ARTIGO
Recepção: 24 Janeiro 2019
Aprovação: 01 Agosto 2019
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2020.153946
Resumo: O artigo analisa a questão da discriminação racial, abordando o tema no contexto da divulgação e implementação dos direitos constitucionais, no período de 1829 a 1833. Investiga-se, em especial, de que forma o direito de cidadania contribuiu para o surgimento da discriminação racial como agenda pública e ensejou novas maneiras de fazer política. Usaram-se como fontes jornais que adotavam enfoques políticos e raciais, os quais foram tomados não somente como fornecedores de informações, mas também como agentes, por sua capacidade de influir nos acontecimentos. Concomitantemente, foram aplicados à análise insights provenientes de estudos da área de direito e história que enfatizam a importância de mudanças da ordem jurídica para a compreensão da história política. Concluiu-se, principalmente, que a extensão do direito de cidadania aos homens livres de cor contribuiu para ampliar a influência política desse grupo, em um contexto de crescente partidarização da política.
Palavras-chave: Brasil Império, discriminação racial, cidadania, Constituição de 1824, imprensa no século XIX.
Abstract: This article analyzes the matter of racial discrimination in the context of the dissemination and implementation of constitutional rights between 1829 and 1833. It focuses on how the right to citizenship contributed to the emergence of racial discrimination as a public agenda and gave rise to new ways of doing politics. As sources of research, we use newspapers that adopted political and ethnic-racial approaches, which are analyzed not only as information disseminators but also as agents due to their ability to influence events. At the same time, we use insight from studies that connect law and history to study the importance of legal changes in the understanding of political history. The main conclusion is that the extension of the citizenship right to the free black population contributed to increase the political influence of this group amidst growing political partisanship.
Keywords: Brazil Empire, racial discrimination, citizenship, Brazilian Constitution of 1824, press in the 19th century.
Introdução
Diz-se, porém, que estes mesmos liberais, subindo ao poder, têm espezinhado, perseguido e apartado dos empregos públicos os pardos (…). O princípio da igualdade, garantido pela Constituição do Estado, tem sido guardado pelo governo que, nas suas escolhas, nunca olhou à origem e ao sangue, mas sim as qualidades morais dos eleitos.1
A citação refere-se à defesa do governo da Regência, acusado de “discriminação por cores”, denominação equivalente hoje à discriminação racial.2 Publicada, em 1833, no jornal Aurora Fluminense, cujo redator era Evaristo Ferreira da Veiga, líder político e intelectual do liberalismo moderado, esta declaração, de certa maneira, era a fala do próprio governo da Regência. O trecho citado nos levou à seguinte questão: por que a discriminação racial tornou-se um assunto público?3 Algumas possíveis respostas provêm de estudos sobre os primeiros jornais com enfoques raciais que denunciaram a discriminação, por exemplo, O Homem de Cor e O Brasileiro Pardo, publicados por um breve período do ano de 1833.
Thomas Flory (1977, p. 199-224), em artigo publicado na década de 1970, destaca a filiação desses jornais à política tradicional, além de que, dela, parece decorrer a dimensão pública do debate. A observada interação entre política e questão racial, entretanto, foi pouco explorada por Flory, que concluiu ser essa imprensa menos um veículo de autoexpressão dos “mulatos” e mais de provocações racistas que visavam a metas políticas convencionais. Os trabalhos publicados no começo do século XXI, por outro lado, focaram especialmente aspectos culturais e sociais da luta contra a discriminação racial, como a presença da linguagem de uma identidade racial (GRINBERG, 2009, p. 269-337; LIMA, 2002, p. 23-37), o uso da “cor” ou “raça” como recurso momentâneo para atingir uma cidadania desracializada (AZEVEDO, 2005, p. 297-320) e a atuação organizada dos homens de cor, muito antes do que comumente se considera (PINTO, 2010).
Se, por um lado, é inegável a importância desses estudos para compreender a natureza das lutas contra a discriminação racial, por outro, observa-se que a conexão entre política e questão racial tem sido pouco explorada. Este trabalho pretende contribuir para evidenciar essa conexão, analisando a questão da discriminação racial inserida em um movimento mais amplo de divulgação e implementação dos direitos constitucionais de 1829 a 1833. Foca-se, particularmente, a maneira pela qual os direitos constitucionais, em especial o de cidadania, impulsionaram a luta contra a discriminação racial e ensejaram novas maneiras de fazer política. Concomitantemente, investiga-se como a efetivação da ideia de cidadãos iguais perante a lei, apenas diferenciados pelos “talentos” e “virtudes”,4 colidia com uma sociedade ainda marcada pela organização de corpus, em que as pessoas se diferenciavam hierarquicamente pela cor.5
A noção de “esfera pública” é central para o trabalho. Jürgen Habermas (1984) a definiu como um espaço conceitual constituído por um público de interlocutores entre a sociedade civil e o Estado. Entretanto, diferentemente dos interlocutores burgueses independentes e iguais6 estudados pelo autor, os atores da esfera pública brasileira oitocentista eram, em boa parte, políticos7 e ao mesmo tempo jornalistas, o que levava ao protagonismo dos interesses do Estado na esfera pública. Isto, porém, não significa que as demandas da sociedade civil, que era representada por grupos com diferentes graus de poder político e por jornalistas alijados da política formal, não fossem importantes, pois esse foi um período de intensa atividade jornalística e considerável liberdade de expressão8. A cisão entre Estado e sociedade civil na esfera pública, como propõe Habermas, embora importante para compreender a dinâmica do processo político, deve ser mais nuançada no Brasil entre o final da década de 1820 e os primeiros anos da década de 1830.
A periodização, nos anos entre 1829 e 1833, abarca a divulgação dos novos direitos constitucionais, o surgimento do debate público sobre a discriminação racial e o arrefecimento dessa discussão na imprensa. Destacaram-se nessa cobertura o jornal Universal, de Minas Gerais, e os jornais Aurora Fluminense, O Homem de Cor e O Brasileiro Pardo, do Rio de Janeiro. A perspectiva analítica adotada possibilita lançar novos enfoques sobre a utilização dos jornais como objeto de estudo. Sob esse ângulo, a imprensa não é mera transmissora de informações, mas agente de transformação e portadora de um poder político, na medida em que exerceu alguma direção ou propósito (EISENSTEIN, 1979; MIGUEL, 2002; PASLEY, 2001).9 A essa análise acrescentam-se as contribuições da área de história do direito, em especial os estudos que abordam como as mudanças de ordem jurídica contribuem para entender a história política (CAMPOS, 2018; CLAVERO, 1977; GARRIGA; SLEMIAN, 2013; HESPANHA, 2012), tendência apontada atualmente como uma virada jurídica na história política (LEMPÉRIÈRE, 2017).
O restante do artigo foi organizado em quatro seções. A primeira discute a difusão do constitucionalismo na imprensa. A segunda aborda as diretrizes que visavam abolir o critério de cor na diferenciação entre os homens livres. A terceira analisa o modus operandi da política envolvendo os grupos políticos e os homens de cor. A última conclui o trabalho analisando como a extensão do direito de cidadania à população livre de cor contribuiu para ampliar a influência política desse grupo, em um contexto de crescente partidarização da política. De maneira mais ampla, o trabalho pretende contribuir para o entendimento de uma dinâmica política mais participativa no Brasil do século XIX, tida, muitas vezes, como uma arena de debates e decisões restrita aos interesses das elites políticas.
A imprensa e a nova ordem constitucional
Na Europa continental, a partir do final do século XVIII, as constituições surgiram em um contexto de desmonte dos estatutos jurídicos das sociedades feudais, como o fim do direito de posições de privilégio e de direitos a cargos públicos exclusivos a determinados grupos. Tais constituições estabeleceram os direitos dos cidadãos, organizaram e instituíram limites aos poderes políticos do Estado (HESPANHA, 2012, p. 487).
No Brasil, o constitucionalismo repercutiu a partir da Revolução do Porto de 1820. Os revolucionários do Porto defendiam a formulação de uma Constituição em Portugal e de um Poder Legislativo para conter os abusos do Antigo Regime. Nesse contexto, com a decretação da liberdade de imprensa, em 1821, em Portugal e estendida ao Brasil ainda colônia, houve um aumento considerável do número de jornais no Rio de Janeiro que divulgavam as notícias do Porto e as ideias constitucionais (NEVES, 2009a, p. 181-205). Mas foi com a carta outorgada por D. Pedro I em 1824 que a vida política foi modificada consideravelmente. Adotou-se como forma de governo uma monarquia constitucional, pautada na divisão dos poderes e com eleições frequentes para deputados, senadores, membros dos Conselhos Gerais das Províncias, vereadores e juízes de paz.10
A Carta de 1824 estabeleceu que todos os homens livres nascidos no Brasil eram cidadãos, incluindo nominalmente os libertos e ingênuos.11 Estabeleceu também que, excetuando as restrições,12 todos os cidadãos poderiam votar caso preenchessem o critério censitário de cem mil réis anuais para as eleições primárias, quantia baixa e acessível à população pobre. O percentual da população que votava, inclusive, era maior no Brasil do que em muitos países europeus. Por exemplo, usando como referência o censo de 1872, 13% da população total poderia votar. Por volta de 1870 este valor era de 7% e 2%, na Inglaterra e na Itália, respectivamente (CARVALHO, 2002, p. 30-31). Desse modo, tem prevalecido uma visão que identifica a existência de um governo representativo no Brasil do século XIX, tendo em vista os modelos existentes na época (DOLHNIKOFF, 2008). Do mesmo modo, a historiografia latino-americana também tem seguido essa tendência interpretativa de considerar o valor da legalidade liberal na construção das novas nações (TERNAVASIO, 2002).
No Brasil pós-Independência, portanto, emergia um novo mundo de experimentações e novidades, movido por novo vocabulário político e preceitos constitucionais difundidos na imprensa. A busca da legitimidade para o novo regime representativo e a nova relação entre governantes e governados era um projeto em construção e, por isso, permeado por tensões entre a teoria e a prática. Nesse sentido, optou-se por analisar o período por uma via alternativa, nem eufórica nem fatalista, mas que acentua uma dimensão experimental de aprendizagem na reconstituição das maneiras pelas quais os construtores imaginaram-se pertencentes a uma nova era constitucional (ADELMAN, 2014).
Uma característica marcante da cultura constitucional foi o entendimento do indivíduo como sujeito de direito, concepção produzida em meados do século XVII. Para entender melhor o impacto dessa transformação, é importante lembrar que, na cultura não constitucional do Antigo Regime, os indivíduos existiam como integrantes de corpus, estamentos ou qualquer outra entidade coletiva (CLAVERO, 1977, p. 12-22). Inserido numa sociedade de corpus, o cidadão do período colonial era um homem que deveria ter a “pureza de sangue” (ascendência europeia) e gozava de direitos específicos, como isenções fiscais (SANTOS; FERREIRA, 2009, p. 212-213). Por sua vez, a cidadania liberal pressupõe uma ruptura com estas interpretações tradicionais do corpo político, pois os cidadãos passaram a ser os indivíduos livres e iguais que constituiriam a comunidade imaginada da nação (SÁBATO, 1999, p. 11-16). Na sociedade brasileira do Oitocentos, marcada por hierarquias diferenciadas pela cor, tais concepções aparentemente coexistiram. Assim sendo, as práticas concretas mostram os limites teóricos da cidadania definida na Carta de 1824.
Em regimes constitucionais do século XIX, como o português, a liberdade era definida como o direito de fazer tudo o que não era proibido pela lei. Além dessa ideia de liberdade como obediência à lei, havia outra definição - a da liberdade-resistência - que trazia a possibilidade de resistir juridicamente ao poder do Estado. Ela se concretizou em vários tipos de liberdade, como a de petição, a de queixa contra as autoridades, além da liberdade de pensamento e comunicação (HESPANHA, 2012, p. 486).
No Brasil, esses direitos de liberdade-resistência também eram garantidos.13 Em especial, a liberdade de pensamento teve papel importante para a denúncia pública da discriminação racial, pois a imprensa gozou de considerável liberdade no Brasil do Oitocentos, sobretudo na época da Independência e no final do Primeiro Reinado. Porém, em outros momentos, como entre 1823 e 1824, o número de impressos foi reduzido significativamente devido à intensa perseguição aos jornalistas (REIS, 2016b, p. 36-63).
O final do Primeiro Reinado, período em que as denúncias de discriminação racial começaram a aparecer na imprensa, coincide com a fase de desenvolvimento do periodismo de caráter panfletário e de linguagem virulenta que refletia a disputa entre os grupos políticos (SODRÉ, 1966, p. 97). A expansão do número de periódicos e a relativa liberdade de imprensa, naquele momento, abriram espaço para a coletivização dos assuntos políticos e para que os novos homens advindos das elites em expansão e das camadas médias se lançassem na política. Essa publicização da política relaciona-se com a afirmação do moderno conceito de opinião no Brasil no Oitocentos. A opinião gradativamente deixava de significar apenas um juízo sobre algo, para adquirir o sentido de oposição à “autoridade dogmática”, constituindo-se em uma esfera da crítica que era usada como recurso da legitimação de práticas políticas. É interessante notar que neste contexto as opiniões individuais ou setoriais eram apresentadas como opinião geral (MOREL, 2005, p. 200-213; NEVES, 2009b, p. 1012-1014). Isto pode ser identificado na imprensa do Primeiro Reinado e do período regencial, cujos redatores buscavam legitimar seus argumentos falando em nome da opinião pública.
Constata-se o predomínio, nas primeiras décadas do jornalismo no Brasil, de uma “imprensa de opinião”, pois nela se travavam os debates e a divergência política, constituindo um espaço alternativo que formava opiniões públicas autônomas em relação às posições do governo (MOREL, 2012). Os jornalistas eram conhecidos por redatores e, sobretudo a partir do final da década de 1820, além das elites socioeconômicas, homens oriundos das camadas médias alijadas das posições formais de poder se lançaram ao jornalismo, o que indica uma progressiva ampliação da esfera pública na sociedade brasileira (PANDOLFI, 2007, p. 65).
O contato com as novas ideias constitucionais, porém, não se restringiu aos letrados. Havia diferentes maneiras pelas quais os impressos e suas ideias propagavam-se. Por intermédio dos correios, os jornais circulavam em outras províncias e, por isso, a área de abrangência de um jornal ultrapassava seu local de edição (JINZENJI, 2008). Mesmo numa sociedade iletrada, havia outros canais por meio dos quais a imprensa poderia atingir um setor mais amplo da população. Leituras coletivas em lugares públicos, como tabernas e cafés, amplificavam o alcance dos impressos. Um exemplo interessante dessa situação foi observado na Inglaterra do final do século XVIII, onde um jornal, ao estimar as leituras coletivas, reivindicou que seu número de leitores seria superior, entre cinco a sete vezes, à sua circulação nominal (PASLEY, 2001). Outra maneira de ampliar a circulação dos impressos, no Oitocentos, se dava pela força da oralidade. As informações e ideias contidas nos jornais se moviam de boca em boca, especialmente por se tratar de uma sociedade marcada por contatos face a face. Nesse cenário, os grupos políticos tinham que lidar com a opinião pública: importavam-se com ela e colocavam-se como seus porta-vozes.
O papel fulcral dos jornais na política, no Brasil do século XIX, tornou os redatores figuras políticas centrais na época. Muitos deles dirigiam os assuntos, forneciam a ideologia e eram porta-vozes de seu grupo. Esse foi o caso de Evaristo Ferreira da Veiga, principal redator do jornal Aurora Fluminense, que esteve envolvido diretamente nos embates em torno da discriminação racial no período estudado. Além de famoso tipógrafo e conhecido redator, ocupou cargos eletivos, como o de deputado por Minas Gerais, em várias legislaturas. O Aurora Fluminense circulou de 1827 a 1835, em geral três vezes por semana, com permanência longa e incomum para a época. Evaristo da Veiga tornou-se o seu principal redator, a partir de 1829, e um dos representantes mais importantes do grupo liberal moderado (ANDRADE; SILVA, 2012, p. 132-134). Esses liberais eram partidários da moderação, conceito inspirado no princípio político francês do juste milieu, que significava a busca de um equilíbrio racional entre os extremos (BASILE, 2004, p. 42).
Em Minas Gerais, destacou-se no debate da questão racial o redator Bernardo Pereira de Vasconcelos, do jornal Universal. Lançado em 1825, circulou por 17 anos, tendo Vasconcelos como redator principal até 1833 (MENDES, 2005, p. 12-13). Vasconcelos, ademais, ocupou vários cargos eletivos ao longo de sua vida, como o de deputado por Minas Gerais, deputado geral, senador e outros no âmbito provincial. Não pairam dúvidas quanto a sua importância política na oposição, no Primeiro Reinado, no governo moderado da Regência e na virada regressista (SILVA, 2011, p. 2-9). Vasconcelos imprimiu uma tendência liberal moderada ao Universal. Apesar de expressar reivindicações federalistas em seu jornal, negou ser partidário do republicanismo e afirmou seu compromisso com a monarquia.14
Além dos liberais moderados, outros dois grupos se destacaram na cena política. O grupo oposicionista mais extremado era o dos liberais exaltados, que, em geral, não ocupavam posições de destaque na política e provinham de setores das camadas médias urbanas, como médicos e boticários (BASILE, 2001). Os liberais exaltados organizavam-se, sobretudo, na imprensa. Seus jornais se distinguiam pela linguagem mordaz na crítica ao governo de D. Pedro I e pela defesa do federalismo. Porém, até o Primeiro Reinado, não possuíam uma posição antimonárquica generalizada (PANDOLFI, 2014a, p. 332-334). No outro espectro do campo político estava o grupo governista conhecido no Primeiro Reinado como áulicos. Seus componentes ocuparam posições diversas no Legislativo, na imprensa e, em especial, no senado e no Executivo. Defendiam uma monarquia constitucional mais centralizada e, por isso, foram importantes na sustentação do governo de D. Pedro I (MARQUES JÚNIOR, 2015, p. 24-29).
A ideia de grupo político, devemos pontuar, não implicava necessariamente a existência de uma homogeneidade intelectual. Por exemplo, entre os áulicos, havia uma vertente mais conservadora, avessa ao aprofundamento da representação política, como foi vocalizado pelo redator Le Roy em seu jornal Estrela Brasileira, em 1824, e outra vertente mais favorável às formas eletivas e de repartição de poderes, como foi expresso no jornal O Spectador Brasileiro, redigido por Plancher (REIS, 2016a, p. 32-36).
De forma didática e exemplificada, os influentes redatores dos jornais liberais moderados explicavam as novas premissas constitucionais e, ao mesmo tempo, faziam circular um novo vocabulário político. Ao invés de reproduzirem discursos eruditos, empregavam analogias e exemplos mais corriqueiros para explicar aos leitores, de forma didática, o significado da Constituição. Por exemplo, o momento anterior à Constituição foi caracterizado pela analogia da nobreza hereditária com “plantas parasitas”, que viviam na sociedade à custa de privilégios e de empregos desnecessários, mantidos por meio de aumento dos impostos. Os impressos, como se observa nesse exemplo, não apenas disseminavam novas ideias, mas favoreciam a criação de uma noção de tempo e lugar que demarcava a nova era constitucional no Brasil. Procurava-se afirmar essa noção em vários outros exemplos que ressaltavam como as constituições tinham sido adotadas por povos esclarecidos, como o caso do juramento da Constituição feito pelos habitantes de Montevidéu.15
Outras definições de constituição eram vocalizadas no discurso das elites letradas. Elas iam da mais longeva acepção seiscentista, que designava um ordenamento jurídico do reino formado pela conquista e não pela “vontade dos povos”, passando pelas inclusões do vocábulo “compleição de corpo” da sociedade de corpus do Antigo Regime e pelos direitos e deveres firmados no pacto entre o rei e o indivíduo de fins do século XVIII (NEVES; NEVES, 2009, p. 337-341), à concepção de Constituição atrelada ao discurso de integridade nacional presente no Brasil do Oitocentos (MOREL, 2005, p. 66). Dessa forma, o termo Constituição era marcado no período pela polissemia característica do vocabulário político moderno, no qual tradição e inovação entrelaçam-se.
No Brasil, a Constituição era tida como baliza temporal para o início de uma época mais igualitária, em contraposição ao período anterior, descrito como desigual na aplicação da lei por punir de maneira diferente homens que cometiam o mesmo crime. Reforçava-se que isso tinha acontecido pela ausência de divisão dos poderes, em que cada um deles poderia reprimir o abuso do outro. Mas os leitores eram tranquilizados ao serem lembrados que esse problema fora solucionado com a adoção do sistema de governo monárquico representativo.16 Dessa maneira, três princípios fundamentais do constitucionalismo eram divulgados de maneira acessível aos leitores - a ideia do mérito e do talento; a ideia da igualdade diante da lei e o princípio da limitação dos poderes das autoridades políticas.
A preocupação em disseminar o constitucionalismo para além do público leitor erudito era generalizada e cogitou-se que outras instituições poderiam atuar nessa tarefa. O diagnóstico era que as questões políticas mais específicas, em geral, estavam restritas aos cidadãos leitores e àqueles que possuíam contato com pessoas ilustradas, havendo por isso muitos que não faziam ideia do que era a Constituição. Sugeriu-se, então, que a Igreja, por intermédio dos prelados e párocos, contribuísse para disseminar as novas ideias constitucionais, uma vez que, para a religião, era necessário que o homem fosse bom cidadão. Propunha-se que os representantes da Igreja aproveitassem a influência que exerciam sobre suas “ovelhas”, sobretudo as que se encontravam apartadas da gente instruída, para incutir as novas ideias.17 Para que a educação liberal e constitucional atingisse grande número de pessoas, os liberais mineiros acreditavam que a instrução dos cidadãos poderia se beneficiar do exemplo dos Estados Unidos, país que criara escolas específicas para instruir os “negros libertos”.18
Certamente, se para os juristas e elites letradas as ideias constitucionais eram familiares, como a da igualdade perante a lei, para alguns homens livres elas eram vistas com certa desconfiança. Coube, portanto, à imprensa a tarefa de explicar os benefícios que a Constituição trazia à sociedade. A Constituição, era necessário explicar, não significava anarquia social, como temiam alguns leitores dos jornais. Em uma anedota publicada pelo Universal, um coronel acusava veementemente a Constituição de “nivelar tudo” e destruir a hierarquia militar, fundamental para a disciplina. Ao perguntar a seu interlocutor se era possível um soldado ser igual a um coronel, foi-lhe respondido que os liberais não almejavam a igualdade absoluta, mas a garantida pela Constituição e perante a lei, acrescentando que muitos desentendimentos tinham ocorrido por causa de equívocos como o do coronel.19 Em outro exemplo dessa questão, o jornal Aurora Fluminense era acusado de almejar uma “igualdade quimérica”. Ele precisou explicar que não era contra as desigualdades sociais, mas contra os títulos hereditários, por contrariarem o princípio da “igualdade diante da lei”. Esclareceu, então: “a ideia de igualdade proposta não destrói as inevitáveis e necessárias diferenças sociais; mas não quer outra razão delas além do mérito pessoal, dos talentos e virtudes de cada um”.20
Ainda que criticassem a monarquia, esses jornais não defendiam a república como forma de governo, mas manifestavam concepções constitucionais do Oitocentos de garantia de liberdades, estabilidade e equilíbrio dos poderes. Expressavam igualmente posições de uma nova camada de homens públicos atuantes na política, como era o caso de Evaristo da Veiga que, não sendo pobre, também não provinha de família com grandes posses ou títulos nobiliárquicos (ANDRADE; SILVA, 2012, p. 132). Embora não as explicitassem, as posições desses redatores eram semelhantes à crítica do republicanismo americano à devoção aos laços de sangue e às relações de dependência dos regimes monárquicos, princípios que, como aponta Gordon Wood (2007, p. 3-28), não eram inconsistentes com a monarquia.
Tendo em vista as discussões apresentadas, destaca-se a função assumida pelos jornalistas como intérpretes da modernidade, traduzindo para a linguagem cotidiana os significados do novo vocabulário político. Para isso, apropriavam-se de vertentes intelectuais e de experiências concretas e as adequavam tanto às suas posições individuais como às de seu grupo político, acentuando seu maior ou menor grau de representação política. Assim, estes jornalistas buscavam homogeneizar o vocabulário constitucional, desvinculando-o dos significados correntes no chamado “Antigo Regime”. O novo vocabulário criado carregava, entretanto, a marca do hibridismo que, de certa maneira, marcava os sistemas de pensamento e as instituições do novo governo representativo, cujas implicações analisaremos a seguir.
Os novos regulamentos constitucionais e os livres de cor
A implementação da ordem constitucional no Brasil ocorreu simultaneamente ao que se denomina na literatura de “segunda escravidão” (MARQUESE; PARRON, 2011, p. 98-99) 21. Em linhas gerais, esta fase foi marcada pela intensificação da produção em larga escala, o que implicou o aumento significativo de homens escravizados desembarcados (MARQUESE; PARRON, 2011, p. 98-100). Neste cenário de continuidade da escravidão, como apontam Berbel e Marquese (2007, p. 415-433), o desafio era administrar a cidadania dos descendentes de escravos sem abalar as instituições. Nesse sentido, a cidadania estabelecida na Carta de 1824 resultou do consenso, na época, de incluir os descendentes de africanos como cidadãos que, por serem numerosos e estarem inseridos na sociedade, poderiam vir a aliar-se com escravos em insurreições (BERBEL; MARQUESE, 2007, p. 424-431; MARQUESE; PARRON, 2012, p. 11-19). Os problemas não previstos por esta interpretação não demoraram a aparecer, cujos impasses analiso a seguir.
Para adequar os antigos regulamentos ao preceito constitucional da igualdade diante da lei, a “diferença de cores” precisaria ser abolida. Seguindo essa premência, o regulamento do recrutamento militar foi modificado em 1826. Antes da modificação, ele estabelecia que estariam sujeitos ao recrutamento militar todos os “homens brancos” solteiros e “pardos libertos” com idade entre 18 e 35 anos que não estivessem sujeitos às exceções estabelecidas na legislação. Para adequação aos critérios constitucionais, foi determinada a substituição das palavras “homens brancos” e “pardos libertos” pelas “homens” e “cidadãos brasileiros”.22
Os direitos constitucionais advindos da cidadania, no entanto, quando aplicados às condições reais, ocasionaram inúmeras polêmicas e mal-entendidos, como ocorreu na correspondência de um leitor sobre as regras eleitorais, pois fora motivo de controvérsia certo boato de que, nas eleições para as câmaras municipais, somente os ingênuos e não os libertos teriam direito de “voto passivo”, ou seja, o direito de se candidatar a vereador.23 Na verdade, essa polêmica derivava do conflito entre o que estabelecia a Constituição de 1824 e o que postulou o posterior Regimento das Câmaras Municipais em outubro de 1828. Esse regimento estabeleceu que poderiam candidatar-se a vereador todos os considerados aptos a votar nas Assembleias Paroquiais e que tivessem dois anos de domicílio, possibilitando ao liberto votante ser candidato a vereador.24 Por outro lado, antes do Regimento, isso não era possível, pois a Constituição de 1824 assegurava ao liberto nascido no Brasil o direito de ser somente votante, caso cumprisse os requisitos exigidos (DOLHNIKOFF, 2008, p. 16). Os filhos dos libertos, em linha materna denominados ingênuos, gozavam, desde 1824, de plenos direitos políticos, caso preenchessem os requisitos de renda exigidos. Havia, dessa maneira, muitas dúvidas a respeito do status legal dos homens de cor livres. Mesmo entre eles, ainda se mantinham posições hierárquicas, como o status civil superior dos ingênuos.
Uma das questões extensivamente debatidas na imprensa referia-se às regras para admissão em cargos públicos. A Carta estabelecera que todos os cidadãos poderiam ser admitidos nos cargos públicos sem outro critério que não fosse o dos “talentos” e o das “virtudes”.25 Contudo, a efetivação da ideia de homens iguais perante a lei chocava-se com as práticas de discriminação racial. Nesse quesito, os liberais moderados, importante grupo político no final do Primeiro Reinado, se colocavam como vigilantes dos direitos dos homens pardos, acusando seus opositores políticos do contrário. Eles acusaram o jornal O Cruzeiro de Pernambuco de opor-se ao princípio da “igualdade diante da Lei” por defender a exclusão dos “pardos” e “pretos” dos empregos públicos. Colocaram-se, de forma contundente, contrários à exclusão baseada em critérios de cor, lembrando inclusive que, mesmo no “governo absoluto” de D. João VI, os homens de cor foram admitidos em vários cargos públicos.26 Dessa maneira, a discussão a respeito da discriminação racial tornava-se cada vez mais uma pauta pública e objeto de disputa, indicando a dificuldade para o trânsito das formas modernas de sujeitos iguais diante da lei em uma sociedade ainda marcada pelas diferenças de cor. Era nessa relação entre ideias e práticas que se abria, cada vez mais, espaço para a condenação pública da discriminação racial, levando mesmo grupos das elites políticas como os liberais moderados a se engajarem na causa.
O redator do jornal liberal moderado Aurora Fluminense, além de se engajar na defesa dos direitos dos homens de cor livres, publicou cartas de leitores que relatavam casos de discriminação racial ocorridos com os pleiteantes a cargos públicos. Um dos exemplos citados referia-se a um sargento pardo dispensado na ocasião em que se candidatou ao posto de 2º Tenente da Brigada Real da Marinha. A dispensa do sargento foi atribuída à discriminação racial cometida por essa repartição da Marinha, que não consentia a “mescla”, dado que o candidato possuía os requisitos necessários para a função. O redator, usando o exemplo, novamente aproveitou para reiterar que os liberais moderados eram defensores dos direitos dos pardos, afirmando inclusive que a dispensa do sargento ocorrera porque a repartição tinha escapado à vigilância das folhas liberais.27
No jornal Aurora Fluminense fica evidente o enorme esforço dos liberais moderados em portarem-se publicamente como defensores dos direitos constitucionais da população de cor. Recorrentemente, o jornal repetia o lema da “igualdade de todos os brasileiros perante a lei” em protesto contra os ataques arbitrários aos pardos. Afirmava sempre que os pardos deveriam ser julgados no mercado de trabalho pelos seus méritos e talentos. Por outro lado, reconheciam que os pardos eram desfavorecidos nestes quesitos por ainda não possuírem a educação necessária. Nessa lógica, o redator concluía que o atraso do Brasil não estava relacionado à diferença de cores, mas à pouca educação.28 A falta de letramento entre a massa de homens pardos também aparecia correlacionada com a propensão à criminalidade. Essa observação era corroborada pelo redator com dados estatísticos das prisões da Suíça e da Bélgica, segundo os quais a cada três presos somente um conseguia ler e, por isso, esses países teriam recomendado a escolaridade como critério relevante à hora de efetuarem as prisões.29 Considerando tais exemplos, pode-se inferir que havia na esfera pública a ideia de que a educação separava um homem do outro. Essa concepção era semelhante ao pensamento dos “pais fundadores” americanos, no qual a cultura era vista como um produto que poderia ser adquirido (WOOD, 2007 p. 14-15).
É interessante notar que os liberais moderados procuravam se defender das acusações de discriminação racial, mas não negavam a existência de práticas discriminatórias. Assim sendo, a imagem da visão harmônica das relações raciais no Brasil que a Carta de 1824 passava aos estrangeiros na época não demorou a ser colocada em xeque na esfera pública. Se a definição de cidadania resultou, de acordo com Berbel e Marquese (2007, p. 432-433), de uma “construção ideológica” da época fundada no liberalismo, segundo a qual com seus esforços o escravo poderia atingir a manumissão e, por fim, a cidadania, tal construção não previu outras implicações. Destaco, em especial, a possibilidade de alianças entre grupos políticos e os homens livres de cor, que será analisada a seguir.
A “intriga de cores” em 1831 e 1833
Em 1831 e 1833, houve episódios que se destacaram no que tange à discriminação racial. Na ocasião, os acusados foram, predominantemente, os liberais moderados. Eles se defenderam, alegando não apoiarem a discriminação por cores e que tudo não passava de uma “intriga de cores”, lançada por seus opositores políticos para os indisporem com os pardos. O jornal Aurora Fluminense utilizou a expressão “intriga de cores” para se referir a uma suposta manipulação dos pardos para fins políticos, como evidencia a citação:
A intriga de cores, tão temível no Brasil, tem sido um instrumento manejado em diversos sentidos, mas sempre para fins perniciosos. Sabidos são os meios por que se incendeiam os ânimos de certa classe de pessoas contra tal ou tal opinião, fazendo lhes crer que os que a professam são inimigos dos pardos.30
A intensidade dessas disputas na esfera pública tem um componente demográfico importante - o aumento considerável de pessoas de cor entre os homens livres. Minas Gerais era a província mais populosa do Império, com população estimada, na década de 1830, em 848.177 habitantes, dos quais 572.099 eram livres e 276.098 escravos (RODARTE et al., 2011, p. 6). Essa população era composta majoritariamente por descendentes de africanos, entre os quais os mestiços que presentavam dois terços dos homens livres (FLORENTINO; GÓES, 2013, p. 5). Muitos deles, principalmente nas regiões mais antigas de Minas Gerais, ascenderam socialmente e passaram a ocupar espaços na vida política que demarcavam seu distanciamento em relação ao mundo da escravidão (FONSECA, 2009, p. 585-599). Portanto, o peso significativo da população mestiça refletiu na presença de fatores de natureza racial em vários conflitos em Minas Gerais nos anos de 1831 e 1833 (GONÇALVES, 2008, p. 18-19).
No Rio de Janeiro, o grande contingente de população negra chamava a atenção dos viajantes estrangeiros no século XIX. Já no final do século XVIII, a população livre de origem africana, negra ou mulata aumentou em virtude do significativo crescimento de alforriados, tendo os libertos representado um percentual de aproximadamente 60% da população escrava. De fato, somados aos cativos, formavam a maioria da população. O número de miscigenados também aumentava, pois as mulheres tinham mais chances de conseguir a carta de alforria e estabelecer uniões formais ou informais interraciais, das quais se geravam descendentes, com homens portugueses (FLORENTINO; GÓES, 2013, p. 8-23).
Não obstante a questão demográfica ser importante para mensurar o peso da questão racial, a nova relação entre representantes e representados tem peso fundamental. Como a política moderna era representada nas concepções de soberania do povo e na transferência dela através do voto (GUERRA, 1993), as eleições têm sido tema central para analisar a participação popular na política.
O entendimento de que as eleições, no Brasil do século XIX, eram marcadas pela corrupção e fraude (GRAHAM, 1977) tem sido matizado por interpretações focadas na compreensão das oportunidades que se abriam ao eleitorado no desenrolar das disputas (POSADA-CARBÓ, 2000). A participação dos cidadãos no processo eleitoral tem sido vista como ativa e complexa e, por isso, à luz do entendimento contemporâneo, conseguir o apoio das camadas mais pobres, à época, não era algo pacífico (SABA, 2011, p. 129-130). Destaque-se, também, a imprevisibilidade do resultado dos pleitos, nem sempre favorável ao candidato que possuía maior riqueza e prestígio social (CAMPOS; VELLASCO, 2011, p. 393).
Todos esses elementos indicam que conseguir apoiadores era condição indispensável para garantir um bom resultado. Assim, as campanhas eleitorais começavam cedo, muito antes dos pleitos, com expedientes diversos como a visita domiciliar, conforme observou Kátia Motta (2018, p. 26-27) ao estudar algumas estratégias dos candidatos em busca de votos na província do Espírito Santo.
Seria, portanto, a “intriga de cores” uma forma de campanha eleitoral que atingiria um público amplo? De certa maneira sim, sobretudo uma campanha do “partido político”. A ideia de partido desvinculava-se da acepção negativa de facção movida por interesses localistas.31 Os atores políticos coevos procuravam enfatizar uma noção positiva de partido que implicava a construção de uma dimensão pública da política. Por exemplo, Evaristo da Veiga explicava aos leitores que o partido deveria ser formado pela convergência de opiniões movidas por “desejos e esperanças” que visavam o interesse público (COSER, 2014, p. 3-4).
Para os liberais moderados a “intriga de cores” não era uma disputa de partidos. Eles a viam como uma manipulação, isto é, uma maneira de usar os pardos somente para servir aos interesses do grupo político. Esta narrativa, no entanto, é inteligível apenas no contexto da posição desfavorável deste grupo. Diferentemente desta interpretação, considera-se a “intriga de cores” uma dinâmica baseada em uma relação de interdependência entre o grupo político e seus apoiadores homens livres de cor. É nessa dinâmica que o protagonismo32 dos livres de cor deve ser situado, como se analisa no decorrer deste artigo.
Um componente importante da “intriga de cores” eram os boatos. Em vez de descartá-los como evidências não seguras, cremos que os boatos tiveram papel importante na política. Em geral, são definidos como relatos sem a comprovação de evidências seguras e disseminados em contextos marcados por ambiguidades, perigos ou hostilidades (ROSNOW, 1991; SHIBUTANI, 1966; TACKETT, 2011). Além disso, as propriedades discursivas dos boatos são propícias para estabelecer relações sociais, favorecendo, portanto, sua disseminação (GUERIN; MIYAZAKI, 2006).
Foi justamente com o boato de que os liberais almejavam escravizar os pardos33 livres, espalhado nas cidades de Mariana e Ouro Preto em 1831, que a “intriga de cores” eclodiu em Minas Gerais. Esse boato disseminou-se em um momento de grande incerteza e desequilíbrio do relacionamento da província mineira com o governo central do Rio de Janeiro. Os liberais mineiros defendiam uma forma federativa de governo que significava maior autonomia política e administrativa para as províncias, mas esse federalismo não era bem visto pelo governo central. Apesar de os liberais mineiros dissociarem o federalismo da acepção de república como forma eletiva de governo, pairavam desconfianças.
Naquele contexto, D. Pedro I viajou a Minas Gerais e lá fez um pronunciamento, em fevereiro de 1831, atacando abertamente o federalismo (PANDOLFI, 2016). Havia, na província mineira, lideranças que apoiavam D. Pedro I e sustentavam um governo mais centralizado, representadas pelo jornal O Telegrapho,34 justamente o acusado pelos liberais de disseminar o boato de que eles tinham a intenção de escravizar os pardos livres.
Boatos que se disseminavam pela sociedade eram recorrentemente mencionados na imprensa. Raramente, entretanto, eram discutidos de forma mais sistemática, como foi o caso do boato de 1831. Este foi noticiado por quatro jornais conhecidos e de circulação regular da imprensa liberal, dois de Minas Gerais e dois do Rio de Janeiro, perfazendo um total de seis números consultados. Ressalte-se que, embora a amostra de fontes seja pequena, o fato de este boato específico ter sido relatado pelos próprios liberais em suas defesas é um indicativo da força dele.
Em Minas Gerais o boato veio a público em março de 1831 pelo jornal Universal, quando já havia se disseminado. O redator relatou que pasquins eram afixados diariamente na cidade de Mariana para espalhar que os liberais iriam “reduzir os pardos ao cativeiro”, levando a um “estado de intriga” que atingiu o “último auge”.35 Defendeu firmemente os liberais, inclusive publicando cartas de leitores que negavam a veracidade do boato.36 Em uma delas, assinada por um “Um pardo”, o jornal O Telegrapho foi acusado de usar a cor para indispor os pardos contra os liberais. Em outra carta assinada por “O Liberalão” afirmava-se que o boato não era novo, pois já havia sido espalhado pelos “absolutistas” em 1822. Defendeu os liberais de praticarem a “discriminação por cores”, visto que nomeavam pardos para eleitores e juízes de facto.37
O jornal mineiro Novo Argos foi ainda mais incisivo, descrevendo um cenário de ameaça à vida dos liberais com a divulgação dos rumores.38 Na mesma época, o Republico noticiou o boato no Rio de Janeiro, usando a palavra “conflagração” para definir a situação em Ouro Preto e Mariana, condenando o boato como “imprudente calúnia”.39
A sequência ao boato, portanto, se deu com os liberais mineiros negando veementemente as acusações na imprensa. Afirmaram não haver entre eles discriminação das pessoas pelo critério de “cores” e que suas escolhas pautavam-se pelas capacidades morais e não pelas “acidentais”, em referência implícita à ascendência africana. Classificaram o boato como uma inverdade, fruto de intrigas orquestradas, conforme já mencionado, pelo jornal Telegrafo, o principal periódico de oposição aos liberais mineiros, que circulou de 1828 a 1831.40
Importante ressaltarmos que o boato, em que pese toda a controvérsia, somente perdeu força na imprensa após a Noite das Garrafadas, ocorrida no mês de março de 1831, quando outro boato disseminou-se na imprensa: o de que os portugueses pretendiam recolonizar o Brasil (PANDOLFI, 2014b, p. 309-315).
Ainda assim, no mês seguinte o Aurora Fluminense lembrava os esforços para “tornar odiosos os liberais” divulgando que eles “queriam escravizar ou oprimir os homens de cor” em Mariana. Além disso, mostrou-se surpreso com a crença de muitos homens de cor na veracidade do boato.41 Já o jornal Novo Argos deu detalhes da propagação do boato, mencionando a peregrinação do padre Manoel Joaquim Ribeiro nos arredores de Ouro Preto para pregar que “os Liberais pretendiam cativar os homens de cor”.42
Nos dois anos seguintes o boato de 1831 ainda era lembrado. Em 1832 o jornal Aurora Fluminense rememorou o boato, chamando-o de “intriga de cores”. Não era fortuita a lembrança, pois servia para alertar que, nas proximidades de Ouro Preto, antigos aliados de D. Pedro se uniam aos exaltados para “aliciar” escravos com a promessa de liberdade.43 Já em 1833, o Aurora lembrou que em Mariana os liberais “chegaram a correr sérios perigos de vida”. Usou o boato para alertar que crescia a “intriga de cores” atiçada pelos caramurus.44
De todo modo, a crença no boato da escravização dos homens livres de cor revela uma instabilidade jurídica já presente no período colonial. A redução ao cativeiro poderia ocorrer, por exemplo, com a revogação de alforria condicional por motivo de ingratidão. A liberdade perdida, entretanto, poderia ser restabelecida pela possibilidade de recorrer a um tribunal para reaver o estatuto de pessoa livre (PINHEIRO, 2015). A precariedade da liberdade no Oitocentos, portanto, já fazia parte do cotidiano dos homens livres de cor. A lei de 1831 que proibiu o tráfico de escravos aprofundou ainda mais a condição instável da liberdade (CHALHOUB, 2012, p. 45-70). Parece crível, desse modo, que a ameaça de extinção do tráfico intensificasse o medo entre a população livre de cor de voltar ao cativeiro, a fim de suprir a demanda de mão de obra. É inegável a importância desse contexto. Porém, o direito à cidadania conferia novo significado à luta pela liberdade que, gradativamente, se legitimava em luta contra a discriminação racial.
Boatos relacionados à privação dos direitos dos homens de cor repercutiram novamente na imprensa, em 1833, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Naquele momento, os liberais moderados estavam na direção do novo governo da Regência, com a abdicação de D. Pedro I e a menoridade do sucessor.45
O período regencial foi marcado pelo acirramento do conflito político por causa da implementação das reformas constitucionais baseadas em um modelo federalista de Estado. Prevaleceu, primeiramente, o modelo articulado no Código do Processo Criminal (1832), que estabeleceu que parte considerável dos integrantes da Justiça, como juízes de paz, júris e juízes municipais, passariam a ser eleitos ou escolhidos no município. Tais mudanças efetivadas pelos liberais moderados implicavam educar o cidadão ativo não habituado a participar dos assuntos públicos (COSER, 2008, p. 949-955). Foi nesse quadro institucional, portanto, que a “intriga de cores” se desenvolveu.
Em tal contexto, um novo grupo de oposição ganhou visibilidade na imprensa. Ficou conhecido por caramurus e se distinguia por ser uma vertente conservadora do liberalismo, defensora de uma monarquia centralizada. Os caramurus predominavam na composição do Senado e exerciam influência, ainda que minoritária, na Câmara dos Deputados (BASILE, 2009, p. 60-63). O grupo era acusado de ser partidário da restauração do trono de D. Pedro I, embora essa tendência não fosse de fato explícita.
De fato, devemos observar, a novidade foi que, com o surgimento dos caramurus na oposição, as disputas por apoiadores acirraram-se. Os liberais moderados agora acusavam os caramurus de praticarem a “intriga de cores”, como evidencia a citação: uma “intriga, manejada para separar do partido liberal os nossos concidadãos, homens de cor, e para reuni-los ao grupo retrógado, cada dia se apresenta mais a descoberto”. Afirmavam, ainda, que esse expediente era cada vez mais usado nos embates políticos, como já haviam feito em Minas Gerais quando convenceram os “pardos das classes inferiores” de que os liberais possuíam a intenção de escravizá-los.46
O novo boato, que se espalhara em janeiro de 1833, era o de que as mudanças estabelecidas no Código do Processo Criminal de 1832 privariam os homens de cor de seus direitos políticos. Como era desfavorável às mudanças implementadas pelo governo da Regência, o boato atingia, sobretudo, os liberais moderados cariocas, que recorreram à imprensa para se defender, atribuindo-o a intrigas lançadas pelos caramurus.
Desse modo, os liberais moderados, agora no poder, por meio de seu principal jornal, Aurora Fluminense, afirmavam que nenhum artigo do Código limitaria os direitos políticos e civis de todas as “classes” de cidadãos, muito menos estabeleceria “diferença de cores”.47 Acusavam, ainda, os caramurus de arregimentarem os pardos somente para os usarem politicamente na restauração do trono de D. Pedro I. Entretanto, os próprios liberais não acreditavam que D. Pedro I compactuasse com tais planos, como manifestaram meses depois: “Nós não supomos D. Pedro tão falto de prudência e de bom senso, que se renda às sugestões de um punhado de indivíduos, cegos pela mais odiosa ambição (…)”.48
Os liberais, assim, não pareciam temer exatamente a restauração do trono de D. Pedro I, mas a união entre caramurus e pardos. Temiam mais do que isso, pois um boato que se propagava amplamente, poderia arruinar a imagem do grupo político e potencialmente atingiria a reputação de seus componentes pleiteantes às vagas eletivas.
Ao que tudo indica, o boato de 1833, que pregava que os homens de cor seriam privados de seus direitos políticos com as mudanças do Código do Processo Criminal de 1832, não alcançou a dimensão e repercussão que o boato de 1831 teve, dado que os liberais não se mostraram tão preocupados nos três números dos jornais que o noticiaram. No entanto, um dos números alertou que o boato havia “produzido efeito” no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, pois muitos acabavam “por detestar as reformas da Constituição (…) e a olhar com saudades o regime que acabou”.49 Os embates raciais prosseguiram na imprensa com acusações de discriminação racial envolvendo os grupos políticos. Porém, a situação acirrou-se com o caso de discriminação racial de maior repercussão na imprensa, o do pardo Lafuente.
Além dos boatos, acusações reverberavam na imprensa e reforçavam a deterioração da imagem dos liberais moderados cariocas entre os pardos, visto que o Aurora Fluminense frequentemente as negava. Uma delas era a de que os liberais moderados, quando chegaram ao poder, excluíram os pardos dos empregos públicos. Os acusados se defenderam pedindo provas: “fora mister que se mostrasse quais pardos haviam sido perseguidos a esse título, em que hipótese, achando-se dois cidadãos, um pardo e outro branco, aptos igualmente para uma função pública, fora o segundo preferido em consequência de ter a pele mais alva”.50
Novamente, portanto, os liberais insistiam em negar as distinções por cores em seu governo, colocando-se como guardiães do “princípio da igualdade” garantido pela Constituição. Afirmavam pertencer a um governo que “nunca olhou a origem e o sangue, mas sim as qualidades morais dos eleitos”. Citavam exemplos que tinham por objetivo convencer os leitores da efetiva atuação dos liberais em prol de uma igualdade sem distinção de cores. Em um deles, relatavam que Diogo Feijó teria repreendido o bispo de Pernambuco por ter instituído “odiosas distinções de cores e origem”.51
Nessa controvérsia, encontrou-se apenas um boato no qual os caramurus supostamente agiam contra os direitos dos pardos. Tratava-se do boato de que os caramurus almejavam escravizar os pardos, disseminado na vila de Valença (RJ). Em defesa dos caramurus, o juiz de paz soltou uma proclamação na qual condenava o boato como “odiosa” notícia.52 Os caramurus negaram a acusação, atribuindo ser uma intriga promovida pela “sucia Chimangal”.53 Os membros da Câmara Municipal criticaram o juiz de paz por ter se posicionado declaradamente ao lado dos caramurus “restauradores e inimigos da liberdade”.54
Nesse exemplo, sobressai a figura do juiz de paz na oposição ao governo e na defesa dos caramurus. Os juízes de paz eram juízes leigos e eletivos e, inicialmente, tinham por atribuição organizar as conciliações. Porém, ao longo do Primeiro Reinado, tiveram suas funções ampliadas, assumindo também as tarefas policiais. A progressiva ampliação dos poderes dos juízes foi apoiada pelos liberais moderados na época em que estavam na oposição. Tinham por objetivo efetivar a representação popular e diminuir os poderes do Imperador, mas acabaram fortalecendo os juízes de paz como lideranças locais (CAMPOS, 2018). Como observou Adriana Campos (2018, p. 99), o “experimentalismo legislativo” da criação do juizado de paz nem sempre favoreceu a elite que o criou, como observado neste caso da aliança política entre juízes de paz e caramurus.
Ao analisar a dinâmica da “intriga de cores”, observa-se que a retórica e o convencimento eram recursos importantes na construção das reputações dos grupos políticos e, potencialmente, de seus respectivos candidatos pleiteantes aos cargos públicos. Embora os redatores não explicitassem literalmente um interesse eleitoral, defendiam vigorosamente a reputação de seu grupo contra as acusações de discriminação racial que poderiam aviltar a imagem do partido. Raramente as acusações de discriminação racial eram dirigidas a pessoas particulares. Possuíam um caráter muito mais coletivo, o que nos sugere que estava em curso uma afirmação das identidades partidárias.
As acusações de discriminação racial dirigidas ao governo regencial foram reforçadas pelos redatores anônimos, supostamente negros ou pardos, de jornais com enfoque étnico-racial, com textos publicados a partir de setembro de 1833. Eles divulgaram mais casos de discriminação racial, os quais foram atribuídos aos liberais moderados, abalando cada vez mais a legitimidade do grupo. Os jornais com enfoque raciais não eram independentes politicamente e, nesse sentido, seguiam a tendência predominante da “imprensa de opinião” da época.
O Homem de Cor foi o primeiro jornal da denominada “imprensa mulata” (FLORY, 1977) ou “imprensa negra” (PINTO, 2010). Circulou por um breve período, de setembro a novembro de 1833, computando ao todo cinco exemplares, mudando de título, a partir do terceiro número, para O Mulato ou Homem de Cor. Foi impresso na tipografia de Paula Brito, um mulato que ascendeu como tipógrafo, mas mesmo assim enfrentou restrições devido à cor de sua pele (GODOI, 2016). Ao longo dos números, o redator fez várias críticas aos liberais moderados, em especial, às perseguições aos antigos aliados e também à imprensa.55 Referia-se implicitamente às perseguições aos liberais exaltados que, apesar de terem se juntado com os liberais moderados em prol da abdicação, foram excluídos da composição do novo governo regencial, o que levou muitos deles a passarem, ressentidos com os rumos da abdicação, para a oposição ao novo governo.
Em outubro de 1833, o Brasileiro Pardo reforçou a oposição ao governo regencial. O redator não revelou sua identidade, porém mencionou pertencer à “gente da classe média” e ao grupo dos pardos - “nós, os pardos”.56 Com a epígrafe “O gato escaldado d’agua fria tem medo” expressava sua decepção com os liberais moderados, como fica evidenciado ao longo de suas matérias. O redator indignava-se com o descaso do governo para com a “gente da classe média” expulsa dos empregos públicos, como alguns desembargadores. Denunciou, também, a perseguição aos antigos patriotas que passaram a ser chamados de “patriotas de chinelo” e “homens de faca na manga”.57 Por esse motivo, o redator passou de liberal moderado a simpatizante dos caramurus. Isso indica um perfil mais heterogêneo dos caramurus ao incluir sua base de apoio, como a dos homens de cor livres.
Quanto à pauta da discriminação racial, os dois jornais denunciaram, especialmente, as barreiras impostas aos homens de cor livres à participação na Guarda Nacional, tanto aos que pretendiam ser oficiais (O Homem de Cor ou O Mulato) quanto aos proibidos de alistarem-se por não terem nascido no Brasil (O Brasileiro Pardo). Esse descontentamento pode ter sido generalizado, se considerarmos que homens de cor já possuíam uma longa tradição de formarem seu próprio oficialato nas milícias negras. Porém essa possibilidade já estava sendo limitada desde as reformas pombalinas da segunda metade do século XVIII (KRAAY, 2001).
Por meio de um vocabulário em que cor e status social se confundiam, como os termos “pardo” ou “mulato” utilizados nos títulos, buscavam legitimidade pública. Negação ou afirmação de uma sociedade racializada? Ambas as hipóteses são plausíveis naquela sociedade em que o homem de cor livre precisava defender seu frágil status de homem livre e cidadão. Ao contrário da manipulação dos homens de cor pelos grupos políticos, como alegado na época, considera-se neste artigo não haver uma incompatibilidade de interesses nas alianças entre homens de cor e grupos políticos. Essa dinâmica política chamada de “intriga de cores” revela, assim, um progressivo fortalecimento do papel dos partidos políticos. A contrapartida disso era a incorporação das pautas setoriais de seus possíveis apoiadores, entre elas a dos homens livres de cor.
O caso de discriminação racial de maior repercussão na imprensa encontrado no período analisado foi o do pardo Lafuente. Maurício José de Lafuente foi preso em outubro de 1833. Sua prisão foi considerada injusta pelo jornal O Homem de Cor, por tratar-se de “honrado patriota” que havia sido caluniado como “caloteiro, vadio, rusguento e restaurador” e xingado de “bode”, palavra usada para depreciar a cor de sua pele. O redator afirma que o motivo da prisão era o fato de Lafuente ser pardo e não o de andar armado, como alegado pelo governo, pois sabia que ele possuía licença para portar arma.58
Em Minas Gerais, o caso Lafuente repercutiu em momento de grande instabilidade política, em virtude de revoltas que abalaram a província mineira em 1833. Os caramurus, segundo o jornal Aurora Fluminense, estavam sob intensa vigilância do governo provincial devido à participação e liderança na Revolta do Ano da Fumaça, ocorrida na cidade de Ouro Preto, de março a maio de 1833.59 No decorrer dessa revolta, o presidente da província e o vice foram destituídos e o poder foi tomado pelos revoltosos, cujas motivações principais, segundo Wlamir Silva (SILVA, 2008, p. 277-324), eram conquistar cargos na direção da política local e obter vantagens eleitorais. Os estudos mostraram um perfil socioeconômico e político mais heterogêneo neste conflito, não se podendo afirmar que todos eram caramurus (GONÇALVES, 2008, p. 78-87). Somente vinte dias após o início dessa revolta, eclodiu, também em Minas Gerais, a revolta de escravos de Carrancas, cuja origem foi atribuída à disseminação do boato de que os caramurus haviam alforriado escravos em Ouro Preto (ANDRADE, 2017, p. 271-276). Dessa maneira, foi nesse contexto politicamente instável que o caso Lafuente tornou-se um escândalo na imprensa, ou seja, um escândalo não apenas noticiado pelos jornais, mas, de certa maneira, constituído pela imprensa (THOMPSON, 1998, p. 59-89).
Há, portanto, duas versões do caso Lafuente - a da prisão injusta de um pardo honrado e patriota, como narrou O Homem de Cor, e a do desordeiro recrutado, como relatado pelo jornal Universal. Nesta versão, a caracterização de Lafuente é a do anti-herói. Não teria sido preso, mas recrutado, por ser vadio, desordeiro e perturbador do sossego público. Foram atribuídas a ele várias passagens por prisões devido a brigas e contendas de jogo. Todos esses elementos, na visão dos liberais moderados, justificavam o alistamento de Lafuente como forma de correção pela disciplina militar.60
Além da questão racial, o caso remete ao consenso, na época, de que o serviço militar obrigatório era uma forma de degradação social. Com tantas isenções a serem verificadas por intermédio de documentação e testemunhos (MENDES, 2004, p. 111-138), os indivíduos mais suscetíveis de serem recrutados eram aqueles que não estavam sob as redes de proteção social, como os “vadios” e os trabalhadores itinerantes (MENDES, 2004, p. 115-122). Na interpretação dos liberais, Lafuente não passava de um oportunista que aproveitou um movimento revolucionário de cunho patriótico e vitorioso como o Sete de Abril para ascender na política. O argumento era que Lafuente não se encontrava no Campo de Honra, no Rio de Janeiro, na véspera da abdicação do Imperador, mas em Vitória, capital da província do Espírito Santo, onde teria organizado um baile que escandalizou a sociedade, sob a proteção e custeio do presidente da província, Gabriel Getúlio Monteiro de Mendonça.
Constava também que, em Vitória, teria assassinado um “cidadão pacífico”.61 Não encontramos fontes disponíveis, como processos e possíveis documentos, para averiguar a veracidade dessas acusações. Para o objetivo deste artigo, no entanto, o principal é observar que os liberais acusaram de vadio e criminoso um pardo que alcançou status social. Ao longo de sua vida, Lafuente teria ocupado a posição de tenente; possuíra ligações com as elites do Espírito Santo e se apresentara como taberneiro e negociante de joias, posições que os próprios liberais mencionaram, ainda que para delas discordarem.
Com todas essas qualificações atribuídas a Lafuente, exigiu-se um esforço enorme da imprensa liberal para defender a legalidade de seu recrutamento, muito mais do que observamos em outros relatos de discriminação racial. Como último recurso para provar a legalidade do recrutamento, o Aurora Fluminense lançou mão de exemplos de homens brancos recrutados, a fim de justificar o argumento de que os liberais moderados não perseguiam os homens de cor, e que as acusações eram fruto de intrigas lançadas pelos caramurus.62
Já o periódico Universal, de Minas Gerais, culpava os panfletos incendiários por lançarem intrigas por meio de falsas notícias, segundo as quais o governo regencial conferia um tratamento injusto e desigual aos homens de cor. Para defender o governo das acusações, o Universal publicou uma matéria de quase três páginas. Acusou a imprensa, em especial o jornal Verdadeiro Caramuru, de usar o recrutamento do pardo Lafuente como pretexto para afirmar que os homens pardos eram oprimidos e insultados pelos liberais moderados, cometendo assim o erro de generalizar “do indivíduo para a classe”.63 Em seu último apelo, tentava convencer os leitores de que os caramurus semeavam intrigas sediciosas e prejudiciais à sociedade como um todo. Nesse apelo final, refere-se implicitamente à revolta dos escravos de Carrancas, em cujos depoimentos os réus relataram ter sido motivada pelos boatos de que os caramurus prometiam libertar os escravos. Nesse sentido, na visão dos liberais mineiros, a linha fora cruzada, não se tratando mais de uma disputa de partidos, como ilustra a citação “Insensatos caramurus! Não vedes o abismo que cavais para vos mesmos? (…) Tão pouco cuidado tendes de vossas famílias, de vossos amigos, de vossa Pátria, que a desejais ver nadando em sangue!”.64
Nos números seguintes dos jornais Aurora Fluminense e Universal, a “intriga das cores” desaparece do centro da discussão, permanecendo somente alguns esparsos ataques aos caramurus.65 Os jornais dirigidos aos homens de cor saíram de circulação. Já o Universal e o Aurora Fluminense, passaram a apresentar as “intrigas” raciais como perigosas à ordem pública.
Tal fato coincide com as redefinições dos grupos políticos em um contexto de perseguição e desmantelamento dos exaltados que recompunham suas identidades políticas. A morte de D. Pedro I, em 1834, contribuiu para a perda de identidade dos caramurus, muitos dos quais se juntaram aos antigos moderados. Sobretudo a partir de 1835, as antigas identidades partidárias paulatinamente se redefiniam, despojando-se de seus antigos referenciais, com as elites políticas passando a se posicionar como oposicionistas e governistas e, posteriormente, como regressistas e progressistas (BASILE, 2009, p. 64). As bases de apoio desses partidos igualmente redefiniam seus posicionamentos políticos, migrando para outros partidos.
Observa-se que a discussão sobre demandas raciais foi incluída e banida pela própria imprensa liberal moderada. Essa atitude dos liberais pode ser vinculada ao recuo em relação às reformas federalistas que estavam trazendo instabilidade institucional. O Ato Adicional de 1834, ao fortalecer o Legislativo provincial, buscava corrigir os “excessos descentralizadores” do Código do Processo Criminal de 1832. Isto implicou a desmobilização da participação direta dos cidadãos ativos no município, uma vez que os efeitos imprevistos dessa participação estariam ameaçando a unidade nacional e a ordem social (COSER, 2008, p. 956-958).
De todo modo, o alerta dos liberais moderados de que a “intriga de cores” estaria ultrapassando limites e comprometendo a ordem pública pode ter contribuído para frear os embates político-raciais, pois as novas ideias de igualdade propagadas por eles passaram a colocar em xeque sua sobrevivência no governo da Regência.
Ainda que a pauta da discriminação racial tenha perdido espaço na imprensa, ela incluiu os homens de cor livres no centro do debate político entre os anos de 1829 e 1833. Dessa forma, aponta-se, neste artigo, que a política era uma arena de disputa não somente ocupada pelas elites, mas cujas bases de apoio, formadas também pelos homens de cor livres, foram substancialmente ampliadas na nova era constitucional.
Considerações finais
A esfera pública oitocentista no Brasil foi marcada pela presença de políticos que eram ao mesmo tempo jornalistas, o que explica o protagonismo da imprensa na dinâmica política no período. A diversidade de grupos políticos e a intensa atividade jornalística nos primeiros anos da década de 1830, por outro lado, ampliou a esfera pública ao permitir a expressão de reivindicações de setores da sociedade civil, como as demandas raciais dos homens livres de cor, o que nos permitiu analisar o protagonismo dessas pessoas em um contexto de interdependência com os demais grupos políticos. Concluímos que, se por um lado, a pauta contra a discriminação racial divulgada na imprensa não pode ser considerada autônoma em relação aos interesses dos grupos políticos na época, por outro lado, os livres de cor também a impulsionaram como contrapartida de seu apoio a esses grupos.
Com base nessa dinâmica, podemos compreender melhor o amplo esforço das elites políticas dos liberais, dos áulicos e dos caramurus em adequarem suas maneiras de fazer política nessa nova ordem constitucional, ao posicionarem-se contra a discriminação “por cores”.
A persuasão e os boatos, portanto, eram armas poderosas disponíveis para todos os grupos políticos, que utilizavam a imprensa como uma espécie de palanque eleitoral a fim de atrair apoiadores, entre eles os homens livres de cor, e fortalecer suas legitimidades políticas. Foi nesse contexto que se configurou a “intriga de cores”, definida na época como a manipulação dos pardos livres para fins políticos. Em vez de endossar essa interpretação, analisou-se como a “intriga de cores” assemelhava-se ao que hoje chamamos de campanha eleitoral, não de um candidato, mas de um grupo político. Nesse sentido, um de seus componentes mais importantes foram os boatos.
O boato de 1831, sobre o pretenso desejo dos liberais de escravizar os pardos em Minas Gerais, foi o de maior impacto, levando os moderados a se defenderem de forma incisiva, atribuindo-o a uma “intriga de cores” disseminada pelo grupo opositor. Dessa maneira, independentemente da veracidade desses boatos e de quem deles tirou proveito, constatamos que eles se tornaram parte objetiva da realidade e muito provavelmente contribuíram para dar uma narrativa aos que se opunham a um grupo político específico.
A deterioração da imagem do governo regencial como culpado pela discriminação racial contou com a colaboração, em 1833, dos primeiros jornais com enfoque racial simpatizantes ou alinhados a um grupo político. Por meio desses jornais e dos periódicos liberais, veio a público um caso de discriminação racial de grande repercussão, o do pardo Lafuente. A despeito da ambígua figura de Lafuente, visto como herói pelos opositores da Regência e como desordeiro pelo governo liberal moderado da Regência, esse caso contribuiu para arrefecer os embates da “intriga de cores”. Os liberais moderados alarmaram que o caso Lafuente indicava que o limite do confronto político havia sido cruzado, comprometendo assim a ordem pública. O apaziguamento dos embates raciais coincide com o contexto de redefinição dos grupos políticos e da luta dos liberais moderados para sobreviver no governo da Regência.
Dessa maneira, pode-se afirmar o papel central da imprensa na política, dado que ela não foi somente um fórum de discussão sobre o assunto, mas o verdadeiro agente ao conectar grupos políticos com os homens livres de cor, no Brasil, nos primeiros anos da década de 1830. A principal mudança na maneira de fazer política com a transformação dos livres de cor em cidadãos, foi a maior dependência dos grupos políticos em relação às bases de apoio, como a dos livres de cor, favorecendo assim a partidarização da política.
Fontes
ASTRO DE MINAS, São João del-Rei, 1829.
AURORA FLUMINENSE, Rio de Janeiro, 1829-1833.
BRASILEIRO PARDO, Rio de Janeiro, 1833.
CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1824. Disponível em: <http://bit.ly/3aUMkjx>. Acesso em: 30 jan. 2020.
DIÁRIO FLUMINENSE, Rio de Janeiro, 1826.
O HOMEM DE COR, Rio de Janeiro, 1833.
O NOVO ARGOS, Ouro Preto, 1831.
O REPUBLICO, Rio de Janeiro, 1830.
O UNIVERSAL, Rio de Janeiro, 1830-1831.
O VERDADEIRO CARAMURU, Rio de Janeiro, 1833.
PREGOEIRO CONSTITUCIONAL, Pouso Alegre, 1830.
Notas
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