Resumo: Entre os séculos VIII e X, diferentes autoridades governantes no Ocidente e no Oriente expediram normas em favor dos “pobres”. Neste artigo, pretende-se entender os motivos que as levaram a se ocuparem do tema, em especial da “opressão dos pobres”. Sob a perspectiva da “História Global”, realizou-se uma abordagem comparativa favorecendo a identificação de fenômenos transformadores e particulares, ao mesmo tempo em que se repensou as interpretações tradicionais da historiografia a respeito dos “pobres” em ambos espaços. Observou-se que os usos dos termos referentes a eles nos textos normativos bizantinos e carolíngios não foram apenas um testemunho estatístico do empobrecimento de suas respectivas sociedades, mas também resultado dos interesses dos agentes envolvidos na elaboração destes documentos, as cortes bizantina e carolíngia, tratando-se também de uma questão política.
Palavras-chave: Império CarolíngioImpério Carolíngio,Império BizantinoImpério Bizantino,PobresPobres,Alta Idade MédiaAlta Idade Média,NormasNormas.
Abstract: Between eight and tenth centuries, central powers in Occident and Orient issued legal documents in favor of the “poors”. This paper investigates the reasons why these authorities cared for the “poors”, specially for the “poor’s oppression”. Under a “Global History” view, we approached the subject in a comparative way, underlining the particularities of this phenomenon at same time that we take time to rethink the historiography’s vision about the “poor” in both societies. We came to the conclusion that the employ of the words which references the “poor” in byzantine and carolingian normative texts is not just a statistical testimonial of kingdoms impoverishment or seigniorial abuses. But as a result from authorities interests, the use of words “penetes” and “pauper” in these normative texts represents not only a possible socio-economic transformation but also a shift in the political culture at that period.
Keywords: Carolingian Empire, Byzantine Empire, Poor, Early Middle Ages, Normative texts.
DOSSIÊ: UMA HISTÓRIA GLOBAL ANTES DA GLOBALIZAÇÃO?
O CUIDADO DO “POBRE” ENTRE OS SÉCULOS VIII E X: UMA QUESTÃO POLÍTICA “GLOBAL”? 1
THE CARE FOR THE “POOR” BETWEEN EIGHT AND TENTH CENTURIES: A “GLOBAL” POLITICAL MATTER?
Recepção: 19 Agosto 2019
Aprovação: 18 Fevereiro 2020
Entre os séculos VIII e X, diferentes autoridades reais e imperiais no Ocidente e no Oriente expediram normas em favor dos “pobres”. Num dos mais importantes documentos normativos da segunda metade do século IX, o Edictum Pistense (Pîtres, FRA) de 864, Carlos o Calvo (m. 877) dedicou um de seus capítulos à proteção e realização da justiça para os pauperes.
Alguns poucos milhares de quilômetros a leste dali, imperadores bizantinos publicaram, ao longo do século X, dezenas de decretos em que procuravam cessar a opressão dos ptôchos/penês (“pobres”, “fracos”) pelos dunatoi (“poderosos”) (MORRIS, 1976, p. 3-27). Ora, quais motivos levaram diferentes cortes reais e imperiais, em diferentes localidades, a se preocuparem tão diligentemente com os “pobres”? Esta é a questão que este artigo pretende responder. Para isso, parte-se da ideia sugerida pela corrente interpretativa denominada “História Global” ou “História Conectada” que coloca como urgente a necessidade de se estudar as sociedades pré-industriais a partir de abordagens comparativas e transdisciplinares, favorecendo a identificação de fenômenos transformadores e repensando os parâmetros tradicionais da historiografia, quer sejam eles o espaço ou de cronologia (HOLMES, STANDEN, 2015, p. 106-117).
O Império Bizantino do século X foi marcado por disputas sociais e políticas. O centro dessas disputas era o arrendamento de terras, em especial daquelas propriedades que beneficiavam o fisco imperial; a ascensão de ricos proprietários nas províncias bizantinas que, ao comprarem as terras dos mais pobres, reduziam estes à servidão e tornavam privadas as rendas do fisco público (PATLAGEAN, 2007, p. 217). O reino, após 800,e império carolíngio passou por situação semelhante: não raro eram as medidas expedidas pela corte contra a ação dos “poderosos” que se apropriavam das terras dos “pobres” e da Igreja (DEVROEY, 2006, p. 317).
Temos, então, dois impérios de tamanho continental: a autoridade carolíngia - em seu apogeu no século IX, estendeu-se sobre grande parte da Europa ocidental, em localidades que hoje conhecemos por Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e Suíça -; e o Império Bizantino do século X tinha como limites a Itália meridional a oeste e as cabeceiras do Tigres e do Eufrates a leste, e a atual Bulgária no norte à atual Síria no sul. E ambos trataram o conflito entre “poderosos” e “pobres” de maneira semelhante: promulgando decisões normativas visando solucionar estes conflitos. Entre os bizantinos, encontramos bulas douradas (chrysobullos logos), novelas, e respostas da corte surgidas da promulgação das novelas com força de lei (conhecidas como prostaxis) (MORRIS, 1976, p. 6-7). Já os carolíngios lançaram mão de documentos conhecidos como capitulares, sobre os quais falaremos mais à frente.
A historiografia tradicional do mundo bizantino viu na “questão das terras” do século X a evidência de uma oposição social e econômica que marcava a própria estrutura da sociedade da época (cf. OSTROGORSKY, 1969, p. 269-287; LEMERLE, 1979, p. 90-108). Rosemary Morris, ao analisar o mesmo dossiê documental (composto de atos normativos expedidos pela corte bizantina entre 927 e 996) chegou a uma outra conclusão: o “conflito” entre ptôchos/penês e dunatoi seria uma construção do discurso normativo originário da corte imperial, refletindo a oposição vista ao longo de todo o século X pela supremacia do poder central contra as tendências separatistas da aristocracia rural (MORRIS, 1976, p. 11-27). A oposição linguística entre ptôchos/penês e dunatoi, inclusive, não seria uma novidade daquele período, mas remontaria aos códigos jurídico-legislativos do século IV (PATLAGEAN, 1977, p. 9-36, especialmente p. 11-17).
No que se refere ao período carolíngio, para parte da historiografia, a frequente menção dos “pobres” nos documentos do período seria testemunha da condição estrutural daquela sociedade: o verdadeiro colapso social ao qual estavam submetidas essa população, na medida em que a multiplicação de ocorrências de um termo que se traduz por “pobre” nas línguas modernas (“pauper”) refletiria i) o quão perene e amplo era o estado de penúria econômica vigente (cf. DUBY, 1966, p. 25-32; MOLLAT, 1976; FOSSIER, 1981, p. 261-274), e ii) a ineficiência da autoridade governante em fazer valer seus atos normativos, donde a usual repetição de preceitos com temas semelhantes - nos quais se incluem muitos sobre os “pobres” (FICHTENAU, 1958, p. 180; GASHOF, 1968, p. 30).
Ocorre que este pessimismo quanto às condições estruturais das sociedades da Alta Idade Média vem sendo contestado por diferentes correntes historiográficas nos últimos anos. Engajados numa outra perspectiva, os estudiosos do período têm apresentado evidências que nos permitem reavaliar esta “crise” generalizada que teria se abatido sobre o Ocidente no primeiro milênio de nossa era nas mais diversas esferas da vida social: da morfologia de povoamento aos modos de habitação (cf. WICKHAM, 2005), passando pela paisagem rural (cf. BONASSIE, 1990, p. 13-35; DEVROEY, 1993, p. 29-45) e os sistemas de trocas (ver, por exemplo, HODGES, 1989; VERHULST, 2002; DEVROEY, 2003; TOUBERT, 2004; FELLER, GRAMAIN, WEBER, 2005; INNES, 2009).
Igualmente, hoje em dia são raros os historiadores que aceitam a tese sobre a incapacidade dos governantes da Alta Idade Média em criar estruturas governamentais adequadas ao controle de seus reinos ou impérios. Nomes como Janet Nelson (NELSON, 1990, p. 258-296; NELSON, 1995, p. 110-141) e Matthew Innes (INNES, 2000) demonstraram como as instituições carolíngias funcionavam numa complexa rede de políticas central e locais, permeadas por interações conflitivas ou não.
Ora, é possível, então, que realizando um tipo de investigação semelhante àquela feita por Morris acerca da documentação normativa bizantina, encontre-se para o período carolíngio uma outra resposta além daquela tradicionalmente dada pela historiografia acerca do cuidado dos “pobres” pelos príncipes carolíngios? Para isso, iremos nos concentrar nas ocorrências do termo “pauper” nos apitulares naquele período, uma vez que é a que mais frequentemente ocorre na documentação.
Antes de apresentar o problema do pauper nos capitulares carolíngios, convém explicar brevemente o que se entende por estes documentos. A explicação clássica entende por “capitulares” os decretos, ordenamentos ou anúncios de caráter legislativo, administrativo ou religioso provenientes dos príncipes francos reunidos em assembleia com os grandes personagens do reino e que eram divididos em cláusulas ou capítulos (os capitula).
Esta definição, porém, peca em precisão. Por exemplo, nem todos estes documentos categorizados como “capitulares” seguiam a forma de capitula: há cartas (Pippini ad Lullum epistola. MGH Leges, Capit. 1, no. 17, p. 42), preces (Precatio franconica. MGH Leges, Capit. 1, no. 109, p. 224) e mesmo inventários (Brevium exempla ad describendas res ecclesiasticas et fiscales. MGH Leges, Capit. 1, no. 128, p. 250) entre eles. Desta forma, os editores modernos criaram uma categoria artificialmente rígida que foi projetada num tipo “fluido” de documentos.
Tendo em vista estas limitações, os especialistas da área vêm propondo outras maneiras para entender os capitulares. A forma dos capitulares, por exemplo, que seria um aspecto que os distinguiria em relação a outros documentos não seria uma novidade, já que configurações semelhantes poderiam ser encontrados no direito romano ou no direito canônico, ou mesmo nas epístolas paulinas (MCKITTERICK, 2008).
Passou-se a se levar em conta também, no processo de composição dos capitulares, os destinatários do texto na medida em que um capitular seria influenciado, ou mesmo determinado, por estes personagens (bispos, abades, condes ou outros grandes do reino). Em decorrência disso, mesmo as reuniões entre o monarca e os grandes dos reino não seriam elementos imprescindíveis para a discussão ou composição de um capitular, tendo em vista que proclamação oral das medidas normativas, alegada como essencial até então pelos especialistas (GANSHOF, 1957, p. 227), poderia ser negligenciada em favor somente da redação dos desígnios reais (KIKUCHI, 2012, p. 67-80).
Pensar que o denominador comum dos capitulares, ou seja, aquilo que os faz serem capitulares seja a ideia de promover, numa forma escrita e normativa, a visão daqueles envolvidos no governo do reino franco (PÖSSEL, 2006, p. 253-276; MORDEK, 2000, p. 55-80). Eles seriam instrumentos políticos que, além de exprimir as intenções da corte, articulam o acordo das elites laicas e eclesiásticas, ao menos nominalmente.
Outra dimensão dos capitulares está em sua natureza simbólica. Os decretos expedidos pela autoridade governante fornecem evidências diretas da imagem que os príncipes carolíngios queriam transmitir de si mesmos (WORMALD, 1999, p. 50). Tome-se o capitular Admonitio generalis de 789 como exemplo: seu longo preâmbulo (MGH Leges, Capit. 1, no. 22, p. 53-54.) fala da necessidade de se garantir a salvação do povo franco por intermédio da ação tanto da elite eclesiástica quanto da elite laica, incluso aí a realeza. O próprio Carlos Magno se compara ao rei Josias, personagem do Antigo Testamento, que pela correção e exortação fez vingar o culto do verdadeiro Deus no reino que lhe havia sido entregue pelos céus (MGH Leges, Capit. 1, no. 22, p. 53; Reg 2:22-23). Assim, é preciso ter no horizonte que uma das funções dos capitulares também foi veicular por escrito as visões dos príncipes carolíngios sobre o papel exercido por eles no cumprimento de seu governo.
A primeira menção do termo “pauper” num documento normativo atribuído a um soberano carolíngio não se encontra num capitular per se, mas numa carta escrita pelo rei Pepino o Breve (m. 768) ao bispo Lullo de Mainz (m. 786) - o que por si só demonstra os problemas de se determinar o que vem a ser um capitular ou as justificativas para editá-los como tal, como discutido anteriormente. Nesta carta, datada entre 755 e 768 , o monarca comemora a superação das tribulações (tribulationem) que haviam afligido o reino e recomenda ao bispo, entre outras coisas, alimentar os pauperes em prol da continuidade da bonança .
Da carta de Pepino ao capitular de Pavia, promulgado em 832 por Lotário I (MGH Leges, Capit. 2, no. 201, p. 59-63), o número de menções à palavra “pauper” só fez crescer, passando de 12 ocorrências entre anos 755-800 para 82 ocorrências entre os anos 801-832. Este cenário pode ser esquematizado da seguinte maneira:
O maior número de ocorrências da palavra “pauper” nestes documentos se concentra entre os anos 800 e 830, embora a década de 780 também tenha testemunhado um uso acima da média vista no período entre 751 e 840;
Carlos Magno e Luís o Piedoso foram os governantes carolíngios que mais utilizaram a palavra “pauper” em seus capitulares, muitas vezes com mais de uma ocorrência por capitular - embora seja necessário notar que i) todos os reis ou imperadores entre os anos 751 e 840 tenham-na mencionado ao menos uma vez nos capitulares a eles atribuídos; ii) Carlos Magno e Luís o Piedoso têm mais capitulares atribuídos a eles do que os outros membros da dinastia carolíngia.
Mas, no fim das contas, o que isso significa? Pode-se especular, por exemplo, os motivos do elevado número de ocorrências nos anos 800-830. Período de maior produção de capitulares neste recorte, o momento também foi visto como sendo um dos mais afetados por anomalias climáticas, que teriam causado interrupções na produção e distribuição de alimentos (MCCORMICK, DUTTON, MAYEWSKI, 2007, p. 865-895). A frequente repetição da palavra “pauper” nestes documentos estaria, então, relacionada a eventos deste tipo, sendo os capitulares respostas às crises diversas (famélicas, bélicas ou outras) que acometiam o reino? É precipitado dizer, não só pelas limitações que tais aferições possuem , mas também em razão do emprego de “pauper” nos capitulares: é preciso ter em conta o contexto dos usos específicos que se fizeram dela.
Isto porque a questão da recorrência de palavras ou expressões sobre o tema nestes documentos serviu de base às interpretações que, a despeito de terem sido formuladas a mais de 50 anos atrás, ainda hoje são seguidas por boa parte da historiografia que lida com o assunto.
Isto se deve ao influente estudo sobre as palavras “potens” e “pauper” feito pelo historiador alemão Karl Bosl em 1963 (BOSL 1964; trad. it. 1983). Bosl fundamentou seu argumento no Capitulare missorum specialia de 802, atribuído a Carlos Magno, no qual se encontram prescrições para que os missi favorecessem a realização da justiça (iusticia) pelo reino. No capítulo 12 deste documento se lê: “De obpressionibus liberorum hominum pauperum, qui in exercitu ire debent et a iudicibus sunt obpressi” (MGH Leges, Capit. 1, no. 34, c. 12, p. 100).
Bosl caracterizou estes “liberi homines” como súditos (Königsfreien) livres, sujeitos ao serviço militar, e que por serem pauperes eram oprimidos pelos juízes e por isso seriam fortemente dependentes da autoridade real (BOSL, 1983, p. 99-100).
O autor compara então o trecho precedente com o capítulo conclusivo do mesmo documento: “Insuper totum, undecumque necesse fuerit, tam de iustitiis nostris quamque et iustitias ecclesiarum, viduarum, orfanorum, pupillorum et ceterorum hominum inquirant et perficiant.” (MGH Leges, Capit. 1, no. 34, c. 19, p. 101)
Embora o texto não seja claro, Bosl acreditou que a expressão “ceterorum hominum” presente neste capítulo se referia aos “liberorum hominorum pauperum” do capítulo 12. Esta constatação é importante para a teoria do autor tendo em vista o conteúdo do capítulo 18:
De banno domni imperatoris et regis, quod per semetipsum consuetus est bannire, id est de mundeburde ecclesiarum, viduarum, orfanorum et de minus potentium atque rapto et de exercitali placito instituto: ut hi qui ista inrumperint bannum dominicum omnimodis conponant.” (MGH Leges, Capit. 1, no. 34, c. 18, p. 101)
Note-se que, diferente do capítulo 19, onde as palavras “viduarum” e “orfanorum” são acompanhadas pela expressão “ceterorum hominum”, neste capítulo 18 elas são seguidas pela expressão “minus potentium”. Assim, por conclusão lógica, Bosl afirmou que os “liberi homines pauperes” presentes no capítulo 12 seriam equivalentes semanticamente ao “minus potentes” deste capítulo 18. Por isto, “pauper” teria uma definição negativa nos capitulares: quem não é “potens” (BOSL, 1983, p. 100). O historiador alemão supôs então que, à época carolíngia, “pauper” não faria referência à uma condição econômica, mas sim a critérios legais (liberdade) e sociais (dependência) (BOSL, 1983, p. 101-102).
Em que pese toda tradição da argumentação de Bosl , ela apresenta pontos a serem discutidos. O primeiro diz respeito a algumas leituras do autor. Por exemplo, o capítulo 12 do Capitulare missorum specialia, apresentado acima, não menciona os pauperes per se, mas sim os “liberi homines” qualificados pelo adjetivo “pauperes”. Não se justificaria, assim, igualar as expressões “liberi homines” e “minus potentes” . E mesmo a ideia de que a liberdade legal passou a ser um requisito para a definição de pauper não parece ser uma novidade carolíngia: em meados do século IV, o imperador Marciano (m. 457) esclareceu, por meio de medidas normativas, que uma mulher seria digna de casar-se com um senador a despeito de sua condição de pauper (entendida aqui como a falta de bens materiais) desde que ela tivesse nascido livre e cujos pais também fossem livres (mas não libertos) (HUMFRESS, 2006, p. 183-194).
Ao mesmo tempo, “pauper” não parece ser uma palavra comum no vocabulário normativo sobre a situação de liberdade de um indivíduo. A Fórmula de Tours 43 é bem clara a respeito: tal documento descreve o contrato que um sujeito sem condições de alimentar-se e vestir-se estabelece com um senhor para receber tais benefícios em troca de seus serviços . No caso, a fórmula estabelece que aquele que se recomenda deve servir e respeitar “como pode fazê-lo um homem livre (ingenuili ordine)”. Ainda que reforce o fato de pouco possuir (ego minime habeo), em nenhum momento a palavra “pauper” é utilizada no documento.
Nas poucas vezes em que se pode perceber uma definição mais objetiva de pauper nos capitulares, ela não faz qualquer menção ao estatuto jurídico do indivíduo. É o que se pode ler no capitular Summula de bannis: “Contra pauperinus qui se ipsus defendere non possunt, qui dicuntur unvermagon”. (MGH Leges, Capit. 1, no. 110, c. 4, p. 224).
O texto estabelece uma equivalência entre “pauperinus”, uma derivação do radical “pauper”, e “unvermagon”. Segundo Alfred Boretius, editor deste capitular nos MGH, “unvermagon” é a raiz do termo alemão moderno “unvermögend” que pode ser traduzido para o português como “desprovido” ou “sem recursos” (MGH Leges, Capit. 1, no. 110, p. 224, nota 1). Este “recurso” é apresentado na própria medida: pauper(rinus) seria aquele incapaz de se defender - embora o próprio Summula de banis não explicite o que se entende por “defender” e de quem se defende.
Esta noção é dada por outra caracterização dos pauperes nos capitulares: sua classificação como “minus potentes” ou “i(m)(n)potentes”. Em diversas ocasiões, “pauper” e as duas expressões parecem ser intercambiáveis. Por exemplo, no capítulo 2 do Capitulare de iustitiis faciendis, datado do ano de 811 e atribuído a Carlos Magno, é dito que:
Ut episcopi, abbates, comites et potentiores quique, si causam inter se habuerint ac se pacificare noluerint, ad nostram iubeantur venire praesentiam, neque illorum contentio aliubi diiudicetur neque propter hoc pauperum et minus potentium iustitiae remaneant. Neque comes palatii nostri potentores causas sine nostra iussione finire praesumat, sed tantum ad pauperum et minus potentium iustitias faciendas sibi sciat esse vacandum. (MGH Leges, Capit. 1, no. 80, c. 2, p. 176. Grifo nosso).
Ao se preocupar em precisar o papel da autoridade carolíngia na realização da justiça, esta determinação ilustra a maneira pela qual esta classificação era entendida: bispos, abades e condes fariam parte do grupo de potentes (“poderosos”), cujas causas ou processos judiciais requereriam a audiência real. O outro grupo seria composto pelos pauperes ou minus potent(i)um. A mesma ideia aparece no Capitulare e concilis excerpta de 813 :
Propter provisiones pauperum, pro quibus curam habere debemus, placuit nobis, ut nec episcopi nec abbates nec comites nec vicarii nec iudices nullusque omnino sub mala occasione vel malo ingenio res pauperum vel minus potentum nec emere nec vi tollere audeat; sed quisquis ex eis aliquid conparare voluerit, in publico placito coram idoneis testibus et cum ratione hoc faciat.” (MGH Leges, Capit. 1, no. 154, c. 2, p. 312. Grifo nosso).
Neste capitular, vemos a identificação de pauper com a expressão minus potentum (além de inferir que vigários e juízes também fariam parte do grupo de potentes, já que a medida os contrapõe aos pauperes ao impedi-los de comprar ou tomar as propriedades destes últimos). A classificação de pauperes como minus potentes aparece ainda em outros exemplos nos capitulares . Daí o argumento de Bosl, e de toda a historiografia que o seguiu, de que a diferenciação social no reino carolíngio operaria somente segundo o binômio potens-pauper.
Mas a ideia de que “pauper” não apresentaria um sentido econômico nos capitulares nos parece limitada. No capítulo 2 do Memoratorium de exercitu praeparando de 807 (MGH Leges, Capit. 1, no. 48) são previstos quais dos habitantes deveriam se apresentar ao exército franco e os critérios estabelecidos para isso tinham em conta as propriedades fundiárias (mansus) dos indivíduos. Aqueles que possuíam entre 5 e 3 mansi deveriam se apresentar ao exército. A mesma regra foi imposta a qualquer um que não tivesse terras ou recursos humanos (mancipium), mas bens no valor de até cinco solidos (moedas de ouro). Este sujeito foi classificado no capitular como pauper . Ainda no contexto dos serviços militares, o Capitulare de expeditione corsicana de 825, atribuído a Lotário I, recomenda aos sujeitos que, em razão de sua pobreza (pro paupertate sua) não pudessem se armar sozinhos com os equipamentos de guerra, eles deveriam se associar entre si para que um deles partisse para a expedição; e que aqueles, cuja extrema pobreza (nimia paupertate) impediria inclusive de participar de tal associação, seriam isentados pelo conde (comes) de tais serviços .
Já no Capitula de presbyteris admonendis (MGH Leges, Capit. 1, no. 120), de datação incerta ainda que atribuído a Carlos Magno, foi denunciada a elevação de alguns pauperes que, por meio da entrada no sacerdócio, vieram a comprar para si terras (alodium), mão-de-obra (mancipium) e outros recursos , demonstrando como alguém sem poder aquisitivo era classificado também como pauper. Esta ideia é encontrada também no Capitulare missorum Aquisgranense secundum, que face a uma crise epizoótica, estabelece que os pauperes pudessem pagar o mínimo - provavelmente o preço dos víveres básicos para sustento.
Estas ocorrências dialogam com o uso da palavra “pauper” em outros documentos do período. Eginardo (Einhardus, m. 840), ao descrever os espólios da guerra dos francos contra os ávaros em meados dos anos 790, comenta como os francos deixaram de ser considerados pauperes por tamanha riqueza em ouro e prata . Ora, então, “pauper” também possuía, à época carolíngia, um referencial econômico-financeiro desconsiderado por Bosl e seus seguidores.
Por fim, a conclusão do historiador alemão também merece questionamento. Bosl sintetiza assim seus argumentos:
No curso do declínio da antiga ordem municipal, o par conceitual honestiores e humiliores se transformou na oposição potentes-humiles (pauperes). Isto penetrou na linguagem oficial do império franco e se tornou particularmente difundido no século IX. A cultura urbana da Antiguidade desapareceu, e a antiga oposição liber-servus tornou-se ilusória numa sociedade agrária, feudalizada, dominada pelo exercício do poder. Oposta a esta classe governante portadora de espadas (schwerttragenden) no império estavam os liberi (Königsfreien) e os servi que necessitavam de proteção [...] agrupados sob o nome de pauperes, que se referia primariamente a sua necessidade de serem defendidos.” (BOSL, 1983, p. 107. Tradução nossa).
A suposta transformação da categoria social humiliores (e mesmo plebei) em pauperes teria ocorrido na própria Antiguidade, como testemunham os autores cristãos daquele período (FREU, 2007, p. 573). E a despeito de ventilar a ideia de existirem camponeses legalmente livres, na contramão das interpretações mais tradicionais daquela época (FREEDMAN, 1991, p. 2), Bosl ainda tinha em mente o esquema que coloca o período carolíngio em processos de transformação de longa duração: ao pensar as propriedades carolíngias como “feudalizadas”, o autor tinha em mente as estruturas agrárias vistas, talvez, somente nos séculos posteriores . Por fim, fiel à sua formação constitucionalista, Bosl tomou os capitulares apenas em seu viés legal, sem considerar outros fatores operantes em sua elaboração: afinal, das 9 ocorrências da expressão “liberi homines pauperes” nos capitulares datados entre 755 e 832, 5 se dão sob a mesma forma: “de oppressione liberorum hominum pauperum” . Aqui se entra no problema exposto no início deste artigo acerca das medidas em favor dos “pobres”.
O verbo “o(b)(p)rimo” é um dos mais comumentes associados à palavra “pauper” nos capitulares carolíngios. De fato, é possível contar 18 co-ocorrências entre os dois termos nestes documentos , 24 se contarmos a coleção de Ansegiso . Com um sentido que remonta desde a Antiguidade à ideia de “oprimir” (GAFFIOT, 1981, p. 1086.), a historiografia comumente interpretou esses números como testemunhas de um “tempo de abusos” , isto em razão da maneira como as determinações foram formuladas: elas buscavam impedir a “opressão dos pauperes”. O capítulo 16 do Capitula in Theodonis [Thionville, FRA] villa datum generale de 806, atribuído a Carlos Magno, é exemplo deste discurso: “De oppressione pauperum liberorum hominum, ut non fiant a potentioribus per aliquod malum ingenium contra iustitiam oppressi, ita ut coacti res eorum vendant aut tradant.” (MGH Leges, Capit. 1, no. 44, c. 16, p. 125).
Ou o capítulo 3 do Capitula legi addita de 816 e atribuído a Luís o Piedoso:
De mannire vero, nisi de ingenuitate aut de hereditate, non sit opus observandum. De ceteris vero inquisitionibus per districtionem comitis ad mallum veniant et iuste examinentur ad iustitias faciendum. Comites vero non semper pauperes per placita opprimere debent” (MGH Leges, Capit. 1, no. 135, c. 3, p. 270).
Ou ainda tão simples quanto o capítulo 51 do Capitulare missorum item speciale (802-806), de Carlos Magno: “Ut liberi homines pauperes a nullo iniuste opprimantur.” (MGH Leges, Capit. 1, no. 35, c. 51, p. 104).
Vê-se que a “opressão” sublinhada nestas determinações poderia tomar diversas formas, do abuso de poder nos tribunais à coação financeira. Em outras, ressalta-se a violência física dela decorrente . Este discurso se alinha com uma das poucas definições diretas de pauper nos capitulares: a de que pauperes não poderiam (ou conseguiriam) se defender. Não é de se espantar, portanto, que grupos vulneráveis, como viúvas e órfãos, também fossem incluídos ao lado dos pauperes nestas medidas que visavam proibir sua opressão, como demonstra o Capitulare missorum (818/819) de Luís o Piedoso:“De pauperibus et viduis et pupillis iniuste oppressis, ut adiuventur et releventur.” (MGH Leges, Capit. 1, no. 141, c. 3, p. 289).
Ora, a frequente proibição da opressão dos pauperes seria, então, evidência dos tempos de “abuso” ou “violência” daquele período? De fato, alguns registros ilustram uma imagem demasiadamente brutal para que se neguem as possíveis ocorrências de tais situações . No entanto, é preciso ter em conta um conjunto de circunstâncias que tornam a interpretação destes testemunhos mais complexa do que uma simples leitura estatística pode oferecer.
Por exemplo, deve-se atentar ao fato de que a opressão dos pauperes também é um tema bíblico. A co-ocorrência das palavras “pauper” e “oppressio” ocorrem em ao menos 7 passagens . Em duas delas, o texto cristão se assemelha ao discurso dos capitulares . Vê-se como a preocupação com a opressão dos pauperes (bem como viúvas, órfãos e destituídos) do texto bíblico dialoga com os elementos discutidos nos capitulares a respeito do tema. Não sem motivo, afinal algumas menções aos pauperes nestes documentos são citações da própria Bíblia .
A teologia cristã pode ser considerada um elemento essencial para a realeza carolíngia. Como vimos, Carlos Magno se comparou a Josias, rei do Antigo Testamento, em um de seus capitulares e ele mesmo foi apelidado de “Davi” por seus cortesãos, associando-o ao papel de salvador precursor do Cristo (DE JONG, 2005, p. 113). Além disso, seu filho Luís teria ganhado o qualificativo “Piedoso” justamente por promover uma política religiosa notavelmente favorável à Igreja e aos valores cristãos .
Ao incorporar elementos da retórica cristã ao seus decretos, no caso a proibição da opressão e defesa dos pauperes, viúvas, órfãos e igrejas, a autoridade carolíngia foi além de apenas professar valores religiosos, ela procurou demarcar para si uma posição em primeiro plano como governantes cristãos (MCKITTERICK, 2008, p. 136; CLOSE, 2011, p. 305-308), estabelecendo dentro da racionalidade do poder uma estratégia própria .
Ainda que esta tarefa não seja novidade dos monarcas carolíngios - num decreto datado do ano de 614, Clotário II (m. 629), rei franco da dinastia merovíngia, também se colocou como defensor das igrejas e dos pauperes - a iniciativa em coibir a opressão dos pauperes parece ser uma preocupação aguçada nos séculos VIII e IX, e que vai além dos capitulares. No Concílio de Paris de 829, por exemplo, os bispos ali reunidos descreveram como uma das atribuições do ministério real (ministerium regis) o dever do rei em não permitir que os pauperes fossem oprimidos .
Outra dimensão que ajuda a compreender os usos da palavra “pauper” nos capitulares carolíngios é o próprio status de alguns destes documentos nos quais se encontra o termo. É o caso dos capitulares ditos “programáticos”, isto é, capitulares nos quais se apresentam medidas com vistas à implementação de um programa/projeto de governo no reino carolíngio . Tome-se, por exemplo, o Admonitio Generalis de 789: a salvação do povo franco, por meio das ações da realeza, poderosos laicos e eclesiásticos, era o objetivo das discussões que deram origem ao capitular . Além de se comparar a Josias, o rei do Antigo Testamento, Carlos Magno se colocou como “gratia Dei eiusque misericordia donante rex et rector regni Francorum et devotus sanctae aeclesiae defensor humilisque adiutor” (MGH Leges, Capit. 1, no. 22, p. 53). Neste papel de defensor das igrejas e protetor (adiutor) dos humildes, o rei promulgou os capítulos 47 e 75. No capítulo 47, lê-se: “47. Omnibus. In concilio Gangarense, ut nulli liceat oblata, quae ad pauperes pertineant, rapere vel fraudare.” (MGH Leges, Capit. 1, no. 22, p. 57).
Já no capítulo 75, lê-se:
“75. Omnibus. Et hoc nobis competens et venerabile videtur, ut hospites, peregrini et pauperes susceptiones regulares et canonicas per loca diversa habeant: quia ipse Dominus dicturus erit in remuneratione magni diei: “hospes eram, et suscepistis me”; et apostolus hospitalitatem laudans, dixit: “per hanc quidam placuerunt Deo, angelis hospitio susceptis”.
Nestes dois capítulos se encontram as duas menções a “pauper”. No capítulo 47, endereçado a todos, é recuperado um cânone do Concílio de Çankırı realizado em 340 no qual se proíbe a apropriação ou roubo das oferendas (oblata), que pertenceriam aos pauperes. Em que pese a retórica cristã, que foi muito trabalhada ao longo dos concílios desde então , não há uma definição de pauper, apenas uma determinação direcionada a este grupo. O mesmo ocorre no capítulo 75: a medida preocupa-se, fazendo uso do texto bíblico, em admoestar monges e cônegos (canonicas) a oferecerem abrigo aos peregrinos, estrangeiros e pauperes. Vê-se que a ocorrência da palavra “pauper” aí nada tem a ver com a descrição das condições socioeconômicas dos habitantes do reino, mas sim com o ideal de poder da corte carolíngia.
Isto ganha mais efeito se atentarmos para dois fatos: o primeiro é que a ideia do poder secular estimular a hospedagem de peregrinos, estrangeiros e pauperes não é nova. Podemos encontrar uma medida semelhante no Corpus iuris civilis de Justiniano (m. 565) (Corpus Iuris Civilis, 1.2.22, MOMMSEN, 1888-1895) . A segunda é que ela foi retomada, em outro capitular dito programático, o Capitulare missorum generale de 802. No capítulo 27, o agora imperador Carlos Magno ordena que nenhum de seus súditos ousassem negar hospitalidade a quem estivessem em peregrinação a serviço de Deus, citando novamente, como havia feito no capitular Admonitio Generalis de 789, Mt 25:35 . Também não se define quem seriam os pauperes, embora no texto eles sejam opostos aos ricos (divites).
Esta postura de proteção e defesa dos pauperes pode ser vista ainda em outros trechos do mesmo documento: já no preâmbulo, Carlos Magno adverte que pauperes, viúvas, órfãos, peregrinos e igrejas tenham justiça e proteção ; discurso que foi elaborado nos capítulos 25 e 29, onde o imperador carolíngio determinou que os pauperes não fossem oprimidos pelos juízes no cumprimento da justiça. Foi determinado também que a isenção do bannus real concedida aos pauperes fosse respeitada por juízes e condes .
Uma postura semelhante foi desenvolvida no Capitulare de iustitiis faciendis expedido em 811: a preocupação demonstrada por Carlos Magno era de que a justiça devida aos pauperes não fosse atrapalhada pelas disputas jurídicas entre bispos, abades, condes e outros poderosos . Ambos os Capitulare missorum generale de 802 e o Capitulare de iustitiis faciendis de 811 mencionam os pauperes, mas o foco das medidas não são eles: não há preocupação em definir este grupo, à exceção de categorias amplas como oposição a divites ou os descrever como “menos poderosos”. Como vimos, as designações ainda carregam elementos da retórica cristã, quando se fala por exemplo, de viúvas, órfãos e pauperes. A intenção está em sublinhar os problemas aos quais os pauperes estão “colados”: opressão, realização da justiça e a caridade cristã, no caso dos abrigos a eles devidos. O rei, Carlos Magno, visa cumprir seu papel de defensor dos pauperes a partir de seus decretos.
E isto não foi exclusivo de Carlos Magno. Como também vimos, todos os príncipes carolíngios que promulgaram capitulares entre 755 e 832 mencionaram a palavra “pauper” em seus documentos. Luís o Piedoso o faz, entre outros exemplos, no Ordinatio Imperii de 817, outro capitular que incorpora uma visão específica do reino: o retrato do império como uma estrutura sagrada, que deveria estar unido “para que a unidade do império conservada para nós por Deus fosse dividida pelos humanos” . A menção à palavra “pauper” neste documento segue esta lógica. Observe-se:
Si autem, et quod Deus avertat et quod nos minime obtamus, evenerit, ut aliquis illorum propter cupiditatem rerum terrenarum, quae est radix omnium malorum, aut divisor aut obpressor ecclesiarum vel pauperum extiterit aut tyrannidem, in qua omnis crudelitas consistit, exercuerit, primo secreto secundum Domini praeceptum per fideles legatos semel, bis et ter de sua emendatione commoneatur, ut, si his renisus fuerit, accersitus a fratre coram altero fratre paterno et fraterno amore moneatur et castigetur. Et si hanc salubrem admonitionem penitus spreverit, communi omnium sententia quid de illo agendum sit decernatur; ut, quem salubris ammonitio a nefandis actibus revocare non potuit, imperialis potentia communisque omnium sententia coherceat.” (MGH Leges, Capit. 1, no. 136, c. 10, p. 27).
Neste capítulo, Luís propõe meios de regular a cobiça (cupiditatem), “a raiz de todos os males” segundo o texto, de seus filhos - à época Lotário, Pepino da Aquitânia e Luís, o Germânico. Em caso em que um deles oprimisse as igrejas ou os pauperes, os outros deveriam intervir, num primeiro momento de modo brando, e, em último caso, pela coerção do poder imperial.
Novamente, a ocorrência de pauper neste capitular pouco ou nada tem a ver com o testemunho das condições materiais de um grupo ou de sua situação sócio-jurídica. “Pauper” aqui serve à ideia de poder expressada no capitular: é dever dos príncipes carolíngios zelar pelos pauperes, e se ele não cumprisse este papel, caberia aos outros detentores da prerrogativa imperial impedi-lo.
Este uso da palavra “pauper” perdurou ainda por diversos capitulares publicados por Luís o Piedoso: no Capitula legibus addenda e no Capitulare missorum de 818-819 , no Capitula de iustiis faciendis (c. 820) , no Capitulare de disciplina palatii datado provavelmente do ano de 820 , no já mencionado capitular Admonitio ad omnes regni ordines de 825 ou no Capitulare Wormatiense (Worms, ALE) de 829 . Isso sem contar aqueles documentos, classificados como capitulares por Boretius mas cuja identidade é passível de discussão, como a carta de Luís aos bispos por ocasião do Concílio de Aachen de 816 .
Ao procurar responder à questão que abre este artigo, a saber, quais os motivos que levaram as cortes bizantina e carolíngia a se ocuparem dos “pobres” entre os séculos VIII e X, é possível percerber que essa atenção não se calcou exclusivamente na solução das agruras passadas por “penetes” ou “pauperes”. Vocabulário, construções discursivas e tópicos culturais demonstram como as autoridades bizantina e carolíngia engendraram um complexo discurso para demarcar suas posições políticas.
Se a “questão das terras” da dinastia macedônica, como o estudo de Rosemary Morris sugere, aponta mais para a preocupação com a estabilidade do trono do que resultantes de quaisquer crises climáticas ou derrotas militares, isso se deu pela via da expedição de atos normativos, utilizados como propaganda contra os dunatoi. Por isso estes documentos nos dizem pouco sobre real estado dos pobres naquele momento da história do Império Bizantino. O “conflito” entre dunatoi e penetes foi uma construção das normas expedidas pela corte imperial bizantina (MORRIS, 1976, 26-27).
O caso carolíngio não parece ser muito diferente. De fato, o crescimento do número de ocorrências da palavra “pauper” nos capitulares expedidos sob estes príncipes francos ao longo do período foi exponencial, principalmente a partir do ano 800. Mas ainda que todos os príncipes carolíngios, de Pepino o Breve a Lotário I, tenham mencionado o termo, foram Carlos Magno e Luís o Piedoso os monarcas que mais o empregaram em seus decretos. Isso não se deu somente pelo número de documentos atribuídos a eles, mas também pelo papel desempenhado por “pauper” nos capitulares.
Muitas das ocorrências do termo se dão num contexto de referência ao texto bíblico, como na condenação da “opressão dos pauperes”. Nota-se, então, que as medidas normativas acerca do pauper apresentam-se carregadas de sentidos ideológicos, a caridade cristã tão sublinhada por alguns autores (MOLLAT, 1978), mas que necessariamente não correspondem à descrição de uma condição de vida do pauper.
Isto leva a questionar a leitura apressada que os historiadores fizeram da legislação oferecendo proteção aos pauperes como uma resposta direta às condições estruturais da sociedade carolíngia: opressora e promotora do desaparecimento do campesinato livre, uma vez que eles teriam sido forçados às redes de dependência de grandes proprietários rurais, laicos ou eclesiásticos. O problema, e não é objetivo discuti-lo aqui, não está na existência ou não dessa estrutura (cf. MCCORMICK, 2001; VERHULST, 2002). A questão é se a análise feita das ocorrências do termo “pauper” sustentam esta argumentação. E, nesse sentido, creio que não. Isto porque estes fragmentos de legislação não devem ser divorciados do contexto no qual eles foram promulgados e tomados como provas das ocorrências desses “abusos”.
Como se viu, as denúncias se fiam à uma longa tradição cristã e passaram a ser veiculadas em maior número num período bastante específico, isto é, após o coroamento imperial de Carlos Magno em 800. É possível imaginar, então, que este maior volume faça referência a outros aspectos da realeza carolíngia que não necessariamente a alguma mudança social pela qual passava o reino naquele momento.
Assinalou-se como os capitulares podem ser vistos como evidência da promoção das agendas dos governantes carolíngios, afinal estes documentos veicularam, de forma escrita e valor normativo, seu entendimento do poder. Num momento em que a autoridade carolíngia consolida-se como império, não nos parece improvável imaginar que a promulgação dos capitulares servissem também a este propósito e, por fazer parte destes documentos, o discurso sobre o pauper também seguiria a mesma lógica.
Lógica a qual se desdobra em dois níveis: o material e o imaterial. De um lado, é possível observar que os príncipes carolíngios, em especial Carlos Magno e Luís o Piedoso, tomaram medidas objetivas em favor dos pauperes: condenou-se a usura (Admonitio Generalis de 789 ), estabeleceu-se preços máximos dos cereais (Synodus Francofurtenses de 794 ), proibiu-se a exportação de alimentos em tempos de escassez (Capitulare missorum in Theodonis villa datum secundum, generale, de 805 ), determinou-se que um especialista em leis os auxiliassem em procedimentos legais (Capitula legibus addenda de 818/819 ), determinou-se o número de assembleias (placita) máximo por ano (Capitulare Aquisgranense de 809 , recuperado no Capitulare pro lege habendum Wormatiense de 829 ), entre outros.
Percebe-se aí uma mudança na postura em relação ao cuidado dos pauperes feito pela realeza: se em 779, data do Capitulare episcoporum, Carlos Magno, face às tribulações contemporâneas, preocupou-se com a distribuição de alimentos e dinheiro a uma quantidade limitada de pauperes famelicos - uma medida que se inscreveria mais numa noção de caritas cristã do que numa proposta “efetiva”, sob parâmetros modernos, de resolução da crise famélica vivida pelo reino -, a partir de 789, data do Admonitio Generalis, viu-se uma realeza empenhada em tomar medidas calcadas na experiência material para contrapor estas crises. Seria uma nova concepção de poder, o qual Jean-Pierre Devroey categorizou segundo a teoria weberiana como wertrational, i. e., uma ação racional pautada por valores morais (DEVROEY, 2016, 349-350). E ela se traduziria em outros elementos dos quais também fez parte o pauper.
É o caso, por exemplo, das sentenças acerca de quem deveria prestar o serviço militar, como visto no Memoratorium de exercitu in Galia praeparando de 807 . Interpretadas tradicionalmente como uma maneira de aliviar a pressão econômica sobre os pauperes, permitindo que se juntassem uns aos outros para cumprir os requisitos do haribannus, estas sentenças podem ser lidas de outra forma: uma maneira de estender a obrigação do serviço militar a um maior número de pessoas, principalmente no contexto de um império crescente e que assumia cada vez mais uma postura defensiva (REUTER, 1990, p. 400). A este fato se contrapõe a simples constatação de que, em trinta anos de Guerras Saxãs (772-804), nunca houve uma medida de seleção como esta. A lógica de poder e administração se transformou, com sinais desse processo já nos anos 790, e acabou se consolidando com a adoção do título imperial pelos carolíngios.
Salientou-se que essa “nova” lógica de poder explicitada nos capitulares também se desdobraria no plano imaterial e que as medidas sobre os pauperes também se incluiriam neste processo. Uma das características do discurso sobre o pauper nos capitulares, como ressaltado em na presente análise, é a repetição de medidas, principalmente aquelas contra a “opressão dos pauperes”. A constatação deste fato foi interpretada por alguns historiadores como a prova da ineficiência da autoridade carolíngia em fazer valer seus atos normativos. Talvez, os critérios de “eficiência” não devam ser os únicos paradigmas interpretativos que se deva utilizar para referir-se a este fenômeno (AIRLIE, 2009, p. 233) - até porque as evidências documentais do período são particularmente limitadas para uma análise satisfatória do cumprimento ou não dos decretos reais .
O problema é que este tipo de interpretação tem como referência o direito moderno e sua estrutura burocrática: sem encontrar correspondência na Alta Idada Média, este período histórico foi categorizado pela historiografia como normativamente ineficaz. Mas é necessário observar que estas diferenças em relação à repetição ou não de medidas normativas não são fruto necessariamente da fraqueza das autoridades governantes ou do atraso destas sociedades, mas talvez do próprio papel da norma entre elas.
Num trabalho de fôlego, Ildar Garipzanov demonstrou como a linguagem simbólica permeou a autoridade política carolíngia: iconografia, cartulários, moedas, manuscritos litúrgicos serviram à comunicação das ideias de poder da corte (GARIPZANOV, 2008). Dado que esta linguagem variava de acordo com as circunstâncias políticas, acredita-se que ela levava em conta o “horizonte de expectativas” da audiência. Foi assim que se passou da fórmula que favorecia uma tradição franca, a mesma das elites, em nomear os monarcas como “rex Francorum” , para uma outra, que reforçava o título imperial, chamando-lhes de “Imperator Augustus” .
Ora, não seria possível pensar que os capitulares também serviriam a esta função? A ideia de que as normas do período alto-medieval possuiriam também uma dimensão simbólica já foi levantada (WORMALD, 1977, p. 136; WORMALD, 1999, p. 50), e faz muito sentido se pensarmos que os decretos escritos pelos governantes carolíngios visavam não só sua aplicação ostensiva por todo o reino, mas representavam uma imagem que os príncipes gostariam de passar de si mesmos. Luís o Piedoso, por exemplo, desejava ser visto como um homem “coroado pelo comando (nutu) divino, governante do Império romano e o mais sereno Augusto” .
Assim, ao se colocarem como defensores das igrejas, viúvas, órfãos e pauperes nos capitulares, os reis carolíngios demarcaram uma dupla posição: mostrarem-se como governantes cristãos e demarcarem um “espaço” distinto de atuação frente às elites, principalmente laicas.
Isto porque esta relação “especial” com os pauperes promoveria não só uma retórica legitimadora, como também abasteceria as críticas ao comportamento da aristocracia. Uma maneira, talvez, dos reis colocarem em prática seu papel de rector (“governante”, mas também “guia”) tal como explicitado por Carlos Magno no Admonitio generalis : educando a elite governante no exercício correto do poder cristão.
O cuidado reservado aos pauperes teria em conta não somente uma atitude moral, e muito menos limitada ao reino de Carlos Magno (v. NOËL, 2001, p. 53-73), mas estava inserida numa racionalidade política visível em boa parte da autoridade carolíngia ao longo dos séculos VIII e IX, ainda que com maior proeminência a partir dos anos 800. Assim, a proteção dos pauperes se transformou num elemento legitimador do poder dos príncipes, dando um sentido à luta pela salvação do reino, uma vez que ressalta uma estrutura social na qual a autoridade sobre os pauperes se transfiguraria como um símbolo do poder sócio-político.
É difícil mensurar se houve influência da práxis política carolíngia a respeito do pauper na corte bizantina do século X. O contato entre os impérios existiu, muitas vezes de maneira conflituosa como testemunham as primeiras décadas do século IX, mas terminado o governo dos carolíngios no Ocidente em 888, tais contatos são difíceis de traçar. Sabe-se, porém, que do outro lado do canal da Mancha, o rei inglês Æthelstan (m. 939) promulgou, na primeira metade do século X, um ordenamento sobre a caridade. Este texto ‒ que se assemelha bastante aos capitulares carolíngios em forma e função (WORMALD, 1999, p. 30) ‒, determina que os desamparados fossem alimentados pelos magistrados do rei. Se isto não fosse feito, a multa decorrente desta infração, deveria ser distribuída, com o conhecimento do bispo, aos “þearfum”, isto é, aos “pobres”, “mendicantes” ou “necessitados” numa tradução moderna .
Mas é mais provável que tal desenvolvimento tenha como berço a própria cultura cristã, popularizada pela produção literária dos séculos III, IV e V a respeito do tema (FREU, 2007, p. 9). Obviamente, não se quer aqui apagar as particularidades locais no desenvolvimento histórico do fenômeno analisado - isto seria ir na contramão da proposta da “História Global” -, mas, de fato, como se pretedeu demonstrar que mais do que buscar os “verdadeiros” pobres, viu-se que os usos dos termos referentes a eles nos textos normativos bizantinos e carolíngios não foram apenas um testemunho estatístico do empobrecimento seus respectivos reinos ou dos abusos senhoriais perpetrados naquelas sociedades. Mas também resultado dos interesses dos agentes envolvidos na elaboração destes documentos, as cortes bizantina e carolíngia, bem como a transformação das construções normativas neles desenvolvidas (e a proteção dos “pobres” pelo poder real é um exemplo significativo neste sentido) em categorias da prática social. Por isso, vê-se que o tema do “pobre” no período e sociedades aqui estudados de forma comparativa e perspectiva global compreende não só indicadores socioeconômicos ou religiosos, mas trata-se também de uma questão política.
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