Resumo: Este artigo analisa a relação entre o Estado e o setor de diamantes durante a “segunda ocupação colonial” de Angola. Começa em 1961 com o início de uma luta entre vários grupos pelo controle da Angola colonial e termina com a retirada dos portugueses da colônia após a derrubada do Estado Novo por um golpe militar em Lisboa em abril de 1974. Durante esse tempo, o poder colonial português, ao mesmo tempo em que recusou uma abertura política aos movimentos nacionalistas, envolveu-se em uma série de reformas legais e econômicas que colocaram a colônia em um caminho acelerado para a industrialização. No entanto, o setor de diamantes permaneceu essencial à defesa do poder do Estado em uma área estratégica, porém hostil, que ainda permanece, por razões históricas, além do alcance das instituições estatais formais.
Palavras-chave: Indústria de diamantesIndústria de diamantes,Angola colonialAngola colonial,guerra de libertação angolanaguerra de libertação angolana,LundaLunda,formação do Estadoformação do Estado.
Abstract: This article analyzes the relationship between the State and the diamond sector during Angola’s “second colonial occupation”. It starts in 1961 with the beginning of a struggle between various groups for colonial Angola control, and ends with the withdrawal of the Portuguese from the colony after the overthrow of the Estado Novo by a military coup in Lisbon in April 1974. During that time, Portuguese colonialism, while refusing political openness to nationalist movements, became embroiled in a series of legal and economic reforms that put the colony on a fast track for industrialization. However, the diamond sector remained essential to defending State power in a strategic but hostile area - an area that remains, for historical reasons, beyond the reach of formal State institutions.
Keywords: Diamond industry, colonial Angola, Angolan liberation war, Lunda, State formation.
ARTIGO
DIAMANTES, DESENVOLVIMENTO E CONFLITO: O PAPEL DO SETOR MINEIRO NA POLÍTICA DE ESTADO E DE GUERRA NO ESTADO COLONIAL TARDIO DE ANGOLA, 1961 - 1974
DIAMONDS, DEVELOPMENT AND CONFLICT: THE ROLE OF THE MINING SECTOR IN THE POLITICS OF THE LATE COLONIAL STATE IN ANGOLA, 1961-1974
Recepção: 23 Fevereiro 2018
Aprovação: 13 Setembro 2018
O objetivo deste artigo é analisar a relação entre o Estado e o setor de diamantes durante a “segunda ocupação colonial” de Angola, de 1961 até 1974.1 Argumenta-se que esta relação permaneceu mutuamente constitutiva - girando, como sempre, em torno de um governo indireto privado -, apesar das consideráveis turbulências políticas e militares durante o período.2
O trabalho tem início em 1961 com a eclosão da luta pelo controle da Angola colonial entre três movimentos nacionalistas, um movimento separatista e o governo colonial. Termina com a retirada dos portugueses da colônia após a derrubada do Estado Novo por um golpe militar em Lisboa em abril de 1974. Durante esse tempo, o poder colonial português, ao mesmo tempo em que recusou uma abertura política aos movimentos nacionalistas, envolveu-se em uma série de reformas legais e econômicas que colocaram a colônia em um caminho acelerado para a industrialização.3 Mais de uma década depois do que a maioria dos seus semelhantes europeus, o Estado colonial de desenvolvimento português havia finalmente chegado.4
Antes de 1961, o Estado colonial já havia permitido que a Diamantes de Angola (Diamang) se transformasse num centro autoritário todo-poderoso que executaria a maioria das funções do Estado na Lunda dominada pela indústria de diamantes. Entretanto, enquanto este arranjo fazia sentido no contexto das medidas fiscais severas, ele perdeu sua pertinência quando o Estado colonial embarcou na aventura do desenvolvimento (CLARENCE-SMITH, 1985, p. 130-132).5 No entanto, o Estado continuou a se apoiar no setor de diamantes ao longo da segunda ocupação colonial. Este artigo explica o porquê: a empresa permaneceu essencial para a defesa do poder do Estado em uma área estratégica, porém hostil - uma área que se manteve, por razões históricas, além do alcance das instituições estatais formais.
O argumento desenvolve-se da seguinte maneira: fundada em 1921, a Diamang, um dos principais geradores de receita da colônia, assumiu um papel fundamental na administração da Angola colonial nos anos que levaram à Segunda Guerra Mundial. Contudo, durante este período, vários segmentos políticos em Lisboa assim como os atores empresariais na Angola colonial começaram a desafiar o arranjo de duas décadas entre o Estado e a empresa de diamantes. A Diamang passou por um considerável escrutínio durante os anos de 1950. No início da década de 1960, a empresa tinha se tornado um símbolo de rigidez colonial e anacronismo para a nova onda de burocratas modernizadores que emergiram nessa época.6 A aposentadoria de Ernesto de Vilhena, o patriarca e administrador delegado da empresa, em 1966, prognosticava o fim do fácil arranjo da empresa com o Estado português e a reestruturação da indústria mineira como um todo.7
Mesmo assim, a dependência estatal de funções cruciais da Diamang continuou. Embora tenha restringido os esforços da Diamang para manter e reforçar o aparato físico de seu governo indireto privado, a guerra de independência também proporcionou novas oportunidades para a empresa reafirmar seu papel como o principal representante e defensor do Estado em Lunda. Os padrões regionais do conflito militar no leste angolano, especialmente após 1966, associados à tendência histórica do Estado para delegar autoridade na região, levaram o Estado a demandar da Diamang um papel coercitivo essencial em Lunda.
Este artigo é dividido em duas seções. A primeira examina o Estado de desenvolvimento e, em particular, o setor mineiro na Angola colonial. A segunda seção avalia o surgimento de movimentos nacionalistas no leste de Angola e examina o papel da Diamang em suprimir e repelir estes movimentos em nome do Estado.
Embora a experiência colonial tardia em Angola seja, de muitas formas, distinta da de outras colônias europeias, uma compreensão das últimas políticas do Estado Novo envolve uma compreensão da história mais ampla do colonialismo de desenvolvimento na África. A seção considera, em seguida, a relação complicada, mas em última análise co-constitutiva, entre o Estado colonial angolano e a Diamang durante o período.
Após a Segunda Guerra Mundial, o Império português tentou adiar, por meio de mudanças superficiais, ou evitar, por meio da propagação da ideologia lusotropicalista, o paradigma do desenvolvimento conduzido pelo Estado que havia surgido em outros lugares na África colonial. No entanto, os desenvolvimentos internos às colônias, combinados com a onda de independência na África britânica, francesa e belga, transformaram o envolvimento da população africana na economia colonial e a integração desta última na economia mundial em condições para a sobrevivência política do Estado Novo (YOUNG, 1997, p. 174-6).8
Um dos principais ideólogos do Estado colonial de desenvolvimento de Portugal, Adriano Moreira, juntou-se ao governo português em 1960 como subsecretário de Estado da Administração Ultramarina e rapidamente subiu ao poder. Seu mandato breve como ministro do Ultramar (abril 1961-dezembro de 1962) causou uma forte impressão sobre a Angola colonial.9 Moreira aboliu o status indígena de segunda classe em setembro de 1961, estabelecendo a igualdade política formal entre todos os portugueses - um status que agora incluía as populações africanas -, e promulgou o código de trabalho rural em abril de 1962, proibindo o trabalho forçado, em resposta às revoltas violentas nas plantações de algodão.10
Embora os estilos e a liderança variem, os governadores subsequentes - Venâncio Deslandes (1961-1962), Silvino Silvério Marques (1962-1966) e Camilo Rebocho Vaz (1966-1971 e 1971-1972) - igualmente personificavam os burocratas modernizadores de Frederick Cooper, importando os rituais, práticas e discursos do Estado moderno para a Angola colonial (COOPER & STOLER, 1997, p. 60-70).11 Eles reajustaram a burocracia colonial de acordo com suas próprias prioridades, criando novas agências econômicas e rompendo com acordos de longa data entre o Estado colonial e os atores não estatais.12 Ganharam apoio generalizado das elites de Luanda e de Lisboa interessadas na abertura da colônia. Como esta seção vai mostrar, logo emergiram como os maiores rivais da Diamang desde a criação da empresa.
Durante a longa década seguinte, Portugal lançou os fundamentos das economias de mercado a nível nacional nas colônias, numa grande ruptura com práticas minimalistas e extrativistas do início do período colonial. O Estado revisou a legislação que regia as operações de investimento estrangeiro nos territórios ultramarinos portugueses. O Decreto-Lei nº 46.312 de abril de 1962 abriu formalmente a economia colonial de Angola a todos os tipos de investimento estrangeiro, exceto em utilidades públicas, em propriedades de domínio público e em áreas relacionadas com a defesa do Estado. Embora perfizesse menos de 15% da formação bruta de capital fixo antes de 1964, o investimento estrangeiro aumentou para cerca de 25% em 1966. Aproveitando o boom do café na década de 1950, o influxo de investimentos estrangeiros revigorou a economia angolana, produzindo taxas de crescimento iguais ou superiores aos de outras colônias africanas.13
Assim, o regime colonial português, que tinha ficado para trás até a década de 1950, eventualmente seguiu o exemplo e até superou seus semelhantes europeus em sua ênfase no desenvolvimento conduzido pelo Estado. Portugal voltou-se para o planejamento do desenvolvimento no início da década de 1950, mas foi o advento da guerra de libertação em 1961 que efetivamente desencadeou um projeto de desenvolvimento em Angola. A combinação da gestão tecnocrata competente e a implacável contrainsurgência confinaram a guerra às margens da colônia, permitindo que as partes centrais do território crescessem numa média de 4,7% durante este período. Neste processo, a Angola colonial tardia deslocou-se do “velho” pacto colonial - em que a colônia servia como fornecedora de commodities numa economia protecionista - ao “novo” pacto colonial: uma colônia industrializada, com uma considerável população de 350.000 colonos, a segunda maior na África Subsaariana depois da África do Sul, e uma próspera economia de mercado de sisal, milho, café, algodão, minério de ferro e, claro, diamantes. “O surto de desenvolvimento colonial tardio dos anos 1960 e início dos anos 1970”, como Clarence-Smith coloca, “trouxe Angola e Moçambique para dentro da faixa média da África Subsaariana”, mesmo que fosse preciso o desafio nacionalista para estimulá-lo.14 A próxima seção considera as implicações do advento do Estado colonial de desenvolvimento para a indústria mineira.15
Angola tem sido, até recentemente,
virtualmente uma loja fechada.16
Concomitante com a ascensão do modelo de desenvolvimento em Lisboa veio a transformação da indústria mineira em Angola. Essa transformação começou com a centralização gradual da tomada de decisões nas mãos de uma estrutura burocrática e profissional. No início, a burocracia estatal tinha controle marginal sobre a indústria que gozava de poderes virtualmente ilimitados.17 Mas em junho de 1966, a Direção Geral da Economia (DGE) lançou um grupo de pesquisa para desenvolver, através da compilação e do estudo da legislação, um novo quadro regulatório. Criado em 1970, a Inspeção Geral de Minas (IGM) renovou completamente a indústria mineira.18 Posteriormente, a IGM supervisionou todas as vertentes de tomada de decisão, fortalecendo um novo elenco de burocratas com influência sobre contratos de prospecção e comércio. Como Michael Chapman escreveu na época, a IGM destacou-se como “uma das mais eficazes agências governamentais angolanas”.19
Longe de serem dissuadidos pelos ventos políticos da mudança, várias empresas começaram a explorar o potencial dos territórios ricos em mineração da Angola colonial. A Companhia de Fosforitos de Angola descobriu fosfatos nos distritos de Cabinda e Congo e a Empresa do Cobre de Angola, financiada pelos portugueses da Companhia da União Fabril, retomou sua busca por reservas de cobre no distrito do Congo. Financiada com capital suíço e japonês, a Sociedade de Investigações Mineiras explorou depósitos localizados perto de Mocâmedes no distrito de Namibe.20 Finalmente, a Companhia Mineira do Lobito encontrou ouro perto da mina de ferro de Cassinga e outra empresa financiada pelo maior conglomerado de minérios do mundo, a AngloAmerican, descobriu cobre na região de Cazombo. Entre 1964 e 1968, projetos de mineração prosperaram nos distritos do norte, com as exportações mineiras subindo de £ 87 milhões em 1964 a £ 120 milhões em 1968. Quando as minas em Cassinga chegaram ao pleno funcionamento, exportavam uma média de £ 17 milhões. A Companhia do Manganês exportou algumas centenas de milhares de toneladas de minério de ferro de depósitos localizados entre as cidades de Salazar e Malange (CHAPMAN, 1969).21
Todavia, a Diamang permaneceu o ator central na indústria mineira, bem como o principal fornecedor de exportações mineiras do Estado colonial ao longo deste período. Os arquivos do Ipad mostram que a burocracia estatal continuou a privilegiar a Diamang, apesar das tensões sociais que rodeavam a empresa. Por exemplo, a Companhia de Minas Angolana, que detinha direitos de prospecção de diamantes, gesso e enxofre nas zonas costeiras, reclamou, no seu relatório anual de 1972, que se manteve difícil, “se não impossível”, estabelecer atividades independentemente da Diamang.22 Isto não deveria surpreender, dada a importância da empresa em relação às outras indústrias mineiras. Entre 1966 e 1971, as exportações de diamantes duplicaram para o total de £ 35 milhões, com o minério de ferro e o óleo seguindo atrás com £ 23 milhões e £ 21 milhões, respectivamente.23
Mesmo assim, quanto mais a indústria mineira diversificava as suas atividades e envolvia novos investidores, mais o sistema monopolista da Diamang ficava sob escrutínio.24 A licença concedida à Diamang em 1921 para minerar cerca de 90% do território bem como o seu direito exclusivo no comércio de diamantes já tinham sido limitados no momento da sua segunda renovação em 1951. Uma especulação sobre seu status aumentou à medida que o prazo de vinte anos se aproximava e os investidores estrangeiros bem como os nacionais instavam o Estado colonial a substituir um sistema de concessão monopolista por um sistema de competição. Quando o acordo entre o Estado e a Diamang expirou em 1971, o Estado colonial pôs fim ao monopólio e reduziu consideravelmente a área concessionária da empresa.
No lugar do sistema de monopólio emergiu um consórcio de mineração, o Consórcio Mineiro de Diamantes (Condiama), uma joint venture entre Portugal, a Diamang e o grupo De Beers. Criado em 1971, o Condiama rapidamente se tornou o consórcio mais importante a emergir no período pós-monopólio. De todos os pontos de vista, ele era muito mais vantajoso para o Estado colonial do que a Diamang. Por exemplo, o primeiro precisava de autorização estatal antes que pudesse vender seus bens, algo que a Diamang não necessitava. O Estado colonial poderia solicitar empréstimos do Condiama a juros inferiores aos do Banco de Portugal. Um fundo soberano, o Fundo de Fomento Mineiro, recebia 2.000 contos anualmente. Além de uma tributação de 12,5%, o Condiama pagou ao Estado de acordo com o número de reservas de diamantes exploradas e devia um prêmio para cada nova descoberta. Finalmente, o Estado colonial poderia reivindicar de volta as reservas de diamantes inexploradas após um período de cinco anos, e tinha o direito de supervisionar a produção da mina para o mercado (GOUVEIA, 1993, p. 190).25
Estes desenvolvimentos influenciaram as relações do Estado com a Diamang de forma substancial no período colonial tardio. Mais importante, eles viram a abordagem do Estado em relação à indústria mineira mudar constante e significativamente, com o sistema baseado no monopólio de poder da Diamang e a liderança pessoal de Vilhena dando lugar a um sistema burocrático mais competitivo e diversificado. Todavia, tais mudanças não colocaram um fim à dominação do setor de diamantes pela empresa ou ao seu controle quase-estatal de Lunda. Mesmo quando o desenvolvimento e o intervencionismo estavam no auge, a região rica em diamantes permaneceu fora do escopo de atuação das instituições estatais formais. Além disso, a importância fiscal da Diamang para sustentar o Estado colonial de desenvolvimento restringiu as ambições reformistas da burocracia estatal.
Enquanto a seção anterior examinou as razões e as maneiras pelas quais o Estado metropolitano forçou um maior controle da indústria mineira, esta seção analisa como a administração colonial mobilizou forças políticas para controlar a Diamang, como a empresa respondeu a tais pressões e como esses eventos mudaram as vidas dos europeus que trabalhavam na empresa.
Tensões na relação do Estado colonial com a Diamang ganharam ímpeto durante a década de 1950, uma vez que as crescentes ambições dos colonos portugueses colidiram com o monopólio da empresa sobre todas as formas de trocas comerciais e de crédito em Lunda.26 Apesar da retórica nacionalista, os colonos acreditavam que o Estado português favorecia os interesses estrangeiros sobre os nacionais e que a empresa melhor ilustrava esta parcialidade.27 Os protestos dos colonos forneceram munição para os burocratas coloniais, cujo longo e latente conflito com a empresa sofreu uma guinada intensa na década de 1960.
Durante seu mandato como governador do distrito de Uíge, região rica em café e bastião da resistência mais influente contra a Diamang, Rebocho Vaz confrontou a empresa através da imprensa colonial. O Jornal do Congo, órgão de imprensa dos barões do café, publicou uma série de artigos que argumentavam pela liberalização do setor de diamantes. Em 1962, o governador geral nomeou um aliado de Rebocho Vaz, o coronel Araújo Ferreira, como governador do distrito de Lunda - uma posição de profunda importância para Diamang. O governador do distrito aumentou a restrição de importações em equipamentos pesados e autorizou a presença de outras lojas além das da Diamang na área circundante a Dundo, incluindo Portugália, em uma ousada tentativa de desafiar o controle da empresa sobre Lunda.
Mas as ações dos burocratas modernizadores não refletiram um consenso em Angola colonial. Uma vertente da administração colonial viu o frenesi de desenvolvimento como disruptivo de sua autoridade sobre a sociedade. Para alguns de seus departamentos, como o Serviço dos Negócios Indígenas e a Administração Civil de Angola, o fim do status indígena de segunda classe significava o fim de seu poder regulatório (KEESE, 2003, p. 114).28 Sem surpresa, o administrador delegado da Diamang, Ernesto de Vilhena, encabeçou o ataque reacionário.
Em sua vasta correspondência com Salazar, Vilhena tentou ilustrar como os burocratas modernizadores estavam conduzindo Angola ao declínio moral. Ele retratou Rebocho Vaz como um jovem e inexperiente administrador, “culpado de demagogia e compadrio local”. “Delegados e secretários perpetuaram fantasias e intrigas”. Instigaram um “clima de perseguição” contra a Diamang, tomando medidas contra as empresas mais poderosas. Embora consciente de que a Angola colonial enfrentava uma pressão interna significativa, ele considerou que os burocratas modernizadores só acelerariam o seu colapso:
Ele [o governador geral] não percebeu a importância de que medidas de progresso social e elevação política do nativo precisavam ser conduzidas gradualmente, para atrasar um evento que nós deveríamos ter previsto: que ao colocar em evidência as elites africanas levar-se-á inevitavelmente a uma transição para a independência. 29
A última gota para Ernesto de Vilhena veio com a nomeação de Rebocho Vaz como governador geral. Citando sua saúde em declínio, o outrora todo poderoso comandante anunciou sua aposentadoria. Em sua carta de renúncia a Salazar, Vilhena descreveu-se como “cansado e doente, lutando para suportar - sem suporte oficial - os pretextos e disparates do Governador Geral Silvério Marques de Angola”.30 Acusou Silvério Marques de “cumplicidade ativa” com Rebocho Vaz e de “violações concretas do espírito e da letra do contrato celebrado entre o Estado e a Companhia de Diamantes de Angola”. Ele pediu a nomeação de um governador geral “amplamente inteligente”, sem “o ódio (este é o termo apropriado) para com tudo que se revela alto, distinto, e de horizontes rasgados”. Apesar de seus protestos líricos, Rebocho Vaz assumiu como governador geral de Angola colonial três meses após a renúncia de Vilhena.31
Mais do que o resultado de uma briga pessoal amarga, a derrota de Vilhena nas mãos de Rebocho Vaz marcou o fim da ampla autonomia da Diamang dentro da Angola colonial. A relação entre Vilhena e Salazar havia garantido por décadas o arranjo favorável da empresa com o Estado português. Embora Vilhena compartilhasse laços políticos com Norton de Matos, o alto comissário republicano anti-Salazar da década de 1920, ele se uniu a Salazar em torno de objetivos comuns: limitar o poder da elite e da administração colonial de Luanda, organizar a extração de diamantes da colônia e promover o caráter mutuamente constitutivo das relações entre a companhia e o Estado. Mas, uma vez que os pilares do “velho” pacto colonial desintegraram-se ante a pressão dos burocratas modernizadores, novos interesses e centros de poder desafiaram a pré-carré da Diamang. A correspondência mostra Salazar cada vez mais fazendo ouvidos de mercador para Vilhena: deixando para trás seu tom geralmente comprometido e de apoio, Salazar explicou em uma carta que estava “profundamente entristecido” e “desgostoso que os atos da administração angolana pudessem ser interpretados como inimizade ou perseguição”, mas ele “não tinha conhecimento suficiente sobre a questão” e confiava que Vilhena “tomaria as melhores decisões”, significando que a sua vontade de agir em nome de Diamang não era mais o que costumava ser.32
Face à renúncia de Vilhena, a Diamang não tinha escolha senão envolver-se em seu próprio período de desenvolvimento para se ajustar à nova realidade política e social do Estado colonial. Quando a guerra de independência começou em Angola colonial, em 1961, a comunidade da Diamang, que contava com uma maioria de portugueses e um punhado de nacionais de outros países, estava bastante consolidada (PIMENTA, 2012, p. 59-85).33 Cientistas, médicos e engenheiros lideravam a comunidade, enquanto enfermeiros, sacerdotes e professores formavam o resto da “família”.34 A comunidade impressionava por sua capacidade de administrar Lunda. “Em uma área de cerca de 20.000 milhas quadradas”, um correspondente do Financial Times visitando Luanda registra: “esta é uma das partes mais desenvolvidas do território” (CHAPMAN, 1969).35
A retirada de Ernesto de Vilhena deixou a comunidade exposta ao mundo áspero da política colonial. Para muitas dessas pessoas portuguesas e suas famílias, a vida na Diamang era diferente da vida na Angola colonial e na África portuguesa. Eles veriam Luanda somente do aeroporto, na escala entre Lisboa e Portugália, onde o aeroporto mais próximo a Dundo se encontrava. Olhavam os colonos portugueses na colônia com desprezo; passavam suas férias anuais em Portugal e enviavam os seus filhos para Lisboa após o último ano do ensino secundário de Dundo, embora pudessem prosseguir seus estudos em Malange ou Henrique de Carvalho.36 Muitas dessas crianças só conheciam Dundo e nunca haviam viajado para além dos arredores da cidade, muito menos Lunda. Em Aventura e rotina, Gilberto Freyre retrata a comunidade da Diamang como um grupo de europeus que evitavam qualquer tentativa de compreender ou adaptar-se ao seu ambiente local: “[A comunidade europeia em Diamang...] indivíduos que para não se deixarem contaminar por ambientes tropicais vivessem como doentes ricos em hospitais ou em casas de saúde” (FREYRE, 2010, p. 394).37
Os sucessores de Vilhena careciam da mesma influência política para defender os interesses da empresa. Um grande incidente teve lugar em 1968, quando o Estado colonial aprisionou brevemente o sucessor de Vilhena, o administrador delegado José Bexiga. Um boer chefe de posto queixou-se de que a Diamang mantinha prisões ilegais em Lunda e, numa medida preventiva, a administração colonial deteve Bexiga por semanas antes de forçar sua partida da Angola colonial. O fato de que a Diamang tinha por muito tempo operado prisões em Lunda era amplamente conhecido e a administração colonial usou a queixa para interditar a prática. Este episódio abalou a comunidade que o viu como uma mensagem do Estado colonial de que agora a empresa tinha de respeitar as regras portuguesas depois de décadas de vida em confortável autonomia.38 No entanto, o substituto de Bexiga, o administrador delegado António Viegas, compreendeu que a sobrevivência da empresa dependia da sua adaptação pragmática ao novo contexto social. Ele lançou um plano de desenvolvimento para a empresa que levava a sério as opiniões e queixas dos que estavam no terreno, para o espanto tanto de europeus quanto de africanos. Um entrevistado lembra-se:
Na manhã de seu segundo dia no escritório, havia uma linha de empregados africanos na porta de K-18 [a casa do diretor geral], do mais humilde ao mais assimilado.39 Estavam esperando para informar ao diretor de suas demandas. Nós [os europeus] estávamos totalmente chocados.40
Viegas continuou a derrubar as barreiras sociais da Diamang nos anos seguintes. Embora essas mudanças somente concernissem a um número limitado de africanos, as condições de trabalho assim como as de habitação melhoraram drasticamente, seguidas de sucessivos aumentos salariais.41 Os trabalhadores mais qualificados, que perfaziam 29.000 em 1967, poderiam aderir à categoria de indígenas especializados (PORTO, 2009, p. 194 e 670).42 Em 1968, os especializados poderiam deixar os bairros periféricos e mudar-se para próximo do complexo europeu. Em 1970, mudaram-se para casas até então exclusivas para os europeus, bem no centro de Dundo. Nessa época, várias crianças africanas compartilhavam as salas de aula com crianças europeias e os trabalhadores africanos caminhavam livremente à noite no complexo antes “apenas para brancos”, juntando-se aos europeus na fila do cinema.43 Grandes melhorias na infraestrutura acompanharam estas reformas, especialmente na mecanização dos equipamentos e na expansão das redes rodoviárias e de comunicação. Juntas, essas reformas alinharam a empresa com as missões de desenvolvimento do Estado. Este alinhamento, contra o qual Ernesto de Vilhena resistiu até sua partida, protegeu a sobrevivência da companhia durante e após este período de transformação.
A guerra de libertação não só não afetou a economia colonial como também agiu como um grande estímulo econômico. Tal ocorreu, pois os portugueses contiveram a guerra às regiões periféricas. Por conseguinte, poder-se-ia supor que a indústria de diamantes, localizada no leste de Angola colonial, onde algumas das mais terríveis violências tiveram lugar, teria sido afetada pelo conflito. Contudo, em meados da década de 1970, o setor dos diamantes demonstrou uma rentabilidade e estabilidade notáveis, como todos os outros domínios principais da economia.
Esta seção argumenta que a Diamang, com sucesso, isolou Lunda da guerra de libertação, levando o Estado colonial de desenvolvimento a manter a transferência de funções estatais à empresa. Mostra como a Diamang, em aliança com o Exército português, limitou a infiltração de movimentos nacionalistas na região controlada pela empresa. Examina em seguida como o Estado e a Companhia de Diamantes uniram forças na luta contra a mineração artesanal e o comércio informal do diamante. Para este fim, a seção, após uma breve caracterização dos movimentos nacionalistas, começa examinando a mobilização nacionalista através do leste angolano, antes de olhar em detalhe a defesa conjunta de Lunda pelo Estado e pela empresa contra as ameaças tanto externas como internas.
Para compreender como a ascensão dos movimentos nacionalistas em Angola colonial afetou a política da mineração do diamante, é importante examinar o desenvolvimento dos movimentos nacionalistas no leste de Angola colonial de modo geral. Durante o período em questão, os movimentos nacionalistas que se desenvolveram em Angola colonial permaneceram dispersos; nenhum tinha um alcance nacional.45 O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) foi formado em 1956 pelos setores privilegiados, instruídos e urbanos da sociedade em Luanda e no exílio. Tomando emprestado ideologias europeias de esquerda, o partido alegou transcender as estreitas fronteiras raciais e étnicas da sociedade angolana, mas inicialmente só alcançou intelectuais urbanos e os Mbundu do sertão de Luanda. A União dos Povos de Angola (UPA), que mais tarde se tornou a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), também foi formada em meados da década de 1950, por trabalhadores migrantes africanos que tinham visto suas terras serem tomadas por colonos plantadores de café. O movimento foi organizado em torno da etnicidade Bakongo e contemplava as políticas nacionais exclusivamente a partir do prisma de seu círculo eleitoral. Finalmente, a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) emergiu como uma dissidência da FNLA em 1966, amparando-se fortemente sobre os Ovimbundu, o grupo étnico majoritário de Angola. Desde o início, esses três movimentos compartilharam uma propensão para dissensões internas e uma tendência para combater uns aos outros ao invés de seu inimigo comum, os portugueses (MARCUM, 1978, p. 125-140).46
A guerra de independência ganhou ímpeto no leste angolano somente após 1966, cinco anos após o início do conflito nacional. Desde os primeiros anos, o MPLA esteve confinado ao exílio, pois o Estado colonial, no final da década de 1950, “foi tão bem sucedido que os nacionalistas não puderam manter mais do que a organização mais rudimentar dentro das colônias e não puderam se comunicar com as células que de fato existiam” (NEWITT, 1981, p. 190).47 Com a sua estrutura central operando a partir de Brazzaville, o MPLA tentou com dificuldade construir círculos eleitorais em Angola ou simplesmente desenvolver bases entre a população rural. Somente após a abertura de sua segunda frente a partir da Zâmbia a promessa de sucesso viria.48
Após dois anos de tentativas de mobilização no leste, principalmente em Moxico e Cuando-Cubango, o MPLA abriu a sua Frente de Leste em 1966. Baseando-se em novas técnicas subversivas, finalmente começou a fazer incursões. Naturalmente, ainda teve que lutar contra os efeitos do Estado de desenvolvimento: muitas populações encontraram pouco apelo no discurso nacionalista num momento em que experimentava-se prosperidade econômica. Não somente isso, ele teve que lidar com os movimentos concorrentes: embora tenha conseguido impedir a FNLA de adquirir uma fortaleza no leste, o MPLA encontrou menos sucesso em suas batalhas com a Unita, que entrou em um pacto de não-agressão com os portugueses em 1971 e, depois disso, mirou suas atividades no leste exclusivamente contra o seu movimento rival.
O Estado colonial português respondeu à ascensão do nacionalismo estabelecendo a Zona de Intervenção Leste, cobrindo Lunda, Moxico e Cuando-Cubango, complementando a Zona de Intervenção Norte, criada em 1961 para proteger Cabinda, Zaire, Uíge, Luanda, Cuanza Norte e Malange. No momento em que a guerra havia se movido para o leste, uma significativa “africanização” de todos os órgãos das Forças Armadas e a utilização generalizada de unidades irregulares já vinham caracterizando a abordagem militar portuguesa.49 Embora os africanos tenham desempenhado um papel relativamente marginal no Exército português quando o conflito começou, eles contabilizavam mais da metade das forças militares na véspera do golpe militar de 25 de abril de 1974.50 Inicialmente uma alternativa barata para o Exército regular, este uso extensivo de tropas africanas evoluiu para a forma principal de engajamento militar no leste de Angola, mais do que em qualquer lugar da Angola colonial ou, na verdade, em qualquer outra colônia portuguesa em guerra.51
A defesa portuguesa do leste angolano envolveu três tipos de unidades irregulares: os Grupos Especiais, controlados pelo Exército, as Tropas Especiais, controladas pela Pide, e os exércitos étnicos privados conhecidos como Flechas.52 Formados em 1968, os Grupos Especiais eram constituídos por voluntários locais treinados como um ramo militar regular e controlados por um ou dois batalhões portugueses. Operaram na maior parte no leste de Angola e, em seu pico, estavam agrupados em 99 unidades de 31 homens cada uma. As Tropas Especiais se agrupavam em 1.200 membros da guerrilha UPA que se juntou ao Exército português e lutou em Cabinda entre 1964 e 1966. Um dos quatro batalhões, agrupados em 16 grupos de combate de 31 homens cada, lutou na frente do leste. Finalmente, e talvez o mais importante, os Flechas, compostos por indivíduos recrutados localmente e antigos membros da guerrilha, assumiram um papel vital, a tal ponto que a maioria das subdelegações da Pide tinha sua própria unidade privada até o final do conflito.53 Depois de 1963, o Exército português também contou com gendarmes Katanguenses recrutados dentro do que ficou conhecido como Operação Fidelidade.54
As fragilidades estruturais dos movimentos nacionalistas na região facilitaram a tarefa do Exército português no leste de Angola. Face à limitada supervisão da direção política central do partido em Brazzaville, a estrutura do MPLA no leste obteve um grande grau de autonomia. Os líderes político-militares locais tornaram-se cada vez mais autoritários e propensos a abusos de poder. Apesar dos guerrilheiros do MPLA no leste terem progredido no período entre 1966 e 1969, sofriam cada vez mais com dissensões dentro de suas fileiras. As forças portuguesas exploraram esta instabilidade através da criação das senzalas da paz, que impediram a população local de aderir à guerrilha e atraíram desertores (MABEKO-TALI, 2001, p. 53).55 Ao final da guerra de libertação, a maior parte dos membros da guerrilha do MPLA no leste havia ou debandado ou se juntado às forças portuguesas por sua própria vontade.56
É neste contexto militar de oposição ao Exército português com forte dependência de unidades irregulares que o engajamento de movimentos nacionalistas com a Diamang precisa ser analisado. Os movimentos nacionalistas infiltraram-se com sucesso nos distritos de Moxico e Cuando-Cubango, de uma forma em que nunca conseguiram se infiltrar em Lunda. A Diamang protegeu Lunda do conflito e a comunidade portuguesa só experimentou a guerra através de suas interações com soldados portugueses sediados em Dundo. Devido à sua situação pacífica, Lunda foi a última paragem dos soldados portugueses antes do fim do seu serviço militar em Angola colonial. A segura, limpa e bem organizada Dundo serviu como um lugar de transição entre os horrores da guerra na colônia para a normalidade da vida na metrópole. Com 14 anos na época, um entrevistado se lembra:
Meus pais não me deixariam ir para fora quando um novo contingente de soldados chegasse. Era muito perigoso e aterrorizante para nós: os soldados dirigiam de forma imprudente ao redor da cidade, gritando, quebrando garrafas de cerveja. Me lembro de ver alguns comendo o vidro das garrafas quebradas. Outros ofereceriam presentes estranhos para as crianças, como colares feitos de orelhas de africanos. Eu penso que para os militares uma estada em Dundo era uma espécie de terapia, onde os soldados podiam andar por aí ganzados livremente e dar asas à sua euforia.57
Uma questão naturalmente surge de suas observações: por que Lunda permaneceu à margem da guerra de independência, mais do que os distritos vizinhos, e como a empresa contribuiu para isso?58
Havia razões pré-existentes acerca do porquê de Lunda não ter se transformado numa frente ativa durante a guerra de libertação. Os Chokwes tiveram historicamente pouca influência nacional, apesar de serem o quarto maior grupo étnico do país e o maior grupo étnico de Lunda. Confinado a um dos cantos mais remotos de Angola, os Chokwes participaram apenas marginalmente nas interações comerciais e militares envolvendo colonos portugueses e outros grupos étnicos de Angola (HODGES, 2001, p. 163-65).59 Como discutido acima, nenhum movimento nacionalista teve seu berço em Lunda.60 Isto ajuda a compreender porque há tão poucas menções sobre a interação entre os movimentos rebeldes e a Diamang durante o período examinado neste artigo.
Mas há também uma associação óbvia entre a ausência de mobilização nacionalista e o abrangente sistema de vigilância que foi moldado em função dos movimentos de independência. O controle de indivíduos entrando e circulando dentro da área de concessão proporcionou um ambiente isolado, tornando fácil monitorar e suprimir os movimentos nacionalistas. A prisão controlada pela empresa nas proximidades de Dundo, usada apenas para os africanos envolvidos no comércio informal de diamantes, foi ocupada com membros suspeitos dos movimentos nacionalistas. O recrutamento de trabalhadores focava em indivíduos que já viviam em Lunda, aos quais a Diamang poderia executar verificações de antecedentes. Mas talvez o melhor exemplo de tal repressão é a maneira pela qual as forças de segurança da Diamang tornaram-se obcecadas com os rádios. Durante muito tempo, a Rádio Angola Combatente, com base em Brazzaville, foi o mais importante meio do MPLA para transmitir ideias anticoloniais. Para interromper a propagação dessas ideias e, assim, neutralizar o MPLA, a Diamang esforçou-se sobremaneira para encontrar e destruir todos os rádios não autorizados dentro de Lunda (PEARCE, 2011, p. 76)).61
No entanto, a Diamang conseguiu manter a guerra distante de Lunda não só através da repressão. É alegado pelos entrevistados, incluindo os do lado nacionalista, mas indetectável nos arquivos, que a Diamang pagou um “imposto de guerra” aos seus antagonistas nas fases iniciais do conflito: alguns de seus administradores mantiveram contato direto com os líderes dos movimentos para garantir que se afastassem da área operacional da empresa. “É evidente que não existem documentos que comprovem isto”, observa um entrevistado, “mas este foi um segredo aberto para toda a comunidade europeia. Para nós, esta sempre foi a única explicação plausível do porquê de uma região estratégica como Lunda nunca ter sido colocada em perigo”.62 O diálogo entre os administradores da Diamang e os líderes nacionalistas ao tempo da independência serviu de ponto de partida para o relacionamento entre a empresa e o Estado angolano pós-colonial.
Outra explicação diz respeito às estratégias de segurança da empresa e do Estado colonial e é a mais relevante para o argumento geral da continuidade política. Essas estratégias provar-se-iam de um enorme sucesso. A independência do Congo em 1960 informou grande parte da estratégia militar da empresa na década seguinte.63 Ela marcou o início do declínio da indústria mineira Katanguese, instrumental pelo seu papel na proteção da fronteira e pelo fornecimento de saídas comerciais. Além disso, as histórias de perseguição e humilhação de colonos belgas, que fugiram de Katanga para Lunda durante a crise do Congo, alimentaram o medo coletivo da comunidade de Diamang.64 Como um entrevistado observa:
Para muitos de nós [trabalhadores da Diamang] a chegada de trabalhadores das outras empresas da indústria mineira do Congo belga foi o primeiro contato com a violência em curso na região, mais do que o conflito em Angola colonial, do qual nos sentíamos relativamente poupados devido ao status particular da companhia.65
A Diamang adotou uma abordagem dupla para o conflito militar: a criação a partir do zero de uma força militar privada e as unidades Flechas (SÁ, 2006, p.10).66
Primeiro, a Diamang financiou e controlou uma milícia privada, conhecida como milícia e corpo de voluntários no início dos anos 1960. Com a sua sede em Cacanda, perto de um conhecido projeto agrícola da Diamang, e com o seu próprio uniforme e bandeira, a milícia consistia de antigos soldados portugueses recrutados durante a sua estada em Lunda ou então ao final do seu serviço militar. Uma vez formada, a milícia adquiriu equipamentos do Estado colonial português e da África do Sul. Erigiu estações e postos de controle nos pontos nodais-chave e - em consonância com a autoridade de viés estatal da Diamang sobre Lunda - geriu sua própria prisão ao lado do assentamento agrícola de Cacanda, localizado perto de Dundo. Embora tenha sido inicialmente construída para aprisionar indivíduos envolvidos no comércio informal de diamantes, a prisão também abrigava indivíduos suspeitos de envolvimento com movimentos nacionalistas (SÁ, 2006, p.10).67
Em segundo lugar, a Diamang participou ativamente da gestão das unidades irregulares do Exército português. Em 1964, três batalhões Flechas Katangueses mudaram-se para Angola colonial após o descalabro da aventura separatista de Moise Tschombé em Katanga, a qual apoiaram ativamente. Um dos batalhões foi abrigado pela Diamang em Veríssimo Sarmento, uma cidade localizada no coração do eixo Dundo-Henrique de Carvalho. 68 Embora inicialmente focadas na fixação de equipes portuguesas de construção na região, as Flechas evoluíram para uma robusta força militar e foram convertidas num movimento político em 1969, quando o regime português deu status de refugiados para outra onda de Katangueses, encorajando-os a formar uma nova frente contra o regime de Mobutu, a Frente Nacional de Libertação do Congo (FNLC).69 A FNLC encontrou abrigo na Diamang, que permitiu aos seus membros trabalhar na empresa e se reassentar na concessão com suas famílias em troca de patrulha de fronteira. Este arranjo adequava-se a ambas as partes: os Katangueses que, relutantes em reconhecer a autoridade administrativa e judiciária portuguesa, encontraram espaço para replicar a sua sociedade tradicional na Lunda controlada pela Diamang, e a empresa que ganhou a proteção de um força com inestimável conhecimento do território (SAUNDERS, 1983, p. 26-27).70
Em essência, independentemente das mudanças nas ambições do Estado e das políticas internas da empresa, o que realmente manteve a ligação entre o Estado colonial e a Diamang foi o papel indispensável desta última na defesa de uma região estratégica em nome do Estado. A situação de segurança do leste angolano obrigou o Estado colonial português a renunciar às funções estatais, a fim de preservar o controle da empresa na região. Isto conduziu à coordenação entre o Estado e a Diamang de uma maneira que complementasse a estratégia geral de ambos os atores em relação ao território. O aparato militar dirigido por empresas conseguiu manter Lunda nas margens do conflito, mesmo que, como em outras partes, o leste de Angola tenha experimentado algumas das piores violências da guerra.
Embora o período de desenvolvimento tenha se revelado efêmero em Angola, ele trouxe importantes evoluções no padrão das relações entre o Estado e as empresas: o processo de institucionalização e de centralização do Estado colonial conduziu a uma reestruturação completa da indústria mineira. À medida que os burocratas modernizadores decidiram aprofundar a integração da Diamang na economia e na política angolanas, tiveram ao seu lado uma longa história de insatisfação administrativa e popular com os poderes abrangentes da empresa. Por essa razão, conseguiram forçar a empresa a se adaptar ao novo ethos de desenvolvimento e, finalmente, pôr fim ao seu monopólio. Entretanto, o vínculo entre o Estado e a Diamang foi paradoxalmente reforçado, ao invés de enfraquecido. Tal como no início do período colonial, o caráter mutuamente constitutivo das relações entre o Estado e o setor dos diamantes só se aprofundou durante este período.
Na verdade, através das convulsões, a Diamang continuou a exercer uma autoridade expansiva em nome do Estado. Lutando para suprimir os movimentos anticoloniais em todo o país, o Estado colonial percebeu que era não somente conveniente mas necessário manter sua parceria com a Diamang, a fim de evitar que os rendimentos do diamante parassem de fluir de Lunda e que os militares privados da companhia cessassem de manter à distância a luta pela independência. O aumento da mineração artesanal informal só fortaleceu a parceria. Precisamente porque a negociação informal teve lugar em grande parte dentro da concessão, o Estado dependia da Diamang para reafirmar o controle.
A Diamang se apresentou como defensora do Estado, que fazia reivindicações concernentes à proteção dos interesses portugueses. Entretanto, como a informação trazida à luz neste artigo mostra, os esforços da Diamang para proteger Lunda em nome do Estado colonial não cegou a empresa para o fato de que seus interesses não eram necessariamente coextensivos aos dos portugueses no longo prazo. Para a empresa, a continuidade dependia de sua relação mutuamente constitutiva com o Estado central, não com o regime colonial português como tal. Enquanto os portugueses permaneciam em Luanda, a distinção permaneceu teórica. Mas não por muito tempo.
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