Artigo
Recepção: 18 Julho 2018
Aprovação: 26 Março 2019
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2020.148263
Resumo: O artigo objetiva analisar as relações históricas e conceituais entre Walter Benjamin e o movimento produtivista soviético, centrando-se, sobretudo, na relação entre a noção de “politização da arte”, defendida por Benjamin como dispositivo de combate ao fascismo no ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, de 1936, e a noção de “factografia”, desenvolvida pelo produtivista soviético Sergei Tretiakov a partir de 1927. Sustenta-se, neste texto, que as categorias de “estetização da política” e de “politização da arte” tiveram seu primeiro desenvolvimento conceitual no pensamento de Benjamin a partir de sua viagem à URSS (1926-1927) e do seu contato com o pensamento produtivista.
Palavras-chave: Walter Benjamin, Estetização da política, Politização da arte, Revolução Russa, Produtivismo.
Abstract: This article analyzes the historical and conceptual links established between Walter Benjamin and the Soviet productivist movement, focusing on the relation between the notion of “politicization of art” - defended by Benjamin as a device to combat fascism in the essay “The work of art in the age of mechanical reproduction” of 1936 -, and the notion of “factography”, developed by the Soviet productivist Sergei Tretiakov from 1927 onwards. It is argued in this text that the categories of “aestheticization of politics” and of “politicization of art” had their first conceptual development in Benjamin’s thinking from his trip to the USSR (1926-1927) and from his contact with the productivist thought.
Keywords: Walter Benjamin, Aestheticization of politics, Politicization of art, Russian Revolution, Productivism.
A humanidade, que outrora, em Homero, foi um objeto de espetáculo
para os deuses olímpicos, tornou-se agora objeto de espetáculo para si
mesma. Sua autoalienação atingiu um grau que lhe permite vivenciar
sua própria destruição como um gozo estético de primeira ordem. Essa é
a situação da estetização da política que o fascismo pratica.
O comunismo responde-lhe com a politização da arte.
Fonte: Walter Benjamin
Estetização/politização
No final do célebre ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, publicado originalmente em 1936, Walter Benjamin (1892-1940) estabeleceu uma distinção paradigmática entre duas modalidades possíveis de uso dos dispositivos modernos de reprodução técnica: por um lado, a “estetização da política” [Asthetisierung der Politik] que o fascismo operava e, por outro, a “politização da arte” [Politisierung der Kunst], que o comunismo deveria lhe opor. Ambas eram possibilitadas historicamente pelo desenvolvimento dos dispositivos de reprodução técnica e dos seus efeitos nas formas modernas de sociabilidade e no modo de organização da percepção humana. De acordo com Benjamin, as técnicas modernas de reprodução, além de submeterem os esquemas tradicionais de produção e circulação artísticas a uma reestruturação radical - a partir da perda do sentido histórico da noção de “autenticidade” da obra ou da superação da recepção individual das obras, por exemplo -, eram conjugadas historicamente às aspirações das massas em sua “orientação à realidade” (BENJAMIN, 2012, p. 123). Conforme o autor enfatizava em diversas partes do ensaio, o processo da “perda da aura” extrapolava o âmbito artístico e se constituía como um diagnóstico geral sobre os processos de modernização. Os rumos políticos de tais processos, contudo, encontravam-se em disputa.
A “estetização da política”, definida no final do ensaio, era a resposta do fascismo às contradições engendradas pela crise capitalista e pelos novos dispositivos de reprodução técnica. Ela consistia, fundamentalmente, numa política de contenção das demandas revolucionárias do proletariado através da difusão, em escala industrial, de imagens que representassem as massas ou que fossem o resultado da expressão delas. Segundo Benjamin, o interesse “originário” do proletariado em relação ao cinema - interesse calcado nas possibilidades de conhecimento da natureza, de destruição da tradição e do desenvolvimento da consciência de classe - era pervertido pelo fascismo. A “estetização da política”, portanto, era a representação das massas promovida justamente para pacificá-las. Ela operava, então, como uma espécie de concessão do fascismo ao movimento operário: “[o fascismo] vê sua salvação em deixar as massas alcançarem a sua expressão (de modo algum o seu direito [i.e., a revolução nas relações de propriedade e produção])” (BENJAMIN, 2012, p. 117). O “gozo estético” produzido pela contemplação da própria destruição era, segundo Benjamin, uma espécie de resultado libidinal, cuja matriz era a autoalienação generalizada da humanidade no capitalismo.
No ensaio, Benjamin opõe a “estetização da política” à “politização da arte”, embora não defina a última. Tal “politização da arte” aparece, pois, como uma espécie de projeto a ser formulado pelas forças comunistas para o combate do fascismo. O texto de Benjamin, então, inscreve-se como participante dessa tentativa de formulação. Existem no texto indícios do que seria tal projeto, presentes, por exemplo, na ideia de que a politização passaria pelo uso das técnicas modernas de reprodução e pelo dispositivo cinematográfico da montagem, objetivando combater a ilusão de unidade das obras fascistas, a estética contemplativa e o culto ao líder que elas promoviam.
O gozo estético da destruição
No decênio de 1930, a “estetização da política” praticada pelo fascismo, calcada na representação da alegria, na apologia do trabalho e na celebração das forças produtivas, não era um fenômeno exclusivo da Itália fascista ou da Alemanha nazista. Também na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) o governo apoiava e difundia uma linguagem visual acrítica e apologética, baseada na celebração dos líderes e na representação das massas. Esses traços comuns entre a produção artística fascista e a soviética não se restringiram às realizações das indústrias culturais nacionais e às feitas com os novos meios técnicos do cinema, da fotografia ou da fotomontagem - eles estavam presentes, também, na pintura de cavalete e na literatura.
A proliferação de grandes exposições e as semelhanças nas suas estratégias curatoriais atestam um regime discursivo semelhante entre esses países. Pode-se observar tais semelhanças, por exemplo, nas correspondências visuais entre a grande Mostra Fascista de 1932 (sediada em Roma) e as grandes exibições, concebidas também em 1932, dos Artistas da URSS dos últimos quinze anos (realizada em Leningrado e, sucessivamente, em Moscou, entre 1933 e 1934). Nas três mostras, a apologia da economia e a representação da alegria eram temas recorrentes. Na mostra fascista, o discurso celebratório era realizado através das fotomontagens e dos murais; na URSS, através da pintura. Ademais, a segunda versão da mostra Artistas da URSS dos últimos quinze anos parece ter fundado os dispositivos curatoriais baseados na difamação dos artistas que divergiam da estética oficial, dispositivos esses retomados pelo nazismo na Mostra de Arte Degenerada (1937), realizada em Munique (CHLENOVA, 2014). Além do apontado, existem documentos que comprovam a existência de um intercâmbio sobre assuntos artísticos entre a URSS e a Itália fascista (GENTILE, 1993, p. 149).1
Ainda que tais semelhanças só tenham se tornado evidentes para o grande público a partir de 1936 - quando, na Feira Mundial de Paris, foram expostas obras visuais soviéticas e nazistas (BUCK-MORSS, 1995) -,2 desde 1926 Benjamin já estava a par da estética difundida na URSS pela Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR), escola responsável por elaborar a gramática visual do “realismo socialista”.3 Contudo, ainda que repudiasse o “realismo heroico” da AKhRR, conforme comprovam seus diários,4 Benjamin não tratou das similaridades entre as obras fascistas e soviéticas em “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”.
Ainda que não criticasse o “realismo socialista”, o ensaio foi sistematicamente negado para publicação na Rússia, “lugar que deveria ser naturalmente seu”, conforme escrito por Benjamin em abril de 1936 em carta a Kitty Marx-Steinschneider (1905-2002) (BENJAMIN, 2017, p. 219). Em junho do mesmo ano, Benjamin escreveu a Alfred Cohn (1880-1950): “A mais interessante [reação ao ensaio] foi a dos esforços dos escritores filiados no partido [comunista] para impedir, se não a difusão, pelo menos a discussão deste trabalho” (BENJAMIN, 2017, p. 224).
O que explicaria tamanho empenho em silenciar o ensaio de Benjamin? Ele, aparentemente, não fazia qualquer menção crítica à arte stalinista ou ao governo soviético. Pelo contrário: Benjamin procurava mobilizar o proletariado para o combate ao fascismo. Talvez, contudo, os dirigentes e literatos associados ao regime soviético tenham percebido algum elemento crítico à URSS no ensaio referido. Qual seria ele, no entanto?
O fetichismo da mercadoria no mundo da NEP
As reflexões críticas de Benjamin sobre o processo revolucionário russo remontam a, pelo menos, nove anos antes da redação de “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” e, mais especificamente, ao período entre dezembro de 1926 e janeiro de 1927, quando ele viajou à URSS. Em Diário de Moscou, publicado postumamente, Benjamin traçou um perfil político e cultural da cidade referida, centrado na investigação do modo de vida moscovita após a promulgação da Nova Política Econômica (NEP), que completava cinco anos.5 Os diagnósticos políticos de Benjamin se encontram dispersos em meio à narrativa de seu cotidiano na capital soviética, permeado pelos encontros com a diretora de teatro Asja Lacis (1891-1979), o crítico teatral Bernhard Reich (1892-1972) e diversos outros intelectuais e artistas. Depois da estadia na URSS, partes do diário foram retrabalhadas por Benjamin e compuseram o ensaio “Moscou”. Entre ambos os textos, porém, existem diferenças substantivas - o caráter fragmentário e às pressas das notas tomadas por Benjamin revela impressões sobre o processo revolucionário que não constam em “Moscou” e que podem ser decisivos para a compreensão da crítica benjaminiana à sociedade soviética.
Em Diário de Moscou, salta aos olhos o exaustivo inventário elaborado por Benjamin das mercadorias em circulação após o estabelecimento da NEP. Com efeito, o “fetichismo da mercadoria” no mundo “nepista” é um dos grandes temas tratado por ele. Dentre as mercadorias, contudo, uma delas é constantemente referida como central para a compreensão da sociabilidade na URSS de 1926: a “mercadoria-Lênin”. Tratava-se da política de culto a Lênin, promulgada em 1924 pelo Partido.
Em nota do dia 28 de dezembro de 1926, alguns dias após visitar o “malogrado mausoléu de Lênin”, Benjamin (1989, p. 63) escreveu a respeito dessa mercadoria sui generis:
O culto da imagem de Lênin em particular vai incrivelmente longe aqui [no clube de camponeses e arredores]. Existe uma loja na [rua] Kusnetzky especializada em Lênin, onde se pode encontrá-lo em todos os tamanhos, poses e materiais. Na sala de lazer do clube, onde se ouvia naquele momento um concerto no rádio, há um quadro em relevo muito expressivo dele, mostrando-o como orador, em tamanho natural, de peito inflado. Imagens dele mais modestas encontram-se também nas cozinhas, lavanderias etc. da maioria dos institutos públicos.
A difusão do culto ao líder era associada, por Benjamin, a uma espécie de passividade estrutural ensejada pela repressão política, pela censura e pela atomização do proletariado. Ou seja, submetido à nova burguesia russa e aos agentes estatais, a população miserável - que se assemelhava a uma “corporação de moribundos” (BENJAMIN, 1989, p. 32) - se caracterizava pela inatividade política e pela indiferença, assim como a intelectualidade de esquerda.6
Ao relatar, por exemplo, a recepção pública da montagem realizada por Vsevolod Meyerhold (1874-1940) de O inspetor geral, Benjamin (1989, p. 43) escreveu que
Os aplausos no teatro foram escassos, o que talvez seja consequência mais da orientação oficial do que da impressão inicial que a peça causou no público, pois a encenação foi certamente uma festa para os olhos. Isto certamente está relacionado com a atmosfera geral de cautela que reina por aqui quando se trata de expressar publicamente uma opinião. Se se perguntar a uma pessoa que não se conhece bem o que ela pensa de uma peça de teatro ou filme insignificante, obtém-se apenas a seguinte resposta: “Por aí se diz que é assim ou assado” ou “em geral, as pessoas são desta ou daquela opinião”.7
Na leitura benjaminiana, a passividade e o distanciamento retórico, ensejados por tal “atmosfera geral de cautela”, marcavam o psiquismo da sociedade soviética e se estruturavam como uma espécie de complemento do culto ao líder e da celebração acrítica da revolução. Tal relação evidencia-se em uma das passagens do diário, na qual realiza um extenso diagnóstico político da URSS. Ele escreveu no dia 30 de dezembro de 1926:
Em sua política externa, o governo visa à paz, a fim de estabelecer acordos comerciais com Estados imperialistas; internamente, porém, e sobretudo, procura deter o comunismo militante, introduzir um período livre de conflitos de classe, despolitizar tanto quanto possível a vida de seus cidadãos. Por outro lado, a juventude passa por uma educação “revolucionária”, em organizações pioneiras, no Komsomol. Isto significa que o revolucionário não lhes chega como experiência, mas apenas como discurso. Existe a tentativa de deter a dinâmica do processo revolucionário na vida do Estado - entrou-se, querendo ou não, num período de restauração, ao mesmo tempo em que se deseja armazenar a energia revolucionária na juventude, como eletricidade numa pilha. Isto não funciona. Os jovens - especialmente os da primeira geração, cuja formação é mais do que deficiente - necessariamente desenvolvem a partir daí um comunismo presunçoso, para o qual já existe uma palavra própria na Rússia. (BENJAMIN, 1989, p. 67, grifos nossos)
No trecho citado, a “espetacularização” da revolução (a qual chegava aos jovens “apenas como discurso”) e a “despolitização da vida dos cidadãos” soviéticos eram apresentadas, ambas, como facetas de um mesmo processo. A burocracia estatal, portanto, “falava” sobre a revolução ao mesmo tempo que barrava qualquer tentativa do proletariado de radicalizar o processo revolucionário. Não seria tal processo uma espécie de “estetização da política”, atribuída por Benjamin ao fascismo nove anos depois? Não por acaso, foi no contexto de proliferação das greves operárias contra a NEP e contra o monopólio político do Partido que a linguagem visual difundida pela AKhRR, que heroicizava acriticamente a revolução, passou a ser fortemente disseminada pelo governo.8
A “heroica vigarice”
Em sua estadia na URSS, Benjamin frequentou os círculos oposicionistas. Ele foi acolhido por Reich e Lacis, estabeleceu contato com o poeta Grigory Lelevitch (1901-1945) - que o colocou a par das críticas à burocratização do Partido formuladas pela Oposição Unificada9 - e conheceu o oposicionista de esquerda Karl Radek (1885-1939). Reich, ademais, traduziu para Benjamin um dos discursos contra a burocracia partidária do também oposicionista Lev Kamenev (1883-1936).
Apesar da proximidade com as ideias da oposição de esquerda, Benjamin não aderiu à tese elaborada pelos oposicionistas sobre o caráter proletário do Estado na URSS. Em nenhum momento de seus diários o regime soviético era definido como um “Estado operário”, tal como o definira Trotsky em 1923. Nas suas anotações, Benjamin fazia vagas alusões acerca de um “governo dos trabalhadores” ou da “ditadura do proletariado” que supostamente se desenvolvia na URSS. Contudo, em uma das poucas notas em que a questão do caráter do regime era tratada, a URSS era definida como um “capitalismo de Estado”, estruturado pela NEP e baseado no psiquismo individualista, na concorrência e na profunda desigualdade social:
Na Rússia, o capitalismo de Estado [Staatskapitalismus] conservou muitos traços da época da inflação. Sobretudo a incerteza jurídica no âmbito interno. Se, por um lado, a NEP é uma concessão oficial, de outro, ela é tolerada somente no interesse do Estado. Qualquer pessoa da NEP pode, de um dia para o outro, tornar-se vítima de uma reviravolta na política financeira ou até mesmo de uma passageira mudança de rumo na propaganda oficial. Não obstante há fortunas - colossais, do ponto de vista russo - sendo acumuladas em certas mãos. (…) Ao heroico comunismo de guerra, estes cidadãos contrapõem a heroica vigarice [em alemão: nepp]. (BENJAMIN, 1989, p. 85-86, grifos nossos)10
Tal definição, que divergia da análise oposicionista, não reapareceu em nenhum dos textos de Benjamin que se seguiram à estadia na URSS. Em “Sobre a situação da arte cinematográfica russa” e “Réplica a Oscar A. H. Schmidt”, ambos de 1927, Benjamin realizava a defesa de O encouraçado Potemkin (1925), filme de Sergei Eisenstein, sem, no entanto, criticar o regime. Já em “Moscou”, o autor critica a NEP e atribui a ela um caráter “restauracionista”11, porém não caracteriza a sociedade soviética como capitalista. Em “Moscou”, a única menção explícita ao caráter do Estado é a que segue:
A Rússia de hoje não é um Estado de classes, mas, antes, um Estado de castas. Um Estado de castas - isso significa que o valor social do cidadão não é definido pelo lado exterior de sua existência - como vestuário e moradia -, mas unicamente pela relação com o Partido. (BENJAMIN, 1987a, p. 173)
A definição do regime soviético como um “capitalismo de Estado”, realizada por Benjamin exclusivamente no Diário de Moscou, situava a sociedade soviética no âmbito das relações capitalistas e dos processos de modernização acelerada. Se a Oposição Unificada objetivava o redirecionamento do Partido Comunista soviético - uma demanda, segundo Benjamin (1989, p. 23), digna do otimismo mobilizado pelos fanáticos -, a posição deste parecia pleitear a revolução da estrutura social. Como combater os homens da NEP e a burocracia estatal? Como superar a política de culto aos líderes e a fetichização da revolução? Qual seria, portanto, a antítese da “estetização da política”?
A estetização da miséria
No texto da conferência “O autor como produtor”, escrito em 1934, sete anos após a estadia de Benjamin na URSS e paralelamente ao ensaio “A obra de arte…”, o tema da “estetização da política” aparentemente reaparece - porém, como crítica da suposta arte de esquerda. Benjamin, ao referir-se à produção fotográfica aglutinada sob o nome de Nova Objetividade, escreve que
Ela [a produção fotográfica da Nova Objetividade] se torna cada vez mais diferenciada, cada vez mais moderna, e o resultado é que não é capaz de fotografar nenhum bairro miserável, nenhum monte de lixo, sem o transfigurar. Para não falar já do fato de que, perante uma barragem ou uma fábrica de cabos elétricos, ela seria incapaz de dizer outra coisa que não fosse: o mundo é belo. (…) Ela conseguiu, de fato, fazer até da miséria um objeto de prazer, captando-a e tratando-a de acordo com o perfeccionismo da época. (BENJAMIN, 2017, p. 95, grifos nossos)
Como no caso do fascismo, a “estetização da miséria” operada pela Nova Objetividade era o resultado da utilização de novos aparatos técnicos de reprodução para finalidades conservadoras. O verniz crítico que tal tendência artística possuía ocultava, segundo Benjamin, o conservadorismo em relação à transformação dos meios de produção e à superação do trabalho especializado. Benjamin (2017, p. 96) propunha, assim, a junção entre o trabalho do escritor e o do fotógrafo, com o intuito de articular a fotografia com uma legenda que explicitasse o seu propósito crítico e o seu “valor de uso revolucionário”. Explicitava-se, no campo estético, um debate sobre a superação da divisão social do trabalho.
Benjamin e o projeto factográfico
Tanto em “O autor como produtor” quanto em “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin posicionava-se pela reestruturação do modo de produção e de circulação artística. Tal proposta combatia a “estetização da miséria” da Nova Objetividade, além de acentuar os limites de uma suposta arte de esquerda que não fazia mais do que mudar a temática de suas obras, deixando intactos os processos produtivos. Em “O autor como produtor”, lê-se:
Várias oposições, na literatura, que em épocas mais afortunadas se fertilizavam reciprocamente, transformaram-se em antinomias insolúveis. (…) Assim, há uma disjunção desordenada entre a ciência e as belas letras, entre a crítica e a produção, entre a cultura e a política. O jornal é o cenário dessa confusão literária. Seu conteúdo é a matéria, alheia a qualquer forma de organização que não lhe seja imposta pela impaciência do leitor. Essa impaciência não é só a do político, que espera uma informação, ou a do especulador, que espera uma indicação, mas, atrás delas, a impaciência dos excluídos, que julgam ter direito a manifestarem-se em defesa dos seus interesses. (…) Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada dos leitores, que se veem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento dialético nesse fenômeno: no declínio da dimensão literária da imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre o autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a escrever, descrever, prescrever. Como especialista, se não numa área do saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções - ele tem acesso à condição de autor. O próprio mundo do trabalho toma a palavra. (BENJAMIN, 2017, p. 88, grifos nossos)
O trecho citado aparece como uma referência à primeira versão de “A obra de arte…”, escrita em 1934, porém não publicada. Nela, lê-se que
Hoje em dia, raros são os europeus inseridos no processo de trabalho que em princípio não tenham uma ocasião qualquer para publicar um episódio de sua vida profissional, uma reclamação ou uma reportagem. Com isso a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-se num escritor. Num processo de trabalho cada vez mais especializado, cada indivíduo se torna, bem ou mal, um perito em algum setor, mesmo que seja num pequeno comércio, e como tal pode ter acesso à condição de autor. O mundo do trabalho toma a palavra. Saber escrever sobre o trabalho passa a fazer parte das habilitações necessárias para executá-lo. A competência literária passa a fundar-se na formação politécnica, e não na educação especializada, convertendo-se, assim, em coisa de todos. Tudo isso é aplicável sem restrições ao cinema, onde se realizaram numa década deslocamentos que duraram séculos no mundo das letras. Pois essa evolução já se completou em grande parte na prática do cinema, sobretudo do cinema russo. (BENJAMIN, 2012, p. 81)
A finalidade da passagem citada é ilustrar a noção de factografia proposta pelo produtivista russo Sergei Tretiakov (1892-1937).12 Os trechos citados são uma explicação da proposta factográfica desenvolvida pelo movimento produtivista russo a partir de 1927.13 Curiosamente, enquanto em “O autor como produtor” Benjamin refere-se diretamente à Tretiakov, em “A obra de arte…” o produtivista não é mencionado. Qual era a razão da supressão do nome de Tretiakov, sendo que Benjamin estava, efetivamente, explicando a proposta dele e propondo-a como uma resposta para a arte de esquerda?
Em sua estadia em Moscou, Benjamin teve contato com Tretiakov em um dos debates sobre a peça de Meyerhold, O inspetor geral, ocorrida em 3 de janeiro de 1927. Sabe-se que Benjamin seguiu acompanhando o trabalho do escritor russo, pois em “O autor como produtor” ele refere-se às visitas de Tretiakov aos Kolkhozes, iniciadas em 1928.14 Ademais, quando tentou publicar “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” na Rússia, Benjamin enfatizou a importância que atribuía à leitura de seu ensaio por Tretiakov. Em carta à atriz alemã Grete Steffin (1908-1941), de 1936, Benjamin (2017, p. 226, grifos nossos) escreveu:
[Bernhard] Reich não coloca quaisquer problemas quanto ao método [do ensaio “A obra de arte…”], e da carta [que Reich enviara a Benjamin] só se depreende que, para ele, eu vou “longe demais”, que as coisas “não devem ser bem assim”, etc. Gostaria, isso sim, que Tretiakov o lesse [o ensaio “A obra de arte…”]. Foi esse, desde o princípio, o conselho de [Slatan] Dudov [1903-1963], que aprecia muito o trabalho e me disse logo que Reich não o aceitaria. Suponho que conhece bem Tretiakov e lhe poderá dar o manuscrito (gostaria, é claro, que esse não se perdesse).
A carta de Benjamin não chegou a Grete Steffin ou a Tretiakov. Aproximadamente um ano depois, em 16 de julho de 1937, Tretiakov foi preso pela polícia política do regime e enviado para um campo de trabalhos forçados, acusado pelo governo de ser um espião. Por que Tretiakov era tomado por Benjamin como um interlocutor privilegiado de seu texto? Em que consistia a proposta factográfica, elaborada, dentre outros, pelo produtivista russo?
O “Tolstói coletivo”
No primeiro número da revista NovaFrente de Esquerda das Artes (Novy LEF), de 1927, Tretiakov publicou um artigo intitulado “O novo Leon Tolstói”. No artigo, que lançou as bases do projeto factográfico, ele questionava a função social do escritor e a forma romance:
Alguns estão desconsolados. Eles reclamam: onde está a arte monumental da revolução? Onde estão as obras-primas do “épico vermelho”? Onde estão nossos Homeros e Tolstóis vermelhos? E existem os otimistas que replicam: Espere! A revolução é sempre “indelicada” no que se refere à arte. Dê um tempo às coisas. Os futuros Goncharovs e Leon Tolstóis estão entrando na escola primária. E, por hora, contente-se com os Tolstóis provisórios: Seifullina, Pilniak e Veresaev. Eles podem não ser tão bons assim; “Virineia” não é exatamente “Guerra e Paz”, mas sejamos pacientes. (TRETIAKOV, 2006b, p. 47, tradução nossa)15
Para Tretiakov, a espera por um “Tolstói vermelho” se fundamentava na noção do escritor como “professor da vida”.16 A “demanda” por um “novo Tolstói” seria, nesse sentido, a solicitação do surgimento de um indivíduo que pudesse instruir intelectual e sensivelmente o proletariado soviético com sua produção literária. Tanto para os “desconsolados” quanto para os “otimistas”, a figura do escritor como uma espécie de gênio capaz de iluminar as massas não era questionada.
Tal figura, no entanto, contradizia o imperativo da reestruturação dos processos de trabalho preconizada pelo movimento da tomada do poder em 1917; posição que era reivindicada, por exemplo, em ABC do comunismo, escrito em 1920 por Nikolay Bukhárin (1888-1938) e Evgeni Preobrajensk (1886-1937). Para Tretiakov, a figura do escritor pertencia ao modo de vida burguês e a reivindicação de tal figura consistia na reposição da cisão entre o trabalho intelectual e o manual, além da manutenção do processo de produção literária individual, em detrimento de uma prática reflexiva coletiva. De que forma seria possível, então, reestruturar o trabalho literário e superar a figura “fetichizada” do autor, ao invés de repô-la mecanicamente, transferindo-a do contexto burguês para o soviético?
Segundo o produtivista, a resposta para tal questão residia na imprensa:
Hoje o jornal é para o ativista soviético o que o romance foi para a inteligência liberal russa ou o que a bíblia foi para os cristãos medievais: o guia para todas as situações da vida. Ele abarca os eventos, suas sínteses e diretrizes em todos os setores da vida social, política, econômica e do front do cotidiano. (TRETIAKOV, 2006b, p. 49)17
O jornal, portanto, substituíra as “belas letras” no papel de organizador da consciência coletiva e no papel de “professor da vida”: segundo Tretiakov, a produção literária deveria direcionar-se para o jornal. Ele escreveu: “Nós não temos razão alguma para esperar por novos Tolstóis. Nós temos a nossa literatura épica, que é o jornal” (TRETIAKOV, 2006b, p. 46).18
Para Tretiakov, a estratégia para a superação do estado da imprensa soviética consistiria, assim, na formação do público para a leitura dos jornais, na atração dos escritores profissionais para a atividade jornalística e no aperfeiçoamento dos jornais, que permitiria que a imprensa cumprisse com excelência o papel de formadora da consciência que os romances cumpriram no período burguês.19
O projeto da reestruturação da atividade literária proposta pelo produtivista não consistia, contudo, apenas no direcionamento dos escritores profissionais para as redações e no melhoramento dos jornais. Tretiakov (2006b, p. 49) defendia que “toda a massa anônima que escreve para os jornais, dos correspondentes-operários até o redator do artigo principal: eis o Tolstói coletivo de nosso tempo”.20
Para o produtivista, o “Tolstói coletivo” seria o resultado da atividade literária coletiva das “massas anônimas” soviéticas. Logo, o projeto de aperfeiçoamento da imprensa não implicaria apenas a reforma dos processos de produção dos jornais ou a profissionalização dos escritores, mas a reestruturação radical das formas de produção e recepção dos relatos.21
O produtivista propunha a superação do papel histórico do romancista, cuja atividade supostamente instruía as “massas anônimas”. Tal papel deveria ser substituído pela atividade criadora da própria classe trabalhadora, que deveria refletir e escrever sobre as contradições da sociedade soviética. Tretiakov propunha, em suma, a abolição da figura do herói e do líder em prol da autodeterminação e da prática reflexiva do proletariado soviético. A difusão da produção dos relatos, portanto, seria um dispositivo para a formação da autoconsciência dos proletários.
Em síntese, Tretiakov definia, em “O novo Leon Tolstói”, um novo método de trabalho documental, denominado de factografia. A noção de factografia - que significava, literalmente, “grafia dos fatos” - preconizava a reestruturação da produção literária russa a partir do abandono da forma romance (fundamentada no drama, na narrativa ficcional e no subjetivismo) e em prol da organização dos materiais, dos relatos sobre o cotidiano e da exposição do processo produtivo dos objetos. Propunha, por conseguinte, uma espécie de “soviete literário”, no qual os operários e camponeses poderiam publicizar, criticar, discutir e resolver as questões referentes à reorganização do modo de vida [byt].
No contexto de 1927, ano que marcava o decênio da Revolução de Outubro, o produtivista pretendia recuperar um dos ideais do período da tomada do poder. Ele recuperava a noção de que o proletariado deveria ser o principal sujeito do processo revolucionário e da reflexão política. À “heroicização” do processo revolucionário elaborada pela burocracia partidária e pela AKhRR, Tretiakov opunha o trabalho reflexivo com o material e o exame crítico do modo de vida soviético. Contra a estética contemplativa e a recepção fetichizada das obras, o produtivista defendia o trabalho coletivo fundamentado na reflexão e na prática política.
O grupo LEF e a crítica da arte
A reordenação radical do modo de produção e de circulação artística, sistematizada a partir de 1927 na ideia da factografia, era uma ideia elaborada coletivamente pelo movimento produtivista desde o seu surgimento, em 1921. O produtivismo soviético era uma radicalização marxista do construtivismo que propunha a superação da arte de cavalete - e do psiquismo contemplativo que ela supostamente engendrava -, em benefício de uma arte operativa e politicamente engajada que serviria ao avanço do processo revolucionário, na medida em que reestruturaria psiquicamente os sujeitos e os processos de trabalho.
Como forma de combate à NEP e aos esquemas de gestão consoantes à divisão social do trabalho para a produção de mercadorias, o grupo de teóricos e artistas construtivistas adotou a plataforma produtivista, que se baseava num programa de introdução dos artistas no processo produtivo, isto é, nas fábricas, para a reorganização da produção e das relações de trabalho, que deveriam ser reorientadas para a produção de objetos socialmente úteis. Em 1923, o grupo produtivista fundou a LEF.
Ao longo de sua história, a LEF combateu a estética contemplativa difundida pela AKhRR, a NEP, a cultura burguesa dos nepmen e o “culto a Lênin”.22 A LEF constituiu, portanto, uma frente de combate à burocracia estatal. Como se percebe, muitos dos aspectos sociais combatidos pela LEF coincidem com os pontos criticados por Benjamin durante sua visita à URSS. Um deles é particularmente relevante para a compreensão das noções de “estetização da política” e de “politização da arte”, articuladas por Benjamin em “A obra de arte na época…”. Trata-se da análise dos produtivistas a respeito do desenvolvimento histórico das artes visuais nas sociedades burguesas.
Em “A vida cotidiana e a cultura do objeto”, publicado em 1925, o produtivista Boris Arvatov (1896-1940) afirmava que
a maioria dos marxistas que discutiram o problema da cultura proletária o abordaram de modo puramente ideológico ou, no mínimo, tomaram a ideologia como o ponto de partida de suas investigações. As perspectivas sobre a cultura dominante no campo marxista foram caracterizadas por um peculiar “ideologismo”. (ARVATOV, 1997, p. 119)23
Arvatov apontava que a concepção de cultura e de arte da “maioria dos marxistas” centrava-se apenas em seus aspectos ideológicos, ou seja, na temática das obras, e não em seus aspectos materiais constitutivos. Era tal concepção, por exemplo, que permitia a manutenção do “valor de culto” realizada pelas escolas artísticas figurativistas e endossada pelo Partido. Qual seria, então, o “tratamento materialista desta questão”? Para Arvatov, qualquer abordagem sobre os objetos estéticos deveria partir do pressuposto materialista de que a produção artística se situa historicamente entre as demais formas produtivas de uma sociedade.
Tal ideia era desenvolvida por Tretiakov no texto “A arte na revolução e a revolução na arte”, de 1923. No artigo, Tretiakov afirmava que a arte e, sobretudo, a arte de cavalete só puderam proliferar na sociedade burguesa como uma espécie de complemento perverso da alienação do trabalho engendrada pela expropriação dos meios de produção. Comentando as palavras de ordem veiculadas pelo governo bolchevique em 1923, Tretiakov (2006a, p. 15) argumentava:
Existem slogans como Arte para todos!; Arte para as massas!; Arte nas ruas!. Estes slogans soam vagos se levarmos em conta que existem dois aspectos na arte: a fixação de experiências e sensações privadas em um material (a criação), e o efeito das formas criadas no psiquismo humano (a percepção). Nas condições da sociedade burguesa, estes dois aspectos são distribuídos entre dois grupos distintos. O grupo daqueles que percebem - uma audiência passiva que devota a maior parte da vida a um trabalho inútil e indesejado, e que se esforça para preencher suas horas de lazer com alguma atividade que ofereça prazer e interesse (…). As pessoas estão procurando por espaços nas quais elas possam escapar da monotonia e insipidez do cotidiano. E pintores, poetas, músicos e atores vieram em seu resgate. (…) A arte constituiu-se como um truque com qualidades hipnóticas. Ela é um narcótico que cria na psique humana uma vida paralela à vida concreta.
No contexto da NEP, que mantinha a divisão social do trabalho e a produção voltada para a fabricação de mercadorias, a razão de existir do trabalho artístico era a manutenção desse estado de coisas. Nas palavras de Tretiakov (2006a, p. 18):
Temos que lembrar que é a praga do trabalho forçado que atualmente gerou essa necessidade [a necessidade da “arte como um narcótico”, conforme definida previamente no artigo]. Foi tal praga que forçou as pessoas a assimilarem a neblina da “cultura burguesa”, que incute a passividade e a contemplação.24
Analogamente, Arvatov escrevia em 1925 que a manutenção de uma relação passiva entre os sujeitos e o produto do trabalho social, concretizado em objetos, era o principal problema para o avanço do processo revolucionário. O problema da superação da arte de cavalete, assim, era pensado como o problema da superação do objeto-mercadoria e do seu fetichismo. O processo de superação da arte se transformava no próprio processo da reestruturação das relações de produção, da construção do poder operário e da reordenação psíquica. Segundo Tretiakov (2006a, p. 17, grifos do autor), “A alegria em transformar a matéria bruta em formas socialmente úteis (…): é isso que Arte para todos! deveria ser”.25
A superação da “forma espectador”
Talvez seja possível situar os produtivistas entre um grupo minoritário que, durante o processo revolucionário russo, procurou questionar as bases do pensamento burguês no seio do movimento operário e, especificamente, partidário. Se, em 1924, Evgeny Pachukanis (1891-1937), rechaçando qualquer tentativa teórica de fundamentar um direito socialista, analisou o Direito como uma construção especificamente burguesa, cujo núcleo articulador seria a “forma sujeito” e o estabelecimento de contratos que daí decorreriam entre indivíduos juridicamente livres e abstratamente iguais (PACHUKANIS, 2017), talvez seja possível pensar que a LEF e os teóricos produtivistas operaram uma crítica análoga no campo artístico.
Também na arte concebida na ilustração como “produção por liberdade” e contraposta, no esquema kantiano, ao artesanato, entendido como atividade remunerada e penosa,26 o pressuposto é a “forma sujeito”, isto é, um sujeito contemplativo e distante do processo produtivo. Essa concepção específica de experiência estética, calcada na oposição à atividade interessada, realizou-se historicamente nas sociedades burguesas estruturadas por meio da divisão social do trabalho e voltadas para a produção de mercadorias. Talvez seja possível afirmar, então, que, de acordo com a teoria produtivista, o núcleo articulador da arte burguesa é a “forma espectador”, que deveria ser superada no decorrer do processo revolucionário através da reorganização das relações de produção.
É possível apontar, nesse sentido, que também Benjamin visava a superação da divisão social do trabalho ao afirmar que “o comunismo politiza a arte”. Em uma das anotações feitas durante o processo de elaboração de “A obra de arte…”, lê-se que:
A produção cinematográfica tem uma enorme importância para a liquidação da diferença entre trabalho manual e intelectual. As leis da representação no cinema exigem do ator uma total sensualização [sic] dos reflexos e das reações mentais; e exigem também dos operadores um trabalho altamente intelectualizado. A divisão do trabalho surge na vida a partir do momento em que se manifesta uma diferença entre trabalho manual e intelectual. Se essa afirmação de A ideologia alemã faz sentido, então nada servirá melhor à liquidação da divisão do trabalho e do desenvolvimento de uma formação politécnica do homem do que o apagamento das diferenças entre trabalho manual e intelectual. Hoje podemos segui-lo de uma forma particularmente evidente na produção cinematográfica, ainda que não exclusivamente nela. (BENJAMIN, 2017, p. 245)
“Politizar a arte”, portanto, implicava não apenas transformar sua temática e tratá-la a partir de um “estilo moderno”, tal como feito pela Nova Objetividade. “Politizar a arte”, segundo a posição benjaminiana, era superá-la como atividade especializada, questionando e modificando as condições de produção, circulação e realização do valor na produção artística. Lida dessa maneira, a frase final do ensaio “A obra de arte…” adquire outra dimensão: se a política fascista operava a partir da criação de representações visuais que simulavam a realização de uma “revolução” e pacificavam a classe trabalhadora, a resposta comunista deveria se localizar na superação da lógica contemplativa e na reestruturação radical do psiquismo e das relações produtivas.27
O realismo stalinista
Ainda que “A obra de arte…” tenha sido um texto concebido para combater a política fascista, talvez seja possível afirmar que a matriz das categorias “estetização da política” e “politização da arte” foram tributárias da análise de Benjamin sobre a URSS e a ela também se referem. Tais conceitos parecem ser, efetivamente, uma espécie de corolário do diálogo de Benjamin com o grupo LEF. Assim, se ele afirmava, na primeira parte do ensaio, que os conceitos ali introduzidos “diferenciavam-se dos [conceitos] mais recorrentes [na teoria da arte tradicional] pelo fato de serem completamente inutilizáveis para os objetivos do fascismo” (BENJAMIN, 2017, p. 11), o mesmo se poderia dizer quanto à inutilidade de tais conceitos para os objetivos do regime stalinista.
Com efeito, no contexto do recrudescimento da repressão política, consubstanciada na instauração dos Processos de Moscou (1935-1938) e na fundação do movimento stakhanovista (1935), a “estetização da política” desempenhava um papel-chave, seja na “espetacularização” dos julgamentos dos opositores ao regime, seja na promoção do otimismo e do trabalho. Nesse cenário, quais conceitos informavam e justificavam tal atividade artística?
Além da noção de “realismo heroico”, elaborada pela AKhRR, a publicação, em 1933, de uma coletânea de textos de Marx e Engels sobre arte e cultura parece ter contribuído decisivamente para a elaboração do discurso oficial. Tratava-se da primeira compilação realizada sobre o tema e cuja organização fora feita pelos filósofos húngaros György Lukács (1885-1971) e Mikhail Lifschitz (1905-1983), no Instituto Marx-Engels-Lênin, dirigido por David Riazanov (1870-1938).
Esta compilação marcava a “canonização” de uma estética “propriamente marxista”, isto é, de uma leitura bastante particular deste conjunto de fragmentos de Marx e Engels e patrocinada pelo governo soviético (STRADA, 1989, p. 120). A compilação estruturava-se em temas (como “Concepção materialista da história da cultura”, “A arte na sociedade de classes”, “O partido da classe operária e o ethos pequeno-burguês dos literatos” etc.) que agrupavam trechos das obras de Marx e Engels de forma não cronológica.28 O primeiro tema da coletânea, “Problemas gerais da criação artística”, apresentava como primeiro subtema o assunto “Ideologia e realismo”, a partir do qual se podia deduzir, como efetivamente aconteceu, uma suposta concepção genuinamente marxista sobre o realismo nas artes.
Tal concepção partia da defesa, realizada por Engels, de uma literatura que explorasse as nuances psíquicas das personagens e as contradições do quadro histórico no qual se desenvolviam as ações da obra. Conforme Engels, em carta à escritora Margaret Harkness (1854-1923), de 1888,
Quanto mais dissimulados os pontos de vista do autor, melhor será para a obra artística. O realismo a que me refiro se manifesta, inclusive, independentemente dos pontos de vista do autor. (ENGELS, 2010, p. 68)
Engels criticava, na carta, a suposta caricatura realizada por Harkness da classe operária no romance A city girl (1887). Segundo Engels, ao mesmo tempo que as personagens trabalhadoras eram representadas por Harkness de maneira uniforme e sem vida, elas eram investidas de um discurso político radical que as tornava caricaturais. Em oposição a essa estratégia narrativa, Engels propunha que o escritor deveria focar na investigação e na representação do drama humano em todas as suas nuances e contradições. A postura artística reivindicada por ele, chamada de “realista”, era definida como a representação de “caracteres típicos em circunstâncias igualmente típicas” (ENGELS, 2010, p. 67).
Em 1934, o escritor A. I. Stetsky parafraseava a definição de realismo de Engels para defender as representações literárias da classe trabalhadora russa feitas durante a primeira metade do decênio de 1930. Ironicamente, a defesa de Stetsky reproduzia precisamente as construções literárias caricaturais criticadas por Engels. Em seu discurso no plenário do Congresso dos Escritores, que definiu o “realismo socialista” como a estética oficial do regime, ele afirmou:
Nós todos conhecemos o princípio, formulado por Engels, de que o artista deve representar caracteres típicos em circunstâncias igualmente típicas. E se nós tomarmos como exemplo os representantes dos trabalhadores, dos camponeses das fazendas coletivas e dos membros do Exército Vermelho que estiveram conosco nesta tribuna, veremos que ninguém carrega tão notavelmente a verdade deste princípio como eles o fazem. Isso porque essas pessoas foram criadas na titânica luta de classes que tem sido travada em nosso país estes anos. (STETSKY, 2005)29
A definição de realismo realizada por Engels no século XIX era, assim, descontextualizada e trazida à tona na URSS de 1930.
A intervenção de Stetsky no Congresso, como a de diversos outros escritores e militantes comunistas, foi editada e publicada na URSS em 1935 (SCOTT, 1980). Difundia-se, assim, um conceito específico sobre o “realismo” nas artes, bastante distinto do conceito de realismo elaborado por teóricos produtivistas que eram, no decênio de 1930, marginalizados e reprimidos pelo governo, na medida em que, para além do domínio da representação, explicitavam as contradições do processo produtivo na arte, tal como foi retomado por Benjamin em “O autor como produtor”.
A noção de realismo, “retomada” por Stetsky e Lukács30, partilhava com os “artistas de cavalete” a defesa da estética contemplativa. Tais teóricos não questionavam os esquemas estruturais de produção e de circulação das obras, conforme questionara o movimento produtivista anos antes; eles detinham-se, pelo contrário, na análise semântica dos textos, segundo a economia da representação.31
Crítica da arte/crítica da mercadoria
A crítica empreendida por Benjamin sobre os novos aparatos de reprodução técnica foi uma pedra angular de sua teoria social. Em tal crítica, apresentava-se um projeto investigativo sobre a constituição do regime de circulação das mercadorias e da reestruturação perceptiva operada na modernidade. Assim, Benjamin parecia retomar e desenvolver, em “A obra de arte…”, o projeto de crítica da “mercadoria-arte”. Esta, que fora constituída no decorrer do desenvolvimento capitalista, era endossada pela inflexão capitalista da URSS através do estabelecimento da NEP. A repressão ao movimento produtivista, que fazia a crítica do fetichismo da arte e da mercadoria em geral, acentuou o endosso da “mercadoria-arte”. Com efeito, é razoável perguntar: teria sido historicamente possível a crítica radical acerca da “mercadoria-arte” e de suas formas institucionais sem o processo da Revolução de Outubro, que em seus primórdios visava e supostamente possibilitava a superação da divisão social do trabalho?
Adotando o partido crítico de O capital, Benjamin situava os objetos de arte entre as demais mercadorias e formas de produção de valor sociais. Daí decorrem as analogias elaboradas por ele entre, por exemplo, a forma mercadoria, objeto da contradição interna entre valor de uso e valor, e a forma artística, internamente cindida entre a contradição valor de uso e valor de exposição. Também parece existir uma analogia entre a proposição de Benjamin, de que o desenvolvimento das novas formas de reprodução técnica ensejam as condições para uma possível reestruturação psíquica e social, e a ideia de Marx de o desenvolvimento capitalista produzir, mediante sua expansão produtiva e sua configuração de classes, as possibilidades de sua própria superação por meio da ação política revolucionária (MARX, 1985).
E, estendendo a comparação, por que não afirmar que a “estetização da política”, praticada pelo fascismo, é uma espécie de radicalização do fetichismo da mercadoria? Tal radicalização consistiria, assim, não apenas no mascaramento do processo de produção dos objetos no capitalismo, os quais parecem ganhar vida própria, mas também no mascaramento do processo político, que passa a ser contemplado ao invés de praticado. De toda maneira, a “estetização da política” se apresenta como fruto do esmagamento dos movimentos de massa e dos esquemas de auto-organização política - seja na URSS, na Alemanha nazista ou na Itália fascista. Nesses processos de repressão, marcados pela lógica da modernização acelerada, o proletariado aparenta se comportar diante da produção simbólica tal como Marx descreveu o comportamento da humanidade frente ao valor de troca: “[O movimento social dos homens] possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controlá-las” (MARX, 1985, p. 72-73).
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Notas
Autor notes
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