente: “não é isso que se vê pelos adros e pelas ruas (…)? Todos os vemos” (BENCI, 1977, p. 223-224).
No início do século XVIII, a palavra “adro” era sinônimo de cemitério.31 O desprezo pelos africanos - pretos - constatado em ruas e cemitérios não era uma arma retórica descolada da experiência. Diante das muitas violências impostas pela condição do cativeiro que denotam o estado miserável a que os escravos estão submetidos, caberia aos senhores compaixão: “o que só pretendo de vós, é que os trateis como a próximos e como a miseráveis; que lhes deis o sustento para o corpo e para alma; que lhes deis somente aquele castigo que pede a razão; e que lhes deis o trabalho tal, que possam com ele e os não oprima” (BENCI, 1977, p. 223-224).
Retomando as duas seções prescritivas das obrigações de senhores e párocos, nota-se que servem como um introito à terceira parte, escrita em tom de admoestação, referente ao problema da morte sem sacramentos e à resistência senhorial em respeitar o matrimônio entre os escravos. A pobreza ritual aparece em termos análogos à constatação feita anos antes pelo agostiniano José dos Mártires, mas, no texto de Benci, a reprimenda aos senhores dita um apelo às suas consciências seguindo, portanto, um alvo certeiro no texto do jesuíta:
Se os senhores do Brasil entendessem bem esta verdade, certamente não deixariam morrer os escravos muitas vezes sem confissão e muitas mais sem viático. Que senhor haverá, que não deseje morrer sacramentado? Pois estando o servo gravemente enfermo, por que não lhe dá penitência? Por que lho dilatais de sorte que, quando chegar o sacerdote, o acha destituído dos sentidos e talvez já morto? E se, por causa do vosso descuido, se perder a alma do escravo, que clamores e brandos não dará ela do profundo do inferno, pedindo a Deus vingança contra seu senhor, que por lhe não acudir com a confissão a tempo, a deixou cair naquele abismo de penas? (BENCI, 1977, p. 100)
Ao lado das punições celestiais previstas pelo mau comportamento dos proprietários, há ainda um ponto pouco observado pela historiografia: o considerável personalismo que parece vigorar na doutrina dos escravos até então. A defesa que se observa nos textos de Benci, das Constituições e de Antonil salienta o caráter solidário das ações de senhores e párocos, mas também estabelece fronteiras na administração dos sacramentos, de modo a moralizar os próprios párocos, pouco atentos aos desmandos rituais dos proprietários. Por isso, a complementaridade dos papeis de senhores e párocos não deve negligenciar o decoro no cumprimento de ritos controlados por normas canônicas:
E quando não possais ou não queirais doutrinar por vós mesmos os vossos escravos: por que os não trazeis aos Colégios e Casas de Companhia, e aos mais Conventos das outras famílias religiosas, onde há operários, que tem à sua conta ensinar os escravos no seu mesmo idioma; por que desta sorte se suprirá a vossa falta? (BENCI, 1977, p. 89)32
Escrito anos depois, o texto de André João Antonil segue referências marcadas em relação à penitência e ao matrimônio, possivelmente reverberando os impasses acontecidos na América da década de 1690 e o texto de Benci. Não obstante o tom consideravelmente mais secularizado dado por Antonil ao seu Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711), figura entre as obrigações dos senhores com seus escravos a escolha de um capelão responsável por doutrinar os cativos e seus familiares. Antonil deixa entrever esse possível desleixo de conversão, advertindo que a doutrina não poderia ser ensinada por crioulos ou feitores que se limitavam a instruir e memorizar as orações e os mandamentos (ANTONIL, 2007, p. 87-89). A mesma censura é feita à apropriação indevida dos ritos, como o sacramento da penitência ministrado aos cativos à revelia dos eclesiásticos:
Mas advirta, na administração deste sacramento [da penitência], que não é o senhor dele, por muita autoridade que tenha; porque se o penitente não for disposto por causa de estar amancebado ou andar com ódio do próximo ou por não tratar de restituir a fama ou a fazenda que deve, ainda que fosse o mesmo senhor do engenho, o não há de absolver; e nisto poderia haver, por respeito humano, grande encargo de consciência, e culpa bem grave. (ANTONIL, 2007, p. 87-89)
A interferência ética para disciplinar as práticas pretéritas consideradas impróprias que esteve no centro de um debate jesuítico levado a cabo desde os anos 1680 por Antonil e Benci configura uma novidade, cujo percurso de reflexão tem no sínodo baiano de 1707 outro momento privilegiado. No texto das Constituições , reconheciam-se abusos no trato dos proprietários com seus escravos, mas a censura centrava-se na negligência senhorial em relação às obrigações religiosas dos cativos. No que diz respeito ao enterro dos escravos, as Constituições seguem a orientação canônica de inumar os cristãos em solo sagrado, sob o princípio de fraternitatem de sepulturis: “que nenhuma pessoa de qualquer estado, condição e qualidade que seja, enterre, ou mande enterrar fora do sagrado defunto algum, sendo cristão batizado”. Nesse quesito, evocam-se as experiências prévias acontecidas na América, a fim de recomendar o maior cuidado em relação aos corpos dos cativos:
E porque na visita que temos feito de todo nosso Arcebispado achamos (com muito grande mágoa de nosso coração) que algumas pessoas esquecidas não só da alheia, mas da própria humanidade, mandam enterrar os seus escravos no campo e mato, como se foram brutos animais. (VIDE, 2010, p. 441-442)
O descumprimento previa pena de excomunhão e multa de 50 cruzados, a ser parcialmente gasta em sufrágios em intenção da alma do escravo.
O dever de se celebrar missas em intenção às almas dos cativos aparece também como uma exortação moral, sem maiores implicações objetivas:
E porque é alheio da razão e piedade cristã que os senhores que serviram de seus escravos em vida se esqueçam deles em sua morte, lhes encomendamos muito que pelas almas de seus escravos defuntos mandem dizer por cada um escravo, ou escrava que lhe morrer, sendo de 14 anos para cima, a missa de corpo presente pela qual se dará a esmola costumada. (VIDE, 2010, p. 440)
Esse era um notável recuo observado nas negociações estabelecidas, no Rio de Janeiro, entre o governador, a Misericórdia e os senhores de escravos.
A ênfase posta aos aspectos sacramentais da vida religiosa dos escravos era, ao mesmo tempo, um controle dos senhores e dos próprios eclesiásticos, na medida em que as novas pretensões de universalização do projeto missionário deveriam impor ações efetivas por parte da Igreja no sentido de enfraquecer antigas solidariedades que silenciavam sobre a indiferença a respeito da cristianização dos cativos. Esse período é particularmente fértil em denúncias contra a exorbitância das taxas cobradas pelos párocos e capelães para a administração dos ritos. Como se pretende mostrar na próxima seção, a redefinição das jurisdições implicou ainda um novo arranjo a respeito da evangelização dos africanos, que se apoiou, sobretudo, nas associações leigas.
Poucos anos depois de comandar o sínodo ocorrido na Bahia, em 1712, Sebastião Monteiro da Vide (1643-1722) enviou uma súplica a d. João V, ressaltando a escassez de padres “que cultivem esta dilatada vinha” e a urgência de se fundarem igrejas. A argumentação se valerá justamente da normativa estabelecida nas Constituições como uma estratégia para reivindicar o maior rigor no cumprimento dos sacramentos por todo o arcebispado. O problema da negligência pastoral aparece como uma questão de acanhamento da estrutura eclesiástica diante da dispersão populacional e da enormidade do território. Esses óbices, comuns a boa parte da população, assumiam situações-limite quando se observavam os casos dos escravos: “mas ainda são dignos de maior compaixão e lástima os sobreditos inconvenientes considerados nos escravos, que é o maior número de almas de que consta meu arcebispado” (VIDE, 1981, p. 336-337).
Na súplica de 1712, o arcebispo enfatizava a rapidez na venda dos africanos recém-chegados que, sem batismo, eram postos a trabalhar. Em um ano, poucos eram cristãos, sendo fácil encontrar pelas freguesias da Bahia um número expressivo de escravos com mais de quatro anos sem poderem ser batizados por falta de suficiente instrução: “e a todos é manifesto as muitas crianças que continuamente se batizam, filhas de pretas infiéis, às quais geraram muito depois de estarem n’esta terra” (VIDE, 1981, p. 339). Do mesmo modo, parte substantiva morria sem sacramentos, e alguns “tão miseravelmente que nem outro preto têm à cabeceira que lhes lembre o santíssimo nome de Jesus” (VIDE, 1981, p. 340). Essas negligências em série, manifestas no desdém em relação aos ritos e à morte dos africanos, deveriam ser corrigidas para sanar essa incorporação “imperfeita” ao cristianismo, uma vez que “por esta dilatação que se tem com os pobres infiéis, são muitos os que morrem no paganismo e se enterram no campo” (VIDE, 1981, p. 339). O relato de Monteiro da Vide esclarece a ênfase posta por Benci na necessidade de tempo para a doutrinação dos escravos, de modo a cumprir a metáfora da justa medida entre sustento físico, doutrina religiosa e trabalho (panis, et disciplina, et opus servo ).33
Nos textos de Benci e de Antonil também se diagnostica o modo de ação dos senhores a partir de tópicas comuns a esse período: são omissos em garantir a doutrina cristã, em fazer administrar os sacramentos, em cuidar da alimentação e da vestimenta dos escravos; justificam suas negligências a partir do argumento pouco convincente de boçalidade dos cativos, sem se atentar para a diversidade de etnias e de temperamentos individuais. Por outro lado, a presença de africanos pagãos convivendo durante anos entre os cristãos é a consequência perversa do personalismo das relações entre senhores e párocos, produzindo um silenciamento diante da fragilidade das estruturas eclesiásticas, onde, fora das cidades, “todos são negligentes”.34 A inumação indigna aparece como violência simbólica indicativa do fracasso do processo de cristianização como um todo.
O contraponto do destino infame em relação às exéquias dos cativos pode ser notado, de forma paradigmática, nos compromissos das associações leigas. Foram elas as principais responsáveis por garantir o decoro e a pompa que distanciavam os cristianizados dos boçais. Eram também uma forma eficaz de doutrinação, manifesta na vivência regular dos sacramentos, das missas, da sociabilidade horizontal que disciplinava cativos e senhores. O aumento das associações de leigos capilarizava ainda a atuação de curas e capelães, financiados pelas irmandades, desonerando a Coroa da tarefa de realizar a doutrinação dos escravos de forma exclusiva pelas paróquias. Por sua vez, o episcopado conservou o papel de censor, a quem caberia autorizar e fiscalizar os livros de compromisso e a atuação das irmandades. Essa complementaridade de ações ganhou força em fins do século XVII, dando às irmandades de negros um fôlego imprevisto até então. Cada vez mais controladas pela hierarquia eclesiástica, as associações de leigos foram o ponto de apoio sobre o qual se construiu a autoridade da Igreja, mediando, em termos distintos, não só a atuação dos senhores, mas também dos eclesiásticos.
A dupla obediência que se desenhou em fins do século XVII sedimentou um foro religioso que, ao mesmo tempo que abria mão de qualquer interferência na jurisdição civil, passou a reivindicar maior ascendência nos assuntos de doutrina. Nesse percurso retórico, a jurisdição pastoral sobre os miseráveis tem particular importância. Como dito anteriormente, esse é o argumento utilizado por Benci para obrigar os párocos a doutrinar os cativos: definido por Trento e recuperado no texto do jesuíta, o aspecto miserável dos escravos será retomado nas Constituições como argumento incontornável para o exercício da caridade, que, no limite, pode desconsiderar a vontade dos senhores (BENCI, 1977, p. 91-98; CONCILIO DE TRENTO, 1853, seção 23, cap. 1, § 1).35
O estabelecimento de procedimentos gerais, como a centralização dos enterramentos sob a responsabilidade das misericórdias e a organização de cemitérios dos pobres, deveria funcionar como um constrangimento aos senhores relapsos, na medida em que estabeleciam esferas de atuação distintas para práticas cuja solução era costumeiramente pessoalizada. Esse relevo no caráter universalizante de ritos e sacramentos contribuiu para aproximar os escravos à categoria dos pobres, como um segmento digno de compaixão. Ainda que os cativos não tenham feito parte dos grupos de auxílio das instituições de assistência, como as santas casas de misericórdia, ao longo do século XVIII, um novo repertório de práticas justificadas como indulgência, caridade, piedade, tornou-os menos indignos de benemerência, incorporando-os, de modo contingente e seletivo, ao ecúmeno cristão. É nessa direção que podem ser lidos alguns fenômenos bem marcados a partir de fins do século XVII, como o substantivo aumento no número de alforrias (MARQUESE, 2006; SOARES, 2009) e o verdadeiro surto de irmandades de negros que, não obstante estivessem presentes no território desde o início da colonização, doravante passam por uma substantiva inflação de fundações (CAMPOS, 1988; MULVEY, 1980; OLIVEIRA, 2008; REGINALDO, 2011; REIS, 1991, p. 49-72; SOARES, 2000).
O incentivo à formalização das irmandades de negros como um espaço elástico da manifestação religiosa dos africanos funcionou, portanto, como forma eficaz de garantir a doutrinação e a maior ingerência eclesiástica em um assunto anteriormente resolvido no interior da casa grande.36 Prova do grande vigor institucional desses estabelecimentos foram as verdadeiras batalhas travadas a partir do século XVIII entre irmandades de negros e misericórdias, para que as primeiras detivessem o direito de usar esquife próprio para o enterro dos irmãos. O monopólio das tumbas da Santa Casa acabava por controlar também parte dos rituais de morte e foi lido como uma das mais ofensivas interferências nas prerrogativas das irmandades de negros de oferecer um enterro digno aos irmãos. Especialmente no caso dos africanos, pertencer a associações leigas era a forma mais efetiva de afastá-los de experiências sumárias, como eram o enterro anônimo e a simples desconsideração ritual.
Na antiga canção que integra a epígrafe deste artigo, a dura realidade dos escravos, sobretudo os africanos, foi cristalizada na memória popular. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a despeito da constituição de cemitérios gerais em Salvador e Rio de Janeiro, as descrições dos enterros em banguês - uma rede segurada nas pontas por um tronco de madeira - davam o testemunho da vulnerabilidade daqueles que estavam fora das irmandades. A ênfase na vida associativa como o meio mais eficaz de integrar os escravos, sem ser necessário exercer qualquer perseguição ostensiva ao descompromisso dos senhores, foi posta na ampliação do escopo de cristianizá-los por meio do aumento de irmandades. Os que estavam fora das associações e não poderiam se valer de solidariedades informais estavam sujeitos à inumação em adros ou em cemitérios gerais, destinados a fazer cumprir a sétima obra de misericórdia.
Iris Kantor e Rafael de Bivar Marquese
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