Resumo: Neste artigo, discute-se como a damnatio memoriae imposta por D. Afonso V ao infante D. Pedro no contexto da Batalha de Alfarrobeira, em 1449, bem como a revogação de tal pena, em 1455, refletem-se nas crônicas de Gomes Eanes de Zurara. Demonstra-se que, no período em que vigorou a citada damnatio memoriae, Zurara escreveu, a mando do rei, suas duas primeiras obras: a Crónica da Tomada de Ceuta e a Crónica de Guiné, motivo pelo qual o infante D. Pedro, enquanto personagem, quando não é esquecido, é lembrado desfavoravelmente pelo cronista. Contudo, observa-se uma redenção mnemônica do infante D. Pedro nas duas últimas crônicas zurarianas, a saber, a Crónica do Conde D. Pedro de Meneses e a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, compostas após a reabilitação oficial da memória do ex-regente por parte do monarca.
Palavras-chave: Crônicas, Damnatio memoriae, História, memória e esquecimento, Infante D. Pedro, Zurara, Gomes Eanes de.
Abstract: This paper discusses how the damnatio memoriae imposed by king Afonso V on infant D. Pedro in the backdrop of the Battle of Alfarrobeira, in 1449, as well as the revocation of such penalty, in 1455, are reflected on the chronicles by Gomes Eanes de Zurara. It is shown that in the period in which the aforementioned damnatio memoriae prevailed, Zurara wrote, under king’s orders, his two first works: the Crónica da Tomada de Ceuta and the Crónica de Guiné, reason why the infant D. Pedro as a character, while not forgotten, is remembered unfavorably by the chronicler. However, in the last two zurarian chronicles, namely, the Crónica do Conde D. Pedro de Meneses and the Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, composed after the official rehabilitation of the memory of the former regent by the monarch, a mnemonic redemption of D. Pedro is observed.
Keywords: Chronicles, Damnatio memoriae, History, memory and forgetting, Infant D. Pedro, Zurara, Gomes Eanes de.
ARTIGO
DANAÇÃO E REDENÇÃO DA MEMÓRIA DO INFANTE D. PEDRO NAS CRÔNICAS DE GOMES EANES DE ZURARA1
DAMNATION AND REDEMPTION OF MEMORY OF INFANT D. PEDRO IN THE CHRONICLES BY GOMES EANES DE ZURARA
Recepção: 27 Maio 2020
Aprovação: 19 Janeiro 2021
D. João I (1357-1433), fundador da Casa Real de Avis, é até hoje lembrado como o “Rei da Boa Memória”. Tal codinome já se faz presente no prólogo da primeira parte da crônica que Fernão Lopes (138?-c.1460) escreveu sobre esse monarca, concluída por volta de 1443 (LOPES, 1983, p. 2; AMADO, 1997, p. 52-53). Assim, dez anos após o seu trespasse, por encomenda do seu filho e sucessor, D. Duarte (1391-1438), já estava em construção uma “boa memória” histórica de D. João I e, por conseguinte, da linhagem por ele iniciada. Acontece, porém, que não se faz uma “boa memória” sem um “bom esquecimento”. Tanto Jacques Le Goff (2003, p. 422) quanto Paul Ricoeur (2007, p. 93-99, 455-459) utilizam o termo manipulação para se referirem aos mecanismos através dos quais os grupos dominantes exercem censura sobre a memória coletiva, silenciando o que, segundo os seus interesses, deveria ser olvidado. Partindo de Tzvetan Todorov (2000), Paul Ricoeur (2007, p. 93-99, 455-459) argumenta ainda que, para a construção e manutenção de sua identidade, os detentores do poder valem-se mesmo de um abuso de memória e de esquecimento, especialmente diante de um outro que se apresenta - ou que pelo menos é visto - como uma ameaça.
Escrevendo durante a longa duração da instituição retórica4, período no qual a história era entendida como um tipo de narrativa cuja peculiaridade é escrever as coisas que aconteceram5 com vistas à exortação moral do público, os cronistas-mores da Casa de Avis deveriam fornecer memoráveis exemplos de conduta a serem imitados ou repudiados pelo corpo social. Evidentemente, os principais modelos de virtudes apontados pelos cronistas da corte régia eram os reis e os seus fiéis súditos, reservando-se o lugar de antimodelos para os desafetos dos monarcas. E assim é que Fernão Lopes e o seu sucessor, Gomes Eanes de Zurara (c.1405-c.1474), recorrentemente atualizam o topos ciceroniano historia magistra vitae6, louvando umas personagens e vituperando outras, sempre em consonância com o projeto de memória e de esquecimento da dinastia e do rei a que serviam (GUIMARÃES, 2019, p. 139-146). Ao mesmo tempo em que buscavam instruir os seus leitores e ouvintes a respeito do melhor caminho a ser seguido com base em exemplos do passado, os cronistas avisinos construíam uma boa ou má memória sobre as personagens de suas narrativas históricas. Em alguns casos, uma mesma persona poderia ser apresentada ora como antimodelo, ora como modelo, de acordo com a conjuntura sociopolítica do momento da composição da crônica. Tal variação de tratamento ocorreu com o infante D. Pedro (1392-1449) na pena de Gomes Eanes de Zurara: num primeiro momento mal lembrado e com frequência esquecido, esse filho de D. João I viria finalmente a merecer, como o seu pai, uma “boa memória” nas crônicas zurarianas, sempre em atendimento a determinações do rei D. Afonso V (1432-1481).
Quando o rei D. Duarte morreu, em setembro de 1438, o herdeiro do trono, D. Afonso, tinha apenas seis anos. Em seu testamento, D. Duarte determinara que a rainha viúva, D. Leonor de Aragão (c.1405-1445), deveria governar sozinha o reino de Portugal até a maioridade do primogênito régio, ou seja, quando ele completasse 14 anos. Tal disposição agradou à grande nobreza, que viu aí uma oportunidade para obter mais benefícios. Outros nobres, no entanto, juntamente com cidades e vilas do reino, não viam com bons olhos que a regência fosse exercida por uma mulher, e ainda estrangeira, irmã dos infantes de Aragão, os quais se encontravam envolvidos em disputas em Castela8. Assim, nas cortes de Torres Novas, em novembro de 1438, nas quais os representantes dos três estados9 juraram fidelidade ao pequeno rei, chegou-se a um consenso: a regência seria compartilhada entre D. Leonor e o infante D. Pedro, 1.º duque de Coimbra. Aquela tinha o apoio sobretudo da nobreza senhorialista, liderada pelo 8.º conde de Barcelos, D. Afonso (c.1377-1461), filho bastardo de D. João I, enquanto o infante D. Pedro era apoiado pelos seus outros irmãos, os infantes D. Henrique (1394-1460), 1.º duque de Viseu, e D. João (1400-1442), 3.º condestável de Portugal e administrador da Ordem de Santiago, além de alguns fidalgos aliados e a maior parte dos concelhos do reino.
Após uma revolta popular, em novembro 1439, o infante D. Pedro foi eleito regedor e defensor do reino pelo povo de Lisboa. Nas cortes realizadas em dezembro daquele ano, também em Lisboa, o duque de Coimbra tornou-se o único regente e obteve ainda a tutela de D. Afonso V e do infante D. Fernando (1433-1470), o próximo na linha de sucessão. Destituída, D. Leonor refugiou-se em Almeirim e, depois, no Crato, onde, apoiada pelo conde de Barcelos, aguardou auxílio militar de seus irmãos, os infantes de Aragão, para recobrar a regência e a tutela dos filhos. Como não obteve sucesso, a rainha fugiu para Castela no final de 1440.
Os concelhos aliaram-se ao infante D. Pedro porque viram nele um obstáculo às ambições da nobreza senhorialista e se agradaram de sua política externa, que não mais priorizava a expansão guerreira sobre o norte africano. A grande nobreza de Portugal, por seu lado, com a exceção de membros da família régia10, viu minguarem novas doações da Coroa. O fato de o duque de Coimbra ter montado uma equipe de governo formada essencialmente por escudeiros e criados da sua própria casa também contribuiu para que boa parte da nobreza, liderada pelo conde de Barcelos, fizesse firme oposição à sua regência.
Em 1446, D. Afonso V atingiu a maioridade, mas, nas cortes de Lisboa daquele ano, provavelmente persuadido pelo regente, declarou-se inapto para assumir o governo, concedendo mais tempo de atuação ao seu tio. Com a celebração do contrato nupcial entre o jovem rei e sua prima, D. Isabel de Coimbra (1432-1455), filha do infante D. Pedro, em 1447, os ânimos ficaram ainda mais exaltados, uma vez que o conde de Barcelos, já então duque de Bragança, queria que a sua neta, D. Beatriz (1435-1462), casasse-se com o monarca.
Além disso, no verão de 1448, D. Afonso V, sob a influência do partido do duque de Bragança, que insistia que o infante D. Pedro não lhe devolveria o poder, pôs fim à regência e assumiu o governo. Apesar das cartas de louvor que havia endereçado por duas vezes ao seu sogro11, o monarca condenou a sua administração do reino e passou a exonerar e perseguir os funcionários da sua casa, oferecendo os novos cargos disponíveis à gente ligada à nobreza senhorialista, a qual viu aí a oportunidade de vingança. Rui de Pina (1440-1522), em sua Chronica do Senhor Rey D. Affonso V (1977, p. 703), informa que, entre as novas acusações que pesavam sobre D. Pedro, estava a de que ele, “com cobyça de reynar”, mandara matar D. Duarte, D. Leonor e o infante D. João. Isolado no seu ducado por determinação régia e sentindo-se humilhado, D. Pedro negou-se a entregar as armas que estavam sob os seus cuidados no castelo de Coimbra e impediu a passagem do duque de Bragança, acompanhado de homens armados, por suas terras, o que irritou a D. Afonso V. A partir daí, os acontecimentos se precipitaram e, no dia 20 de maio de 1449, às margens da ribeira do lugar de Alfarrobeira, as hostes que acompanhavam o rei venceram o exército liderado pelo infante D. Pedro, o qual encontrou naquela batalha uma morte aviltante.
D. Afonso V confiscou os bens móveis e de raiz do duque de Coimbra e dos seus partidários e lançou penas que atingiam os seus descendentes até a quarta geração. A memória maldita sobre o infante D. Pedro, bem como o esquecimento intencional da sua pessoa e do seu governo, refletir-se-iam ainda em parte da obra do novo cronista-mor da corte régia, Gomes Eanes de Zurara, cuja primeira crônica viria a ser concluída no ano posterior à Batalha de Alfarrobeira.
Zurara escreveu as suas crônicas basicamente no terceiro quartel do século XV. O seu “discurso historiográfico” situa-se na lenta e gradual transição da historiografia medieval para a historiografia renascentista em Portugal (BARRETO, 1983, p. 64; PANEGASSI, 2013, p. 173). O cronista informa que iniciou a composição de sua primeira obra, a Crónica da Tomada de Ceuta, 34 anos depois da conquista dessa cidade, ou seja, em 1449 - ano da Batalha de Alfarrobeira, não se esqueça (ZURARA, 1992, p. 43). A recolha de material para escrevê-la, no entanto, é anterior. Afinal, foi “ao tempo que primeiramente começou de governar seus reinos”, ou seja, em 1448, que D. Afonso V, então um jovem de 16 anos, mandou que Zurara ajuntasse e escrevesse a continuação dos feitos do seu avô, D. João I (ZURARA, 1992, p. 45). A audição de testemunhas e a produção dos primeiros rascunhos parecem ser mesmo dos tempos da regência petrina. É o que se pode deduzir das seguintes palavras de Zurara: “porquanto, tendo o Infante Dom Pedro cargo do regimento destes reinos, me contou grão parte deste feito, com intenção de o assentar, logo de todo, em crónica segundo disso fiz algum começo” (ZURARA, 1992, p. 75).
Daí decorre que, ainda antes de entregar o governo ao seu sobrinho - o que se deu a 8 ou 9 de julho de 1448 (MORENO, 1979, p. 260) - o duque de Coimbra teria tanto servido de testemunha a Zurara sobre os acontecimentos que levaram à conquista de Ceuta como declarado a ele o desejo de que tal sucesso fosse logo assentado por escrito em crônica. Foi sob a regência de D. Pedro, afinal, que Fernão Lopes escreveu as duas partes da Crónica de D. João I (AMADO, 1997, p. 52-53). Não causa nenhuma estranheza, portanto, o fato de que o então regente quisesse que a história dos feitos do seu pai fosse enfim finalizada12.
Assim, a transição do cargo de cronista-mor de Fernão Lopes para Gomes Eanes de Zurara deve ter se dado em algum momento do final da conturbada regência petrina. Quando Zurara se tornou oficialmente o segundo cronista-mor da corte régia é que não se sabe. Embora afirme ter concluído a Crónica da Tomada de Ceuta em 25 de março de 1450 - menos de um ano após a Batalha de Alfarrobeira -, é apenas numa carta régia de 29 de março de 1451 que Zurara é referido pela primeira vez por D. Afonso V como seu “canonista”, ou “caronista”. A partir de então Zurara assume novos cargos: em 14 de julho de 1452, já é o responsável pela livraria régia; e em 6 de junho de 1454, é nomeado guarda-mor da Torre do Tombo, em substituição a Fernão Lopes, “tam velho e flaco”. Em carta régia de 7 de agosto de 1459, fica-se a saber que, pelos seus serviços, Zurara recebia anualmente 12.000 reais brancos (ZURARA, 1915, doc. II, p. 287-288; doc. III, p. 288; doc. V, p. 291; doc. VII, p. 292; ZURARA, 1992, p. 295). Nesse mesmo ano de 1459, atendendo a um pedido dos povos feito nas cortes de Lisboa, D. Afonso V determina que Zurara dê início a uma reforma dos livros dos reis sob os seus cuidados no arquivo da Torre do Tombo. Tal trabalho, efetuado ao longo das décadas de 60 e 70 do século XV, ficaria conhecido como a “Reforma de Gomes Eanes de Zurara” (FREITAS, 2009, p. 136).
Durante a execução dos seus múltiplos trabalhos a serviço da corte régia, Zurara foi agraciado com títulos e benefícios nada despiciendos. Em 24 de março de 1451, é referido pela primeira vez como cavaleiro da casa de D. Afonso V. Em carta régia de 14 de julho de 1452, é chamado de criado del-rei e comendador de Alcains. Essa comenda e as que viria a possuir depois, a da Granja do Ulmeiro e a do Pinheiro Grande, eram todas da Ordem de Cristo, que tinha por administrador o infante D. Henrique. Esse mesmo infante doou ainda a Zurara os bens que a dita ordem militar possuía em Leiria, conforme procuração datada de 15 de março de 1455. E, em carta régia de 9 de agosto de 1459, informa-se que Zurara vivia àquela altura em casas do rei “que sam a porta dos nossos paços da çidade de Lixboa”. Esse documento autorizou-o ainda a construir uma cisterna cujos custos seriam assumidos pela Coroa. Por fim, em 28 de julho de 1467, D. Afonso V concede a Zurara o direito de administrar a capela de Santa Clara, na Igreja de Santa Maria Madalena, em Lisboa (DINIS, 1949, p. 95; GOMES, 2009, p. 190-191; ZURARA, 1915, doc. II, p. 287; doc. III, p. 288; doc. VIII, p. 293; doc. XVI, p. 304).
Os cargos, títulos e benefícios gozados por Zurara tê-lo-iam comprado no sentido de escrever uma história favorável a D. Afonso V e à nobreza vencedora de Alfarrobeira, segundo alguns dos seus críticos. António José Saraiva (1988, p. 250) reduz o D. Afonso V de 1449 a “um destes jovens cavaleiros impacientes e cabeça-no-ar que adoravam os feitos de armas”, a quem Zurara viria a servir desde então com “bajulação mascarada de interesse carinhoso”. Para Manuel Rodrigues Lapa (1977, p. 417-422), Zurara, “bafejado” pelos “favores do Paço”, deixou-se corromper pelo ambiente da corte ao ponto de esquecer a sua origem plebeia, tornando-se um adulador de nobres. Semelhantemente, José de Bragança aponta as “rendas fáceis” obtidas por Zurara, superiores às auferidas por Fernão Lopes, como recompensa à sua fidelidade à causa afonsina contra o infante D. Pedro e seus partidários. Do ex-regente, aliás, praticamente apagado da Crónica de Guiné, Zurara teria “roubado” largos trechos do seu Livro da Virtuosa Benfeitoria13 sem nunca lhe dar o devido crédito. Essa seria a parte do cronista sobre os “despojos do Infante D. Pedro” (BRAGANÇA, 1973, p. XXXVIII-XLI).
A acusação de plágio feita por José de Bragança é anacrônica, uma vez que a ideia de “autor” enquanto “proprietário” de uma obra literária não havia ainda sido elaborada14 (FOUCAULT, 2009). Não era preocupação dos homens de letras da centúria de Quatrocentos em Portugal - e sequer o seria mesmo entre iluministas franceses do século XVIII - aquilo a que se chama hoje de “originalidade”. O escritor do período em questão buscava ser completo e verdadeiro, “pouco lhe interessando que a verdade, ou o que supunha tal, já tivesse sido descoberta e formulada. Apropriava-se dela, como património comum ou dádiva do Senhor, contente e seguro de si, sem que a consciência lhe levantasse reparos” (CARVALHO, 1949, p. 4). Os escritores de então, cronistas entre eles, faziam basicamente um trabalho de compilação: recolhiam textos de outros; traduziam livremente, com acréscimo de comentários; adaptavam escritos alheios e, em meio a isso tudo, escreviam algumas páginas de sua lavra. O próprio Livro da Virtuosa Benfeitoria do infante D. Pedro e de frei João Verba, aliás, foi composto com o uso desses mesmos expedientes (DUARTE, 2015, p. 36-37). E não se deve esquecer de que os leitores e ouvintes de Zurara, por partilharem com ele de uma mesma “memória dos topoi”, conforme a expressão de João Adolfo Hansen (2006, p. 86), estavam em tese habilitados a discernir os empréstimos feitos, o que reforça a ideia de que o cronista “usou uma prática consentida pela consciência literária de então” (CARVALHO, 1949, p. 193).
Com respeito à acusação de submissão interesseira, cumpre destacar que Zurara, a exemplo dos demais cronistas das cortes régias europeias do seu tempo, estava a serviço do poder. Assim, ao escrever a história oficial, esperava-se que ele defendesse a causa do soberano que encomendou a obra. Pode-se mesmo dizer que não eram apenas os cronistas que dependiam dos reis, mas, em certa medida, o contrário também se dava: os príncipes precisavam dos serviços historiográficos de seus cronistas, os quais tinham “a missão de os exaltar e de defender a sua razão”, muito especialmente quando havia rivalidades em jogo (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 28, 35). “Até o tirano precisa de um retórico, de um sofista, para transformar em discurso sua empreitada de sedução e de intimidação”, segundo Paul Ricoeur (2007, p. 98). Assim, se por um lado Zurara ascendia socialmente escrevendo uma história favorável a D. Afonso V, por outro, o rei tinha a seu dispor um cronista apto a elogiá-lo e a legitimá-lo, notadamente, após a polêmica Batalha de Alfarrobeira.
É fora de dúvida que Gomes Eanes de Zurara, propositadamente, apagou o infante D. Pedro enquanto personagem de suas crônicas. Tal assertiva, porém, só é válida para as suas duas primeiras obras: a Crónica da Tomada de Ceuta, de 1450, e a Crónica de Guiné, de 1453. Ambas, afinal, foram escritas enquanto vigorou a damnatio memoriae imposta por D. Afonso V sobre o ex-regente. Porém, nas duas últimas narrativas históricas zurarianas - a Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, de 1464, e a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, de 1468 -, o que se observa é uma reabilitação laudatória da memória do infante D. Pedro. Evidentemente, escrevendo a mando do rei, o cronista não teria feito isso de motu proprio: em 1455 D. Afonso V revogou a damnatio memoriae do seu finado tio e sogro e Zurara já estava a partir de então autorizado a lembrar-se bem do ex-regente.
Harald Weinrich (2001, p. 59-60) informa que, no direito público e criminal praticado na Roma Antiga, os governantes e outros poderosos que fossem declarados “inimigos do Estado” após uma mudança política, mormente quando isso resultava em suas mortes, eram castigados postumamente com a damnatio memoriae. Seus retratos eram destruídos, suas estátuas derrubadas, seus nomes removidos das inscrições e as leis por eles decretadas poderiam vir a subitamente perder a validade. Apagavam-se quaisquer testemunhos que servissem de boa lembrança àquele que, a partir de então, tornava-se uma “não-pessoa”. O Senado romano, exercendo o seu poder pela memória, utilizou a damnatio memoriae como arma póstuma especialmente contra a tirania de determinados imperadores (LE GOFF, 2003, p. 437).
A danificação da memória - ou a promoção intencional do esquecimento - de uma persona non grata tem sido uma prática comum aos mais diversos povos no decorrer do tempo. Assim, Itzcoatl, entre os astecas do século XV, e Atahualpa, entre os incas da centúria seguinte, são exemplos de governantes que levaram a cabo uma política de aniquilamento da memória dos seus predecessores por meio da destruição de livros, arquivos e estelas (HILTUNEN, 1999, p. 137-139; TODOROV, 2000, p. 11). No que se refere ao Ocidente medieval, se a Igreja guardava memória de vivos, mas, sobretudo, de mortos, com os seus libri memoriales, onde eram inscritos os nomes pelos quais a comunidade dos fiéis deveria rezar, ela também exercia o seu poder de impor o esquecimento através do terrível castigo da excomunhão15 (LE GOFF, 2003, p. 441-443).
O próprio infante D. Pedro, no período de sua regência, promoveu o apagamento da memória de sua rival, a rainha D. Leonor de Aragão, como notou Ana Maria Rodrigues (2012, p. 283-284, 290). Cerca de um mês depois da morte de D. Leonor no exílio em Castela, o regente, em nome de D. Afonso V, cedeu à sua própria filha, a futura rainha consorte D. Isabel de Coimbra16, em carta datada de 19 de março de 1445, as vilas de Torres Vedras, Torres Novas, Sintra, Alenquer, Óbidos, Alvaiázere e Aldeia Galega17, com suas rendas, foros, tributos, jurisdição cível e crime e padroado de igrejas “e assy e tam compridamente como todo esto ouue a rrainha dona Philippa, [...] cuja alma Deus aja, e como as ouuerom as outras rraynhas que de nossos regnos forom” (Monumenta Henricina, 1967, doc. 174, p. 264). Ora, a última rainha de Portugal não tinha sido D. Filipa de Lencastre (1360-1415), mãe de D. Pedro, mas, sim, a recém-falecida D. Leonor de Aragão, cujo nome, como se vê, foi intencionalmente suprimido do documento. A restituição da memória da mãe de D. Afonso V viria a ocorrer dois anos depois. Na carta em que confirma o seu casamento com D. Isabel de Coimbra, datada de 6 de maio de 1447, o monarca ratifica a doação feita pelo regente, acrescentando que aquelas terras e vilas foram anteriormente possuídas pela “rrajnha dona Lianor, mjnha mujto amada e prezada madre, ssenhora de louuada memoria” (Monumenta Henricina, 1968, doc. 159, p. 245). O nome de D. Leonor de Aragão foi, portanto, oficialmente reabilitado e a sua memória enaltecida. Pouco tempo depois seria a vez de o duque de Coimbra sofrer a sua própria damnatio memoriae.
Quando soube que o infante D. Pedro, já então ex-regente, estava determinado a impedir a passagem do duque de Bragança por suas terras, em 1449, “ElRey mandou logo riscar de seus livros o assentamento, e todallas tenças que o Yfante delle tinha, e defendeo aos Almoxarifes que d’hy em diante mais lhos nom pagassem”, de acordo com o que escreve Rui de Pina (1977, p. 715, grifo nosso). Esse mesmo cronista dá notícia do que ocorreu logo após a morte do infante D. Pedro na Batalha de Alfarrobeira:
Ho corpo do Yfante jouve todo aquelle dia sem alma descuberto no campo á vista de todos, e sob a noite o lançaram homens vys sobre hum pavés18, e ho meteram hy logo em huma pobre casa, honde antre corpos já vazios d’almas e fedorentos, jouve tres dias sem candea, nem cobertura, nem oraçam, que por sua alma pubryca se dissesse nem ousasse de dizer (PINA, 1977, p. 749).
A permanência do exército vitorioso no local da batalha por três dias objetivava tanto comemorar a vitória quanto não deixar dúvidas sobre qual dos lados foi o vencedor (MONTEIRO, 1998, p. 309-310). E foi justamente querendo convencer o rei de que o confronto que acabara de se dar contra o exército do seu tio em Alfarrobeira “fora batalha perigosa e campal” que os “velhos e pryncypaaes da Corte, ymygos do Yfante” argumentaram que os corpos dos derrotados deveriam ser vigiados por três dias como “syanaaes de vytorya e triunfo, e por enxalçamento mayor” do estado real, segundo Pina (1977, p. 749). O cadáver do infante D. Pedro foi depois “levado em huma escada aa Ygreja d’Alverca, honde por entam foy vilmente e com grande desacatamento soterrado”. Algum tempo depois D. Afonso V mandou que os restos mortais do ex-regente fossem transferidos para o castelo de Abrantes, onde ficaram sob vigilância (PINA, 1977, p. 752-757).
Morreu o duque de Coimbra inculpado do infamante crime de lesa-majestade19, motivo pelo qual o seu corpo foi ultrajado. Foi-lhe imediatamente negado o direito a uma boa memória e a sua esposa, D. Isabel de Urgell (1409-1459), bem como os seus filhos20, inclusive a rainha, foram proibidos de lhe prestar uma derradeira homenagem. Ainda que tenha sido sepultado como cristão, foi-o, como dito por Pina (1977, p. 749), de forma vil e sem honras póstumas, e não no suntuoso túmulo que ele mesmo mandara fazer para si no Mosteiro da Batalha, conforme D. João I planejara para os seus filhos infantes. Após a morte de D. Pedro, o ducado de Coimbra foi extinto e a sua mulher e os seus filhos foram jogados à sua própria sorte. Livraram-se do desamparo devido à atuação discreta da rainha D. Isabel junto ao esposo e da duquesa de Borgonha, D. Isabel de Portugal (1397-1471), irmã do ex-regente e tia do rei, que acolheu os seus sobrinhos (RODRIGUES, 2012, p. 306-312).
A reação internacional logo viria e, por isso, D. Afonso V justificou-se imediatamente ao papa e às principais cortes com as quais o reino português mantinha relações diplomáticas21 (GOMES, 2009, p. 99-100). Foi preservada uma cópia do memorando, ou “crença”, que D. Afonso V enviou a D. Juan II de Castela e ao casal ducal de Borgonha, seus tios Filipe, o Bom (1396-1467), e D. Isabel. Tal documento pode ser tomado como o marco que dá início à manipulação afonsina da memória e do esquecimento no que respeita à história dos eventos que desembocaram na Batalha de Alfarrobeira.
Vale a pena deter-se um pouco sobre o seu teor (Monumenta Henricina, 1969, doc. 49, p. 71-79). Logo no começo da “crença”, o jovem rei português acusa o seu tio, sogro e ex-tutor, de ter desrespeitado o último desejo de D. Duarte, ou seja, de que apenas D. Leonor regesse o reino e o tutelasse. Movido por “hum mujto agudo e desordenado dezejo de reger estes rrejnos, por qualquer arte ou industria que podese”, o infante D. Pedro teria induzido fidalgos, prelados e cidadãos a o apoiarem, primeiramente numa regência compartilhada com a rainha e, logo depois, numa regência única (Idem, p. 72-73). Desse modo, o duque de Coimbra teria cometido perjúrio por duas vezes, já que primeiro havia jurado respeitar o testamento de D. Duarte e, depois, jurou que respeitaria a decisão das cortes de dividir a regência.
Agindo “por tiranja mais que por justiça” e “com falças mostranças de fengida religião”, o regente teria perseguido e maltratado os servidores de D. Leonor, substituindo-os por gente sua, “e tam offensiuamente tratou a dita senhora rrajnha” que ela se viu obrigada a deixar o reino sob risco de prisão ou de morte (Idem, p. 74). Se o rei, ao atingir a maioridade com os 14 anos, permitiu que D. Pedro continuasse a reger, foi “por segurança nosça” (Idem, p. 75). No entanto, ao completar 16 anos e meio, “uendo como [o infante D. Pedro] se asenhoreaua do rreyno, deuasando a justiça e destroindo a fazenda, aleuantando e abaixando aquelles que lhe prazia, contra rezam, e esto a fim de rreinar, como se depois mostrou”, D. Afonso V assumiu plenamente o governo (Idem, p. 75).
O duque de Coimbra, contudo, teria entregado a regência não sem “mujtas contendas” e “descontentamento” (Idem, p. 75). Demonstrando magnanimidade, clemência e piedade, o monarca perdoou a suposta dilapidação do patrimônio régio efetuada pelo tio, bem como as injúrias e ofensas feitas por ele à sua mãe, a rainha D. Leonor, e aos seus servidores. D. Afonso V até mesmo confirmou as terras e tenças do ex-regente, mas este, “com ceguo juizo e desobediente vontade, coração emduriçido e imdinado, esqueceo a piadade” e as mercês do monarca, começando logo a juntar gente e armas e a fazer mostrança de guerra, especialmente contra o duque de Bragança, D. Afonso, fiel servidor do rei (Idem, p. 76).
Levando em consideração “a honra e auantajem do dito jfante dom Pedro”, D. Afonso V propôs uma concórdia entre os irmãos intermediada pelo infante D. Henrique (Idem, p. 76). Uma vez mais, porém, D. Pedro teria dado falso testemunho, pois, logo em seguida, impediu a passagem da hoste do duque de Bragança por suas terras, mesmo sabendo que seu meio-irmão estava a serviço do rei. D. Afonso V resolveu, então, “hir poderosamente sobre [o infante D. Pedro], pera refrearmos a sua desobediencia e lhe darmos algum escarmento, mujto aquém do que mereçia”, numa última demonstração de consideração e piedade para com o seu tio (Idem, p. 77-78). Ao invés de recuar, contudo, o duque de Coimbra afrontosamente teria ido com sua gente armada sobre o exército régio, fazendo-se mesmo proclamar rei através do característico pregão, motivo pelo qual recebeu a sua “merecida pena” (Idem, p. 78). D. Afonso V conclui o memorando dizendo que esta é “asas comprida e uerdadeira enformação dos passados feitos” (Idem, p. 78).
Essa “crença” foi produzida entre maio e dezembro de 1449 (Monumenta Henricina, 1969, doc. 49, p. 71, nota 1). A 10 de outubro desse mesmo ano, D. Afonso V emitiu uma carta patente na qual punia a deslealdade dos partidários do infante D. Pedro em Alfarrobeira. Além de privá-los das honras, dos bens e dos privilégios de isenção fiscal que possuíam, os quais foram doados aos que se mantiveram fiéis ao rei, D. Afonso V estendeu essa terrível condenação póstuma até o quarto grau dos descendentes dos inculpados do crime de lesa-majestade “por sua memoria nom ser com elles sepultada” e para que “a vida lhes fosse penna e a morte prazer” (Monumenta Henricina, 1969, doc. 85, p. 138-139).
Cabe lembrar que quatro gerações era o tempo mínimo para se atingir a honra da fidalguia, segundo o que é estabelecido pelas Ordenações Afonsinas (liv. I, tít. LXIII, § 8): apenas quem fosse filho, neto e bisneto de nobres por todos os seus costados poderia ser considerado fidalgo. De quatro gerações para trás começava o esquecimento. A condenação imposta por D. Afonso V ao infante D. Pedro e aos seus apoiadores faria o caminho inverso. Se a honra levava quatro graus dentro de uma família nobre para ser construída, a desonra familiar demoraria outro tanto para ser anulada: a infâmia lançada àqueles que atentaram contra o rei deveria ir do presente até o futuro por quatro gerações. Só a partir de então é que poderia, de acordo com a duração da memória genealógica, começar o esquecimento (VENTURA, 2010, p. 106, 124). Por todo esse tempo duraria a execratio memoriae, a qual não deveria ser sepultada com os traidores, mas experimentada por seus filhos, netos e bisnetos, de modo que também a estes “a vida lhes fosse penna e a morte prazer” (Monumenta Henricina, 1969, doc. 85, p. 138-139).
É nesse contexto em que acabara de entrar em vigor a damnatio memoriae do infante D. Pedro que Gomes Eanes de Zurara escreve e conclui a sua primeira crônica. Já havia, conforme exposto, na forma de um memorando destinado a cortes estrangeiras, uma versão oficial da história da regência e da Batalha de Alfarrobeira, produzida a mando de D. Afonso V no calor dos acontecimentos. Some-se a isso o fato de que o próprio Zurara afirma, na sua Crónica da Tomada de Ceuta (1992, p. 248), que, enquanto a escrevia, ele não deixava de se entrevistar com o jovem rei. Daí que a damnatio memoriae imposta por D. Afonso V sobre o ex-regente é perceptível especialmente na primeira crônica zurariana. O uso intencional e controlado do esquecimento efetuado por Zurara a esse respeito ajuda concomitantemente a produzir e a destacar uma boa memória do infante D. Henrique, leal partidário do monarca.
Cronologicamente, Zurara continua de onde Fernão Lopes parou. É por isso que a Crónica da Tomada de Ceuta é também conhecida como Terceira Parte da Crónica de D. João I. Lopes encerrara sua segunda parte com o tratado de paz celebrado entre Portugal e Castela, em 1411. Dando seguimento aos sucessos de D. João I, Zurara narra: as tréguas luso-castelhanas; os preparativos para a conquista de Ceuta; o falecimento da rainha D. Filipa de Lencastre; a tomada de Ceuta; a sagração dos infantes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique como cavaleiros; a entrega da capitania daquela praça marroquina ao conde D. Pedro de Meneses (1370-1437); a elevação dos infantes D. Pedro e D. Henrique a duques de Coimbra e de Viseu, respectivamente; e a entrada vitoriosa de D. João I em Évora.
Em sua famosa Carta de Bruges, dirigida ao então infante D. Duarte, em 1426, o infante D. Pedro, ao referir-se ao governo de Ceuta, cuja responsabilidade era do seu irmão D. Henrique, diz que “emquanto asy estiuer ordenada como agora esta, que he muy bom sumidoyro de gente de uossa terra e darmas e de dinheiro”. O melhor seria abandonar aquela onerosa cidade (Monumenta Henricina, 1961, doc. 71, p. 148). Cerca de dez anos depois, em parecer escrito ao já então rei D. Duarte, o duque de Coimbra sustenta que uma nova expedição para tentar tomar Tânger, na situação em que Portugal se encontrava, “com rregno tam despouorado e tam mjnguado de gente”, não era “serviço de Deus nem proueito nem honra dalguem”. Insistir naquele assunto seria como trocar “boa capa por maao capello” (Monumenta Henricina, 1964, doc. 1, p. 3-4). O infante D. Henrique, por outro lado, era o principal defensor da expansão guerreira dos portugueses sobre o Marrocos. Em 1436, ele escreveu o seguinte ao seu régio irmão D. Duarte: “E, pois da guerra dos mouros se consegue seruiço de deus e honrra e prazer, meu conselho he que uos obres nela quanto bem poderdes” (Monumenta Henricina, 1963, doc. 101, p. 203). Ora, Zurara, no pós-Alfarrobeira, escreve que apenas “néscios e covardes”, “pouco menos que hereges”, diriam que “a guerra dos mouros não é o maior serviço de Deus” (ZURARA, 1992, p. 47-48). De acordo com Vitorino Magalhães Godinho (1962, p. 105), Zurara está aqui a censurar não apenas a tese, mas, também, de forma oblíqua, ao seu principal defensor na corte: o ex-regente.
É certo que, em determinado passo da Crónica da Tomada de Ceuta, Zurara (1992, p. 81) afirma que o infante D. Pedro era “príncipe dotado de muitas virtudes”. Repare-se, porém, em que contexto o louvor foi incluído: com o objetivo de justificar a visita de representantes de D. João I a Ceuta para estudar os seus pontos fracos antes da invasão, inventou-se que aquela embaixada estava a caminho da Sicília para negociar o casamento do infante D. Pedro com a sua rainha. Os portugueses puderam, dessa maneira, fazer paradas estratégicas na cidade marroquina sem levantar suspeitas tanto na ida quanto no retorno da Sicília (ZURARA, 1992, p. 80-82). Assim, esse elogio zurariano ao infante D. Pedro faz parte de uma mentira na qual era necessário encarecer o valor do suposto noivo.
Vale lembrar que para Zurara o infante D. Henrique tinha “maior avantagem de realeza” sobre todos os seus irmãos (ZURARA, 1992, p. 101). Desse modo, ao discorrer sobre os preparativos para a tomada de Ceuta, o cronista centra o seu olhar na armação da frota comandada por D. Henrique desde a cidade do Porto e amplifica as suas virtudes ao compará-lo a Cipião, louvado por Tito Lívio. Em seguida, ao se referir ao aviamento das gentes, armas e mantimentos nas comarcas que ficaram a cargo de D. Pedro, Zurara minimiza o seu papel: “porque, posto que o nome fosse seu, o cuidado era principalmente de el-Rei seu padre e do Infante Duarte” (ZURARA, 1992, p. 137). Ficou a cargo do infante D. Henrique a organização dos preparativos nas comarcas da Beira e de Trás-os-Montes. Seu meio-irmão, D. Afonso, conde de Barcelos, responsabilizou-se pelo Entre-Douro-e-Minho. Por fim, ao infante D. Pedro foram confiadas as comarcas da Estremadura, Entre-Tejo-e-Odiana (Alentejo) e do Algarve (ZURARA, 1992, p. 116). A parte que coube a D. Pedro, basicamente a metade sul do reino, foi a que mais contribuiu para a expedição. Ainda assim, Zurara não se furtou a reduzir a participação desse infante naqueles preparativos (DUARTE, 2003, p. 404-405). E como se de uma competição entre irmãos se tratasse, o cronista põe na boca de D. João I o louvor ao infante D. Henrique por ter sido o primeiro a aprontar a sua frota, sendo, portanto, o filho que mais tinha vontade de servir e de acrescentar em sua honra (ZURARA, 1992, p. 148).
Ainda sobre o aviamento da armada que ficou sob a responsabilidade do infante D. Pedro, cabe uma outra observação. Apesar de as naus terem constituído a maioria dos navios que compunham a frota portuguesa que partiu para tomar Ceuta, Zurara pouco se lhes refere. O motivo? O comandante das naus foi ninguém menos que o infante D. Pedro. Assim, em sua manipulação da memória e do esquecimento segundo os desígnios de D. Afonso V, Zurara, ao apagar o ex-regente de sua narrativa, apagou também as naus sob o seu comando. O resultado, segundo Luís Miguel Duarte (2003, p. 406), é que, “mais do que o silenciamento de uma figura, perdemos o contributo das naus”.
De acordo com a pena zurariana, quando a moribunda rainha D. Filipa de Lencastre presenteou com espadas aos três infantes mais velhos, deteve-se menos em D. Pedro e mais em D. Henrique. Apenas para este último sorriu, e por duas vezes. Nas últimas palavras da rainha ficava claro, segundo Zurara, que, entre todos os seus filhos, a D. Henrique ela “amava especialmente” (ZURARA, 1992, p. 153-155).
Ademais, nesse ponto da narrativa o cronista faz a primeira menção à regência petrina. Escreve Zurara que o infante D. Henrique cumpriu a promessa feita à mãe de cuidar dos nobres do reino, e disso, ele, o cronista, é segura testemunha: “Vi, outrossim que, ao tempo que a Rainha Dona Leonor foi em desacordo com o Infante Dom Pedro, muitos fidalgos e escudeiros deste reino foram em tempo de se perder, se não acharam em ele [o infante D. Henrique] amparo e ajuda” (ZURARA, 1992, p. 155). Como se pode perceber, a referência ao governo petrino é negativa e, segundo o que Zurara afirma ter presenciado, maiores danos teriam sofrido os nobres se não fosse pela intervenção do duque de Viseu. Tocando de passagem sobre a Batalha de Alfarrobeira, Zurara argumenta que D. Henrique fez o que pôde para salvar o seu irmão D. Pedro, por quem teria dado a própria vida, mas não poderia jamais apoiar quem era “contra seu rei e senhor”. Não faria isso nem “por mil filhos, ainda que os tivera, nem ainda por salvação de si mesmo” (ZURARA, 1992, p. 159).
De acordo com Zurara, D. Henrique foi o primeiro dos infantes a desembarcar na costa marroquina, e a primeira bandeira dos príncipes de Avis que se desfraldou em Ceuta foi a sua. Lutou ao lado do irmão mais velho, D. Duarte, mas somente ele, D. Henrique, adentrou “a rua direita para ir atentar a fortaleza do castelo”, onde pelejou bravamente por horas acompanhado de poucos homens. Os mouros, quando o viam, começavam logo a fugir, de modo “que não pareciam outra cousa senão homens que fogem de algum touro, quando o sentem vir depos si por alguma rua” (ZURARA, 1992, p. 225-241). E quanto ao infante D. Pedro? Pois bem, segundo o cronista, por duas vezes as correntezas afastaram as naus sob o seu comando em direção a Málaga. Da primeira vez em que isso ocorreu, quem o foi buscar para participar de um conselho junto ao rei foi ninguém menos que o infante D. Henrique numa galé sua, e, ainda assim, D. Pedro resistiu em ir. Quando a frota do infante D. Pedro se aproxima após o segundo afastamento, a cidade já está praticamente tomada. Os nobres da sua armada lamentam não terem ido “na dianteira”, pois “não contavam nenhuma outra cousa por grande senão aquela entrada, que os primeiros fizeram na cidade”. Os “outros do povo” são mais explícitos em sua queixa por estarem nos navios sob a responsabilidade do infante D. Pedro: “‘Amigos’, diziam eles, ‘foram lá muito em boa ora, estes que vieram em companhia do Infante Dom Henrique na frota do Porto, cá toda a honra e proveito desta demanda fica com eles’” (ZURARA, 1992, p. 193-194, 232-233, grifo nosso). O cronista prenuncia aqui o que aconteceria durante e, especialmente, após a regência petrina, segundo a ótica de D. Afonso V: quem acompanhasse o infante D. Pedro não poderia esperar nem honra e nem proveito duradouros. Como destaca Luís Miguel Duarte (2003, p. 406), após a leitura da Crónica da Tomada de Ceuta fica-se com a impressão de que D. Pedro só foi armado cavaleiro e feito duque para não destoar dos irmãos, e não por merecimento. Esse filho de D. João I, enquanto personagem da primeira obra zurariana, é “virtualmente inexistente” (DUARTE, 2005, p. 45).
Outras fontes coevas, porém, invalidam o apagamento de D. Pedro produzido por Zurara no que se refere à sua atuação na conquista de Ceuta. Antoine de La Salle, francês que participou daquele sucesso militar dos cristãos, escreve que o infante D. Pedro estava na vanguarda, à frente de D. Henrique, durante o combate (DUARTE, 2015, p. 200-201). E a Crónica do Condestável22, ao tratar da tomada de Ceuta, nomeia D. Henrique após D. Pedro, respeitando assim a ordem do nascimento. Essa narrativa informa ainda que, três dias após a conquista da cidade, vieram muitos guerreiros mouros tentar recobrá-la. O único infante que participou ativamente do desbarate foi D. Pedro, o qual “saío fora da cidade a cavalo, e com ele certa geente, e correo após os mouros grande espaço” (Crónica do Condestável, 2011, p. 234-236).
Ora, Zurara (1973, p. 9-10) cita expressamente a Crónica do Condestável. Se a leu, portanto, o cronista de D. Afonso V sabia de informações sobre a atuação do infante D. Pedro na conquista de Ceuta que achou por bem omitir, ou olvidar. De mais a mais, não se pode esquecer do fato de que Zurara teve acesso direto à própria versão do duque de Coimbra a respeito da sua participação na tomada de Ceuta. Conforme citação já feita, o infante D. Pedro, quando ainda era regente, contou a Zurara “grão parte deste feito” (ZURARA, 1992, p. 74). Quer dizer, Zurara não só havia entrevistado D. Pedro há relativamente pouco tempo, como ainda provavelmente tinha à sua disposição o rascunho que escreveu com base no que ouvira do infante durante a regência. Entre a regência e a finalização da crônica, contudo, houve a Batalha de Alfarrobeira.
É no capítulo em que encerra a Crónica da Tomada de Ceuta que o silenciamento do nome e dos feitos do infante D. Pedro por Zurara ganha ares de eloquência. O cronista pede que seus leitores e ouvintes “sempre hajam em memória a alma daquele santo rei, por cuja virtude e força esta cidade de Ceuta foi ganhada”, ou seja, D. João I. Que não se esqueçam de pedir também “pela alma de el-Rei Dom Duarte, seu filho, de gloriosa memória, que a ajudou a ganhar e a manteve e defendeu todos os dias de sua vida”. Roguem ainda a Deus para que conserve “o estado de el-Rei [D. Afonso V] nosso senhor e o queira sempre ajudar para manter e governar seus reinos, especialmente aquela cidade”. E, claro, “não esquecendo o Infante Dom Henrique, que com tão grandes trabalhos e despesa a governou sempre em seu estado” (ZURARA, 1992, p. 295). Zurara conclui, então, a sua primeira crônica sem fazer mais nenhuma menção. São esses os príncipes avisinos que devem ser para sempre piedosamente lembrados pela tomada e manutenção de Ceuta. O nome do infante D. Pedro, morto como traidor menos de um ano antes, não é evocado sequer sob a usual fórmula “a que Deus perdoe”, o que está em perfeito acordo com a política de damnatio memoriae imposta por D. Afonso V.
O apagamento da figura do infante D. Pedro para maior realce do infante D. Henrique é também perceptível na Crónica de Guiné, oficialmente concluída em 145323 e cujo período cronológico narrado abrange toda a regência petrina. “Redescoberta” na França no século XIX24, sua matéria principal são as navegações portuguesas sobre as ilhas atlânticas e a costa ocidental africana até a altura da Senegâmbia, o que tem atraído o interesse dos historiadores da África sobre essa obra zurariana enquanto fonte histórica25.
José de Bragança (1973, p. LXXVII) e Vitorino Magalhães Godinho (1962, p. 107) defendem que a iniciativa das navegações atlânticas narradas por Zurara deveu-se sobretudo ao regente, o que estaria bastante claro na primeira versão da Crónica de Guiné, saída da pena de um Afonso Cerveira26. A D. Afonso V e à nobreza vitoriosa em Alfarrobeira, contudo, interessava “arrancar os louros da expansão marítimo-comercial” efetuada no governo do infante D. Pedro (GODINHO, 1953, p. 49). Caberia a Zurara, portanto, rearranjar o original de Afonso Cerveira e, através do esquecimento da regência petrina e de uma narrativa por vezes ambígua, atribuir os feitos dos portugueses na Guiné ao infante D. Henrique. Isso se deu, segundo José de Bragança27, com o sutil expediente de isolar a palavra “Infante” para se referir ao mandante dos navios sem, no entanto, dizer explicitamente de qual dos dois filhos de D. João I se tratava, se de D. Pedro, o regente, ou D. Henrique. Pois bem, como a Crónica de Guiné foi dedicada a esse último, o qual é nela recorrentemente louvado, a omissão do nome do “Infante” leva a crer que se está sempre a falar do duque de Viseu.
Assim, por exemplo, o louvor por ter mandado uma expedição ao Rio do Ouro é desviado por Zurara para D. Henrique ao sugerir que o seu comando esteve sob a responsabilidade de um homem da casa desse infante, Antão Gonçalves. Ora, aquela frota, bem como outra que logo chegaria à “Terra dos Negros”, foi chefiada por Gomes Pires, homem do infante D. Pedro (RUSSELL, 2004, p. 186). O relato da ida dos portugueses ao Rio do Ouro, em 1444, está no capítulo XXIX da Crónica de Guiné (ZURARA, 1973, p. 139). Zurara cita primeiro o homem da casa henriquina, Antão Gonçalves, e só depois Gomes Pires, o chefe da expedição que estava a serviço de D. Pedro. Já a chegada à “Terra dos Negros”, em 1445, é narrada a partir do capítulo LIX. Ali o cronista atribui um discurso a Gomes Pires no qual este diz que quer ir até o Rio Senegal, onde começava a “Terra dos Negros”, porque essa era, como todos sabiam, “a vontade do senhor Infante”. Qual deles? Zurara silencia (1973, p. 251).
Nas vezes em que o cronista se refere explicitamente ao infante D. Pedro é mormente para dizer que ele “áquele tempo regia o Reino em nome del-Rei” (ZURARA, 1973, p. 84, 139, 219, 353, 368 e 406). Em uma dessas passagens o regente é citado por ter concedido a D. Henrique, em nome do monarca, o quinto do que se obtivesse das navegações atlântico-guineenses. A justificativa é que “por ele [D. Henrique] sómente” foram buscadas e achadas as novas terras. Sobre a regência em específico, Zurara escreve que ela foi até mesmo daninha a novas expedições marítimas, uma vez que as “mui grandes discordias” e “grandes contendas” que ela trouxe consigo obrigaram o infante D. Henrique a suspender temporariamente o envio de novos navios além-Bojador para que, no reino, ele, D. Henrique, se trabalhasse “por bom assossego e paz” (ZURARA, 1973, p. 63-64 e 84, grifo nosso). De acordo com a perspectiva zurariana, portanto, as navegações ocorreram apesar de D. Pedro, e não em decorrência do seu governo enquanto regente.
Há um capítulo da Crónica de Guiné, porém, em que Zurara detém-se um pouco mais no infante D. Pedro. Trata-se daquele em que narra que o duque de Coimbra mandou chamar o seu irmão D. Henrique “para fazer cavaleiro D. Pedro de Portugal, filho primeiro do dito Regente, que então era Condestabre destes reinos” (ZURARA, 1973, p. 219-220). Isso se deu no ano de 1445. Tinha o filho do regente, então, 15 anos e partia com suas hostes, a mando do pai, rumo a Castela para ajudar D. Álvaro de Luna, aliado do infante D. Pedro, em sua luta contra os infantes de Aragão (RODRIGUES, 2012, p. 247). Era necessário, pois, armar o jovem condestável português como cavaleiro ainda no reino, pelas mãos de um dos infantes da Ínclita Geração. O único desses ainda vivo, além do regente, era D. Henrique. Com esse gesto, queria o infante D. Pedro, de acordo com Zurara, dar “a entender ao mundo a grande dignidade que conhecia em seu irmão, que por mais honra teve de seu filho receber cavalaria da mão de seu tio, que de nenhum outro Principe de Espanha” (ZURARA, 1973, p. 219-220). O protagonismo, como se pode perceber, recai uma vez mais sobre D. Henrique, e o infante D. Pedro, irmão mais velho, regente e pai do condestável de Portugal é mero coadjuvante e meio utilizado por Zurara para louvar o duque de Viseu.
A descrição que Rui de Pina, escrevendo décadas depois, faz de tal cena, de forma alguma diminui a importância do infante D. Pedro. Segundo esse cronista, houve uma “muy honrrada e maravylhosa contenda” entre os irmãos, já que cada um considerava o outro como mais merecedor de armar o condestável D. Pedro de Portugal como cavaleiro: “Porque cada hum parecia que mynguava em seus merecymentos, por acrecentar nos do outro, e cada hum se allegrava ser neles do outro vencydo pera que o fyzesse”. Só então é que D. Henrique cede e, para satisfazer o irmão, aceita o privilégio (PINA, 1977, p. 694). Uma dramatização, por certo, mas que reafirma a dignidade do duque de Coimbra, tão admirado por Rui de Pina. Quando Zurara escreveu sobre esse evento, porém, ainda vigorava a damnatio memoriae imposta por D. Afonso V ao infante D. Pedro, motivo pelo qual a figura do ex-regente é por ele secundarizada e posta na sombra.
E que dizer da abordagem zurariana sobre a Batalha de Alfarrobeira na Crónica de Guiné? Bem, o cronista encerra a cronologia dessa obra “com a novidade do regedor”, ou seja, com a assunção do governo por parte de D. Afonso V, em 1448, ano anterior ao citado confronto militar (ZURARA, 1973, p. 406). Num dos capítulos que compõem a dedicatória da Crónica de Guiné a D. Henrique, porém, Zurara “fala sumariamente das cousas notaveis” que esse infante “fez por serviço de Deus e honra do reino”, dentre as quais merece destaque a fidelidade ao seu régio sobrinho contra o seu próprio irmão. Após afirmar que D. Henrique esteve pessoalmente ao lado de D. Afonso V no campo de batalha, o cronista emite o seu parecer: “onde, se o meu entender para isto basta, justamente posso dizer que lealdades dos homens de todolos seculos foram nada em comparação da sua”. E é por isso que, vistas bem as coisas, “certamente as circunstâncias lhe dão [ao infante D. Henrique] esplendor e grandeza sobre todolos outros” (ZURARA, 1973, p. 31, grifo nosso). Por ter-se mantido leal ao monarca numa tal circunstância, o infante D. Henrique esplende e é engrandecido “sobre todolos outros” - e o outro por excelência nesse episódio é ninguém menos que o infante D. Pedro.
É em 1455 que começa o processo de reabilitação oficial da memória do infante D. Pedro por parte de D. Afonso V. Em maio daquele ano, de acordo com o relato de Rui de Pina, logo após o nascimento do príncipe herdeiro, o futuro D. João II, a rainha D. Isabel “mais confyada requereo e pedio a ElRey, que os osos do Yfante seu Padre como lhe tinha prometido nom andassem provando tantas e tam vys sepulturas”, mas que fossem levados a Lisboa e de lá ao Mosteiro da Batalha. Com a anuência do rei - tinha ele já então 23 anos - os restos mortais de D. Pedro com “assaz honrra” foram levados primeiro ao Mosteiro da Trindade e depois ao Mosteiro de Santo Elói, onde “foram em grande triunfo e muyta veneraçam postos em tumba e estrado á vista de todos”. A seguir, com “muita pompa e grande cirimonia”, o infante D. Henrique e outros fidalgos28, além de muita clerezia e povo, muitos deles cobertos de dó, levaram os ossos do infante D. Pedro à Sé de Lisboa, de onde depois saiu uma procissão “com grande honrra e com muitas oraçoões” em direção ao Mosteiro da Batalha, onde já esperavam o rei e a rainha, em novembro de 145529. Teve D. Pedro, por fim, o saimento que merecia, com “perfeiçam e solenidade”, como convinha “a hum tal Pryncepe natural, sem alguma magoa fallecido”, segundo Rui de Pina (1977, p. 770-771). Começava o fim oficial da sua damnatio memoriae.
A 20 de julho de 1455, D. Afonso V, através de carta régia, isentou ao infante D. Pedro e aos seus partidários “de crime de lesse magestatis e trayçom” (Monumenta Henricina, 1971, doc. 80, p. 155-159). Conforme é estabelecido pelas Ordenações Afonsinas (liv. V, tít. II, § 27), se alguém posteriormente se mostrasse inocente de tal delito, “fique sua fama, e memoria conservada em todo seu estado, e louvor, e seus beẽs e seus herdeiros”. E assim é que, na citada carta régia, D. Afonso V determinou que fossem devolvidos ao ex-regente e aos seus apoiadores, bem como à sua descendência, todos os privilégios, isenções, prerrogativas, vantagens, melhorias, liberdades, honras, franquezas, dignidades, nobrezas, doutorados, cavalarias, fidalguias, ofícios e benefícios eclesiásticos e seculares, como se nunca os tivessem perdido. E mais: o rei ordena ainda a corregedores, contadores, almoxarifes, cidades, castelos e vilas onde houvesse quaisquer cartas régias que ainda incriminassem os absolvidos “que rrompam os originaaes dellas e rrisquem e tirem dos liuros omde ssam rregistradas os trelados e transumtos dellas, como coussa ja casa e de nenhũu vallor e efecto” (Monumenta Henricina, 1971, doc. 80, p. 158).
Após seis anos, chegava ao fim a damnatio memoriae do infante D. Pedro. Se antes o seu nome fora riscado dos documentos régios, a partir de então quaisquer papéis oficiais que o inculpassem e o infamassem, bem como aos seus partidários e descendentes, é que deveriam ser riscados e destruídos. O monarca restituía postumamente ao ex-regente um bom nome e uma boa memória. O cronista Gomes Eanes de Zurara tinha, a partir de então, autorização régia para lembrar-se bem do nome e dos feitos do infante D. Pedro, o que é bem perceptível nas suas duas últimas obras.
A Crónica do Conde D. Pedro de Meneses constitui-se na segunda parte daquilo que Larry King (1978, p. 27) chamou de “a trilogia marroquina” de Zurara. Ela é temática e cronologicamente uma continuação da Crónica da Tomada de Ceuta, e nela são narrados os principais fatos ocorridos naquela praça africana durante a capitania do conde D. Pedro de Meneses (BROCARDO, 1997, p. 9). O cronista informa que “jaa heram passados acerca de vimte annos que rregnava” D. Afonso V quando deu início à sua escrita (ZURARA, 1997, p. 174-175). Ora, como esse rei foi entronizado em 1438, é lícito concluir que tal obra começou a ser composta por volta de 1458, quer dizer, três anos depois da revogação da damnatio memoriae do infante D. Pedro. É pertinente observar, pois, que tratamento é destinado por Zurara ao ex-regente nessa narrativa histórica.
Voltando à Ceuta recém-conquistada pelos portugueses em 1415, Zurara narra o conselho que D. João I fez para deliberar sobre a gente que deveria permanecer na cidade para a sua defesa e manutenção. Decide-se que deveriam ficar 2.500 homens de armas, todos “espeçiais”. Concentrando-se naqueles que foram deixados pelos príncipes de Avis, verifica-se que D. João I deixou Lopo Vaz de Castelo Branco, seu monteiro-mor, com 300 escudeiros; o então infante D. Duarte deixou outros 300, sob o comando de D. Pedro de Meneses; o infante D. Pedro deixou o fidalgo Gonçalo Nunes Barreto acompanhado de “dozemtos e çimcoenta dos melhores escudeyros que consygo trazia, ao qual Gomçallo Nunez foy logo emtregue a mayor torre que está no muro daquella çidade que se chama de Fez”; e o infante D. Henrique, citado por último, deixou 300 escudeiros, comandados pelo fidalgo João Pereira (ZURARA, 1997, p. 200-201).
Merece destaque desde já o fato de que Zurara respeita aqui a ordem de nascimento ao mencionar os nomes dos infantes, reconhecendo assim a primazia de D. Pedro sobre D. Henrique. E ao tratar da tropa deixada por D. Pedro, ainda que ela tenha sido um pouco menor em relação às demais, o cronista ressalta a qualidade daqueles guerreiros - “dos melhores escudeyros que consygo trazia” - e a reponsabilidade que foi delegada ao cavaleiro-fidalgo Gonçalo Nunes Barreto de guardar a atalaia mais importante para a defesa de Ceuta. D. Pedro escolhera bem o comandante dos seus homens, uma vez que esse Gonçalo Nunes Barreto, por ser “homẽ de gramde syzo e de gramde esforço”, segundo Zurara (1997, p. 261), viria posteriormente a integrar o conselho do rei.
Ao narrar os acontecimentos notáveis do ano de 1425, Zurara assinala a partida do infante D. Pedro para fora do reino, sua luta contra os turcos ao lado do imperador da Alemanha e seu retorno a Portugal, três anos depois: “e pellas terras30 per homde foy e tornou rrecebeo muyta homrra, e foy conheçydo por muito prudente primçipe, digno de grande senhorio” (ZURARA, 1997, p. 590, grifo nosso). O cronista destaca ainda que, em 1432, ao bem receber e manter em Portugal o infante D. Pedro de Aragão, irmão de D. Leonor recentemente preso em Castela, o duque de Coimbra agiu “como homẽ de gramde prudemcia e nobreza de coração”, o que não foi reconhecido por D. Leonor quando ela se tornou rainha (ZURARA, 1997, p. 659, grifo nosso). E, ao findar essa crônica, Zurara afirma que quando a ossada do primeiro capitão-fronteiro de Ceuta, D. Pedro de Meneses, foi levada a Portugal, “rregnava este rrey dom Affomso [V] moço de pequena hydade, rregendo por elle seu tio o ymfamte dom Pedro, homẽ por çerto digno de gramde louvor, como por seus feitos podeys saber” (ZURARA, 1997, p. 717, grifo nosso).
Se na Crónica da Tomada de Ceuta o infante D. Pedro, por ter defendido a tese de que não era “serviço de Deus” a expansão guerreira sobre o Marrocos, foi acusado obliquamente por Zurara de néscio e covarde, agora o temos, pela mão do mesmo cronista, descrito como homem honrado, prudente, nobre de coração e digno de muitos louvores. O contraste é, pois, evidente.
Também na Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, cuja escrita foi iniciada em 1464 - quase uma década depois do fim da damnatio memoriae do ex-regente, portanto -, a persona do infante D. Pedro é bem lembrada e elogiada. Essa obra, concluída por volta de 1468, põe termo à “trilogia marroquina” de Zurara e sua principal matéria é a tomada da vila de Alcácer Ceguer, no Marrocos, pelas hostes de D. Afonso V, em 1458, e a sua manutenção e defesa sob a capitania do conde D. Duarte de Meneses (1414-1464). Alguns acontecimentos de Portugal que remontam à morte do rei D. Duarte são, no entanto, referidos pelo cronista.
Ao descrever o “alevantamento”, ou seja, a entronização do pequeno D. Afonso V, então uma criança de seis anos, Zurara destaca o papel do duque de Coimbra naquela cerimônia. Eis as suas palavras laudatórias:
O Jffante dom Pedro seu tyo era ally. que era huum dos princepes do mundo que mais sabya das cyrymonyas que a taaes casos perteencyam. por que aallem de seu grande e natural saber. studara nas artes liberaaes. e andara fora destes regnos per a principal parte da cristindade. [...] E assy em casa daquestes como de todollos outros príncipes per onde andou foy auydo por principe de grande saber e assy recebeo delles mujta honra. O qual tomou specyal cuydado deste alleuantamento delRey seu sobrinho (ZURARA, 1978, p. 109, grifo nosso).
O infante D. Pedro pôde conduzir com maestria o ritual de entronização de D. Afonso V, de acordo com Zurara, devido ao grande conhecimento que ele tinha adquirido tanto em seus estudos quanto em suas viagens por várias partes do mundo, onde sempre foi merecedor de muita honra nas cortes por onde passou.
Nesse mesmo passo da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses salta também aos olhos a mudança de perspectiva de Zurara em relação à regência petrina:
Seguyranse despois grandes deuisoões no regno por causa do regimento. E isto por que o Rey finado [D. Duarte] leixara o encarrego de todo aa Raynha sua molher [D. Leonor de Aragão]. o que pareceo caasy a todos contrayro aa boa rezom s que huum tal regno e em que aaquelle tempo taaes tres principes auya como eram os Jffantes dom Pedro e dom Henrique e dom Joham. ouuessem de ser Regidos por molher dado que uertuosa fosse (ZURARA, 1978, p. 109, grifo nosso).
O cronista constrói aqui quase uma unanimidade contra a regência única de D. Leonor, ainda que essa tenha sido a última vontade de D. Duarte. Cabe lembrar que, em seu memorando de 1449, D. Afonso V qualificara a regência do seu tio como sendo “contra rezam” (Monumenta Henricina, 1969, doc. 49, p. 75). Agora, quase duas décadas depois, o seu cronista estava autorizado a afirmar que “contrayro aa boa rezom” era que a sua mãe, D. Leonor de Aragão, posto que virtuosa fosse, governasse sozinha (ZURARA, 1978, p. 109). Não seria razoável que isso acontecesse quando existiam no reino príncipes do quilate dos infantes da Ínclita Geração - e aqui novamente D. Pedro é anteposto a D. Henrique, respeitando-se a ordem de nascimento. Embora Zurara não deixe de assinalar a resistência de fidalgos liderados pelo duque de Bragança, há aqui um claro contraste em relação ao memorando de D. Afonso V de 1449 e às suas duas primeiras crônicas, onde a regência petrina foi referida apenas negativamente. Não cometeu o infante D. Pedro, afinal, perjúrio, mas a sua assunção do regimento do reino, além de ter sido vontade da maioria, foi o mais sensato, segundo o que agora Zurara pode escrever, ou lembrar.
O cronista expõe também em sua última obra as considerações do então regente D. Pedro a respeito de um pedido de ajuda militar, feito em 1441, desde Castela por D. Gutierre de Sotomayor, mestre da Ordem de Alcântara e aliado do condestável D. Álvaro de Luna, contra os infantes de Aragão, que tinham então o rei D. Juan II por refém. Tal apoio constituir-se-ia num golpe contra os irmãos da rival do regente, a rainha D. Leonor, que se encontrava exilada em Castela. Em vez de enviar imediatamente tal auxílio, o infante D. Pedro, como “homem de grande prudencya” que era, segundo Zurara, “nom quis per sy acabar aquelle feito”, mas convocou o conselho, composto por seus irmãos, os infantes D. Henrique e D. João, bem como por “condes e caasy todollos princypaaes”. Ora, não convinha que, havendo paz entre os dois reinos ibéricos, tropas portuguesas entrassem em Castela sem a permissão de D. Juan II. Deliberou-se, então, que se encontrasse algum meio de contatar o monarca castelhano, o qual acabou dando o seu consentimento através de uma carta assinada e selada. Só então o prudente infante D. Pedro enviou uma expedição militar composta por dois mil homens sob a chefia de D. Duarte de Meneses31 (ZURARA, 1978, p. 111-112, grifo nosso).
Até mesmo o olhar do cronista sobre o principal rival de D. Pedro, a saber, o seu meio-irmão D. Afonso, sofre alteração entre a primeira e a última obra zurarianas. Na Crónica da Tomada de Ceuta, concluída no ano seguinte à tragédia de Alfarrobeira, Zurara apresenta o filho bastardo de D. João I com as seguintes palavras:
O conde de Barcelos era mais velho que nenhum deles [os infantes]. O qual, posto que falecesse na nobreza da geração quanto à parte da madre, fizera-o Deus tão virtuoso e de tamanha grandeza de coração que em todas as cousas de honra escondia a baixeza do sangue da madre (ZURARA, 1992, p. 56, grifo nosso).
Foi depois de impedir que o conde de Barcelos, já então duque de Bragança, passasse por suas terras que o infante D. Pedro caiu irremediavelmente em desgraça. Naquele contexto, fazia-se necessário encarecer o caráter do líder da nobreza senhorialista vencedora de Alfarrobeira que tanto se opusera à regência petrina. Se faltava ao então conde de Barcelos pelo lado de sua mãe32 nobreza de sangue, sobrava-lhe, por graça divina, nobreza de coração. Suas virtudes, desse modo, sobrepunham-se à “baixeza” do sangue herdado33. Na Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, contudo, o contexto já era bem outro. E assim é que, ao narrar a morte de D. Afonso, a perspectiva zurariana é bem menos generosa - para não dizer sobejamente sombria: “E neeste meesmo anno [1461] caasy na fym morreo o duque de bragança e teuerom que este duque finado nom acabara com tal conhecimento da ffe como deuya de morrer christaão” (ZURARA, 1978, p. 277, grifo nosso).
Mas há ainda uma outra importante - embora sutil - reabilitação da memória do infante D. Pedro na “escritura” do cronista. Se Zurara anteriormente havia concluído a sua Crónica da Tomada de Ceuta honrando a memória dos príncipes avisinos que participaram daquele evento e esquecendo propositadamente o nome e os feitos do infante D. Pedro, na Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, a qual dá continuidade à história do domínio português sobre aquela praça africana, a seguinte passagem pode ser lida como emenda:
Empero aquelle que daa vida e morte quamdo e como lhe praz com seu ymfimdo poderio [...] por sua ymfimda piadade, ate oge, que sam passados coremta e çimco annos, sempre aquella çidade foy muy vallemtememte defemdida pellos nossos naturais e socorrida nas gramdes neçessydades, assy per ell rrey dom Johão [I] e per ell rrey Eduarte, rreis que primeiramemte começarão a pessuyr della novo titolo, como do ymfamte dom Pedro rregemdo o rregno, e nom menos pello muy nobre rrey dom Affomso [V], em cujo tempo esta estoria foy escripta, como se adiamte comtará naquelles lugares omde se o caso ofreçer (ZURARA, 1997, p. 213-214, grifo nosso).
Esse passo foi escrito 45 anos após a tomada de Ceuta, como é dito, ou seja, em 1460, cinco anos depois, portanto, do fim da damnatio memoriae imposta por D. Afonso V ao seu tio e sogro, o duque de Coimbra. Já então era possível retificar a memória histórica do reino no que ao infante D. Pedro dizia respeito quanto à conquista gloriosa e à manutenção honrosa da primeira possessão portuguesa no continente africano.
Evidentemente, produzida pela interação entre os atos de suprimir e conservar, a memória é feita de seleções (TODOROV, 2000, p. 15-16). Tais seleções também ocorrem necessariamente na composição da narrativa: sua configuração exige que o enunciador do discurso selecione determinados nomes e feitos e omita - ou esqueça - outros. Afinal, assim como é impossível lembrar-se de tudo, também é impossível narrar tudo. Além de o que e quem devem ser lembrados, claro está que ganha também relevo a importantíssima questão do como deve ser lembrado. Nas palavras de Paul Ricoeur (2007, p. 455): “pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando diferentemente os protagonistas da ação assim como os contornos dela”. O narrador tem, portanto, uma considerável margem de atuação para manipular a memória e o esquecimento segundo os seus interesses - ou, no caso dos cronistas-mores portugueses do século XV, segundo os interesses do rei. E assim é que o esquecimento, condição sine qua non para a existência da memória e da narrativa, pode também ser utilizado intencionalmente, por vezes de forma abusiva, por aquele que escreve a história (RICOEUR, 2007, p. 98, 455-457).
Gomes Eanes de Zurara, ao narrar a história dos feitos notáveis dos portugueses a serviço dos monarcas, viu-se num primeiro momento obrigado a cumprir as determinações de D. Afonso V no que dizia respeito à damnatio memoriae do infante D. Pedro: tal personagem deveria ser, sempre que possível, esquecida; quando a narrativa histórica exigisse que o cronista mencionasse o seu nome, isso deveria ser feito de forma breve34 e, de preferência, demeritória. Foi o que Zurara fez na Crónica da Tomada de Ceuta e na Crónica de Guiné, num manifesto abuso de esquecimento.
Com a revogação da damnatio memoriae do infante D. Pedro, contudo, as coisas mudaram de figura no que se referia à escrita autorizada da história. O cronista que olvidara propositadamente o nome do ex-regente já tinha permissão para bem lembrar-se dele. Como se pode perceber nas crônicas dos Meneses, o duque de Coimbra fora, afinal, um dos membros da Ínclita Geração que valentemente participaram da tomada e da manutenção de Ceuta. Sua regência, antes esquecida ou condenada, é agora louvada. Ganhava o infante D. Pedro, descrito a partir de então como prudente, sábio, honrado, virtuoso e possuidor de um mui nobre coração, por fim, o direito a um bom nome e a uma boa memória através dos tempos, tanto no “mármore perdurável” da sua aparatosa sepultura na Capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha, onde os seus ossos puderam, enfim, honradamente repousar, quanto através da inscrição do seu nome como exemplum de virtudes na “escritura” zurariana da história.
Como pudemos refletir, tomar o tratamento conferido ao infante D. Pedro como fio condutor da análise da produção cronística de Gomes Eanes de Zurara ajuda a perceber de forma concreta que mecanismos podem ser utilizados numa manipulação da memória e do esquecimento pelos detentores do poder através da escrita da história. Tal perspectiva é também útil na medida em que evidencia como memória e esquecimento constituem-se mutuamente: o apagamento do infante D. Pedro efetuado por Zurara servia concomitantemente para dar realce àqueles que deveriam ser bem lembrados, a saber, o duque de Bragança e, em especial, o infante D. Henrique, leais partidários de D. Afonso V em Alfarrobeira. Por fim, ao deslindar o processo de danação e posterior redenção mnemônica do ex-regente no corpus zurariano, foi possível dar conta do caráter dinâmico próprio de uma manipulação desse tipo. Torna-se assim evidente que no século XV português a memória histórica do reino era passível de ser reescrita, ou reconfigurada, pela mão de um mesmo cronista em atendimento a novos interesses de um mesmo rei, o que confirma a ambos, rei e cronista, como “senhores da memória e do esquecimento” (LE GOFF, 2003, p. 422).
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