Resumo: Durante a Época Moderna, o gênero histórico passou a ter um papel relevante na configuração do Estado, sobretudo no processo da Restauração portuguesa na segunda metade do século XVII. Este artigo apresenta uma reflexão acerca das práticas de composição dessas narrativas e o uso das regras ditadas nas preceptivas, em específico as de Cabrera de Córdoba, Agostino Mascardi, San José e Le Moyne. Nesse sentido, o texto trata da maneira como letrados portugueses teceram suas obras utilizando os tratados sobre o gênero histórico.
Palavras-chave: HistoriografiaHistoriografia,restauração portuguesarestauração portuguesa,retóricaretórica,gênero históricogênero histórico,século XVIIséculo XVII.
Abstract: During the Early Modern period, the historical genre came to perform a relevant role in the State’s configuration, chiefly in the Portuguese restoration process, in the second half of the 17th century. This paper presents a reflection upon the composition practices of such narratives, and the use of rules dictated in preceptive literature, specifically the works of Cabrera de Córdoba, Agostino Mascardi, San José, and Le Moyne. Within this scope, the article regards the fashion in which Portuguese scholars wove their works using the treatises on historical genre.
Keywords: Historiography, Portuguese restoration, rhetoric, historic genre, seventeenth century.
Artigo
COMO SE ESCREVIA A HISTÓRIA NO SÉCULO XVII: O USO DOS TRATADOS ESPANHÓIS, ITALIANOS E FRANCESES PELOS HISTORIADORES PORTUGUESES*
WRITING HISTORY IN THE 17TH CENTURY: USE OF SPANISH, ITALIAN, AND FRENCH TREATISES BY PORTUGUESE HISTORIANS
Recepção: 04 Maio 2018
Aprovação: 28 Fevereiro 2019
“Yo digo, es la historia narracion de verdade
por hombre sabio, para enseñar a bien viuir”
Fonte: Luis Cabrera de Córdoba
A História é um gênero de escrita marcado pelo tempo. Cada época, grupo étnico, cultural ou político desenvolveu a sua própria estratégia de escrita da História, levando assim o historiador a buscar compreender uma grande diversidade de modelos retóricos utilizados na Antiguidade, na Idade Média, Época Moderna ou Contemporânea, no Oriente ou no Ocidente, no Norte ou no Sul. Tal variedade de padrões de escrita apresenta-se como um grande desafio para a compreensão do passado e o ofício do historiador. A Historiografia tornou-se, para tanto, um campo específico do conhecimento histórico, dedicando-se a compreender as formas de elaboração do passado e os regimes de historicidade na transformação da História como narrativa do mundo, para narrativa de um povo e de uma categoria social.
Neste artigo, pretendemos investigar como a história foi definida em tratados europeus do século XVII. O que era a história? Quais eram os seus objetivos e finalidades nas sociedades ocidentais do Seiscentos? Quem era e como deveria agir o historiador? Quais recursos estilísticos eles deveriam e poderiam usar e quais precisavam evitar? Para responder a estas indagações, elegemos quatro tratados do século XVII: De historia, para entenderla y escribirla, do espanhol Luis Cabrera de Córdoba, impresso em 1611 (CABRERA DE CORDOBA, 1611); de 1636 o Dell’arte histórica, do italiano Agostino Mascardi (1994), que teve outras duas edições, em 1662 e 1674; o terceiro, Genio de la historia, de Frei Jerónimo de San José, impresso em 1651 (SAN JOSÉ, 1651); e, por fim, o francês De l’histoire, de 1670, do padre Pierre Le Moyne (1670). Entre esses quatro escolhidos, o tratado de Mascardi parece ter sido o de maior difusão, contando com três edições no século XVII; seguido pelo de Le Moyne, que chegou a ser traduzido para o espanhol numa edição de 1676 (LE MOYNE, 1676), e para o inglês em 1695 (LE MOYNE, 1695). Os demais tratados não tiveram outras edições no século XVII, embora tenham sido reeditados posteriormente.
O interesse em analisá-los e compará-los emerge da necessidade de responder a uma pergunta que temos nos colocado há algum tempo: por que não existiram tratados de história em Portugal, ou em português, nos séculos XVI e XVII? Embora o gênero tenha se definido já no XVI, tal como o conhecemos no século seguinte, até o momento não se localiza sequer um em língua portuguesa, mesmo que isso não tenha impedido a elaboração, por parte dos eruditos letrados portugueses, de suas crônicas e obras em gênero histórico, tendo se dedicado a esta tarefa de maneira muito profícua (SEKKEL CERQUEIRA, 2017).
Cada um destes tratados foi escolhido por um motivo específico, e seu conjunto por um motivo geral: o de Cabrera de Córdoba é o primeiro deles a ser impresso no século XVII; o de Mascardi, como dissemos, foi, provavelmente, o mais lido, reproduzido e citado. O conde da Ericeira, em História de Portugal Restaurado (ERICEIRA, 1679), por exemplo, cita este tratado, que também é referido por Le Moyne. O terceiro, Genio de la historia, de San José, é um tratado da metade do século e faz referências ao de Cabrera de Córdoba; já o tratado de Le Moyne faz referências ao de Mascardi, e ao de Cabrera de Córdoba, além de também ser citado pelo conde da Ericeira. Desta maneira, identificamos que nesses textos há um diálogo comum, e aparecem como matrizes para letrados portugueses autores de crônicas e obras de teor histórico.
Para desenvolvermos nossa reflexão, passaremos a analisar separadamente cada um dos textos, buscando, antes disso, compreender o lugar social de seus autores e como alcançaram a posição que lhes permitiu a composição de cada tratado. Nossa proposta é entender por que os livros de história no século XVII eram escritos de determinada forma. Não afirmamos que eram todos iguais, mas seguiam os mesmos preceitos e modelos. Na parte final deste artigo, nosso foco recai sobre o reino de Portugal e procuramos mostrar que mesmo sem haver tratados de história feitos por autores portugueses ou traduzidos para o português, a forma como se escrevia história lá era a mesma como nos demais lugares da Europa. O que pretendemos mostrar é que as regras para a escrita da história eram partilhadas dentro de um contexto intelectual de letrados, como pudemos comprovar a partir da análise dos tratados e dos textos portugueses.1
Os Cabrera de Córdoba dedicaram-se à carreira das armas na monarquia hispânica; o avô de D. Luis foi capitão e o seu pai, alferes, além de ter servido no palácio de Aranjuez como ajudante do vedor e, posteriormente, como provedor das obras do Escorial. Assim, Luis Cabrera de Córdoba (1559-1623) logo tornou-se criado da Majestade Católica Filipe II, envolvendo-se nos assuntos de Estado, o que lhe possibilitou viajar por diversas regiões da monarquia católica no intuito de elaborar informes ao rei, como uma espécie de “espia”, a fim de evitar potenciais revoltas. De historia, para entenderla y escribirla (1611) foi dedicado a Francisco de Sandoval y Rojas, o duque de Lerma (1553-1625), valido de Filipe III e, na página de rosto, traz o brasão dessa casa.
Agostino Mascardi (1590-1640) foi historiador, poeta, professor de retórica e escreveu tratados sobre história e poética. Seu pai fora um célebre jurisconsulto, o que indica que ele fazia parte de uma família próxima do poder. Seu tratado Dell’arte historica (1636) foi dedicado ao duque Giovan Francesco Brignole, ao governador da República de Gênova e à ilustríssima Accademia de Signori Umoristi de Roma, da qual o duque era o “príncipe” naquele momento. Segundo afirma Eduardo Sinkevisque (2006, p. 331), seu tratado é uma amplificação dos preceitos sobre o gênero histórico, principalmente de Cícero e Luciano de Samósata.
Frei Jerónimo de San José (Jerónimo Ezquerra de Rozas, 1587-1654) foi membro da Ordem dos Carmelitas Descalços e sua obra Genio de la historia (1651) foi dedicada ao Marques de Torres2 que arcou com as despesas da impressão. O tratado havia sido escrito por frei Jerónimo para um jovem parente seu que iria ingressar nos estudos universitários, mas teve uma circulação maior do que o esperado, tendo circulado entre uma importante camada letrada composta pelos membros da Ordem e nobres, como o próprio Marques de Torres, e, por recomendação de todos, o autor deixou que ela fosse impressa (SÁNCHEZ ALONSO, 1944).
Pierre Le Moyne (1602-1671), jesuíta francês, foi poeta e historiador. Dedicou-se também à reflexão sobre esses gêneros. Seu De l’histoire (1670), impresso um ano antes de sua morte aos 69 anos, acompanharia, inicialmente, uma história do reino de Luis XIII - projeto que ficou inacabado e cujos originais foram perdidos. Seu tratado sobre a história foi dedicado ao duque de Montaussier, que nasceu protestante, mas, devido à sua aproximação com o rei, converteu-se ao catolicismo. O duque foi homem de grande talento militar, tendo conquistado a confiança de Luis XIV durante a Fronda. Foi nomeado governante do Delfim em 1668. Na composição de tratado, Le Moyne baseou-se em autoridades antigas, principalmente Cícero e Luciano de Samósata, mas também em Agostino Mascardi, seu contemporâneo. Segundo Anne Mantero (MANTERO, 2013), a disposição do tratado francês em dissertações subdivididas em artigos segue uma lógica tirada do autor italiano (FERREYROLLES, 2013).
Assim, este quarteto de autores é caracterizado pelas três regiões e línguas diferentes: Espanha, França e Itália. Três são membros do clero - um carmelita descalço, San José, e dois jesuítas, Mascardi e Le Moyne -; todos eruditos de formação e próximos da corte. Os quatro tratados apresentam dedicatórias a homens com posição mais alta na hierarquia em relação aos próprios autores - prática aliás intrínseca ao ofício dos letrados. Nesse sentido, pode-se afirmar, de partida, que a escrita da história para eles é também um lugar social, isto é, uma maneira de expressar sua posição e suas aspirações na busca da sobrevivência e ascensão, na lógica da sociedade de corte.3 Desse modo, não encontramos nenhuma especificidade na biografia desses autores que os diferencie significativamente. Ao contrário, identificamos um padrão de vida comum, e que, certamente, também está presente na vida de outros autores de história do mesmo período.
Uma das principais preocupações daqueles que se dedicaram a registrar os fatos e narrar os acontecimentos é com a verdade. O que distingue a narrativa histórica da ficção? Na Antiguidade, Aristóteles afirmava que a história tratava do particular e do que aconteceu, em oposição à poesia, que era composta com base naquilo que poderia ter acontecido. Cícero, por sua vez, afirmou que a regra da história era não dizer falsidades e não omitir as verdades. Luciano definiu esta questão a partir de uma metáfora: o historiador deveria agir como um espelho e narrar exatamente aquilo que viu. Estes preceitos, como veremos, ainda circulavam no século XVII e foram reinterpretados pelos autores que analisamos.
Luis Cabrera de Cordoba afirma: “Yo digo, es la historia narracion de verdade por hombre sabio, para enseñar a bien viuir” (CABRERA DE CORDOBA, 1611, Discurso IV). Ao contrário da poesia, a história é considerada narrativa verdadeira e visa ensinar seus leitores, por isso ela é útil e ensina a bem viver; enquanto a poesia visa o deleite do público. Assim como no de Cabrera de Cordoba (1611), os outros tratados do século XVII também falaram sobre a verdade da história, diferenciando esse gênero da poesia, essencialmente fabulosa, falsa, ou mentirosa, como os autores costumam se referir a ela.
A distinção entre esses dois gêneros foi feita por Aristóteles na Poética (2015, p. 97), capítulo IX [1451b]: “Com efeito, o historiador e o poeta diferem entre si não por descreverem os eventos em versos ou em prosa (…), mas porque um se refere aos eventos que de fato ocorreram, enquanto o outro aos que poderiam ter ocorrido”. Para Cabrera de Córdoba (1611, Discurso IV), parafraseando Aristóteles, Heródoto é historiador e o seria mesmo se tivesse escrito em verso, pois não está aí a diferença entre a história e a poesia, mas sim no teor do seu discurso. Segundo ele, ambas usam o gênero demonstrativo e deliberativo, por vezes o judicial, condenando os vícios e louvando as virtudes, ambas ensinam, movem o espírito do leitor e o ajudam, mas a história o faz com mais intensidade. A obrigação do historiador é narrar o acontecimento como ele aconteceu, sem tirar nem pôr nada, sua narrativa deve ser verdadeira e bem ornamentada.
Se por um lado Cabrera de Córdoba aproxima-se de Aristóteles para diferenciar a história da poesia, por outro ele se afasta do estagirita, que afirmou ser a poesia superior porque se refere ao universal e, portanto, é mais filosófica e mais nobre do que a história, a qual trata do particular (ARISTÓTELES, 2015, p. 97, 1451b). Para o tratadista espanhol, a poesia se ocupa do universal, a buscar a “pura idea de las cosas”, enquanto que o historiador, ao atentar-se para o particular, mira o universal, porque seu objetivo é ensinar universalmente com os exemplos: ensina a dizer e a fazer ao contar sobre a natureza das pessoas. A poesia é a junção e encadeamento de muitas coisas em uma; a história, ao contrário, segue a ordem incerta das coisas, pois este é o seu fim: contar como elas aconteceram. Nesse sentido, afirma Cabrera:
La poesia escriue vna sola accion de vn solo hombre, las demas por accidente; la historia muchas y de muchos, aunque trata alguna vez vna accion sola, como la conjuracion de Catilina, y la guerra de Iugurta que historiò Salustio, y otras semejantes historias: su aficio es tratar de muchas y diuersas acciones. (CABRERA DE CORDOBA, 1611, Discurso IV)
Por tratar do universal e não do particular, a poesia seria superior à história, segundo Aristóteles. Cabrera usa o mesmo argumento para mostrar que a história é superior à poesia.4 A poesia seria, portanto, a imitação da história, já que, como afirma Adma Muhana (1997, p. 46), “Do ponto de vista da poesia, natureza é a história”.5 A poesia narra os “verossímeis possíveis, e a história, os sucessos já ocorridos; então, o poeta imita pessoas, coisas e eventos como os que estão nas histórias” (p. 46). Esta é uma das principais diferenças no que concerne à invenção, segundo Muhana,6 do discurso poético e histórico: o historiador deve contar apenas o ocorrido, enquanto o poeta trabalha com as possibilidades dos acontecimentos e, portanto, o primeiro não pode criar a matéria sobre a qual fala, uma vez que ela foi estabelecida pelos acontecimentos; já o segundo, imitando o discurso da história, pode criar.7 Como afirma Luis Cabrera de Cordoba, o poeta imita; o historiador, não.8
Para Mascardi (1994), a verdade é o olho da história, que sem ela seria semelhante a um animal selvagem sem a luz dos olhos. Parafraseando Políbio, o historiador italiano afirma que a história perde sua natureza se perder a verdade. Ele afirma que a história é o espelho da vida humana: “Specchio della vita umana è l’istoria; ma se lo specchio non rende l’immagine del volto somigliante all’opposto esemplare, nè può nomarsi specchio, nè la figura che representa, per immagine si riconosce”9 (MASCARDI, 1994, p. 98).
Mascardi (1994) compara dois pintores, Polignoto10 e Dionísio.11 O primeiro fazia retratos mais belos do que a natureza havia fabricado originalmente. O outro colocava todo engenho em transportar um rosto para sua tela. Concluindo seu raciocínio, afirma que Polignoto representa a poesia, que tem a liberdade de enriquecer com o tesouro da arte a pobreza dos homens, e Dionídio é o historiador: “Dionigi è l’istorico, che religiosamente tramanda alla posterità la semplice sembianza del vero” (p. 98-99).
As metáforas usadas por Mascardi para se referir à verdade - espelho e olho - remetem o leitor a Cícero, que definiu a história como lux veritatis, luz da verdade. No orador romano também encontramos uma diferenciação entre história e poesia: para ele, a principal e imutável característica da história é a verdade, e o objetivo da poesia é o deleite.12 Já a ideia de a história ser um espelho, usada por Mascardi (1994), nos remete a Luciano de Samósata (2007), para quem o pensamento do historiador é semelhante a um espelho impoluto, pois mostra os fatos da maneira como os recebe, sem nenhuma distorção, mudança de cor ou de aspecto.13 Segundo Luciano, o historiador assemelha-se mais ao escultor do que ao poeta e ao orador, os quais criam a matéria sobre o que dizer. Fídias e Praxíteles não criaram o ouro, a prata ou o marfim, mas deram forma a esses materiais, ornando-os com a sua arte. Assim também deveria ser o historiador. Antes deles, Tucídides (1982) também distinguiu a história da poesia. Ao final do longo exórdio, no qual relata os acontecimentos que antecederam a guerra do Peloponeso, o historiador afirma que “os fatos na antiguidade foram muito próximos de como os descrevi” (p. 27-28), diferente das versões de pouco crédito cantadas pelos poetas.
Apesar de não fazer parte dos autores aqui analisados, achamos oportuno trazer a reflexão que fez Alonso López Pinciano (1998) sobre a distinção entre poesia e história, na sua Philosophia Antigua Poética, impressa no final do século XVI, a fim de mostrar como a concepção aristotélica permaneceu vigente até, pelo menos, o século XVIII. O autor afirma que a poesia há de ser imitação de uma obra, e não a própria obra e, por isso, Lucano e Lucrécio não poderiam ser considerados poetas, já que os seus textos não possuem fábulas, “porque no imitan en sus escritos a la cosa, sino escriben a la cosa como ella fue, o es, o será” (p. x). Para López Pinciano, o poeta escreve o que inventa e o historiador fala o útil.14
Jerónimo de San José afirma o poder de cura que tem a história, por causa do deleite que ela provoca na alma, como aconteceu no caso de Alonso de Aragão, que, quando estava doente, pediu que lhe dessem a História de Alexandre, de Quinto Curcio. O rei teve muito gosto em ler aquelas páginas e logo se recuperou. “Váyanse en hora buena Hipócrates y Galeno y cuantos médicos hay, y viva Quinto Curcio; pues a su lectura (después de Dios) y no a ellos debo la cura de mi enfermedad” - teria dito Alonso de Aragão (SAN JOSE, 1651, Livro 1, Capítulo 2, §5). Para o autor do Genio de la historia, é natural o apetite pelo saber e ciência, na mesma proporção em que é penoso ao ser humano conseguir essas coisas.15 Por ser agradável, a história ensina fazendo o engenho trabalhar mesmo e é justamente nisso, segundo San José, que está a utilidade da história. Sendo a história um gênero tão importante para a vida humana, é, consequentemente, maior a sua importância com relação às outras artes e faculdades, que tiram da história aquilo que as enriquece e enobrece. San José fala da pintura, escultura e arquitetura, mas é especialmente relevante o que escreve sobre a poesia: “La poesía, si finge, es sobre algún suceso verdadero, y si no finge, sustancialmente es historia, aunque poetizada” (SAN JOSE, 1651, Livro 1, Capítulo 3, §1). Assim, no Genio de la historia, é a presença da verdade que vai definir se um texto é ou não história.
Pierre Le Moyne define a história como uma narrativa contínua de coisas verdadeiras, grandes e públicas, escrita com eloquência e espírito, para a instrução dos príncipes e particulares e para o bem da sociedade civil (LE MOYNE, 1670, p. 77). Ele lista o ensinamento de três autoridades antigas sobre a história: Cícero, Políbio e Dionísio de Halicarnasso. Ele teria aprendido com Cícero que a Verdade é o fundamento da História; com Políbio, aprendeu que a verdade é para a história o que a conduta conforme a lei é para a regra, e os olhos para os animais. Como Dionísio de Halicarnasso, ele pretende que a História faça o ofício de Sacerdotisa no templo da Verdade.16 Por tudo isso, ele conclui que a história é diferente da ficção. Podemos deduzir então, que no século XVII a condição fundamental para a história era ser narrativa verdadeira. Isso a diferencia de outros gêneros, mas principalmente da poesia, tal como havia definido Aristóteles (2015) e, depois dele, Cícero no De oratore (2009). Além disso, nos tratados do século XVII aqui analisados, para a História ser verdadeira não bastava apenas dizer a verdade: importava também quem a enunciava, pronunciava e registrava. A representação social do historiador, a sua nobreza e reputação davam crédito à narrativa, sendo uma das condições fundamentais para que ela fosse considerada verdadeira e útil. O discurso, para ser aceito, precisava obedecer as regras do decoro e, portanto, o assunto e as palavras usadas deveriam adequar-se ao orador ou autor, que, por sua vez, precisava adequar o discurso ao público. É o que veremos a seguir.
A crítica dos tratados de história da época moderna feita nos séculos XX e XXI pouco ou nada fala sobre a representação do historiador neles desenhada.17 Em geral, é na parte em que definem como deve ser o historiador que acabam por desenvolver questões importantes sobre a história, pois ambos estavam diretamente relacionados.
Os tratados de história do século XVII, além de dissertarem sobre os preceitos da história, suas definições, estilos etc., também pintavam como deveria ser o historiador perfeito. Le Moyne, tal como fez Cícero no De oratore com relação ao orador perfeito, afirma ser sua pintura a de um historiador que ainda não existe.18 No artigo 2, da dissertação 3 de De l’histoire, o título já diz qual é a principal regra que o historiador deve seguir: “QUE LA VERITÉ/ doit estre la principale re-/ ligion de l’Historien” (p. x). Logo no início do texto, o autor lista três regras que o historiador deve seguir, segundo Cícero e todos os outros que vieram depois dele: (a) não dizer nada de falso; (b) não calar ou esconder a verdade; e (c) dar a cada coisa sua justa medida, sem aumentar nem diminuir.
Dessas regras, Le Moyne explica as duas últimas, pois a primeira dispensa explicações devido à sua clareza e obviedade. Com relação à segunda regra, o preceptista francês quer que o historiador tenha sempre a vista voltada para o seu fim: instruir e ser útil19 e, por isso, ele deve escolher muito bem sobre o que falar e o que não falar. Por exemplo: à posteridade não interessaria quantas vezes Carlos V bebeu ou deixou de beber em uma refeição; também não seria do interesse da posteridade saber se um imperador muito religioso foi ou não casto. Tais são os exemplos dados por Le Moyne, para afirmar que nem tudo deve ser narrado pelo historiador, pois nem tudo é útil para o futuro. Segundo podemos concluir de sua concepção, a história e o historiador estão a serviço da monarquia e, por isso, não se deve falar sobre tudo. O que pudesse prejudicar a monarquia não deveria ser dito porque iria não apenas contra o rei, mas contra a coisa pública. Numa sociedade onde o Estado é considerado como um organismo vivo, um corpo do qual o rei é a cabeça, a parte pensante e fundamental para governar a sociedade, enfraquecer a monarquia era enfraquecer a sociedade. Quais seriam as consequências se todos soubessem que um imperador, mesmo o mais religioso, não era casto? Quando esse tipo de assunto passou a ser objeto de panfletos e romances, na França do século XVIII, o resultado foi o fim do absolutismo francês com a decapitação de Luís XVI em 1793.20
Sobre o terceiro preceito, Le Moyne afirma ser a amplificação da virtude do orador e do poeta, mas que aos historiadores é proibida porque permitiria o uso de imaginações férteis por uns e, por outros, o excesso de elogios. Quinto Curcio, Tito Lívio, Salústio e Plutarco são exemplares nessa questão, porque se contentaram com as cores naturais dos homens que pintaram, sem precisarem recorrer a amplificações (LE MOYNE, 1670, p. 103-104).
Os antigos chamavam o historiador de sábio, mas nunca definiram que tipo de sábio ele era. Segundo Luis Cabrera de Córdoba (1611), o historiador é filósofo, porque fala das coisas morais e naturais; é matemático, pois trata da magnitude nas descrições; é dialético, por provar com argumentos; e é orador, porque persuade com ornada e suave oração. Fazem parte do objeto do historiador todas as matérias das coisas feitas ou que se fazem e, por isso, ele deve ter o conhecimento sobre tudo o que escreve - o que o torna, segundo Cabrera, um sábio que domina praticamente todos os campos. Para ele, o historiador:
Ha de saber buenas letras, tener lecciõ de las diuinas, ser docto en las antiguedades, pratico en el mundo, y que le aya peregrinado, exercitado en todas materias, principalmente de estado, inteligente en las coisas de la guerra, hombre aulico, versado en los negocios publicos, y gouiernos de Reinos, prouincias y pueblos, inquiridor de los hechos ocultos, lleno de sentẽcias y dichos graues, instruido en exẽplos, erudito, eloquẽte, graue, entero, seuero, vrbano, diligẽte, medido, estudioso, de grã seso, bõdad y justicia, varõ realmente bueno”(CABRERA DE CORDOBA, 1611, Discurso V).
Chama a atenção o caráter político do historiador descrito. O historiador, segundo seu caráter retórico, é quem domina a arte da história e, por isso, deve ser exercitado em todas as matérias, principalmente nas de Estado, deve ser entendido na guerra, nos negócios públicos e nos governos de reinos e povoados. Segundo Silvina Paula Vidal (2010, p. 330-331), a obra de Cabrera de Cordoba ilustra um duplo processo: por um lado, a “politização da história”; por outro, a “historicização da política”. Como podemos constatar a partir da análise dos tratados, a história, a partir do início do século XVII, passou a ser usada como um discurso de razão de Estado, ou seja, um argumento de teoria política, entendendo política como o acúmulo de experiências que os governantes passados deixaram e ao que se junta a experiência própria e individual do governante atual. Por isso, ela deve ser ensinada por exemplos, entendidos como o real concreto e experimentado, e não com conceitos infinitos e abstratos. Um dos meios mais importantes para o príncipe alcançar a prudência na arte de reinar é o conhecimento da história. Afirma a autora que “la historia es, para Cabrera, ‘madre de la prudencia’, porque al estudiar el pasado, el político logra actuar en el presente y anticipar resultados futuros” (p. 335). Como já dissemos, o conhecimento da história como algo que possibilita conhecer o futuro ganhou força num momento no qual o cálculo político passou a ter mais importância, fazendo com que as profecias dessem lugar aos prognósticos, que se centram nas experiências calculáveis no campo da probabilidade, como mostrou Koselleck. Para Vidal, os teóricos da história do tempo de Cabrera de Cordoba viam a história como uma ferramenta política indispensável para a legitimação do Estado monárquico, o qual passou a nomear cronistas oficiais, responsáveis não apenas por escrever a história do reino, mas também por fornecer, com a historia magistra vitae, os ensinamentos necessários para o governo.21 Se no século XVI, como afirma Victoria Piñeda (2007), os tratadistas procuravam demonstrar como a história era uma ars - com Robortello encabeçando esse campo -, no XVII a tratadística da época dedicou-se a explicar como a história devia ser confeccionada. Ao citarem historiadores antigos - por vezes inserindo discursos inteiros deles - os modernos estão estabelecendo um cânone de historiadores capazes de validarem as orientações ideológicas da época. Como disse Gonzalo Elboj (2002, p. 146): “Clío ha entrado en la corte”.22
Diz Cabrera de Cordoba (1611, Discurso VI) que “Las historia están por cuenta y a cargo de los príncipes”, pois são eles quem escolhem os historiadores, que devem ser os melhores que existem, já que a reputação do príncipe e da nação dependem deles. Cabrera de Cordoba também afirma que escreve melhor quem não é natural da região da qual vai escrever a história. Para autorizar o seu argumento, o espanhol cita Políbio, que, segundo ele, teria dito que o melhor historiador “no ha de tener patria, ciudad, ni Rey, porque està mais libre de toda passion”.
Desse modo, observamos que, tanto Cabrera de Córdoba, quanto Le Moyne, nos remetem a Luciano de Samósata, que afirma:
Portanto, assim seja para mim o historiador: sem medo, incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade; como diz o poeta cômico, alguém que chame os figos de figos e a gamela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com todos a ponto de não dar a um mais que o devido; estrangeiro nos livros e apátrida, autônomo, sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou. (SAMÓSATA, 2007, p. 71)
Vemos, assim, os preceitos de Samósata serem imitados pelos escritores do século XVII. O historiador, que é um juiz equânime, deve ser amigo da verdade e autônomo, para não beneficiar ou prejudicar injustamente alguém. Por isso é que Le Moyne proíbe o historiador de usar a amplificação, pois ela seria o recurso usado para favorecer alguém injustamente. Seguindo este raciocínio, Cabrera de Córdoba afirma que quem melhor escreve sobre uma cidade é um estrangeiro, justamente porque ele não tem, teoricamente, relações com as pessoas da região. Daí que o historiador deve ser apátrida e sem rei. Aliás, isso pode parecer contraditório vindo de autores que escreveram em prol da monarquia. Mas, se pensarmos a realeza como uma instituição, é possível entender como alguém pode ser “sem rei”: o historiador deve defender a república contra um monarca corrupto, ou seja, quando for necessário, ele deve fazer críticas ao monarca, pensando no bem público.
Encontramos algo parecido também em Jerónimo de San José. Para ele, os historiadores, em geral, são aqueles que assumem os cargos oficiais de cronistas, o que, entretanto, não os exclui particulares de exercerem esse ofício, sendo que para isso, tanto os cronistas quanto os particulares, devem possuir todos os requisitos necessários para a função, “y ahora los podemos reducir todos a solo três, que son sabiduria, entereza y autoridad”. Por “sabedoria”, entende-se um conhecimento geral de várias artes, ciências, faculdades e coisas, especialmente sobre as quais se vai escrever, e também da prudência e arte de escrevê-las. Entereza é constância e gravidade “de ánimo desapasionado y libre para escribir sin ira y sin afecto, sin temor ni esperanza: quiero decir, sin algún respeto humano, que se encuentre con la justicia o con la verdad”. Quanto à autoridade, o historiador deve ter de antemão, pois ele deve ser conhecido e estimado na república, seja pela sua nobreza do posto que ocupa, ou pela excelência de seu engenho e sabedoria. “De manera, que para que tenga autoridad debida al que escribe historia, ha de ser por sangre, puesto, letras o virtud, eminente” (SAN JOSÉ, 1651, Livro 1, Capítulo 4, §4).
Os dois primeiros requisitos vimos serem tratados por Cabrera e por Le Moyne, além de estarem presentes também naquilo que Cícero e Samósata disseram sobre o assunto. Já o terceiro requisito é, de alguma forma, uma novidade, uma vez que em nenhum outro tratado analisado os autores mencionam que a autoridade do historiador há de se dar pelo sangue. San José diz que os primeiros historiadores profanos foram todos de estirpe nobre: dentre os hebreus eram os patriarcas os responsáveis por escreverem sobre os acontecimentos; no Egito antigo, essa função era desempenhada apenas pelos mais importantes sacerdotes; em Roma, eram os pontífices máximos que escreviam os Anais; por fim, na república cristã, como conta San José, os primeiros historiadores foram São Lino e São Clemente. Mesmo nos reinos inimigos, como o de Gengis Khan, comenta, eram eleitos doze homens, da mais alta confiança, que seriam os responsáveis por escrever as crônicas. Na Espanha, o autor chama a atenção para o reino de Aragão, que sempre nomeou o seu cronista-mor - tradição que se manteve e depois foi adotada no tempo do rei Filipe, o Prudente, que nomeou Jerónimo de Zurita (SAN JOSÉ, 1651, Livro 1, Capítulo 4, §1-4). Talvez seja por conta dessa linhagem de nobres historiadores que San José fale da importância do reconhecimento social que eles deveriam ter. Além disso, a representação que uma pessoa tinha na sociedade de Antigo Regime fazia com que ela fosse considerada confiável ou não. A princípio, uma pessoa da nobreza tinha mais virtudes do que outra que não fosse nobre e, portanto, um historiador da nobreza teria mais prestígio do que um que não fosse. Isso era um dos pontos mais importantes para a sua credibilidade naquela sociedade.
Mascardi (1994) afirma ser desejável que o historiador tenha o engenho mais maduro do que agudo, acompanhado de um bom juízo e prudência. Segundo ele, Luciano e Políbio queriam que o historiador fosse bem entendido nas matérias militares e civis, ao que Plutarco, então, dizia que devia ser eleito um historiador de uma grande cidade com grande população e, completa Marcardi, na qual houvesse residência uma grande corte, como um embaixador ou príncipe, porque na corte encontram-se pessoas de grande juízo. Por fim, o italiano conclui reafirmando que ao historiador é necessária a maturidade do juízo, o qual seja capaz de discernir o falso do verdadeiro e também que diferencie a razão do afeto.23 Além do que foi dito acima, para Mascardi, os melhores historiadores seriam os homens de Estado, como validos, príncipes ou capitães, ao invés de pessoa privada, mesmo que essa tenha bom conhecimento do mundo.24 Sendo o historiador um homem de Estado, ele estará mais apto para cumprir com o objetivo da história: ensinar por via do exemplo.25
Mascardi argumenta que com os exemplos do passado seria possível fazer prognósticos do futuro. Ele reforça seu argumento trazendo exemplos, em geral de guerras passadas nas quais os comandantes, conhecendo a história, foram capazes de fazer prognósticos e vencer o inimigo. Com isso, Mascardi retoma Cícero, que, segundo ele, chamava de prudente aquele que antevia o futuro a partir da experiência das coisas passadas.26 Essa noção das qualidades que deve ter o historiador, e também a história, fazem parte de uma concepção política típica do Estado de Antigo Regime, metaforizada pelo corpo político da República.27
Vimos quais são os requisitos necessários um historiador possuir para escrever história no século XVII. Mas que tipo de história ele escrevia? Já vimos que ela era considerada magistra vitae e diferenciava-se da poesia; falta-nos apresentar, com mais detalhe, quais as características desse gênero e como ele era representado.
Pintan la donzela gentil con alas, porque aunque es memoria de cosas
consecutiuas, dignas de saberse, va por todo el mũdo pura y candida, sin
falsedad en el dezir, ni en el sentir, por miedo, amor ni interes. Esto sini-
fica el estar sobre vn marmor quadrado, asiento del que juzga, lleno de
yeruas siempre uiuas, como ella es, y como por ella son las personas y las
cosas, mira atras mostrando ser de lo passado, nacida para la posteridad,
cõ lo que escriue en vn libro que tiene en la sinies[tra,] Saturno le entrega
la verdad que saca de vna nube, con titulo hija del tiempo, de que la
historia es testimonio: desnuda, por̃q la simplicidad le es natural, con el
Sol en la diestra en alto, que mira por ser luz ella, y amiga de la luz, con
vn ramo de palma, porque vence, y el pie sobre el mundo que ha de saber.
Fonte: (Luis Cabrera de Cordoba)
Luis Cabrera de Cordoba, em seu tratado, dividiu a história em divina - a qual subdivide-se em sagrada, que trata da religião e do que se refere a ela, como a santa escritura, e eclesiástica, que fala sobre os cânones, os concílios, os pontífices e as suas vidas, a vida dos santos e do governo da Igreja - e história humana - que, por sua vez, é subdividida em natural, como as que escreveram Aristóteles e Plínio sobre os animais e plantas, e história moral. Esta pode ser particular, que narra a vida e as virtudes de alguns homens, ou pública, quando narra os feitos de muitos. Assim, conclui Cabrera, “La diuina enseña religion, la humana prudencia, la natural ciencia, y todas deleitan” (CABRERA DE CORDOBA, 1611, Discurso VII). Além dessas categorias, a história subdivide-se em clássica ou universal, que trata de todo o mundo, como fizeram Nauclero, Filipe Borgomense, Surio e outros; história especial ou genealógica, que trata da razão de uma linhagem, como fizeram Beda, Angelo, Sigisberto Gemblasense, Estrabão e outros. E, por fim, história Tópica ou Provincial, que trata de um reino, província ou república, ou mesmo de alguma comunidade, como fizeram Josefo, Livio, Polidoro e o Veronense (CABRERA DE CORDOBA, 1611, Discurso VIII).
Após tratar das divisões e subdivisões da história, Cabrera de Cordoba relembra a sua finalidade: “Al fin estan en la historia todas las cosas ̃q tocan a la buena instrucion de la vida, y administracion buena de la Republica recogidas”. Em seguida, ele conclui com uma reflexão: os homens que conhecem a história parece que viveram muitos séculos e visitaram todos os continentes, tendo participado de todos os acontecimentos. Esse homem, que conhece a história, será tido como um oráculo. A reflexão parece ter sido tirada de Leonardo Bruni, que nas Histórias florentinas (1416) escreveu:
Se entendermos que os homens mais idosos são mais sábios porque vivenciaram mais coisas, quão maior é a sabedoria que a história pode nos dar se a lermos cuidadosamente! Pois ali os feitos e as decisões de várias épocas podem ser examinadas; de suas páginas podemos aprender com facilidade que comportamentos devemos imitar ou evitar, ao passo que as glórias obtidas por grandes homens, ali registradas, inspiraram-nos a realizar atos virtuosos. (BRUNI, 1416 apud PIRES, 2007, p. 108-109)
Tal reflexão, como mostra Francisco Murari Pires, é a releitura do historia magistra vitae ciceroniano feito pelos humanistas que, como podemos ver, continuou a ser reproduzida no século XVII. A história é o mais útil ensinamento que os príncipes e os governantes podem ter, por isso ela deve ser repleta de exemplos e não deve dizer falsidades.28 Sobre a matéria da história, Cabrera de Cordoba (1611, Discurso XI), como já havia dito Luciano de Samósata, afirma que “La materia no la inuenta el historiador (…)”, ela é dada e ele coloca prudência e eloquência nela, “(…) como lapidario que toma la piedra para polirla, y darle conueniente forma cõ el ingenio y arte”.
Sobre a matéria da história, o autor afirma que ela pode ser simples - que trata de uma só coisa, ação, caso, sucesso etc. - ou vária - quando narra sobre muitos sujeitos e ações. Quem for escrever sobre a guerra entre romanos e cartagineses, completa em Cabrera de Cordoba (1611), deve saber que ela se enquadra na matéria simples, pois uma só era a causa: uns quererem o império dos outros. É importante falar sobre as causas que levaram à guerra, bem como respeitar a ordem dos acontecimentos. A história de matéria vária contém diversos acontecimentos, de várias coisas, de eventos semelhantes, conta sobre diversos princípios nascidos de diversas nações e encaminhados por diferentes pessoas, como a história que Tito Lívio escreveu sobre os romanos. Por ser larga a matéria, cabe ao historiador eleger o que dizer e o que calar, sempre formando a verdade, que é a alma da história (CABRERA DE CORDOBA, 1611, Discurso XIII).
Mascardi (1994), por sua vez, trata dos subgêneros da história, que são: efemérides, também conhecidas como diários, anais, crônicas, comentários e vidas, todos com o mesmo objetivo de eternizar a memória dos acontecimentos passados.29 As efemérides podem ser de vários tipos: o conto, o qual objetiva registrar algumas passagens da vida das pessoas em contos; o outro é o calendário, cujo nome vem de calendas, no qual as pessoas anotavam dívidas e as quantias que tinham para receber. Segundo ele, essa prática deu origem ao calendário. Os comentários, como aqueles que escreveu César, também são um tipo de efeméride; havia, ainda, um outro tipo: as ocorrências astrológicas, que marcavam as épocas e estações do ano e eram muito úteis para quem trabalhava no campo. O autor também mencionou as efemérides privadas, as públicas e as das vilas, sem entrar em detalhes. Porém, para ele, a “infância da história” foram os anais.30 Sem ornamentos ou elegância, sem cultura ou eloquência, os anais contavam todas as coisas que aconteceram em um ano.
O autor explica o gênero “vida” com mais detalhes do que os outros. Ele deve ser deleitoso porque é necessário ser lido com o objetivo de regular a vida das pessoas, que devem ter como modelo, principalmente, as vidas de santos. No gênero vida, o escritor conta a história de uma pessoa, partindo do momento mais antigo, o nascimento, até o mais recente.31
Jerónimo de San José disserta acerca de algumas divisões possíveis de se fazer na história. As mais universais seriam dividi-la em significada, escrita e falada. A primeira, representada por hieróglifos, pinturas, esculturas, símbolos etc. Neste sentido, segundo San José, “el pintor, o escultor, y cualquer otro semejante artífice es también historiador; porque su pintura, escultura y labor es un cierto modo de narración significada” (SAN JOSÉ, 1651, Livro 1, Capítulo5, §3). História escrita é aquela narração contida em alguma escritura, a qual se declara por meio de caracteres próprios de uma língua, que se possa conservar e ler. A história falada “será la narración vocal o verbal que en voz, y con palabras actualmente se recita” (Livro 1, Capítulo 5, §3).
Além dessa, outra divisão proposta seria aquela entre história humana e divina. Esta é caracterizada “o por la forma que es la narración, o por la materia que son las cosas y sucesos, o juntamente por la materia y forma” (SAN JOSÉ, 1651, Livro 1, Capítulo 5, §3). Já a história humana é a narrativa de coisas e sucessos humanos (Livro 1, Capítulo 5, §3) e subdivide-se, por sua vez, em verdadeira e falsa - o que não se aplica à divina, porque nela não cabem falsidades por causa da sua própria natureza. Como diz San José, “(…) la historia propiamente verdadera es narración verdadera de cosas verdaderas. (…) no basta que la narración sea verdadera, si es de cosas no verdaderas, sino que así la narración como las cosas lo sean”. Pode acontecer de um historiador, por engano ou ignorância, escrever uma história que pense ser verdadeira, mas que na verdade seja falsa.32 Também pode acontecer, segundo o autor, de se escrever uma história falsa como se fosse verdadeira, igual ao diálogo de Luciano Samósata, chamado por ele de “História verdadeira”, mas que advertiu ser de coisas falsas.
Outra divisão da história indicada consiste entre a natural e a moral. A primeira trata das coisas da natureza, como a que Aristóteles escreveu dos animais e Plínio das coisas naturais. A história moral, como afirma San José, “comprehende las acciones, obras, y sucesos que libremente emanan de la voluntad del hombre, en cuyo modo de obrar libre consiste lo que llaman los teólogos moralidad”. Levando-se em consideração a matéria, várias divisões podem ser feitas na história, o autor faz uma breve definição de cada uma delas: moral é aquela que trata dos costumes; tópica, a que descreve os lugares; cronológica é a história em que se averiguam os tempos; genealógica é a história que conta a origem das famílias, as sucessões delas; pragmática, aquela que dá notícias das leis, ritos e cerimônias; política é a história que trata dos governos das cidades e dos reinos; história econômica trata do particular governo de uma família; história eclesiástica conta das coisas da Igreja, e profana das coisas seculares; a eclesiástica subdivide-se em clerical, que contém o que toca aos clérigos e seu governo, e em religiosa, que pertence ao estado religioso, “del cual hay tantas maneras de historias, cuantas son las diferencias de las ordenes” (SAN JOSÉ, 1651, Livro 1, Capítulo 5, §7).
Para Le Moyne, existem três tipos de história: a divina, a natural e a humana. A primeira é a inspirada por Deus, como aquelas histórias que tratam de coisas tiradas da Bíblia. A natural trata das obras da natureza, como a que Aristóteles escreveu sobre os animais, ou a de Teofrasto e Plínio. Já a história humana trata das coisas feitas pelos homens. Essa, por sua vez, subdivide-se em outras cinco categorias: a verdadeira, tirada da crença comum dos homens; a fabulosa é aquela imaginada para a diversão do leitor, como as que aparecem nos poemas e romances; a universal, que abarca todos os tempos e nações; a particular, restrita a apenas uma nação, como a de Tito Lívio, ou a um reino, como a de Quinto Curcio; e a singular, mais restrita ainda porque trata de algumas pessoas escolhidas, que, segundo Le Moyne (1670), merecem viver mais de uma vez, em mais de um século.
Vemos que no século XVII os tratadistas dividiram o gênero histórico, principalmente, em três subgêneros: história divina, humana e natural. Os dois últimos têm como modelos os antigos, Plínio, Aristóteles, Tácito, Tito Lívio, Tucídides, Cícero etc., enquanto a história divina tem as suas raízes nos autores cristãos, como Santo Agostinho, Santo Isidoro de Sevilha e nas vidas de santos medievais. Esses gêneros, porém, têm o mesmo objetivo: ensinar os seres humanos a partir de exemplos do passado. Como mostramos acima, desde pelo menos Leonardo Bruni, responsável por ter recuperado a obra de Tucídides no Ocidente (PIRES, 2007), a história, considerada magistra vitae, foi a principal forma de educação das virtudes morais e religiosas, importante também para os generais e para os governantes.33 Gostaríamos de ressaltar, também, a dificuldade de se separar história e poesia no século XVII, quando predominava uma concepção de história como gênero retoricamente regrado e não como ciência. Na análise que fizemos do tratado de San José vimos que um pintor ou escultor podem ser historiadores, e nos preceitos de Le Moyne vimos que há a história verdadeira e a fabulosa.
Nos quatro tratados descritos, analisados e comparados, identificamos uma preocupação em definir os parâmetros canônicos da escrita da História a partir das autoridades antigas e humanistas. Todo esse esforço foi promovido pelo anseio dos autores em publicar uma obra útil à monarquia e ao seu tempo, além da possibilidade de angariar posições de destaque no ambiente cortesão e, se possível, entre os mais privilegiados pelo rei. Até aqui não encontramos nada especialmente excepcional com relação a outros textos seiscentistas. Mas, quando nos voltamos para o reino de Portugal, é com certa surpresa que nos deparamos com a ausência total de tratados dessa natureza. Autores como o célebre letrado seiscentista eborense, Manoel Severim de Faria (1583-1655), aponta em seus Discursos vários políticos os principais preceitos que fundamentaram a escrita das Décadas por João de Barros:
Consta a verdade da História assi da certa notícia, que o historiador tem do que há- de dizer, como do verdadeiro ânimo do mesmo historiador em não calar o bem, ou mal, que fizeram aqueles, de quem trata. Pera escrever com notícia verdadeira teve João de Barros as mais certas relações, que pera tal matéria se podiam alcançar, porque havendo de tratar de três cousas que eram, os Feitos dos Portugueses, a Notícia dos Reis e nações do Oriente, e a verdadeira situação geográfica daquelas Províncias (FARIA, ed. 2002, p. 46-47 apud MEGIANI, 2005, p. 255).
Os autores da Monarquia Lusitana também fizeram enorme esforço em seguir os cânones do gênero, mas sem elaborar tratados ou manuais. Desse modo, nossa análise foi buscar onde poderiam estar esses elementos que corresponderiam à tratadística da escrita da História portuguesa na época da Restauração, como é o caso da obra de D. Francisco Manuel de Melo, Historia de los movimentos, separación y guerra de Cataluña (1645), D. Teodósio II (1648) e Epanáforas de vária história portuguesa (1660), além de outros livros de poesia. Como se sabe, Melo foi historiador, poeta e soldado, tendo liderado homens a serviço de Espanha e de Portugal, o que o torna um personagem relevante para a reflexão aqui em curso. Contudo, não pintaremos detalhadamente sua vida, mas destacaremos alguns momentos que julgamos mais relevantes para a nossa análise. Logo que terminou os estudos, Melo ingressou na carreira militar e sua primeira missão, em 1625, foi defender Lisboa de uma investida inglesa (ESTRUCH TOBELLA, 1996, p. 9). Em 1629, embarcou para escoltar frotas que chegavam da América e acabou combatendo piratas turcos. Suas ações lhe renderam o título de cavaleiro, concedido por Filipe IV da Espanha. Mais tarde, em 1637, D. Francisco Manuel de Melo foi designado pelo conde-duque de Olivares para uma importante missão: ele acompanharia o conde de Linhares a Évora, para combater uma suposta revolta contra os impostos cobrados aos portugueses pelo monarca espanhol. Sua função seria a de informar a posição do duque de Bragança, o futuro rei D. João IV. Olivares estava preocupado porque o duque era o nobre mais poderoso de Portugal e tinha vínculos com a família real, o que o colocava em uma posição de poder reclamar a coroa. Melo conta, na Epanáfora política, que o duque de Bragança o mandara transmitir a Olivares a sua fidelidade à coroa espanhola e a sua não participação no motim de Évora (ESTRUCH TOBELLA, 1996, p. 12).
Em 1640, D. Francisco Manuel de Melo teria começado a escrever a Historia de los movimientos, separación y Guerra de Cataluña, quando também se preparava para ir à Flandres lutar pela Espanha. Em 1641, ele teria mudado de lado e passara a defender a independência de Portugal. Seu livro sobre a Catalunha, então, tem essa particularidade: o autor começou a escrevê-lo enquanto estava a serviço de Filipe IV e terminou do lado português. Porém, não há, na obra, nenhum indício sobre isso. No prólogo, “Hablo a quien lee”, Melo recomenda seu livro àquele que procura a verdade e não o deleite, pois esta é a alma da história e sua utilidade está justamente em ser verdadeira e fornecer exemplos aos leitores, tal como preceituam os tratados de história analisados anteriormente. Ele também destaca a utilidade do conteúdo, pois, como afirma, “Ofrezco a los venideros un ejemplo, a los presentes un desengano, un Consuelo a los passados” (MELO, 1996, p. 67). A concepção de história do autor é muito próxima à dos tratados de história que analisamos, principalmente de Agostino Mascardi, do qual sabemos que Melo foi leitor de Dell’arte historica, pois faz referências do tratado no Hospital das Letras(1657). O tema da guerra, matéria do livro de Melo, segundo o preceptista italiano, é o mais próprio à história. Em outra obra, D. Teodósio II (1944), D. Francisco Manuel de Melo afirma que a sua Historia de Cataluña serviu para conquistar a opinião de que era um historiador confiável e escrevia verdades, a dar maior confiabilidade para as posteriores histórias que haveria de escrever, como a de D. Teodósio II, apresentada a D. João IV.34
E como, para ensaio da presente [história], provei primeiro a pena naquela História de Catalunha com que informei o mundo da verdade de seus movimentos, desejosos de os referir como eles foram, para tal usando então de alheio nome por escusar a presunção que contra mim haveria de suspeitoso, entendendo-se que falaria daquele reino como escandalizado. (MELO, 1944, p. 31)
Sua obra sobre a Catalunha foi publicada sob um pseudônimo, Clemente Libertino, porque o autor queria se preservar em meio às complicações entre Portugal e Espanha, justo ele que havia servido Filipe IV e agora defendia o restaurador D. João IV. No Hospital das Letras(1657), Melo conta que se não tivesse seu nome de batismo, esse outro seria o seu, pois Clemente era o santo do dia de seu nascimento e Libertino “porque já sabeis que era entre os romanos o nome dos filhos dos escravos libertos” (p. 93).
No prefácio que escreveu para a história de D. Teodósio II, Melo lê-se:
E como a lisonja e a adulação por si próprias não dão gôsto nenhum a quem as usa, salvo a de minguada esperança prometedora do prémio posta no que as recebe, quando por felicidade do mundo nada valem aos olhos do Príncipe, - não sabemos se haverá ânimo tão envilecido que deseje a infâmia de adulador e lisonjeiro. Por isso devo e prometo manter uma cristã e verdadeira imparcialidade, entre amigos e inimigos, pelo que desde aqui advirto, aos que cheguem a descontentar-se das minhas palavras, que não imponho os factos, apenas os escrevo. (MELO, 1944, p. 45, grifos nossos)
Assim como foi preceituado por Cícero, Luciano de Samósata, Cabrera de Cordoba, Agostino Mascardi e outros autores de tratados sobre a história, D. Francisco Manuel de Melo afirma ser imparcial35 e não inventar os fatos.
Numa das licenças das Epanáforas de vária história (1977), também encontramos referências à prática historiográfica, por assim dizer:
Para aprovação destas Relaçoens, parece que bastaua serem escritas por D. Francisco Manuel. Com tudo eu as li por gosto, & digo o que achei nelas, porque V. mag. mo manda. Achei Verdade, Clareza, Juizo; que saõ as leys essenciais da historia. Verdade, no material que se relata, & no sincero da tenção. Clareza, na facilidade da narrativa, & na propriedade das palavras. Juizo, na disposição dos sucessos, & na avaliação das acçoẽs; vindo, como naturalmẽte, em armonìa historica, & oratoria, o estilo demõstratiuo, o deliberativo & o judicial. E assi me parecem muyto dignas de se comunicarem a todos pela Impressaõ: porque de sua leitura resultarà o que desejaua Polibio lib. 3. que do conhecimẽto do vniuersal, se tirem noticias para os casos particulares, & da percia dos particulares, se faça sciencia para os vniuersais. Lisboa 7. de Abril de 1660. Antonio de Sousa de Macedo (MELO, 1977)
Nesta licença, o censor afirma encontrar na obra de D. Francisco Manuel de Melo verdade, clareza e juízo, leis fundamentais da história no século XVII. Podemos comparar suas definições com as de Cabrera de Cordoba, para quem o verdadeiro “es confirmacion de lo cierto”; já para Marcardi, a verdade é o olho da história, que, por sua vez, é o espelho da vida humana (MASCARDI, 1994, p. 98). O autor da licença diz ter encontrado verdade no material que se relata e “no sincero da tenção” - palavra, esta, que, segundo o Vocabulario portuguez e latino de Bluteau (1728), significa vontade, intento, propósito de dizer ou fazer alguma coisa. Então, para Antonio de Sousa de Macedo, a verdade está, também, na sinceridade da intenção de D. Francisco Manuel, o que nos mostra como no século XVII a representação e a estima que a sociedade tem pelo historiador são importantes para que o seu discurso seja verdadeiro. Sobre a clareza, ele diz que está na facilidade narrativa e na propriedade das palavras, ou seja, Melo adotou um bom estilo para narrar a sua história, seguindo uma ordem cronológica dos acontecimentos, e usou palavras apropriadas para os temas tratados. Ora, vimos que para Le Moyne, a clareza é uma das qualidades que a elocução histórica deve ter e consiste em dispor o discurso numa ordem que não atrapalhe o leitor, em escolher termos límpidos e, em resumo, ela garante que não haja nenhuma dificuldade que impeça a inteligência do leitor se juntar à do escritor (LE MOYNE, 1670, p. 311). Sobre o juízo, diz a licença que está na disposição dos sucessos e na avaliação das ações, o que concorda com o que disse Cabrera de Cordoba: “Quando se discurra cerca de los hechos o modo de executarlos, motiuos, disinios, razones de hazerse, sus fines, que se llama juizio”, que serve, segundo ele, para aprovar ou repudiar as coisas narradas (1611, Discurso XII).
Tomamos exemplos de Cabrera de Cordoba, Mascardi e Le Moyne para mostrar como a licença de Antonio de Sousa de Macedo está de acordo com os preceitos da história e como esses preceitos eram difundidos nas camadas letradas. A história, no século XVII, devia seguir um determinado modelo, descrito pelos tratadistas. Em Portugal, mesmo não havendo nenhum tratadista ou mesmo nenhuma edição de algum tratado de história, os historiadores seguiam os mesmos modelos de Cabrera de Cordoba, Mascardi, San José e Le Moyne. Nesse século, a licença tinha um papel importante nos preâmbulos dos livros, pois garantia aos leitores que a obra estava de acordo com os bons costumes, que não ofendia a Santa Fé e que seguia os preceitos do gênero praticado. Tendo verificado esses elementos, o censor autorizava a impressão e circulação da obra. É interessante pensar que a licença também garantia a veracidade da obra histórica, pois, como fez Antonio de Sousa de Macedo, ela afirma que o discurso está de acordo com a verdade e, assim, já prepara o leitor para encontrar coisas verdadeiras no percurso que está prestes a percorrer.
Outro conjunto de elementos sobre o que era a história no século XVII pode ser encontrado na dedicatória a Antonio Luis de Távora, marquês de Távora, feita pelo conde da Ericeira em seu Compendio Panegirico da vida, e acçoens do excellentissimo senhor Luis Alverez de Tavora Conde de S. Ioão, Marquez de Tavora, Gentilhomem da Camara de S. Alteza, do Conselhor de Guerra, & Governador das Armas da Provincia de Tras os Montes(1674), impresso em 1674. O conde da Ericeira afirma que, com a história, a arte se fez superior à natureza, pois esta forma um homem sem as virtudes, que ele pode conseguir posteriormente; mas, como não o isenta da morte, em pouco tempo, o que foi triunfo se torna cadáver; a memória, que com o tempo se corrompe, se não tem instrumento que a renove, também logo cessaria. Então…
Compadecida a arte desta desgraça da vida humana, inventou a historia, & jũtamẽte a pintura, com tão pouca differença, que he na comũa definição a pintura historia muda, & a historia pintura que fala. E parece que quando a pintura, & historia se unem para a definição de hũ mesmo objecto, verdadeiramente resicitão o original que descrevem; por̃q na pintura dà forma ao corpo, & na historia se renova a alma. Pintura sem historia he corpo sẽ alma; historia sem pintura he alma sem corpo (…).
Ericeira compara a história à pintura, como fez, também, no prólogo de História de Portugal restaurado. Diz ele que a pintura é história muda, e a história é pintura que fala. Ambas se unem para a definição de um mesmo objeto, sendo tarefa da pintura dar forma ao corpo, e a da história é renovar a alma, ou seja, fazê-la viver novamente na narrativa. Assim, ele conclui que pintura sem história é corpo sem alma, como história sem pintura é alma sem corpo. Sem a história, afirma Ericeira, a memória de um homem duraria pouco tempo mais do que a sua vida, os heróis não teriam o merecido reconhecimento e os homens não teriam virtudes, pois estas nos são transmitidas pela história, que nos traz os exemplos a serem imitados. História e pintura, juntas, são capazes de ressuscitar o original que descrevem e elas foram inventadas pela arte, segundo Ericeira, justamente para suprir uma lacuna que ficaria na humanidade; sem elas, por exemplo, as ações de Luis Alvarez de Távora não poderiam ser imortalizadas, como são agora neste panegírico. Em seguida, o conde aplica a tópica da falsa modéstia quando afirma que este Cipião merecia um melhor Lívio, a fazer um paralelo com o general romano Cipião Africano e com o historiador Tito Lívio, quem narrou em suas histórias episódios protagonizados pelo primeiro. Com isso, o autor afirma que as ações de Luis Alvarez foram tão grandiosas quanto as do general romano, mas a sua capacidade como historiador não se iguala à de Lívio.
Esta dedicatória é, por si mesma, um pequeno tratado de história e, como podemos perceber, não é diferente dos outros tratados que estudamos. Podemos notar as comparações feitas pelo autor entre historiador e outros artistas, como os escultores, arquitetos e os pintores. Como o escultor, o historiador não cria a matéria com a qual trabalha, mas dá forma a ela; como o arquiteto, o historiador deve levar em consideração o material que dispõe e o edifício que pretende construir, para que os alicerces sejam firmes e não desmorone - o que quer dizer que o historiador deve adequar o seu estilo à matéria da sua narrativa -; como o pintor, o historiador imortaliza um acontecimento, constrói uma representação daquilo que se passou, com a diferença de que a pintura é o corpo e a história é a alma. Eduardo Sinkevisque (2005) afirma que a história, no século XVII, era utilizada para “narrar/pintar as práticas passadas”, principalmente as ações honestas, virtuosas e todas as demais ações exemplares, por conta da concepção ciceroniana de historia magistra vitae.36 Nesse sentido, a história não era somente uma prática, no século XVII, de interpretação documental, como passou a ser com mais ênfase a partir do século XIX; ela era também uma prática de doutrinamento e moralização dos leitores. O objetivo de se escrever um panegírico, então, não era apenas o de elogiar uma pessoa, mas de representá-la como um modelo de virtude e moralidade para que seu exemplo fosse imitado.37
Se em Portugal não foi impresso nenhum tratado de história durante o século XVII, nem por isso os historiadores portugueses deixaram de se adequar aos preceitos da arte histórica. Como procuramos mostrar neste artigo, os preâmbulos foram espaços para dissertarem sobre esse gênero. O que se destaca, sobretudo, é a questão da verdade, considerada, desde os antigos gregos e romanos, a alma da história. Foi este o argumento que tornou possível os autores portugueses afirmarem que a verdade estava ao seu lado e não ao lado dos castelhanos, autores de narrativas movidas pelas paixões e, por isso, enganosas.38 Os portugueses, pelo contrário, como vimos nos preâmbulos, conseguiam ser justos e ter o juízo adequado para saber a medida certa do elogio e do vitupério, sem aumentar os seus feitos ou diminuir os do inimigo.39
Iris Kantor e Rafael de Bivar Marquese
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