Resumo: Esse artigo analisa as práticas e instituições mercantis relacionadas ao comércio de pau-brasil extraído das matas do norte do estado do Brasil e destinadas ao mercado de corantes, em Portugal e restante da Europa no século XVIII. A partir da documentação alfandegária da Casa da Índia, além de documentação privativa da sociedade de mercadores ingleses Purry, Mellish and Devisme, demonstramos as dimensões e escalas mercantis, seus contratos, negociações e instituições, que modularam desde as práticas extrativistas nas matas do Brasil para o despacho no porto de Recife até a posterior reexportação via Lisboa para o mercado de corantes no norte da Europa durante o século XVIII.
Palavras-chave: Pau-brasilPau-brasil,instituições mercantisinstituições mercantis,negociantes ultramarinosnegociantes ultramarinos,corantescorantes,PurryPurry,Mellish and DevismeMellish and Devisme.
Abstract: This article analyzes the practices and merchant institutions related to the brazilwood trade extracted from the forests of the north of the state of Brazil and destined for the dye market in Portugal and the rest of Europe in the 18th century. From the customs documentation of the House of India, in addition to the proprietary documentation of the Purry, Mellish and Devisme merchants, we demonstrate the dimensions and mercantile scales, their contracts, negotiations and institutions, which have modulated everything from the extractive practices in the Brazilian forests to the dispatch in the port of Recife until the later re-export via Lisbon to the dye market in northern Europe during the eighteenth century.
Keywords: Brazilwood, merchant institutions, overseas merchants, dyes, Purry, Mellish and Devisme.
Articles
O NEGÓCIO DO PAU-BRASIL, A SOCIEDADE MERCANTIL PURRY, MELLISH AND DEVISME E O MERCADO GLOBAL DE CORANTES: ESCALAS MERCANTIS, INSTITUIÇÕES E AGENTES ULTRAMARINOS NO SÉCULO XVIII
THE BRAZILWOOD BUSINESS, THE MERCANTILE SOCIETY PURRY, MELLISH AND DEVISME AND THE GLOBAL DYE MARKET: MERCANTILE SCALES, INSTITUTIONS AND OVERSEAS AGENTS IN THE EIGHTEENTH CENTURY
Recepção: 31 Maio 2017
Aprovação: 12 Dezembro 2017
A árvore que fornece a linda tinta vermelha tão estimada na Europa, é, creio eu, geralmente tida como peculiar à região a qual deu seu nome. Chamam-na também em Pernambuco (de onde penso que é exclusivamente exportada) “Pau da Rainha”, devido à circunstância de ser o comércio monopólio governamental, e ser exportado para a Europa por conta da Coroa.
Henry Koster, 18111
O capitão João Duarte e Silva foi surpreendido por uma visita arbitrária e pouco convencional em sua casa, nas imediações da ribeira da cidade de Natal, na última semana do mês de junho de 1770. Apareceram um conhecido carpinteiro da região, o sr. Miguel dos Santos, acompanhado de alguns oficiais do senado da câmara de Natal a fim de averiguar se as estruturas de madeiras que estavam sendo usadas na reforma de sua casa eram de pau-brasil. De acordo com os oficiais, “segundo denúncia estaria desrespeitando os termos de exclusividade do Real Contrato de Sua Majestade, que proibia o uso do pau-brasil em obras de construção”, convocando assim um carapina “perito em madeiras para, sob juramento, examinar o material empregado”. Constatou-se nessa vistoria que “cinco forquilhas eram de pau-brasil”.2
As perseguições e punições para aqueles que desrespeitavam os termos de exclusividade do pau-brasil foram frequentes e incisivas. A vigilância se deu em todas as esferas da governança do Império. Desde a institucionalização do estanco por parte da Coroa à observância e prática da lei por parte de altas esferas do governo, tais como governadores gerais e provedores das capitanias, até mesmo às longínquas câmaras e seus habitantes usando simples forquilhas da rentável madeira tintorial.
A história mundial da tinturaria no século XVIII foi marcada pela prevalência do uso do pau-brasil de Pernambuco. O uso de plantas, frutos e raízes como corantes possui longa fortuna e movimentou um mercado global para o anil (azul), a cochonilha (vermelho), o cedro (rosa), o urucum (laranja), o imbuia (castanho), a acácia negra (marrom), o açafrão (amarelo) e muitas outras; além do brésil de Pernambuco que era extraído nas matas do norte do estado do Brasil em vultosas quantidades. O mercado mundial de tecidos deslocaria seu centro de produção para os teares industriais da Grã-Bretanha no final do século XVIII, no entanto, a tinturaria europeia ainda buscava imitar os seculares processos de tintura têxtil dos indianos e chineses, como apontou Kenneth Pomeranz e Sven Beckert.3
Este artigo analisa algumas questões fundamentais sobre o comércio do pau-brasil extraído nas capitanias do norte do estado do Brasil destinadas ao mercado de corantes em Portugal e na Europa no século XVIII. Em primeiro lugar, analisaremos as dimensões e escalas mercantis do negócio de corantes, assim como as instituições que modularam esse comércio no Império português. Em segundo lugar, trataremos do comércio do pau-brasil em si, atentando para os contratos e negociações para sua extração nas matas do norte do estado do Brasil e seu transporte atlântico e, por fim, apresentaremos a documentação inédita dos negócios de uma sociedade comercial inglesa, Purry, Mellish and Devisme, e seus negócios de corantes do norte do estado do Brasil embarcados no porto de Recife e reexportados por Lisboa durante o século XVIII.
Nosso objetivo com este artigo é demonstrar as distintas escalas mercantis (regional, atlântica e global) que envolveram o comércio colonial, como também analisar o papel das instituições e agentes mercantis presentes desde a extração da madeira à venda para as tinturarias. A documentação analisada foi constituída, em grande medida, dos registros da Casa da Índia, uma repartição alfandegária portuguesa que existe desde o século XV, estando parte de sua documentação atualmente sob a guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa.
Os primeiros registros de divulgação sobre o negócio da madeira de tinturaria oriunda da América para a Europa foram cartas escritas por Pietro Rondinelli em Sevilha em 1502 e Leonardo de Cá Masser em Veneza por volta de 1506 e 1507.4 Nessas cartas, os remetentes prestavam conta do virtuoso comércio que o rei de Portugal havia arrendado, em caráter de monopólio da Coroa, a um consórcio de cristãos-novos, entre eles o fidalgo Fernando de Noronha. Já negociada desde o primeiro momento com Flandres, Castela e Itália a partir do porto de Lisboa, e também sofrendo contrabando direto no Brasil pelos corsários franceses, a madeira que deu o nome às terras da América portuguesa foi explorada comercialmente, desde o seu início, sob o signo do monopólio.
No que concerne à exploração do pau-brasil no norte do estado do Brasil, ou seja, nos atuais territórios de Alagoas, Pernambuco, Itamaracá, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, é relevante notar a referência à madeira tintória no foral e carta de doação da capitania de Pernambuco em 1534. D. João deixou claro a Duarte Coelho que o pau-brasil de Pernambuco e “especiaria ou drogaria de qualquer qualidade que seja, que nela houver, pertencerá a mim”. A qualidade e a quantidade do pau-brasil de Pernambuco já era referendada desde o século XVI. Ambrósio Fernandes Brandão expõe que “o pau do Brasil, de que toma nome toda esta província, larga de si uma tinta vermelha, excelente para tingir panos de lã e seda, e se fazer dela outras pinturas e curiosidades”; porém, mesmo existindo em todo o Brasil, “o mais perfeito e de maior valia é o que se tira das capitanias de Pernambuco, Itamaracá́ e Paraíba, porque sobrepuja, com muito excesso de bondade, aos mais pau desta qualidade, que se dá pelas mais partes”.5 Sobre a estima do pau-brasil de Pernambuco, Pero Magalhães Gandavo já havia afirmado em 1576, de forma poética, que a qualidade do brésil de Pernambuco vinha da “quentura do sol e criado com a influência dos seus raios, porque não se acha” pau de tinta vermelha tão boa quanto essas do norte do estado do Brasil: “Quanto mais perto está da Linha Equatorial, tão é mais fino e melhor de tinta”.6
Os impactos da extração sistemática e monopolizada do pau-brasil podem ser resumidos nas palavras dos agentes metropolitanos no Brasil cerca de três séculos depois. No final de 1776, o então governador de Pernambuco, José César de Meneses, avisou as autoridades em Lisboa de seu zelo para com o negócio do pau-brasil, afirmando que faria toda diligência para “não se consentir que se corte mais pau, não sendo de lei em toros grossos, de boa qualidade e legítimos para tinta vermelha como determina a Real Ordem”.7 É possível que a extração desmedida desse recurso natural já apresentasse sinais de escassez, tanto pela quantidade como pela qualidade do produto cortado. Esses aspectos relacionados a extração ficam mais claros quando analisamos uma memória de José Carlos Mayrink da Silva Ferrão, redigida em Recife em 1805, intitulada “Memória sobre o pau-brasil”. O autor, então secretário do governador de Pernambuco, discorreu sobre o comércio na Europa, alertando, inicialmente, que a “cópia e abundância das coisas faz os homens inertes e faltos de providência, e como desta árvore havia grandes matas, que a natureza oferecia espontaneamente, não lembrou que elas podiam destruir-se”. Embora faça referência a leis que protegiam o corte do pau-brasil, considerou tudo insuficiente, sobretudo por não terem se reservado “as matas principais de pau-brasil, sendo contadas e demarcadas, para não se incluírem jamais nas sesmarias dos particulares”. Um corte sistemático, de acordo com o autor, permitiria que ao se cortar uma sequência de lotes, logo estariam disponíveis outros. Denunciou também que as matas de pau-brasil são utilizadas para fins variados que vão desde madeira e lenhas para engenhos e fábricas, como o desmatamento para plantações. “Não havendo pois nem lei, nem providência, destruíram-se as melhores matas, e algumas nem vestígio conservam da sua antiga riqueza e preciosidade”.8
No início do século XV, a conquista pelas tropas portuguesas da guarnecida cidade de Ceuta, empório islâmico do norte da África, que conectava o Atlântico ao Mediterrâneo, representou um dos relevantes marcos da formação do império marítimo português, assim como modificou indelevelmente suas operações aduaneiras e alfandegárias. O desejo lusitano de controlar a empresa de Ceuta, a praça africana onde os califas comercializavam os cobiçados produtos orientais,9 foi o início da mais valiosa repartição alfandegária de toda a história da Coroa portuguesa entre os séculos XV e XVIII: a Casa da Índia. Inicialmente foi chamada de Casa de Ceuta.10
Em meio a tantos produtos valiosos pertencentes aos negócios da Coroa, gêneros provenientes das quatro parte do mundo, como consta no poema de Sebastião de Afonseca e Paiva em 1687, das “opulentas cidades e famosas/ donde vem pedras preciosas/ açúcar, beijoim, cravo e pimenta/ com o que o Reino se sustenta”,11 figurava o rentável e monopolizado mercado de tinturaria proveniente do pau-brasil, controlado por Lisboa a partir da Casa da Índia.
A legislação portuguesa foi, ao longo dos séculos XVI a XVIII, regulamentando o negócio do pau-brasil. Logo por volta de 1502 a 1506 sua extração foi arrendada. Como não é surpresa, “essa forma de exploração parece ter fornecido uma margem de lucro considerável a Portugal, pois além de a Coroa não arcar com as despesas da exploração, auferia vantagens com o pagamento dos contratos de arrendamento”.12 Para controlar as desordens no corte desenfreado e no contrabando da madeira, em 1605, é promulgado o Regimento do pau-brasil. Nesse documento, além da Coroa retificar o estanco, obrigava despachos da Fazenda Real em cada capitania para a realização do corte. O Regimento pressupunha que quem quisesse cortar deveria estar munido de uma licença expedida pelo provedor-mor e assinada num livro para esse fim na Provedoria. “E toda a pessoa que tomar mais quantidade de pau de que lhe for dada a licença, além de o perder para minha Fazenda, se o mais que cortar passar de dez quintais incorrerá em pena de cem cruzados”. Todavia, se caso excedesse 50 quintais “sendo peão será açoitado, e Degredado por dez anos para Angola, e passando de cem quintais morrera por ela e perdera toda a sua Fazenda”.13 A relevância da madeira tintória e os lucros que ela gerava para a Coroa também podem ser constatado através das questões jurídicas em torno do corte do pau-brasil, a exemplo das penas apregoadas acima.
Em 1609, a Coroa designa o juiz Sebastião de Carvalho para realizar devassa às terras do Brasil em busca de transgressores das ordens sobre o negócio privativo da madeira tintória.14 Em 1635, os contratadores do contrato do estanco do pau-brasil, os negociantes Luiz de Rezende e Álvaro de Azevedo, conseguiram junto à Coroa a prerrogativa de terem um juiz conservador do dito contrato, criando uma espécie de conservatória do contrato do pau-brasil no afã de melhor vigiar o cumprimento do contrato, e disporem de foro privilegiado da Justiça nas causas que envolviam o contrato do produto.15
A transição para o século XVIII foi marcada pelo recrudescimento do estanco da Coroa. Em 1697, é promulgado um alvará ordenando que, além da observância do próprio estanco por conta da Fazenda Real, “que de agora em diante todo o pau do Brasil venha nos Navios da própria Junta [do Comércio Geral], e que ela não possa ter jurisdição para o mandar vir em outros; e que qualquer embarcação que o trouxer, seja confiscada pela Fazenda da mesma Junta”.16
O estanco do pau-brasil contribuiu diretamente para os recursos da Coroa portuguesa como um todo, representando, durante a segunda metade do século XVIII, sem as despesas concernentes, 2,35% das receitas do Erário Régio.17 Mas não só. Ele também beneficiou as finanças do infante dom Pedro e a Casa das Rainhas Maria Francisca de Saboia, Maria Sofia do Palatinado-Neuburgo, Maria Ana de Áustria, Mariana Vitória de Bourbon, Maria I, Carlota Joaquina de Bourbon e Leopoldina de Áustria. Ao infante dom Pedro, o seu irmão e rei d. Afonso VI permitiu que, a partir de 1662, 15 mil quintais anuais de pau-brasil fossem de sua posse. Já para sua esposa e “sustento da Casa da Rainha”, além do que o Império já dispunha, mais 17 mil cruzados anuais a partir de 1667 foram “pagos nos direitos que minha Fazenda recebe do pau-brasil”. Com a rainha de d. Pedro II não foi diferente e os direitos adquiridos anteriormente para a Casa das Rainhas foram mantidos.18
De acordo com os assentos alfandegários da Casa da Índia e os registros do tesoureiro Martins Teixeira de Carvalho, entre os anos de 1763 e 1783, figuravam entre as despesas anuais constantes na contabilidade do contrato do pau-brasil essas mesmas obrigações. Mais de um conto de réis ia diretamente para os cofres da “Rainha, Nossa Senhora Princesa e Senhoras Infantas”, além de pagamentos remetidos aos funcionários privativos da rainha, como o secretário e mordomo-mor. Seguiam também direto da Casa da Índia donativos para a igreja patriarcal para garantir a celebração de milhares de missas após a morte delas.19
Tradicionais casas nobiliárquicas de Portugal, a exemplo da das Rainhas, se beneficiaram diretamente do estanco do pau-brasil. Longas foram as disputas por direitos de exploração fiscal entre os descendentes do primeiro donatário da capitania de Itamaracá, por exemplo, e a Coroa portuguesa. Somente em 1763 é que o território da capitania de Itamaracá e suas jurisdições são desmembradas entre Pernambuco e Paraíba, deixando, portanto, de existir enquanto capitania. Até esse ano, os descendentes e herdeiros dos direitos do primeiro donatário de Itamaracá ficaram reservados à Casa do marquês de Cascais. Por ter falecido a marquesa de Cascais, assim como sua filha, quem se torna habilitado a receber os direitos é a casa dos pais da marquesa, no caso a Casa do marquês de Louriçal. Em 1778, o marquês de Louriçal recebeu do Erário Régio 847.673 réis “pela importância líquida da vintena do pau-brasil que justificou-se haver-se cortado na Capitania de Itamaracá, o que de Pernambuco se expediu para esta cidade desde o ano de 1755 até 2 de setembro de 1762”.20
A madeira encontrada pelos portugueses na costa do atual Brasil foi logo identificada como muito parecida com o conhecido pau de sapão indiano. Embora os portugueses já conhecessem as propriedades desse tipo de madeira, foi o uso que nativos faziam para a tintura de plumas e ornamentos que possibilitou a extração inicial da madeira, tendo em vista que eram os índios que se embrenhavam nas matas, a identificavam, cortavam e conduziam ao litoral.21 Da mesma forma, os espanhóis se defrontaram com o pau-brasil nas Antilhas e nas regiões caribenhas tanto da América Central como das áreas sul-americanas. Os negociantes espanhóis também não tardaram em conduzir a madeira para Cádiz.22
Mesmo tendo o nome brasil triunfado na nomenclatura da possessão portuguesa nas Américas, a madeira vermelha não se restingiu ao sul do continente. O comércio da madeira tintória teria originado nomes em localidades dispersas tanto na América espanhola, como na América do Norte, em suas forma diminutivas como brasilito, ou de nomenclaturas variadas como “El brasil em Tamaulipas e corral del brasil em Simaloa”; muitas regiões nas Américas receberam esse nome por sua pujança comercial com o mundo a partir do pau de tinta vermelha.23
A exploração do pau-brasil na América espanhola nos coloca os mesmos problemas acerca da extração, circulação, contrabando e consumo. Como afirmou a historiadora mexicana Contreras Sánchez, as rotas oficiais entre Campeche, no México, e os portos espanhóis ou de domínio espanhol, em que escoavam o pau-brasil na segunda metade do século XVIII, foram Cádiz, Santa Cruz de Tenerife (ilhas Canárias), Santo Domingo, La Habana e Veracruz, sem esgotar o problema das rotas quando se analisa o contrabando. Da mesma forma, o historiador colombiano Camilo Barragán, utilizando um documento do século XVIII, dá importância ao comércio de pau-brasil para Nueva Granada ao afirmar que a madeira tintória que se extraiu no século XVIII de Santa Marta, uma tradicional região da Colômbia, “...como se llama del Brasil, podia llamarse palo de Santa Marta, por hallarse con abundancia en esta província”.24 O trabalho de Barragán explora, entre outros temas, a questão do contrabando e a oferta dessa matéria-prima enquanto um comércio entre os guarijos (nativos) e o poder central de Nueva Granada.
O mercado mundial de tinturaria acompanhou a expansão e consumo dos produtos têxteis. Como o surgimento das tintas artificiais se deu apenas no século XIX, o desenvolvimento de tinturas a partir de recursos naturais movimentou capitais e negociantes. A Coroa ibérica e os negociantes tinham ciência das tradicionais técnicas orientais para o manuseio e aproveitamento de madeiras tintórias. “As boas, e finas tintas, com que os asiáticos esmaltam as suas manufaturas, têm servido de fortes estímulos a todas as nações industriosas”, afirmou Luiz Antônio de Oliveira Mendes, numa sessão pública da Academia de Ciências de Lisboa em 1805.25 Em competição com esse comércio asiático, o trato de pau-brasil nas Américas a partir do século XVI será negociado, em maior medida, a partir das praças de Lisboa e Sevilha para outras praças europeias onde cresciam as indústrias têxteis e, por consequência, se desenvolvia o mercado de tinturaria. Registros iconográficos do século XVI ao XVIII sobre a indústria tintorial de Amsterdã atestam a relevância do pau-brasil no comércio dos Países Baixos.
Na página seguinte as imagens retratam o cotidiano na Rasphuis, numa tradução livre, “casa de raspagem”, criada em 1596 em Amsterdam no prédio de um antigo convento. De acordo com Johan Thorsten Sellin, essa foi uma das primeiras instituições prisionais criadas na Europa em que os detentos cumpriam suas penas trabalhando.26 A prisão destinava-se a criminosos jovens do sexo masculino e os detidos cumpriam sua punição raspando pau-brasil. A primeira imagem de 1662 representa o processo de raspagem do pau-brasil pelos detentos, a fim de produzir um pó que, uma vez diluído, fervido e oxidado, originava o corante vermelho. A segunda imagem é de 1799, sendo marcante pela relação entre o vermelho da pintura e as ações representadas na imagem: no mesmo pátio da Rasphuis da imagem anterior, uma pausa para o almoço de alguns dos detentos, enquanto os demais continuavam a extrair a tintura vermelha das toras de pau-brasil.
Um dos principais mercados consumidores da tintura do pau-brasil foi a indústria têxtil. Estudos demonstram que a popularização do pau-brasil na tinturaria se deu muito mais pela variedade de matizes obtidas de seus pigmentos do que pela qualidade da tintura. Tratamentos com variados ácidos e fermentos, assim como alcalinização e fervura, geravam variados tons de vermelho.27
De acordo com o Regimento das fábricas de pano de Portugal de 1690, “os tintureiros serão avisados que não tinjam lã, nem panos em vermelhos do Brasil sem pé de ruiva e, depois de tintos nela, lhe poderão dar em cima o Brasil que for necessário”.28 O Regimento pressupõe que o pano seja previamente aprontado para receber o tingimento vermelho do pau-brasil, explicitando assim as técnicas empregadas não somente na produção da tinta, mas no próprio tingimento dos têxteis.
Em 1778, foi publicado em Madri o Tratado instructivo y práctico sobre el arte de la pintura escrito pelo mestre tintureiro natural da cidade de Toledo, Luis Fernandez. Afirmou ele que um tintureiro, “zeloso del cumprimento de su obligacion”, deve contar e pesar todas as partidas de têxteis que serão de seu emprego. Pesadas e contadas, “se apartarán los colores por clases, comenzando con los blancos y negros, y de seguida los colores que se han de tintar em tinas de Añil; los que se han de tintar con Achiote; los que se han de tintar con Brasil”. Para cozinhar e preparar o pau-brasil para tinturaria são necessárias caldeiras grandes, sendo para cada 50 arrobas de água “una arroba de Brasil picado”. Depois de quase uma hora de fervura, passa-se o líquido vermelho para uma vasilha de madeira tampada colocada num lugar fresco. Volta-se ao fogo e cozinha-se com mais 40 arrobas de água durante cinco ou seis horas. “Antes que se acabe de gastar el Brasil, se ha de cocer outro tanto, ò lo que se pueda (...), para que de esta forma no falte en tiempo alguno Brasil cocido”. Alguns anos mais tarde, o português Luiz Antônio de Oliveira Mendes vai contestar essa forma de cozimento que se fazia do pau-brasil, advogando, em sua memória, pela imersão e decantação, sem fervura.29
Tintura pronta e tecidos devidamente organizados, era hora de tingir os têxteis. Cada gradação de cor proveniente do pau-brasil exigia um cuidado especial, um ácido diferente ou quantidades de pedra-ume ou tártaro para fixação. Chegar aos tons de carmesim, aurora ou lírio exigia imersão em quantidades adequadas de pau-brasil e tempo certo para a absorção.
A opinião do mestre tinteiro Luiz Fernandez sobre a melhor qualidade de pau-brasil não foi diferente de todos os outros relatos até então compilados. “El palo de Brasil viene el mejor de Pernambuco, cuyo género no puede ser adulterado à no introducir con él otra classe que hay llamado Brasilete, el qual se cria en las Islas Antillas, y Jamaica, y este no produce tan buen efecto como el primero”.30
Toda essa relevância do pau de Pernambuco no mercado global de tinturarias foi se consolidando ao longo dos séculos de exploração da mata atlântica no norte do estado do Brasil. Todavia, uma pergunta dirigida ao ex vice-rei Luís de Vasconcelos em 1805 sobre o negócio do pau-brasil nos guiará nas discussões subsequentes. José Carlos Mayrink da Silva Ferrão, secretário do então governador de Pernambuco Caetano Pinto de Miranda Montenegro, escreveu uma memória sobre o pau-brasil em que levanta a seguinte questão: “não seria pois mais conveniente o fazer-se o extrato das suas tintas ao pé das mesmas matas e, em vez de se transportar pau, transportar-se somente as partículas preciosas que ele contém?”.31 Lógicas de mercado embasam a questão: transportes e fretes, economia e utilidade. Todavia, as regras mercadológicas nem sempre se ajustam às prerrogativas colonizadoras.
O inglês Henry Koster nos deixou também um relevante relato sobre o negócio do pau-brasil que vai ao encontro, em alguns aspectos, do relato de Ferrão. “Não tomam a menor precaução para evitar a escassez dessa árvore, e mesmo que ela termine desaparecendo. É abatida impiedosamente pelos oficiais encarregados desse serviço, sem nenhuma atenção pela grossura da madeira”. Em 1811, Koster já afirmava que era “raro encontrá-la dentro de muitas léguas do litoral”. Consequentemente, “o trabalho que exige seu transporte do interior, pelo peso, é considerável para os cavalos que a conduzem às costas, e é a maneira única de carregá-la. O pagamento dado pelo Governo aos transportadores é abaixo do preço comum nas obras de igual categoria, e constitui uma fonte de opressão”. Ao contrário de Ferrão, defendeu o monopólio da Coroa: “se o comércio dessa madeira fosse livre, a sua escassez se faria sentir mais rapidamente que no regime atual (...), todavia, podendo ainda ser obtida em estado selvagem e com enormes lucros, o Governo provavelmente continuará suprindo os mercados por sua conta”.32
A proibição das fábricas e manufaturas no Brasil pressupõe os próprios meandros da colonização e da política colonial, “o qual insere-se inseparavelmente no quadro geral da política econômica portuguesa da época, em função da qual se orienta e se concretiza”. Embora a produção do Brasil fosse sempre orientada ao comércio de matérias-primas a serem transportadas para Lisboa desde o século XVI, a institucionalização da proibição de manufaturas foi orquestrada pela Coroa em 1785. O alvará que proibiu as manufaturas no Brasil assinado por d. Maria I, afirmou que “quanto mais se multiplicar o número dos fabricantes, mais diminuirá o dos cultivadores; e menos braços”, e, portanto, “hei por bem ordenar, que todas as fábricas, manufaturas (…), todas as mais sejam extintas, e abolidas em qualquer parte onde se acharem nos meus domínios do Brasil”.33 Fato é que embora houvesse economia no transporte e melhor oferta de preço final do produto, a condição colonial do Brasil impediu qualquer incentivo para montagem e manutenção de um fábrica para raspar o pau-brasil e enviar o produto manufaturado para Lisboa.
Como o foco da discussão aqui proposto parte do comércio do pau-brasil no norte do estado do Brasil, passaremos a analisar dois relevantes aspectos que antecedem o comércio do pau-brasil propriamente dito, mas que geraram tipos de negociações em particular: a extração continental e o transporte atlântico.
Em 1756, os moradores de Pernambuco e senhores de engenhos reclamaram ao rei que os contratadores do pau-brasil “fazem uma inexplicável destruição”. Alegaram que, ao se cortar pau-brasil, outras madeiras eram devastadas, além de que abriam clareiras e estradas nas matas para o escoamento. Jean de Lery, em 1578, já havia afirmado “que tanto por causa da dureza, e consequente dificuldade em derrubá-la”, o pau-brasil era de difícil identificação e exploração nas matas.34 Derrubava-se, junto ao pau-brasil, “grande quantidade de lenha e madeiras para os edifícios e reparos” necessários aos engenhos. Como a madeira tintória era estanco da Coroa e os donos de matas não podiam se opor ao corte, pediram ao rei que, além dos contratadores pagarem pelo pau-brasil cortado de suas matas, como preconizavam os contratos, que também pagassem “os prejuízos que lhes dão nas madeiras e lenhas que se lhes destroem no cortar e tirar para fora dos matos o dito pau-brasil”.35 Embora os reclames fossem direcionados ao monarca e detentor do estanco do pau-brasil, não era ele quem deveria ser punido pela “inexplicável destruição” e, sim, o contratador da época, Estevão Martins Torres, que foi obrigado a indenizar os prejudicados, de acordo com as obrigações aventadas pelo Conselho da Fazenda.
A exploração do pau-brasil no norte do estado do Brasil criou uma complexa instituição envolvendo dois contratos de arrendamento distintos, além do pressuposto mercantil e colonial de ser um estanque da Coroa. Estanque ou estanco, para o pe. Rafael Bluteau, entre outras definições, “é a casa em que os contratadores vendem os gêneros, que arremataram ao El Rei para o venderem só eles”.36 O fato de a Coroa e todo seu aparato governativo e militar zelarem pelo controle absoluto do comércio do pau-brasil na colônia não significou que fosse a própria Coroa, através de seus agentes, a extrair na colônia e depois negociar essa madeira nas praças mercantis após elas terem chegado a Lisboa. Em outras palavras, somente a Coroa poderia usufruir do comércio do pau-brasil, o que não implicou que ela própria devesse extrair, conduzir e comercializar o dito produto. Sendo assim, o estanco do pau-brasil pressupôs dois contratos distintos, ou seja, o negócio envolvia pormenores em relação ao monopólio da Coroa e outras questões distintas em relação aos contratos arrendados a particulares. Esses contratos foram o “contrato do custo, corte e condução” e o “contrato do consumo”. Comecemos pelo primeiro.
O rico negociante português Bento José Alvares arrematou, em 1758, no Paço do Conselho da Fazenda em Lisboa, o contrato do custo, corte e condução do pau-brasil de Pernambuco. Este contrato deveria durar o mesmo tempo que durasse o contrato do consumo, como veremos adiante. Ofertou na ocasião o menor preço, sendo 650 réis livres por cada quintal de pau-brasil que viesse exclusivamente de Pernambuco. Ocorre que ganhava esse contrato quem pedisse menos a Coroa por cada quintal que o contratador cortasse e conduzisse de Pernambuco à Lisboa. Uma diferença importante nesse contrato de 1758 em relação aos contratos anteriores é que antes o contratador poderia cortar o pau-brasil “nas partes onde mais lhe convier” em todo o Brasil, “passando-se as ordens necessárias aos Provedores da Fazenda dos Portos do Brasil para lhe darem toda a ajuda e favor”. Nesse novo contrato, só era permitido o corte do pau-brasil do norte do estado do Brasil.37
Dentre as 19 condições do contrato destacam-se algumas. A cada ano, o contratador e seus sócios deveriam enviar do porto de Recife no mínimo 20.000 quintais de boa qualidade examinados pelo provedor da Fazenda de Pernambuco e seus oficiais antes do embarque para Lisboa. Como foi firmado em contrato, a Coroa pagaria 650 réis por cada quintal enviado, ou seja, chegado o pau-brasil na Casa da Índia, em até um mês depois a Fazenda Real pagaria a Bento José Alves pelo menos 13 contos de réis pela madeira. Todavia, esse valor pago pela Coroa por cada quintal cobriria os custos que o contratador iria ter com os donos das matas onde o pau seria cortado, além de serradores, carreteiros, despesas com escoamento até o porto e o embarque nos navios em que se remetia. Ou seja, os 650 réis pagos pela Coroa ao contratador eram para cobrir os custos do trato continental do negócio.
Nessa primeira escala do negócio, as instituições fiscais e fazendárias da Coroa em Pernambuco deveriam fornecer total apoio ao contratador, inclusive o próprio governador. As cláusulas do contrato garantiam que o procurador da Fazenda em Pernambuco providenciasse armazéns e balança na Alfândega, além de dispor de pequenas embarcações para conduzir a madeira a bordo dos navios que não estivessem ancorados no trapiche. As garantias assentadas no contrato diziam também do monopólio que o contratador e seus sócios tinham para cortar a madeira, que nenhum proprietário de matas poderia opor-se ao corte em suas propriedades e, por fim, “o contratador e seus sócios lograram todas as isenções e privilégios que têm as pessoas que trazem contratos da Fazenda Real na capitania de Pernambuco”.
Essas prerrogativas contratuais diziam das duas primeiras dimensões do contrato que eram de responsabilidade de Bento José Alves: o custo e o corte. Resta discriminar a terceira dimensão também de sua alçada: a condução.
A segunda escala mercantil do negócio do pau-brasil referia-se ao transporte atlântico. Nela as despesas com o frete eram custeadas pela Coroa, porém, deveriam ser previamente pagas pelo contratador aos mestres das embarcações e, depois que a madeira chegasse em Lisboa, a Fazenda Real ressarciria o valor do frete. Sendo assim, o valor pago pela Coroa de 650 réis por quintal não incluía o frete atlântico, no entanto, o contratador deveria dispor do dinheiro previamente e só depois ser ressarcido. O contrato também estabelecia que os mestres dos navios não podiam se opor a conduzir o pau-brasil e também eram obrigados a fiscalizar contagem, peso e embarque.
Os valores pagos pelo frete atlântico do pau-brasil durante a segunda metade do século XVIII variavam entre 500 e 800 réis por quintal transportado. Isso significou que, de acordo com as cláusulas contratuais, caso Bento José Alves conseguisse enviar numa única frota os 20.000 quintais de pau-brasil a 800 réis o quintal, era necessário dispor de capital e crédito de, pelo menos, 16 contos de réis para cobrir os fretes atlânticos. O contrato também estabeleceu que “com a chegada da frota receberiam pelo frete e não recebendo, correrá o juro de 5% ao dia”, como garantia de pagamento por parte da Coroa.38
Quando arrematou esse contrato Bento José Alves estava ciente da lucratividade do trato do pau-brasil. Desde 1775 era o arrematador do contrato dos dízimos de Itamaracá, juntamente com seu fiador e sócio João de Araújo Lima.39 O sucesso de seus empreendimentos no mundo colonial se fez sentir também com a sua participação enquanto acionista da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba - CGPP. Encontramos entre os documentos da Conservatória da CGPP pelo menos 13 processos movidos por Bento José Alves, e alguns por sua esposa, Mariana Inácia de Moura, após o seu falecimento. Dentre os muitos negócios e direitos reclamados pela viúva, consta um processo contra os filhos de um de seus antigos sócios. Antônio dos Santos Pinto, antigo sócio de Bento José Alves, possuiu uma sociedade com o rico negociante Ignácio Pedro Quintela, sendo caixa dos “contratos da pescaria das baleias nas costas do Brasil e azeite de peixe, e do estanco do sal do Brasil”,40 entre 1765 e 1776. A esposa de Bento alegava existirem dividendos não recebidos dessas negociações.
Embora Bento José Alves tenha permanecido no contrato do pau-brasil durante muitos anos, parte dos lucros obtidos nos negócios foi administrado por sua esposa após o seu falecimento, que ocorreu por volta de 1780. Isso porque o negociante operacionalizou o contrato durante anos sem receber boa parte do valor que deveria ser repassado pela Coroa. Em 1790, a Fazenda Real decretou que “se mandasse pagar a D. Marianna Ignácia de Moura, viúva e habilitada meeira dos bens de Bento José Alves, contratador do Custo, Corte do pau-brasil de Pernambuco, pelo tempo que durasse o Contrato e consumo do mesmo pau, que principiou em janeiro de 1758, 60:040$862 reis”. Desse valor, quase 33 contos foram do capital do custo e corte de 50.612 quintais de pau-brasil enviados a Lisboa, sendo 650 réis por quintal, preço da sua arrematação. Já os 27.143.397 réis foram convencionados pelos juros.41
Antes de passarmos para o segundo ramo do contrato do pau-brasil e a terceira escala mercantil de análise do trato, é necessário entender que o funcionamento desse contrato buscava também preservar o estanco e evitar o contrabando. No que concerne ao recorte temporal dessa pesquisa, a junção “contrato monopolizado” e o porto atlântico de Recife como ancoradouro privilegiado para as naus mercantes, com escoamento mínimo por portos menores, foi um dos mecanismos utilizados para minimizar o contrabando.
Uma vez que as escalas continental e atlântica do negócio do pau-brasil se completavam, seguia o fluxo mercantil para a dimensão mais lucrativa do negócio. As naus aportavam em Lisboa e na Casa da Índia iniciavam os ritos institucionais para o descarregamento do produto. Ao passo que se dava entrada dos toros nos armazéns, iam-se pesando e o escrivão tomava nota do peso de cada toro. De acordo com os registros alfandegários consultados em Lisboa,42 pesavam-se os toros um a um, enfeixando-os por quintais, ou seja, somavam-se a quantidades de toros até alcançar quatro arrobas (aproximadamente 60 kg). Ao completar uma libra ou arrátel, ou seja, a cada oito quintais com 32 arrobas (aproximadamente 1.920 kg), registrava-se no livro do peso da alfândega. A cada 10 registros de arrátel/libra, ou seja, 320 arrobas, fechava-se um segmento da conta, e começava-se novamente a pesar e registrar, sempre obedecendo a mesma lógica.
Esse método minucioso de contagem e registro, que também era realizado na Alfândega do Recife, atendia às demandas institucionais do negócio do pau-brasil. Em primeiro lugar, servia para verificar se a quantidade de madeira enviada pelo contratador estava de acordo com os registros dos conhecimentos de carga dos navios. Esse procedimento servia também para auferir o valor que deveria ser repassado ao contratador pelo corte e custo da madeira e a parcela relacionada aos fretes de cada navio. Como vimos, os valores repassados eram por cada quintal cortado e fretado. Em segundo lugar, para acompanhar o desempenho do contratador do corte, custo e condução, tendo em vista a cláusula de envio mínimo anualmente de pau-brasil para Lisboa. E, finalmente, para regular o estoque dos armazéns e conferir a retirada que o contratador do consumo do pau-brasil realizava na Casa da Índia.
No final do ano de 1756, os “homens de negócio da Nação Britânica” David Purry, Gerard Devisme e Joseph Mellish, que possuíam uma sociedade mercantil sob o nome de Purry, Mellish and Devisme, arremataram por nove anos (1756 a 1765) o primeiro dos três contratos do consumo do pau-brasil. Na presença de oficiais do Conselho da Fazenda em Lisboa, David Purry e Gerard Devisme assinaram o contrato que os obrigava a consumir anualmente 20.000 quintais de pau-brasil ao preço de 6.400 réis cada quintal, totalizando por ano, 128 contos de réis. Esse valor seria pago em quartéis de 32 contos de três em três meses, “computados no dia em que chegar a primeira frota”. Na ocasião os contratadores também arremataram todo o pau-brasil que naquele momento se achava nos armazéns da Casa da Índia pelo mesmo preço por quintal. O fiador à décima do contrato foi um respeitado negociante da praça de Lisboa, José Alvares (ou Alves) de Mira, que deteve durante o século XVIII diversas sociedades mercantis e variados negócios com a Coroa, como o contrato dos caminhos das Minas, estanco do sal, dízimos da capitania do Rio de Janeiro, entre outros.43
As condições desse contrato firmado entre a Coroa e a sociedade mercantil foram devidamente registradas nos livros do Conselho da Fazenda. Além dos valores que deveriam ser pagos por cada quintal e a forma de pagamento, o contrato antecipa que “todo o pau, que por ele mando arrematar deve ser precisamente da produção de Pernambuco, e para evitar qualquer mistura de outro diferente, sou servido proibir que se carregue pau de tinta vermelha no Rio de Janeiro ou em qualquer outros Portos do Brasil”. Caso essa cláusula fosse quebrada e vindo algum pau-brasil “daqueles Portos seja queimado a custa do Mestre do Navio em que for transportado”.
A principal cláusula do contrato, pelo menos no que concerne à dimensão da circulação e consumo do pau-brasil oriundo do norte do estado do Brasil, seguiu os ditames finais do documento: “os referidos arrematantes gozaram do privilégio para previamente extraírem para fora dos meus reinos o referido Pau de Pernambuco, e nele poderem comerciar livremente por si, e seus feitores para todos os Países Estrangeiros que lhe bem parecer”.44 Esse privilégio permitiu maior lucratividade do produto no mercado e do negócio como um todo, tendo em vista que não pagava direitos de saída na Alfândega de Lisboa. Por outro lado, trouxe problemas para os historiadores, pois como não pagava direitos de saída, não há registros alfandegários de reexportação do produto.
O segundo contrato já não foi arrematado, pelo menos não no sentido institucional do rito. Na verdade, foram prorrogados os direitos dos contratadores, embora tenha se firmado um novo documento com diferentes termos no mesmo ano em que acabou o primeiro, ou seja, em 1766. Foram firmados mais nove anos de contrato (1766 a 1775) e algumas condições foram alteradas. Primeiro, a obrigação de consumo anual de pau-brasil pelo contratadores subiu de 20.000 para 30.000 quintais, o que denota uma oferta maior de pau-brasil oriunda do norte do estado do Brasil, ou seja, maior volume de corte da madeira.45 Segundo, o preço pago pelos contratadores caiu de 6.400 para 4.800 réis, porém, como o volume obrigatório foi maior, a Coroa ganharia por ano 144 contos ao invés de 128, como no contrato anterior. As demais cláusulas se mantiveram, inclusive a de que somente poderia ser extraído o pau de Pernambuco e que se poderia comercializar livremente para qualquer porto estrangeiro com o privilégio de isenção alfandegária.
Um nova cláusula acrescentada nesse contrato dizia respeito ao fomento às indústrias portuguesas preconizado pelas políticas econômicas do marquês de Pombal, notadamente para as fábricas de lanifícios, tecelagem de sedas ou linho e têxteis em geral.46 Os contratadores passaram a ser “obrigados a vender aos Meus Vassalos pelo mesmo preço estipulado todo o Pau de que fretarem para as suas Fabricas e tinturas”, ou seja, a 6.400 réis o quintal.47
O terceiro e último contrato da sociedade mercantil inglesa e o consumo do pau-brasil foi firmado nos mesmos rituais anteriores. No fim do ano de 1775, foi realizado um novo contrato, sem arrematação, por mais nove anos (1776-1784). O preço foi alterado, assim como a quantidade mínima de madeira a ser consumida pelos contratadores, retornando aos termos do primeiro contrato: 20.000 quintais anualmente e 6.400 réis por quintal. É possível que a oferta de pau-brasil oriundo do norte do estado do Brasil tenha diminuído nos anos anteriores. Esse contrato pressupôs uma cláusula nova, ao definir que “no caso em que por falta de embarcações prontas, ou por contingências do tempo, por infortúnios da navegação ou outros quaisquer semelhantes impedimentos” ocorra que no giro de um ano, “não tenha toda a quantidade de 20.000 quintais de pau contratados, e que esta porção que faltar possa vir no ano seguinte”, sem descuidar dos “vinte mil quintais correspondentes ao mesmo ano”.48
Entre 1757 a 1784, ou seja, durante pelo menos 27 anos, a sociedade mercantil Purry, Mellish and Devisme deteve o contrato exclusivo do consumo do pau-brasil da única região que poderia ser explorada, o norte do estado do Brasil. Pesquisas futuras elucidaram as questões concernentes ao final do contrato dessa sociedade, isso porque, de acordo com os registros consultados entre 1784 e 1787, o principal agente e procurador da sociedade, Pedro Brot, continuou assinando despachos de saída em nome da sociedade Purry, Mellish and Devisme, embora até o presente momento não tenhamos encontrado qualquer contrato que ateste a permanência deles no negócio após 1784. Nossa hipótese é que com a morte de David Purry em 1786 e passando a firma a ter o nome dos outros dois sócios Devisme and Mellih a partir de 1788, os negócios tenham de fato sofrido alterações e, ao invés de renovação contratual, foram feitas somente compras fortuitas de pau-brasil pela sociedade.
A sociedade mercantil permaneceu atuando no contrato durante o funcionamento da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba; inclusive David Purry e Cia aparecem como investidores iniciais da CGPP ao adquirirem ações ainda em 1759. Purry, Mellish and Devisme permanecem no negócio do pau-brasil antes, durante e depois da Companhia, aliando-se a ela através do investimento em ações. Nesse sentido, concordamos com José Ribeiro Júnior, para quem o fato de David Purry ter adquirido 20 ações da CGPP foi o mecanismo utilizado “para continuar desfrutando do comércio colonial, pois eram compradores de gêneros coloniais e vendedores de produtos manufaturados de seus países de origem”.49
Importante notar que uma das principais praças mercantis de atuação da sociedade foi Marselha. Essa antiga cidade da Provença francesa, situada na costa mediterrânea, constitui-se desde o século XVII como um porto de reexportação de produtos oriundos da América para Ásia e África. Os mercadores de Marselha vendiam café da Martinica e de outras regiões do complexo caribenho para Cairo e Alexandria, assim como açúcar para o Levante, da Síria ao Chipre.50 É possível que esse tenha sido o caminho do açúcar comprado pela sociedade diretamente à CGPP em 1776, quando da aquisição da “carga do açúcar do Navio Piedade e Bom Jesus de Bouças a Purry e Companhia, [sendo] os brancos a 1.820, e os mascavados a 1.680, a pagar logo 9:600$000 reis”.51
Outro detalhe importante é que, de acordo com os livros da Casa da Índia, a primeira referência é uma embarcação registrada na Alfândega de Lisboa com pau-brasil oriundo de outra parte do Brasil no século XVIII - da Bahia em 1786, no navio Sta. Maria de Londres, do capitão Domingos Batista Claro, tendo despachado 105 quintais.52
É relevante perceber como um produto que já era monopolizado pela Coroa portuguesa se reveste de outros monopólios e privilégios, isso porque todo o comércio de pau-brasil durante esse período que não fosse realizado pelos contratadores e extraído do norte do estado do Brasil constituiu-se em contrabando. O negócio pressupôs também três escalas mercantis igualmente monopolizadas. Como estanco da Coroa, toda a madeira tintória pertencia a ela. O trato continental era monopolizado pelo contrato do corte, custo e condução na escala “norte do estado do Brasil (extração) - porto de Recife (escoamento)” e na escala atlântica “porto de Recife - Lisboa”. Já o trato metropolitano foi gerido pelo contrato do consumo que implicou no monopólio de venda na escala “Lisboa - mercado mundial”.
É possível estimarmos qual foi o ganho da Coroa nesses 27 anos de monopólio do pau-brasil a partir da análise desses contratos. Os contratos de consumo presumiam o valor mínimo por ano que o contratador deveria adquirir de pau-brasil; realizando uma conta simples constatamos que o contratador provavelmente consumiu 630.000 quintais em 27 anos. A cada contrato havia valores diferentes por cada quintal, sendo que ao fim dos 27 foram pagos 3.600.000.000 réis à Coroa. Considerando que no primeiro contrato do corte de pau-brasil foram pagos 650 réis para cada quintal cortado, estimamos o mesmo valor para todos os outros anos. Quanto aos fretes, eles eram pagos também por quintais e variavam de 600 a 800 réis. Estimamos uma média de 700 réis para cada quintal para todos os anos. Os valores obtidos seguem no quadro abaixo.
De acordo com nossas estimativas, a Coroa ganhou durante 28 anos mais de 300% no negócio do pau-brasil, em relação ao gasto que teve para cortar e conduzir do norte do estado do Brasil à Lisboa.
Essa estimativa de saldo do negócio não levou em consideração as despesas institucionais do contrato na Casa da Índia, de modo que não constitui um saldo líquido. Também não levou em consideração possíveis mudanças no contrato do corte, custo e condução do pau-brasil durante o funcionamento da CGPP, já que, de acordo com José Ribeiro Júnior, esse contrato foi assumido pela Companhia recebendo 2% dos 20.000 quintais anuais vendidos aos contratadores do consumo.53 Essa questão ainda precisa ser melhor elucidada. Todavia, entendemos que o fato do negócio do pau-brasil cobrir as despesas institucionais, tais como 1% para o Conselho da Fazenda, honorários dos funcionários da Casa da Índia, propinas, ofertas,54 além do que toca à Casa da Rainha como vimos anteriormente, tudo isso faz parte dos próprios ganhos do negócio.
Quanto aos registros de retirada do pau-brasil dos armazéns da Casa da Índia por seus contratadores, dispomos de uma sequência de dados entre 1756 e 1775, cobrindo a totalidade dos dois primeiros contratos. Nos livros de receita dos contratadores anotaram-se, dia a dia, as retiradas de pau-brasil seguidas da assinatura ou dos contratadores ou dos seus procuradores, além da rubrica do tesoureiro das Especiarias da Casa da Índia atestando a veracidade do ato. No início do contrato, em 1756, o próprio David Purry assinava as retiradas, já no ano seguinte seus procuradores começam a assinar os despachos, sendo Antônio Teixeira e Simão da Veiga os procuradores até 1765, passando a responsabilidade a Pedro Brot até 1787.
Entre 1756 e 1775, a sociedade mercantil retirou 1.798.624 toros, totalizando 422.131 quintais de pau-brasil. De acordo com o contrato firmado com a Coroa, entre esses anos os contratadores deveriam ter consumido 450.000 quintais, faltando assim 27.869. Esse fato não foi empecilho para que a sociedade continuasse no negócio, afinal isso explica uma cláusula diferente que apareceu no terceiro contrato, relacionando a oferta anual de pau-brasil com a irregularidade das frotas ou qualquer outro impedimento. É possível, portanto, que a extração do pau-brasil e seu transporte atlântico explique a irregularidade anual entre os quintais que deveriam ser retirados dos armazéns de acordo com o contrato e os valores que efetivamente foram retirados por seus contratadores. A mudança de comportamento no gráfico a partir de 1766 deve-se às mudanças de consumo de acordo com o contrato, passando de 20.000 para 30.000 quintais.
Os testamentos de David Pury, Joseph Mellish e Gerard De Visme, redigidos entre 1777 e 1790, são o ponto de partida para analisarmos os diversos negócios em escala global dessa sociedade.
O inglês Joseph Mellish possuiu, durante o século XVIII, uma extensa rede mercantil a partir de Lisboa e de uma companhia sediada em Londres denominada Society of Northern Adventures of England Commonly the Lamborough Company. Tinha procuradores e negociantes atuando na Alemanha e na Rússia. A rede dos negócios era intercontinental: Charles Mellish, sobrinho de Joseph Mellish, possuía uma firma de advocacia em Lisboa, Mellish & Co, dirigindo negócios com mercadores na América do Norte, entre os quais John Telles, negociante em Philadelphia e exportador de cereais para Joaquim Pedro Quintela, em Lisboa, na década de 1780. Na década de 1760 foi deputado no parlamento inglês pela Câmara dos Comuns.55
Gerard De Visme faleceu em 20 de novembro de 1798 em Londres deixando, além de uma considerável fortuna, um dos mais bonitos jardins europeus até então construídos. No palácio de Monserrate, em Sintra, De Vimes empregou vultosas quantias provenientes de seus negócios enquanto contratador dos diamantes no Brasil, como veremos adiante, além do contrato do pau-brasil e no financiamento e empréstimos, atuando em sociedade como uma espécie de banco comercial.56 De Visme cita em seu testamento valores a serem pagos aos procuradores da sociedade em Lisboa, Simão da Veiga, Pedro Brot e José da Lama; além de sócios em Londres como John Gore e do huguenote Louis Du Bois.
David Pury ou Purry desembarcou em Lisboa em 1736 e escreveu o seu testamento em janeiro de 1777, deixando em reserva da sociedade Purry, Mellish and Devism aproximadamente 225.600.000 réis. Toda a sua fortuna foi legada a sua terra natal, Neuchâtel.57 Seus negócios teriam começado em Portugal através de uma sociedade com o português Bartolomeu Miguel Vianna, falecido em 1739. Bartolomeu Miguel Viana é um dos nomes portugueses da sociedade inglesa John Dansaint and Company a quem d. João V concedeu alvará em 1722 para negociar escravos da costa oeste africana para o Brasil, podendo em troca transacionar pau-brasil em condições especificas.58
O ingresso de David Purry no mundo dos negócios coloniais nem começa nem termina como contratador do estanco real do pau-brasil. Na verdade, a história da família Purry está trespassada por lutas, guerras e ganhos gestados com avanços colonizadores, dizimação de populações nativas, negócios monopolistas e escravidão, tendo inclusive despertado o interesse do historiador Carlo Ginzburg.59
Originários do cantão de Neufchâtel (hoje Neuchâtel), na atual Suíça, o pai de David Purry, Jean Pierre Purry, aventurou-se no Novo Mundo em busca de riquezas, tendo inicialmente buscado investir nas Índias Orientais Holandesas (atual Indonésia) e nas terras desconhecidas do que hoje se chama Austrália do Sul. Buscando respaldo nas cortes europeias, sobretudo entre os negociantes de Amsterdã e Londres, Jean Purry conseguiu apoio de proprietários de terras e lavouras na região hoje chamada Carolina do Sul (EUA), imigrando com outros suíços para uma área próxima ao rio Savannah, e fundando em 1734 a localidade batizada de Purrysburg.
Dizimando populações nativas e guerreando contra franceses e espanhóis, a fundação de Purrysburg buscou manter os interesses imperais britânicos na região, além de dar lugar aos interesses particulares dos ingleses e habitantes do cantão de Neuchâtel emigrados. Falecido em 1736, deixou dois filhos. O mais velho, Charles Purry tornou-se um importante negociante em Beaufort (Carolina do Sul), tendo vários estabelecimentos comerciais e morrendo envenenado por um dos seus escravos.60
O outro filho era David Purry, que permaneceu na Europa. Em 1726, aos 17 anos, passou a residir em Marseille como caixeiro e aprendiz do comerciante Isaac Tarteiron e, a partir de 1730, instalou-se em Londres como secretário de John Gore, um dos diretores da South Sea Company, uma companhia privada inglesa fundada em 1711 com direitos exclusivos para comércio na América do Sul. John Gore era um negociante de Hamburgo, tendo se tornado súdito inglês e naquela altura já era sócio de Joseph Mellish. Em 1736, David Purry tornou-se sócio de John Gore e, em consequência, súdito da Coroa britânica, instalando-se desde então em Lisboa até sua morte em 1786.61
No início de 1757, poucos meses depois de ter arrematado o primeiro contrato do pau-brasil, a sociedade Purry, Mellish and Devisme associou-se a mais duas sociedades mercantis: os ingleses John Gore and Company e Gerard and Josué Van Nek & Cia. Entre 1757 e 1759, essa sociedade se comprometeu a extrair a “importância de 50.000 quilates de Diamantes brutos do Brasil”, pagando por cada quilate, em dinheiro de contado, 9.200 réis.62 Estando na condição de grandes negociantes instalados em Lisboa, passaram também a atuar como investidores creditícios, financiando empréstimos para armação de navios, inclusive emprestando dinheiro à Coroa portuguesa.
A prosperidade dos seus negócios levou David Purry a revelar em carta à sua irmã que estava em Neuchâtel: “quant à nos affaires, elles augmentent plus que je ne voudrois, et plus que nous n’avons besoin, puisque nous avons actuellement regagné au-delá de ce que nous avions perdu, ainsi que nous avons les plus grands sujets de rendre grâces à Dieu”. No final de sua vida também declarou ao seu amigo e sócio que se encontrava em Londres, Joseph Mellish, que eram todos ricos o bastante para não ser forçados a trabalhar mais, sendo as pensões suficiente para manter ambos “paisiblement et avec honneur”.63
Os conhecimentos adquiridos com os negócios nas colônias e mesmo no Oriente, assim como o seu trânsito na Casa da Índia, foram essenciais para que David Purry tomasse ciência da lucratividade do trato com os monopólios da Coroa. Todavia, foi a necessidade de capitais para erguer uma Lisboa devastada pelo terremoto e um Reino enfraquecido por maus gestores que permitiram o acesso dos negociantes ingleses e, dentre eles, a sociedade Purry, Mellish and Devisme, nos grandes contratos e monopólios da Coroa.
A amizade e os favores recíprocos entre David Purry e o marquês de Pombal foram relevantes para garantia de privilégios da sociedade em Lisboa. O arrendamento de uma casa na rua Formosa em Lisboa em nome da sociedade pertencente a Sebastião José provocou a indignação de Jacomé Ratton. Consta nas Recordações de Ratton que “foi a casa do Marques na Rua Formosa, arrendada por 4.000 cruzados anuais a uma casa de comércio inglesa, a qual corria debaixo da firma de Purry, Mellish e de Visme”, acrescentando que era um “excessivo aluguel para aquele tempo, mas que os ditos comerciantes pagavam de mui boa vontade”, afinal, “pela conservação do contrato do Pau-Brasil, que julgo pagavam a 6.000 reis o quintal, e com que adquiriram uma imensa fortuna, que toda saiu do Reino”. De fato, consta no cartório notarial de Lisboa do tabelião Thomas da Silva Freire, um arrendamento para a sociedade dessa casa de Sebastião José, “em que se compreende a propriedade Nobre e Casas grandes, suas varandas, pátio grande com todas cocheiras que nele se acham, o Palheiro e Cavalariças grandes com seu pátio pequeno”, além do “chafariz da mesma rua Formosa, vários armazéns grandes e pequenos, adegas, latrinas, carvoeiras, e casas de lavar, e outro armazém maior, serventia de carro para o dito pomar, e outra dela para o jardim de cima, e para o Segundo Terraço”.64
De acordo com as poucas informações particulares de que dispomos sobre as negociações de David Purry, os carregamentos de tinturaria provenientes do pau-brasil de Pernambuco a partir de Lisboa eram destinados aos negociantes franceses. Em Marseille, a sociedade mercantil tinha negócios com mr. Isaac Tarteiron, um influente e rico negociante oriundo de uma tradicional família de mercadores do Mediterrâneo, que recebia e revendia na França o pau-brasil.65 O único estudo mais detalhado sobre a contabilidade privada e a rede mercantil de David Purry pesquisado, foi o de Louis-Edouard Roulet que pouco nos informa sobre o papel desempenhado pelo pau-brasil na composição da fortuna de David Purry.66
Outros documentos apontam portos distintos para a comercialização do produto. De acordo com uma descrição das produções e comércio do estado do Brasil das últimas décadas do século XVIII, “o pau-brasil, o qual se corta nos matos que ficam ao Norte e Sul de Pernambuco e é contrato da Rainha de Portugal segue para Gênova”. Já no início do século XIX, encontramos referência a respeito de uma viagem da galera Conde de Peniche a Pernambuco e sua torna viagem passaria por Havre de Grace, onde o negociante João Pereira de Souza venderia 4 a 5 mil quintais de pau-brasil. A carga deveria ser vendida em leilão, estando segurada pela Companhia de Seguros da Corte, sendo duas terças partes pertencentes ao Real Erário e sacadas em letra.67
Nos mapas de importação e exportação da Junta do Comércio do Rio de Janeiro consta que, em 1809, avultadas somas de quintais de pau-brasil de Pernambuco deram entrada no porto de Liverpool. Por acreditar que esse comércio com a China poderia ser mais lucrativo do que seguir para os portos ingleses, o secretário da Junta do Comércio no Rio de Janeiro escreveu um ofício ao conde das Galvêas sugerindo que os negociantes de Lisboa pudessem extrair das matas do Rio de Janeiro e região de Cabo Frio, sem participação da Coroa, pau-brasil a ser enviado para Macau mediante um direito de saída no valor de 4$800 reais por quintal, “para o venderem para a China onde me parece que há de ter grande consumo” pelos tintureiros chineses.68
Nossas investigações sobre o negócio do pau-brasil de Pernambuco e a atuação monopolizada de uma única sociedade mercantil com privilégios alfandegários durante 28 anos apontam para as análises de Kenneth Pomeranz. De acordo com esse investigador, as sociedades mercantis e os monopólios licenciados “revelaram-se singularmente vantajosos para a prossecução do comércio armado de longa distância e para colônias orientadas para a exportação - atividades que exigiram aquilo que eram, para a época, quantidades excecionais de capital”.69 Essa combinação de um capitalismo europeu setecentista baseado nas ligações e sanções do Estado e o recurso à força do colonialismo no Novo Mundo permitiram largas vantagens econômicas ao continente europeu.
O jesuíta José de Anchieta afirmou em 1584 que mesmo com todos os esforços da guerra financiada pela Coroa portuguesa contra os franceses desde o início do século XVI, estes “não desistiram do comércio do Brasil (...), iam e vinham, e carregavam suas naus de pau-brasil”.70 Dois séculos depois, embora não mais através do saque e sim do comércio, a madeira tintória do Brasil ainda alimentava os mercados franceses, fossem eles para usufruto de suas indústrias de tingir têxteis, seja para reexportação.
Pesquisas mais aprofundadas devem equacionar o papel do pau-brasil não somente enquanto produto oriundo do Novo Mundo, mas revelar o peso que essa matéria prima extraída das matas do Brasil teve na alimentação de um mercado pouco provável de ter sido impulsionado, caso não existisse a extração e comércio para além das terras europeias. Isso advém da carência dessa madeira nas matas e florestas francesas, além da pouca mão de obra disponível para sua extração e produção. Como bem afirmou Pomeranz, ao longo do século XVIII, a Europa trocou um volume cada vez maior de produtos manufaturados oriundos de matéria prima do Novo Mundo por um volume crescente de bens cuja produção dependeria de grandes quantidades de terra, como seria o plantio e manejo do pau-brasil.
Isso permitiu que a Europa, e a França em particular, investissem capital e mão de obra em aperfeiçoamento das técnicas de tinturarias e tecnologias na área têxtil. Os incentivos econômicos e o mercantilismo de Jean-Baptiste Colbert impulsionaram os mercadores têxteis franceses ao ponto que, no fim do século XVII, a França já dominava o mercado de tecidos de luxo na Europa, inclusive divulgando manuais técnicos de tinturaria que incluíam o pau-brasil das Américas.71
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