Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a transformação do Vale do Paraíba a partir dos conflitos agrários e étnicos que envolveram os índios e os luso-brasileiros, na passagem do século XVIII ao XIX, em Valença (Rio de Janeiro). Balizada pela discussão da História Social da Propriedade, acreditamos que a reprodução do modo de vida indígena estava ligada a um exercício costumeiro de direitos de propriedade, a despeito dos índios não possuírem títulos que comprovassem o domínio sobre as terras. É preciso pluralizar a discussão sobre a propriedade na tentativa de reconstituir direitos à terra que foram desconstruídos. Em vista disso, analisaremos os conflitos que perpassaram a definição dos direitos de propriedade dos índios antes da formação da plantation cafeeira. Ao longo deste processo, percebemos que os conflitos agrários estavam atravessados por conflitos étnicos, nos quais denominações reivindicadas para si e atribuídas por outros revelavam mudanças em torno do acesso à terra.
Palavras-chave: Índios, Direitos de Propriedade, Conflitos Étnicos, Vale do Paraíba, Valença.
Abstract: The main goal of this article is to analyze the transformation of the Vale do Paraíba from the agrarian and ethnic conflicts that involved the Indians and the colonial society, in the passage from the 18th to the 19th century, in Valença, Rio de Janeiro. Guided by the theoretical discussion on the Social History of Property, we believe that the reproduction of the indigenous way of life was also linked to a customary exercise of property rights, despite the fact that the Indians do not have formal titles that prove their dominion over the lands. It’s necessary to pluralize the discussion about land ownership and try to reconstitute property rights that have been deconstructed. In the meantime, we believe it’s necessary to analyze the conflicts over indigenous property rights before the formation of the coffee plantation. Throughout the process, we realized that agrarian conflicts were closely linked to ethnic conflicts, in which denominations claimed for themselves and attributed by others revealed changes around property rights.
Keywords: Indians, Property Rights, Ethnic Conflicts, Vale do Paraíba, Valença.
ARTIGO
POR UM VALE DO PARAÍBA INDÍGENA: CONFLITOS ÉTNICOS E A TRANSFORMAÇÃO DA PROPRIEDADE DOS ÍNDIOS EM VALENÇA (1780-1835)1
AN INDIGENOUS PARAÍBA VALLEY: ETHNIC CONFLICTS AND THE TRANSFORMATION OF INDIGENOUS PROPERTY IN VALENÇA (1780-1835)
Recepção: 07 Dezembro 2020
Aprovação: 27 Agosto 2021
Antes da disseminação do café no Vale do Paraíba, os índios Coroados, Araris, Puris, entre outras nações indígenas, viviam Serra Acima e usufruíram das regiões florestais durante muito tempo. Praticavam atividades de coleta, pesca e cultivavam, principalmente, milhos (os quais comiam ainda verdes), mandiocas, inhames, bananas, batatas, dentre outros gêneros alimentícios. Atravessavam, sem grandes dificuldades, os Rios Paraíba, Paraibuna, Preto e Peixe e faziam uso dos recursos naturais encontrados nas duas bandas destes rios. Além disso, “caçavam macacos, criavam papagaios e tiravam a cera da terra” para comercializar com alguns luso-brasileiros que apareciam por ali, timidamente, em meados do Setecentos (LEMOS, p. 61-63). Os primeiros contatos entre eles e a sociedade luso-brasileira foram consequência da abertura do Caminho Novo para as Gerais no início do XVIII. No entanto, foi somente no final deste século que os conflitos envolvendo estas duas sociedades evidenciaram uma verdadeira disputa pela fronteira. Correrias indígenas foram disseminadas pelos sertões, no processo de expansão da fronteira luso-brasileira, depois da decadência da exploração aurífera nas minas (LEMOS, 2016, p. 44-45).
Entre o final do século XVIII e o início do XIX, o Vale foi palco de grandes mudanças, principalmente no que tange à transformação espacial. A Serra Acima era cada vez mais transformada em fazendas e unidades de produção (SANCHES, 1989) para o abastecimento da cidade do Rio de Janeiro, num movimento de integração do Centro-Sul (LENHARO, 1993). A historiografia percebeu a formação de um mercado interno bastante dinâmico no final do período colonial que explicou a atualização do modo de produção escravista-colonial em zonas periféricas (FRAGOSO, 1998). Este processo se deu a partir da conversão do capital comercial em atividades agrícolas, como a lavoura cafeeira trabalhada com mão-de-obra escrava e barata, por volta de 1820 a 1840 (FRAGOSO; FLORENTINO, 1993; FLORENTINO, 2014).
Contudo, esta transformação espacial não foi natural e esbarrou com as populações indígenas que viviam nos sertões. Os índios foram os primeiros agentes que demarcaram alguns limites para os projetos luso-brasileiros. Como Marcelo Lemos (2016, p. 202) afirmou, o “índio não virou pó de café”, e é preciso resgatar a experiência histórica destes atores que retardaram a instalação da plantation cafeeira, com destaque para os índios Coroados assim reconhecidos, politicamente, nas fontes.
É necessário frisar que, antes dos códigos legislativos do século XIX que buscaram criar a noção de propriedade, diferentes atores sociais exerceram diversos direitos envolvendo o recurso da terra (CONGOST, 2007; PEDROZA, 2016; 2020). Paolo Grossi (2007, p. 65; p. 97) acreditou ser essencial redescobrir esta complexidade da dimensão coletiva no universo jurídico pesadamente sacrificada pelo projeto individualista liberal. O direito não pode ser “estrangulado em um rígido monismo” que aplasta o exercício (plural) de direitos de propriedade ao ser absolutizado o mito moderno da propriedade da terra, no singular. Logo, acreditamos que os índios também exerceram seus direitos de propriedade, mesmo antes da chegada dos sesmeiros naquela região e da formação da plantation cafeeira.
É preciso tomar cuidado, porém, com os processos de disputa em torno dos direitos de propriedade. Como Rosa Congost (2007, p. 17) nos afirmou, a proteção de alguns direitos de propriedade significa, muitas vezes, a desproteção de outros. Nessa linha de interpretação, Manoela da Silva Pedroza explicou que,
A luta de classes que perpassa a disputa por direitos de propriedade envolve, sempre, criminalizações e derrotas morais para os perdedores ou para os que agem fora do script. Essa é uma visão comum a respeito, por exemplo, de escravos ladrões, de quilombolas assaltantes de estradas, de índios beberrões, de Jecas Tatus preguiçosos, do malandro capoeira, das ‘classes perigosas’ (...). Direitos imemoriais ou amplamente exercidos, quando foram desprotegidos pelo governo se tornaram crimes (PEDROZA, 2016, p. 25-26).
Por este motivo, acreditamos que devemos treinar nosso olhar a todo o momento para tentarmos apreender os diversos interesses e os diferentes direitos de propriedade3 em jogo numa determinada localidade, sem reproduzir preconceitos da época e que foram bastante atualizados até o dia de hoje, a saber: o mito do índio preguiçoso e a negativação do nomadismo e da mobilidade indígena. Em cada período histórico analisado, tentaremos interpretar como os índios buscaram se adaptar à situação de forma estratégica, visando defender seu direito à terra dentro das possibilidades do momento.
Afirmar que havia uma fronteira aberta e uma oferta elástica de terras a serem apropriadas pelos homens de grosso trato nestas zonas periféricas (FRAGOSO; FLORENTINO, 1993; FRAGOSO, 2013) é fazer tábua rasa da resistência dos índios e perpetuar a negligência da historiografia para com estas sociedades. Em vista disso, procuraremos reconstituir aquilo que denominamos, de maneira provocativa, de propriedade indígena. Foi justamente a existência desta propriedade que dificultou os planos da Coroa interessada em colonizar aquela região para abrir a fronteira para os luso-brasileiros (MACHADO, 2012).
Proporemos um exercício de “pluralização proprietária” que, para Grossi (2006), se trataria também de um exercício de historicização da noção de propriedade na história da humanidade. Ao recuperarmos o devir das coisas, numa espécie de “libertária instância relativizadora”, conseguiríamos extrair outros direitos de propriedade, já que uma refinada ideologia projetou o singular – a “propriedade” – no “pináculo mais alto de um templo sacro.” (GROSSI, 2006, p. 5-6). O dever do historiador, para ele, é o de assumir a descontinuidade: historicizar a propriedade na história, acrescentando que aquilo que nos parece natural é, todavia, historicamente relativo. Não devemos projetar, indiscrimidamente, a resposta moderna ao problema do pertencimento no seio de outras experiências históricas. A propriedade privada da terra foi fruto de uma transformação de um tempo e de um espaço bem demarcados, resultado de uma sagaz estratégia da classe burguesa que individualizou as regras jurídicas a uma ordem de juristas empenhada em fixar a ideia abstrata que se tornou absoluta (GROSSI, 1986; 2006, p. 56; p. 91-92; 2007).
Para escapar desta ficção jurídica que tentou solucionar as relações de pertencimento entre a coisa (a terra) e o homem, congelada nos códigos legislativos liberais do século XIX, e que foi sacralizada e propagandeada em nossas mentes há mais de duzentos anos, Rosa Congost (2007) propôs uma inversão analítica: é necessário deslocar o nosso olhar daquela “propriedade-metáfora”, isto é, daquela propriedade como ideia abstrata, projetada pelos liberais, e compreender a “propriedade-realidade histórica”. Até porque a mutabilidade da realidade social interfere nas relações sociais de propriedade, para além dos princípios legais e dos marcos institucionais que estariam referendando a noção de uma propriedade “liberal, absoluta e perfeita” (CONGOST, 2014).
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é resgatar esta mudança socioespacial na Serra fluminense, entre o final do século XVIII e inícios do século XIX, a partir do processo de disputa e transformação da propriedade dos índios que lá habitavam. Estes conflitos agrários, no entanto, estavam atravessados por conflitos étnicos, nos quais denominações reivindicadas para si e/ou atribuídas por outros revelavam modificações em torno dos direitos de propriedade indígenas. Em vista disso, novas distinções étnicas criadas no contato com outros grupos sociais podem revelar também mudanças no próprio modo de vida e, em especial, alterações no que tange ao direito à terra (BARTH, 2000; BOCCARA, 2000).
Trabalharemos com três momentos históricos que demarcaram transformações desta propriedade indígena. O primeiro se refere às décadas de 1780 a 1800, nas quais analisaremos as correrias indígenas em diversos pontos da serra fluminense, avolumadas com o avanço luso-brasileiro na região mais ao Sul do Caminho Novo. O segundo momento, entre 1801 a 1823, se refere aos anos de existência do aldeamento de Nossa Senhora da Glória de Valença. Por fim, o período entre 1823 a 1835, aos anos em que foi extinto o aldeamento de Valença, elevado, por sua vez, à categoria de Vila.
Logo que nos avistaram, escapuliram rápidos pelo mato, desaparecendo de nossa vista.
Spix & Martius. Viagem pelo Brasil (1817-1820)
No final do Setecentos, a região do Médio Paraíba presenciou uma constante agitação. Os conflitos se localizavam na Serra fluminense, mais conhecida nas fontes como o “sertão dos índios bravios”, envolvendo as Capitanias de São Paulo, Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Segundo Marcelo Lemos (2016, p. 52), a agitação revelava uma disputa de fronteiras entre duas sociedades: “uma de extrema mobilidade cotidiana, das sociedades indígenas, e outra de caráter mais sedentário, dos luso-brasileiros”. Circunscrevendo esta mobilidade à Capitania do Rio de Janeiro, identificamos que os Coroados e Puris viviam numa região que se estendia do atual município de Resende até Cantagalo, onde transitavam entre os rios Paraíba e Preto e seus afluentes. Era a região conhecida como Paraíba Nova (OLIVEIRA, 2015, p. 159-175; LEMOS, 2016).
No início do século XVIII, o Caminho Novo para as Gerais foi aberto e uma nova região colonial foi formada. Os primeiros povoadores deste caminho praticavam uma policultura e se dedicavam à criação de animais – os currais – para “atender as necessidades daqueles que tinham nas minas seus objetivos pretendidos” (POLLIG, 2012, p. 141; CARRARA, 2007). Mas é interessante pontuar que o povoamento luso-brasileiro era bastante tímido até a segunda metade do século XVIII.
De acordo com Pizarro, podemos notar que as investidas indígenas foram expressivas a ponto de os colonos brancos abandonarem determinados lugares, “talvez assaltados e maltratados pelos mesmos índios, como costumam fazer ainda em alguns lugares”. Segundo ele, o despovoamento de algumas áreas seria decorrente da “moriçada indiada toda, [que] em tal modo se rebelou, que até hoje não tem sido possível angariar e sujeitar aquela nação, que se dividiu em diversos ramos por todo aquele continente.”4
Neste sentido, é importante ressaltar que na primeira metade do Setecentos, não existia uma noção de fronteira aberta, pois “nem todas as terras estavam à disposição do colono” (FARIA, 1988, p. 122). A ocupação era gradativa e “resultante do medo que as surpresas do sertão desconhecido causavam nos indivíduos” (POLLIG, 2012, p. 149). Não foi à toa que as “correrias”5, termo utilizado para denominar os confrontos com os índios, foram eficazes a ponto de estabelecer o limite do avanço luso-brasileiro. Por este motivo, Sanches (1989) denominou a primeira fase da Serra Acima de “região de comunicação” ou “economia de passagem”, caracterizada por uma ocupação de pousio de alguns tropeiros até 1760.
As áreas do Caminho Novo configuraram-se numa zona de passagem que, como qualquer outra, deveria ser fiscalizada para não ocorrer extravio do ouro. Qualquer indivíduo que estabelecesse “fazendas proibidas”, localizadas em áreas também “proibidas”, sofreriam penas pela Coroa.6 Segundo Marina Machado (2012, p. 66-79), os agentes do governo português lidaram com este território como “terras de ninguém”, mas contraditoriamente habitadas por índios não civilizados. Percebe-se que havia um interesse em manter os “sertões dos índios bravios” como “terras proibidas”; os índios serviam como barreira humana por conta da ameaça que representavam, auxiliando o controle régio para diminuir as atividades de contrabando (MACHADO, 2012, p. 66-79).
Portanto, a fronteira se encontrava fechada até, aproximadamente, 1780, por dois motivos: de um lado, a presença maciça de índios que respondiam com investidas ao longo do Caminho Novo; de outro, a própria política da Coroa, que instrumentalizava os termos “sertão dos índios bravios” e “terras proibidas” como estratégia de controle para que os colonos não extraviassem o ouro das minas. Entretanto, no final do Setecentos, esta região foi, aos poucos, transformada em uma região de produção, centrada nas atividades agrícola e pecuária, para abastecer a cidade do Rio, com o refluxo da atividade mineradora (SANCHES, 1989, p. 104-105; POLLIG, 2012). Esta nova dinâmica revelou uma disputa na fronteira, na qual as duas sociedades, a indígena e a luso-brasileira, enfrentaram-se. No final da década de 1780, as correrias indígenas aumentaram em concomitância com a descida de colonos para a região da Paraíba Nova. Em suas incursões, os Coroados traziam aos habitantes daqueles lugares prejuízos a suas lavouras, que “começavam a desamparar, desalentados de poderem pôr termo a uma guerra de extermínio.” (SILVA, 1854, p. 250). A situação saiu do controle a ponto do próprio Vice-Rei avaliar que
foi necessário praticar-se outra diferente providência pelas irrupções que faziam n’aqueles distritos, assolando as fazendas circunvizinhas, furtando os seus efeitos, apresentando-se armados em figura de guerra, atacando e matando a todos os que lhe caíam infelizmente nas mãos, de modo que a maior parte dos fazendeiros que tinham os seus estabelecimentos do lado setentrional do rio, os abandonaram inteiramente, por não serem as suas forças capazes de lhes fazer a menor resistência, abrindo com este terror um seguro passo para os índios passarem ao lado oposto, em que foram continuando as suas hostilidades (SOUZA, 1842, p. 36-37).
Os índios resistiram ao avanço dos colonos intensificando suas incursões nas fazendas. Por isso, as autoridades luso-brasileiras intentaram, de todas as formas, realizar um cerco aos Coroados, em tentativas de confinar seu espaço de mobilidade (LEMOS, 2016, p. 50). Segundo Sanches (1997, p. 180), tratou-se de “um novo padrão que denominamos (...) de ‘confinamento fronteiriço’, isto é, a reunião dos grupos indígenas em aldeamentos situados na fronteira da exploração econômica colonial numa espécie de limpeza de terreno.” Apesar disso, identificamos que em Campo Alegre (atual município de Resende), o “gentio brabo” fez três incursões consecutivas nas fazendas na década de 1790. Na fazenda do capitão Mathias da Silva de Carvalho, os índios tinham “feito uma grande destruição nos seus gados, e agora aonde flecharam um soldado que fica a morte”, e cercaram o proprietário em sua própria casa nas três vezes em que atacaram.7 Além disso, os índios avançavam a todo o momento para a Capitania de São Paulo, tanto que foi nomeado um capitão que estava fazendo estradas na região para afugentá-los, sem grande sucesso, em 1798. Para completar este insucesso, foi formado o aldeamento de São Luiz Beltrão8, mas não foi possível constringir a mobilidade indígena em Campo Alegre em vista de seu completo fracasso (ARAÚJO, 1945-1948, v. V, p. 39-40).
Na região de Sacra Família do Tinguá (atual município de Vassouras) não foi diferente. Pizarro identificou que a povoação foi diminuída a 104 fogos e 607 pessoas em 1795, pois a frequente invasão do “gentio que anualmente acomete aquele território tem feito desertar muitas fazendas (...) e conserva em mato todo aquele terreno deixado.”9 A providência do Vice-Rei para esta região consistiu em nomear, em 1788, o alferes de Ordenanças Ignácio de Souza Werneck, para abater os corredores em suas próprias tribos, sendo inclusive concedido pelo Estado o armamento necessário para tal tarefa.10
Mas o mero confronto não estava surtindo o efeito desejado: outra estratégia deveria ser acionada pelos luso-brasileiros se quisessem “abrir a fronteira” (MACHADO, 2012). A despeito da represália do Estado contra os indígenas, estes povos continuavam atacando. Segundo Yuko Miki (2018, p. 80-81), enquanto os europeus acreditavam que os índios “errantes” não tinham uma noção definida de propriedade da terra, em vista da grande quantidade de matas virgens que eles “infestavam”, a autora identificou o discurso de um missionário que reconheceu a importância do território para eles ao reclamar que os “selvagens se consideram os únicos proprietários e senhores absolutos da terra.” Isto é, eles não deixavam ninguém ocupar suas terras, e guerreiavam contra aqueles que tentassem escravizá-los e/ou expulsá-los. Estudando o caso dos índios botocudos nas fronteiras capixabas, mineiras e baianas, Miki concluiu que as investidas indígenas eram acionadas por várias razões.
os ataques violentos contra os colonos se basearam em uma lógica interna de uma sociedade indígena, que pode ser discernida muitas vezes apenas vagamente nas fontes. Em um determinado momento histórico, as motivações indígenas podem ser influenciadas pela cosmologia e profecia nativas, doenças epidêmicas, reivindicações de chefes concorrentes e grupos ordenados por parentesco, vingança, a busca por comida ou, em vários graus, a experiência histórica de séculos de confrontos violentos com portugueses. Portanto, é importante considerar (...) o significado multifacetado dos ataques dos Botocudos às propriedades dos colonos. Roubar safras e gado aumentariam sua base de subsistência, enquanto a destruição de matas geraria prejuízo econômico, a exemplo dos ataques praticados por quilombolas. No entanto, às vezes os atos eram mais simbólicos. Bieber sugeriu que o botocudo praticava uma rejeição cultural à agricultura. Um exemplo sugere a possibilidade de que os botocudos mataram o gado para vingar mortes que foram ocasionadas por doenças que eles atribuíram à má vontade dos colonos que empregavam trabalhadores indígenas.” (MIKI, 2018, p. 81-82).
Mas quais seriam as principais características desta propriedade indígena tendo em vista os conflitos com os colonos que tentaram se embrenhar pelas matas dos Coroados? Uma pista pode ser identificada na correspondência de João Pacheco Lourenço e Castro, em 1797, com o Conde de Resende:
Meu senhor, os gentios que moram nas vizinhanças deste registro são os Coroados e Puris os quais são tão selvagens que não conhecem subordinação alguma: andam nus e só usam de um pequeno tecido de fio de guaxima que mal tapam as suas partes, pintam todos o corpo com uma fruta chamada orvéu: (...) as armas que usam é arco e flecha e porretes. Suposto me informem que eles plantam milho, batatas e bananas; contudo devo dizer a vossa excelência que são uns vagabundos, pois não tem moradia certa porque desde os fundos da serra do Werneck até a Mantiqueira, trazem cruzados todos os matos de forma que os fazendeiros que moram nesta distância para usarem das suas plantações trazem vigias armados e, não obstante, isto são continuados os roubos e mortes que fazem (...); deixaram lugares despovoados. (...), fiz toda a diligência para os encontrar e não foi possível pela celeridade com que se retiraram, e na distância de uma légua rio acima, encontrou-se o lugar donde eles se ajuntaram para a retirada e pelo pasto que fizeram passavam de duzentos (...). Os Rios Paraíba, Paraibuna, Preto e do Peixe os não embaraçam para irem onde eles querem, porque fazem uma amarra de cipós, a qual prendem de uma e outra parte do Rio e passam todos agarrados a mesma amarra.11
Tal descrição é bastante elucidativa para compreendermos a propriedade indígena. Como podemos identificar no relato, o termo “vagabundo” aparece justamente quando João Pacheco afirma que os nativos “trazem cruzados todos os matos” por não terem uma moradia fixa. A despeito do termo pejorativo, há aqui o reconhecimento dos atos possessórios destes indígenas12 – com a devida comprovação da ocupação produtiva e da moradia habitual (MOTTA, 2009). Tratavam-se de “índios posseiros” que não ficaram alheios “ao processo de apossamento de terras e tampouco às consequências da intensificação da colonização” nos séculos XVIII e XIX (SILVA, 2018, p. 41; 2020). Neste caso, a reprodução do modo de vida destes “índios posseiros” nos matos era uma marca definitiva da propriedade indígena: representava o seu largo espaço de mobilidade nas florestas para caçar, plantar, cultivar e se “ajuntarem” no Rio Paraíba. O apossamento das terras indígenas abarcava até mesmo o curso deste rio, que representava outra marca definitiva da propriedade indígena.
Os “índios posseiros” tinham uma consciência costumeira dos seus direitos de propriedade (a mobilidade nas matas), mas também ativavam um aspecto rebelde desta consciência (correrias indígenas), quando se tratava de defender seu modo de vida. Nesses termos, a propriedade indígena no final do Setecentos era caracterizada por estes dois aspectos: os direitos de propriedade eram balizados pelo apossamento costumeiro das matas e pela rebeldia de defendê-las quando os luso-brasileiros avançavam em seu território (THOMPSON, 1988, p. 83-84). Logo, a correria deve ser entendida como uma estratégia proprietária defensiva dos direitos à terra acionada pelos “índios posseiros”, que interpretavam as matas como sendo de seu domínio, atestado pelo costume coletivo de apossamento e pelo tempo imemorial de reprodução do seu modo de vida (THOMPSON, 1998, p. 86-149).
Dentro dessa perspectiva, é preciso frisar que a instalação de fazendeiros não foi nada tranquila. Ora fazendo correrias, ora recuando para a floresta, estes “índios posseiros” resistiram a todo o momento. Por isso, não podemos coadunar com a tese da fronteira aberta, visto que a terra não estava livre para os colonos. Isto seria uma negligência para com as sociedades indígenas e seus direitos de propriedade (MACHADO, 2012; LEMOS, 2016; ALVARENGA, 2019). A leitura a contrapelo das fontes é necessária para problematizar visões historiográficas tradicionais que interpretaram o nomadismo dos índios como vagabundagem, crime e invasão (VARNHAGEN, 1975, p. 24-29), o que serviu para a própria desproteção dos seus direitos à terra.
A historiografia reconheceu a importância da fazenda Pau-Grande e da ação mediadora de José Rodrigues da Cruz como significativas para a virada do quadro de disputas na fronteira (MACHADO, 2012; LEMOS, 2016). Neste contexto, o personagem José Rodrigues da Cruz se destacou como “o único homem que conserva aliança” com os índios Coroados, “aonde eles têm saído muitas vezes sempre de paz”.13 Ele foi um dos administradores da fazenda Pau-Grande junto com seu irmão Antônio Ribeiro de Avellar e seu cunhado Antônio dos Santos. José Rodrigues da Cruz “promoveu um alargamento dos limites territoriais da sesmaria e investiu nas produções de gêneros alimentícios para abastecimento interno e de cana-de-açúcar para exportação” (MUAZE, 2008, p. 76-77). Contudo, decidiu vender sua parte da fazenda ao sobrinho Luis Gomes Ribeiro em 1797.14 Isto porque levantou outra fábrica de açúcar – a fazenda Ubá – “que daqui há poucos anos será mais interessante do que a outra do Pau-Grande, que principiei em 1780”, justamente para proceder “na civilização dos índios (...) os quais desde o ano de 1790 principiaram a ter comigo e continuaram até ao presente uma pacífica e amigável correspondência”.15
José Rodrigues da Cruz acreditava que os índios Coroados não eram “desumanos e intratáveis”. Antes de 1790, no seu primeiro encontro com os índios, eles “fizeram alguns roubos e assassinatos, mas parece que eles não foram os primeiros agressores.” Até porque eram “as fazendas luso-brasileiras [que] estavam invadindo o seu território de caça e não eles que invadiam as fazendas” (LEMOS, 2016, p. 114). Em vista disso, José Rodrigues da Cruz decidiu ir com calma. Como já estava assentado em um lugar pertencente aos “índios posseiros”, buscou “conhecê-los e tratá-los para ver se os podia pacificar”, ordenando que caso viessem a sua fazenda “os recebessem como amigos, dando-lhes de graça todo o mantimento que pedissem”.16
Ao não apresentar armas no seu trato com os indígenas, José Rodrigues da Cruz conseguiu, aos poucos, o respeito deles, espertamente repartindo “por eles todos os dias o produto de suas lavouras para seu sustento além das ferramentas mais necessárias a seus rústicos trabalhos” (SILVA, 1864, p. 250). Numa dessas visitas a sua residência, o fazendeiro relatou que,
lhes mandei dar mantimentos e ferramentas que são as causas que eles mais estimam: e para lhes tirar todo o motivo de suspeita e desconfiança fiz aparecer ali toda a minha família. Eles se portaram com sinais de respeito e gratidão, oferecendo aos meus meninos os papagaios que traziam. Antes de se ausentarem eu lhes persuadi, como pude, que estimaria, que tornassem muitas vezes a minha fazenda, e que achariam sempre em mim o mesmo agasalho: eles assim o prometeram fazer.17
Nesta passagem, percebemos que os índios não responderam com correrias defensivas, pois estavam usufruindo dos “mantimentos e ferramentas” que estavam conseguindo com o fazendeiro. Estas relações de troca foram essenciais para que os indígenas suprissem a falta de alguns instrumentos de caça e coleta. É interessante apontar como os presentes eram importantes estratégias nas negociações com os grupos indígenas para selar pactos e alianças no mundo colonial. Eram exatamente estes pequenos circuitos de comércio, que se entrelaçavam com a política e com a dádiva, que eram decisivos na formação de novos espaços e domínios coloniais (MONTEIRO, 1994; FRANÇOZO, 2014).
A oferta de gêneros por parte dos índios, no entanto, não deveria ser compreendida como uma simples resposta econômica a uma situação de mercado: tanto a aquisição quanto a oferta de utensílios “devem ser compreendidas mais em termos de sua carga simbólica do que por seu significado comercial.” (MONTEIRO, 1994, p. 32). Para John Monteiro, o escambo ganhava sentido para os indígenas apenas na medida em que ele se remetia à dinâmica interna de suas comunidades. De outro modo, os europeus interpretavam estas relações de troca como ocasiões importantes para estabelecerem alianças com os índios. Estes, por sua vez, aceitaram e até promoveram semelhantes relações “desde que elas contribuíssem para a realização de finalidades tradicionais.” (MONTEIRO, 1994, p. 32). De qualquer modo, já cultivando uma aliança local com os nativos, José Rodrigues da Cruz começou a estreitar seus laços com o governo luso-brasileiro: várias correspondências foram trocadas na virada do século XVIII para o século XIX e a ideia de “civilizar” aquelas populações já se mostrava na ordem do dia.18 Uma opção foi a construção do aldeamento de Nossa Senhora da Glória em Valença no ano de 1801.
O interior da Capitania do Rio de Janeiro foi palco de um processo complexo e singular na virada do século XVIII e início do século XIX. Assistiu-se à apropriação de terras nos aldeamentos coloniais antigos (caso de Itaguaí e Mangaratiba), ao mesmo tempo em que se fundavam novos “aldeamentos tardios” para fins de pacificação (caso de Valença). Estes aldeamentos surgiam em concomitância com as “guerras justas” contra tribos que dificultavam a colonização e não aceitavam o descimento (caso dos índios Botocudos). Ou seja, era entre a brandura e a violência que se desenrolava a política indigenista do século XIX (ALVEAL, 2002; AMADO, 2015; CUNHA, 2012; SAMPAIO, 2012; SILVA, 2017; ALMEIDA, 2008a; 2013).
Em nossa visão, o aldeamento de Valença foi criado como estratégia para a territorialização dos direitos de propriedade dos “índios posseiros” (OLIVEIRA, 1998). Foi uma tentativa de transformar seus antigos direitos de propriedade e restringir a mobilidade daqueles que sempre tiveram nos matos a sua liberdade de roçar e pescar. Em vista disso, a territorialização imposta na criação do aldeamento assumiu um caráter de restrição da propriedade indígena. Foi promovida uma territorialização “no sentido de controle do acesso a uma área geográfica e de classificação das pessoas conforme seu lugar de nascimento” e de assentamento. Esse ordenamento social e físico-espacial que se impõe buscaria converter em forma hegemônica as novas relações sociais, tornando “invisíveis e deslegitimando várias das distintas formas de territorialidade costumeiramente constituídas”. Estas, por sua vez, eram “pautadas por práticas consuetudinárias que incorporam dimensões simbólicas e identitárias e cujas expressões não se encontram em leis ou títulos, mas na memória coletiva que confere profundidade temporal ao território.” (PIETRAFESA DE GODOI, 2014, p. 11).
Esta estratégia luso-brasileira também foi acompanhada por novas denominações étnicas. No aldeamento, não mais existiam “índios posseiros”, pois
o aldeamento de Valença é um aldeamento luso-brasileiro, construído dentro da espacialidade luso-brasileira, isto é, a sua concepção espacial não leva em conta os interesses indígenas e, portanto, é um espaço que eles rejeitam e resistem em assumi-lo como seu e aqui está a chave para o entendimento do discurso que não há índios em Valença. Quase não há índios morando na aldeia de Valença, porque eles moram nas suas aldeias, espalhadas por toda a região do Médio Paraíba. Aderir à Aldeia de Valença significava, praticamente, renunciar ao seu modo de vida, isto é, renunciar a sua etnicidade anterior (LEMOS, 2016, p. 126-127).
Por conseguinte, os primeiros anos do aldeamento em Valença foram anos de rejeição indígena, visto que o novo espaço restringia seus direitos à extensa mata daqueles sertões. E esta rejeição pode ser constatada pelos relatos do próprio José Rodrigues da Cruz. Ele teve dificuldades para o descimento dos índios quando pediu licença a Sua Majestade para “ter no rio Paraíba uma canoa para passar além do dito rio (...) a ir tratar com os ditos índios nas suas próprias aldeias e alijamentos.”19 Isto é, nem todos os índios concordaram em frequentar à Pau-Grande. Nos anos posteriores, ele expressava a contínua exaustão “com dispêndios desde onze anos” quando decidiu iniciar a relação com os índios. Sua fazenda sofreu uma terrível epidemia de bexigas e “tem deixado de promover a sua lavoura” para dar conta da empreitada que se envolveu. Tanto que ele pediu auxílio material da Corte em 18 de abril de 1801, pedindo diversos objetos para “aldear e domesticar os índios” (SILVA, 1854, p. 508-510).
José Rodrigues da Cruz também contou com o apoio pessoal do Capitão de Ordenanças Ignácio de Souza Werneck, que deveria prestar todo o auxílio ao serviço de civilização dos índios, com foco para dar “princípio a abertura de caminhos” naqueles sertões20, e da pregação religiosa21 do padre Manoel Gomes Leal, o Capelão dos Índios, que teria que construir “o altar em sítio conveniente, benzer a Capela ou Igreja que erigisse, precedendo-lhe faculdade régia para administrar todos os sacramentos aos índios”, além de benzer o cemitério que seria formado (FERREIRA, 1978, p. 5-6). O espaço de negociação desta aldeia com a sociedade luso-brasileira se daria com estas três figuras, cada uma representando uma função, seja ela religiosa, militar ou gestora: o padre (Manoel Gomes), o militar (Ignácio Werneck) e o Diretor dos índios (José Rodrigues da Cruz) (MACHADO, 2012; LEMOS, 2016).
Os laços entre os mediadores poderiam até ser bem estruturados, mas o espaço utilizado pelos índios estava longe de ser reduzido a um pequeno quadrilátero com igreja, cruz, pátio e casas. Se alguns estavam interessados em comprimir o terreno nativo, os “índios posseiros” respondiam com a dispersão. Segundo José Rodrigues da Cruz, os índios se metiam nas matas para fazer caçadas, “o que até agora tem sido muito dificultoso” para a tarefa de descê-los, pois aproveitavam a abertura de caminhos para se embrenharem no sertão. Estava sendo difícil restringir a mobilidade dos “índios posseiros” que conheciam bastante aquelas matas. Não foi à toa que foram tomadas algumas providências, como “mandar tirar as canoas em que [os índios] costumavam a irem à outra banda [do rio Paraíba]” e “trazê-los para esta parte” (SILVA, 1854, p. 515-516). Eles também saíram do “novo aldeamento que então fazia José Rodrigues da Cruz” para atacar fazendas, como aconteceu com José Thomaz da Silva, em 1803 (LEMOS, 2016, p. 123). Lá, “se rebelaram e praticaram os funestos estragos”.22
No entanto, a dispersão indígena também poderia colocar em risco a vida de muitos nativos num contexto de descimento e pacificação da região. Em 1804, aconteceu um incidente próximo às margens do Rio Preto, “tendo-se ali descoberto ouro em quantidade, que atraiu os moradores desta, cujo principal objeto foi sempre e é a mineração”23, que envolveu os mineiros e alguns índios que estavam cultivando mandiocas. Segundo consta,
A esta Aldeia de Valença se nos apresentou um índio com uma facada nas costas e outro com um braço bem maltratado e cutilado, queixando-se segundo eles dizem que no Presídio Velho (Arraial do Rio Preto), indo uns índios Araris ou Ximotós a uma roça, e que ali caçam umas mandiocas, e que pondo-se na mesma roça a selar e que anoitecendo dormiram e de noite vieram três pessoas, que é a quem eles dizem com facas mataram logo três índios a facadas e feriram os dois que escaparam a misericórdia.24
Os “índios posseiros” estavam plantando mandiocas nas matas como sempre tiveram a oportunidade de fazê-lo. Todavia, a região foi valorizada pela possibilidade de extração do ouro, o que atraiu alguns aventureiros. O resultado foi a morte de três índios que, distanciados do aldeamento, foram alvo do ataque destes garimpeiros. Este incidente mostra que a vida no sertão não era mais a mesma de um século atrás: estavam chegando novos colonos de todos os lados com diferentes interesses.
Parentes e amigos de José Rodrigues da Cruz, por exemplo, já estavam conseguindo sesmarias alegando que “no sertão da Nova Aldeia dos Índios Coroados se achavam terras devolutas” a serem cultivadas. Este discurso foi utilizado no final de 1804 por Joaquim Rodrigues da Cruz e João Rodrigues da Cruz, irmãos do Diretor dos índios, que registraram suas sesmarias uma ao lado da outra, na Secretaria do Estado do Brasil.25 Além deles, os sobrinhos João Rodrigues Pereira de Almeida, futuro Barão de Ubá, e José Ribeiro da Cruz26 também conseguiram suas cartas no mesmo ano, sinal de que a abertura de rotas já estava assegurando a apropriação territorial nos sertões.
Muitos índios continuariam resistindo ao espaço constrito do aldeamento, movendo-se por entre os sertões a todo instante. No entanto, curiosamente, o Capitão Ignácio de Souza Werneck mandou recolher, em 19 de dezembro de 1805, as 100 armas que foram distribuídas na época da gestão do Vice-Rei Luiz de Vasconcelos, quando Werneck foi nomeado para abater os índios em suas próprias aldeias, “dizendo não ser mais necessário”.27 Infere-se que as correrias indígenas não eram mais constantes como o foram nas décadas de 1780 e 1790. O que teria acontecido?
Acreditamos que a diminuição das correrias indígenas teve relação direta com a nova dinâmica dos sertões. Muitos caminhos começaram a ser abertos, principalmente com a atuação do Capitão Ignácio de Souza Werneck que, em 9 de março de 1808, apresentou um relatório constando um mapa descrevendo as novas rotas criadas nos sertões.28 Notamos a abertura de vários caminhos no antigo sertão dos “índios bravios”, com destaque para o “Caminho para a Aldeia”, que interligava o aldeamento de Nossa Senhora da Glória com a aldeia dos Ariris, em Rio Bonito (atual Conservatória), mas também com a Estrada Geral para Minas, que seguia em direção à cidade do Rio de Janeiro (PEDROZA, 2018, p. 423-425). O sertão estava mudando e os índios estavam percebendo isso.
Neste sentido, “processos de desterritorialização enquanto ‘perda do lugar’ levam a reterritorializações e não necessariamente à perda da importância do território.” (PIETRAFESA DE GODOI, 2014, p. 14). Ou seja, a territorialização imposta aos indígenas que decidiram aldear-se pode ter sido repensada como um novo espaço para que eles pudessem tocar suas vidas e garantir sua sobrevivência. Até porque o próprio aldeamento estava sendo modificado, com a constante chegada de colonos e moradores brancos que procuravam se estabelecer por ali (ALMEIDA, 1997; ALMEIDA, 2003). A autonomia daquele espaço criado para a missionação e catequese dos Coroados foi, inclusive, comprometida quando foi enviado um requerimento29, em 1808, para que os índios fossem trabalhar no Arsenal Real da Marinha (MACHADO, 2012, p. 145-152). A saída do aldeamento significaria a perda dos direitos coletivos à terra por parte dos “índios aldeados”, assim como ocorreu com o alistamento militar na Guarda Nacional dos índios que moravam na Vila de Itaguaí estudados por Vânia Moreira (MOREIRA, 2010; 2011).
Nos anos seguintes, identificamos um crescimento populacional considerável da população branca no aldeamento de Valença. No requerimento de 1810 para a ereção da capela no lugar do cemitério, o padre capelão Manoel Gomes Leal estimou que “já chegam há mais de 400 almas, repartidas em 55 fogos”.30 Por seu turno, justificava que a ereção da capela servia não somente para propagar a fé aos aldeados, mas também para a “multiplicação de povoações (...) e a animação da agricultura, que é a primeira fonte da felicidade e abundância das nações.”31
O mesmo argumento foi repetido pelo padre quando, quatro anos depois, requeria a elevação daquele povoado à categoria de Freguesia.32 Este pedido não tinha nada a ver com os índios, mas sim com os novos moradores para que eles não se deslocassem tão longe para receber o “refúgio” espiritual. Até porque a população, em 1814, havia crescido para “mais de 700 pessoas brancas, que se acham já estabelecidas naquele sertão, com toda a probabilidade de crescerem brevemente há muito maior número.”33
Com o sertão sendo ocupado por colonos que chegavam à Serra Acima, alguns índios poderiam ter interpretado o aldeamento como um espaço de liberdade possível, diante da violência desencadeada pela colonização. Assumindo a identidade genérica de “aldeados”, eles poderiam adquirir alguns direitos, como a terra coletiva do aldeamento, apesar de terem que compartilhá-la com moradores brancos que também viviam ali, incentivados pela herança da política indigenista do final do Setecentos (ALMEIDA, 2003; 2008b). A rejeição dos “índios posseiros” ao aldeamento poderia ter sido repensada e uma nova reterritorialização entrava em voga.
O aldeamento de Valença foi visitado por padres e viajantes. Em visita paroquial anônima de 181334, um padre disse que “várias famílias com porte de 700 pessoas” iam para ali, estimando-se que “já passa de mil almas, porque os índios serão 400.” Quando os avistou, ficou impressionado com a quantidade de presentes que traziam. Por outro lado, nada era tão solidário assim: “eles são capazes de me pedir patacas, pratos, dinheiros, fumos, tabaco.” Parece que os aldeados aprenderam rapidamente a importância econômica destas trocas.
A chegada de um visitante era considerada pelos índios uma boa hora para fazer transações daquilo que desejavam. Daí a euforia dos aldeados ao vê-lo. Caminhando nesta direção, o padre deu várias pistas que nos fazem inferir que aquele território colonial era também um espaço indígena, a despeito do maior número de moradores brancos. Segundo ele, os índios pareciam “alegres e atilados, fizeram-me muita festa e, pela primeira vez, vi suas danças, que são horrendas.”35 Saint-Hillaire também teve a oportunidade de presenciar uma dança dos Coroados, não sem antes ter que prometer algumas bebidas e alimentos aos índios (SAINT-HILAIRE, 1938, p. 49).
Assim como nos sertões, aquelas práticas culturais indígenas estavam vivas no aldeamento. Alguns andando nus, outros dançando em troca de gêneros para consumir, os “índios aldeados” negociavam a todo o momento identidades dentro daquele espaço colonial (BOCCARA, 2000; ALMEIDA, 2003). Como o padre visitante observou, enquanto alguns índios já se achavam “legitimamente casados e já vão edificando as suas cabanas e cultivando suas roças”, outros continuavam idolatrando símbolos, desconfiando-se sempre daqueles que “entendiam (...) alguma coisa diferente da divindade criadora”, insistindo em interpretar o Sol pelo vocábulo tupã.36
Segundo Almeida (2003, p. 150), o processo de transformação dos índios em súditos cristãos fazia-se lentamente, com muitos desafios e pequenas rebeldias. A cultura nos aldeamentos deve ser entendida como uma luta constante para não compartilhar todo e qualquer significado. Isto é, “os índios transformavam-se, mas não necessariamente no que os padres queriam”. O viajante não percebia isso. Com o seu preconceito, acreditava que “eles ainda vivem no mesmo estado primitivo” de antes.37 Mas na hora que a situação apertava, sabiam exatamente os direitos que eles tinham sobre as terras coletivas. Até porque, segundo o padre o que mais lhe interessou foi avaliar que “têm concorrido estabelecer-se nela [a aldeia] tantas famílias de portugueses, que já hoje fazem uma povoação de mil pessoas com presença de arregimentar muito mais em breve tempo, pela excelente qualidade das terras”.38
Aqui vemos um argumento que adicionava mais um fator chamativo para a chegada de novos moradores: o visitante ficou encantado com a fertilidade das terras, o que fortalecia um discurso propagandístico para que mais colonos se fixassem naquele lugar. Esse discurso valorativo das terras e da fertilidade disfarçava uma persistente colonialidade que afetava também a natureza do lugar, visto que o discurso colonizador buscava também propagandear a apropriação das “riquezas” daquele espaço geográfico por onde se formava uma nova região colonial. Assim como os povos indígenas, a natureza também poderia ser colonizada como um espaço subalterno; um alvo a ser conquistado e explorado para fins monocultivos e de exportação (ALIMONDA, 2011, p. 22-35). Por trás desse discurso e de sua propaganda, a economia de mercado aos poucos desintegrava a economia natural de povos originários, usurpando direitos à propriedade comum e coletiva, e devastando extensas regiões florestais na Mata Atlântica brasileira (LUXEMBURGO, 1970, p. 317-333; DEAN, 1996).
Por ora, os aldeados estavam percebendo a desproporção populacional dentro do espaço do aldeamento. Saint-Hillaire escutou um diálogo indígena depois da apresentação dançante que os aldeados lhe promoveram, na qual escutou o seguinte:
‘Esta terra nos pertence, e são os brancos que a cobrem. Desde a morte do nosso grande capitão, somos escurraçados de toda parte, e não temos mais nem lugar suficiente para poder repousar a cabeça. Dizei ao rei que os brancos nos tratam como cães, e rogai-lhe que nos dê terra para podermos construir uma aldeia’ (SAINT-HILAIRE, 1938, p. 49-50).
Com este diálogo, discordamos de Marcelo Lemos quando afirmou que não era comum a presença indígena no aldeamento de Valença, pois os legisladores, políticos, cientistas e viajantes “querem encontrar os índios no espaço que os torna não-índios” (LEMOS, 2016, p. 130). Discordamos porque aqueles que decidiram continuar no aldeamento tentaram ativar uma nova identidade étnica – a de aldeados – para poder peticionar pela terra que, mesmo diminuída em relação àquelas em que antes tinham posse, estava sendo ameaçada por novos interesses. A terra coletiva do aldeamento era deles. Era ela a nova condição real da propriedade indígena. E, por isso, era necessário defendê-la no processo de metamorfose indígena (BOCCARA, 2000; ALMEIDA, 2003).
Acontece que as terras do aldeamento nunca foram medidas, o que abriu espaço para que outros tentassem apropriar-se delas. A pressão sobre elas se tornou tão grande que até a sesmaria do próprio aldeamento foi requerida por terceiros. Segundo Werneck, José Rodrigues da Cruz havia solicitado uma sesmaria em nome dos índios, onde se achava a Igreja. Ele próprio reconheceu que a mesma “não se verificou com títulos legítimos, talvez por falta de agente que seguisse os termos” exigidos.39
Florisbello Augusto de Macedo requereu aquelas terras em sesmaria em 1805. As razões permanecem obscuras: tratava-se de um exposto criado pelo padre Manoel Gomes Leal, apresentado como seu sobrinho (SILVA, 1854, p. 299). A concessão da sesmaria não se efetivou porque Florisbello morreu de tuberculose em 1813 e, logo em seguida, o padre em 1815, sem que houvesse concluído o reconhecimento da sesmaria (LEMOS, 2016). Esta brecha abriu espaço para que outro aspirante a sesmeiro, Eleutério Delfim da Silva, requeresse uma sesmaria em 1815, apresentando uma provisão da Mesa do Desembargo do Paço. Sua concessão constava de uma medição de “um quarto de légua de terras de testada com meia légua de fundos, no lugar denominado Aldeia de Nossa Senhora da Glória de Valença no sertão da Paraíba”40. Dessa vez o conflito entre ele e os índios se arrastaria pelos próximos quatro anos. Entre 1816 e 1817, os aldeados apresentaram três requerimentos com o auxílio de mediadores. Solicitavam a devolução das terras, até porque com a concessão ficaria “a igreja sem terreno algum em roda para casas dos moradores do sertão; o pároco sem lugar para a sua residência; e os índios sem asilo algum próprio” (SILVA, 1854, p. 518-522). Até um requerimento expedido pelos próprios moradores do aldeamento foi apresentado, no qual acusavam Eleutério Delfim da Silva de querer “formar de um arraial e freguesia terras devolutas” (SILVA, 1854, p. 534-535). Ao confundirem sua própria ocupação com a dos aldeados, estes atores adotavam uma estratégia proprietária embaralhada para garantir que não fossem expulsos (MACHADO, 2012, p. 208-214). Com medo de serem expropriados pelo sesmeiro, aliaram-se com os aldeados na defesa das terras coletivas.
Os Coroados conseguiram a anulação do pedido de Eleutério Delfim da Silva quando o próprio rei, D. João VI, expediu um decreto favorável à manutenção do aldeamento, em 1819. Reconhecia-se que “não se devia considerar devoluto um terreno marcado para a aldeia de índios, com igreja já edificada e alguns moradores na mesma aldeia”, devendo ser restituída “aos ditos índios para nele se aldearem e cultivarem os terrenos que se lhe destinarem” (SILVA, 1854, p. 538-539). A vitória dos índios e demais moradores foi conseguida, mas foi efêmera. Os projetos do Estado para aquela região, logo depois da Independência em 1822, caminhavam noutra direção. Em alvará do final de 1823, assinado por D. Pedro I, destacou-se “a necessidade de criação de uma vila onde antes se localizava a aldeia de Valença. Refere-se
Florisbello Augusto de Macedo requereu aquelas terras em sesmaria em 1805. As razões permanecem obscuras: tratava-se de um exposto criado pelo padre Manoel Gomes Leal, apresentado como seu sobrinho (SILVA, 1854, p. 299). A concessão da sesmaria não se efetivou porque Florisbello morreu de tuberculose em 1813 e, logo em seguida, o padre em 1815, sem que houvesse concluído o reconhecimento da sesmaria (LEMOS, 2016). Esta brecha abriu espaço para que outro aspirante a sesmeiro, Eleutério Delfim da Silva, requeresse uma sesmaria em 1815, apresentando uma provisão da Mesa do Desembargo do Paço. Sua concessão constava de uma medição de “um quarto de légua de terras de testada com meia légua de fundos, no lugar denominado Aldeia de Nossa Senhora da Glória de Valença no sertão da Paraíba”40. Dessa vez o conflito entre ele e os índios se arrastaria pelos próximos quatro anos. Entre 1816 e 1817, os aldeados apresentaram três requerimentos com o auxílio de mediadores. Solicitavam a devolução das terras, até porque com a concessão ficaria “a igreja sem terreno algum em roda para casas dos moradores do sertão; o pároco sem lugar para a sua residência; e os índios sem asilo algum próprio” (SILVA, 1854, p. 518-522). Até um requerimento expedido pelos próprios moradores do aldeamento foi apresentado, no qual acusavam Eleutério Delfim da Silva de querer “formar de um arraial e freguesia terras devolutas” (SILVA, 1854, p. 534-535). Ao confundirem sua própria ocupação com a dos aldeados, estes atores adotavam uma estratégia proprietária embaralhada para garantir que não fossem expulsos (MACHADO, 2012, p. 208-214). Com medo de serem expropriados pelo sesmeiro, aliaram-se com os aldeados na defesa das terras coletivas.
Os Coroados conseguiram a anulação do pedido de Eleutério Delfim da Silva quando o próprio rei, D. João VI, expediu um decreto favorável à manutenção do aldeamento, em 1819. Reconhecia-se que “não se devia considerar devoluto um terreno marcado para a aldeia de índios, com igreja já edificada e alguns moradores na mesma aldeia”, devendo ser restituída “aos ditos índios para nele se aldearem e cultivarem os terrenos que se lhe destinarem” (SILVA, 1854, p. 538-539). A vitória dos índios e demais moradores foi conseguida, mas foi efêmera. Os projetos do Estado para aquela região, logo depois da Independência em 1822, caminhavam noutra direção. Em alvará do final de 1823, assinado por D. Pedro I, destacou-se “a necessidade de criação de uma vila onde antes se localizava a aldeia de Valença. Refere-se ao aldeamento como uma realização do passado, algo que não mais existia (...). Seu argumento central era a população da freguesia e a existência aí de 70 fazendas” (MACHADO, 2012, p. 226).
Desde o Diretório dos Índios, na segunda metade do século XVIII, já era evidente a intenção de transformar os aldeamentos em vilas e lugares portugueses, embora ainda se reconhecesse naquele contexto a importância da manutenção de certa noção de comunidade entre os índios que viviam naquelas terras, e de seus direitos coletivos. Com a Carta Régia de 1798, que extinguiu formalmente o Diretório pombalino, a política indigenista começou a apreender os índios como indivíduos no contexto das vilas, não mais distinguindo os vassalos do Rei, ficando todos submissos à autoridade das câmaras que seriam criadas (SAMPAIO, 2006; 2012).
A proposta de formação das vilas era acabar com os costumes e direitos coletivos dos aldeados e potencializar a miscigenação com a presença cada vez maior de não-índios nestes espaços. Este movimento, por sua vez, teve sua contrapartida: deslanchou-se uma acentuada privatização e desamortização das terras coletivas e de uso comum dos antigos aldeamentos. Isto ficou cada vez mais evidente quando as câmaras municipais conseguiram reverter estas terras ao seu patrimônio, restando somente aos moradores e índios “misturados” à população da vila a possibilidade de requererem pequenos lotes individuais, condicionados ao pagamento de foros à câmara (ALMEIDA; MOREIRA, 2012; ALMEIDA, 2013). Essas mudanças, por sua vez, ensejaram novos conflitos. Índios, moradores e Câmaras Municipais foram os personagens mais comuns nestas contendas.
Moradores e autoridades interessados em extinguir as aldeias já apresentavam os índios como poucos e misturados, contrastando com as reivindicações desses últimos que continuavam solicitando seus direitos pela condição de aldeados. Essas contradições em torno da classificação dos aldeados na condição de índios ou de mestiços já bastante visíveis na documentação de meados do século XVIII vão se acentuar no decorrer do XIX, evidenciando as relações entre a etnicidade, política indigenista e conflitos agrários (ALMEIDA; MOREIRA, 2012, p. 9).
Para muitas autoridades era preciso transformar os índios em mestiços, porque isso possibilitava a extinção dos aldeamentos e a própria incorporação de suas terras às câmaras municipais. Em vista disso, surgiram diversos argumentos mobilizados por autoridades e intelectuais do século XIX em prol do desaparecimento e mistura dos índios em diversas localidades do Brasil imperial no processo de extinção dos aldeamentos e formação das vilas (SILVA, 2017; DANTAS, 2018; HENRIQUE, 2018, ALVARENGA, 2019).
Neste ínterim, é preciso reconhecer que o processo de “cidanização” e de “nacionalização” indígena foi mais uma forma encontrada pelo Estado imperial para restringir os direitos de propriedade dos índios. Isto porque a garantia das terras coletivas estava estritamente relacionada à identidade étnica de aldeados. Para estes, a nova condição de cidadão “misturado” à massa da população implicava “na perda da condição jurídica especial que lhes dava direitos, sobretudo, à terra, aos rendimentos das aldeias e à vida comunitária” (ALMEIDA, 2008a, p. 32; OLIVEIRA, 1998).
Estas controvérsias sobre classificações étnicas permearam os conflitos nos aldeamentos de São Francisco Xavier de Itaguaí (ALMEIDA, 2013) e Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba (ALVEAL, 2002), a despeito de terem sido declarados extintos nos anos de 1818 e 1831, respectivamente. Em contraponto, no Espírito Santo, por força de um processo de desenvolvimento socioeconômico menos intenso que no Rio de Janeiro, diversas vilas e povoados formados em processos diaspóricos atualizaram o projeto autonomista de muitos índios, que reinventavam para si e para os seus uma economia moral indígena atravessada por seus costumes e valores sobre trabalho, terra e territorialidade (MOREIRA, 2017; 2019).
Para o caso de Valença, foi fortalecida uma noção de “desaparecimento político” dos Coroados como forma de restringir ainda mais seus direitos de propriedade, segundo Marcelo Lemos (2016, p. 188). Alguns meses antes da elevação da Vila, em 13 de janeiro de 1823, em consulta acerca da população de Valença, o ouvidor da comarca do Rio de Janeiro disse que existiam no aldeamento de Nossa Senhora da Glória somente “45 moradores e a freguesia 1.971 habitantes com setenta e tantas fazendas”. Onde estavam os aldeados? Segundo ele, encontravam-se muitos índios dispersos pelos sertões “da parte do Oeste” e, por este motivo, foi preciso arregimentá-los em um novo aldeamento localizado em Rio Bonito, atual distrito de Conservatória (SILVA, 1854, p. 543-544).
Foi doada aos índios “da parte do Oeste” uma sesmaria de uma légua de terras no Rio Bonito em maio de 1820, aproximadamente.41 A construção deste novo aldeamento foi a forma encontrada pelas autoridades para deslocar os poucos índios que ainda estavam “atrapalhando” para mais longe, enquanto se construía a noção do “desaparecimento” na sede matriz da recém-criada Vila em 1823.42 Porém, nem a própria Conservatória dos Índios durou muito tempo.
O aldeamento do Rio Bonito foi rapidamente extinto. E isto porque as terras dos índios de Conservatória foram “possuídas atualmente por particulares por títulos de transações feitas com outros possuidores mais antigos”.43 No final da década de 1820, o terreno se encontrava todo arrendado e distribuído em aforamentos com a anuência do novo Diretor dos Índios, que atestava que a maioria deles “viviam errantes pelas florestas” (IÓRIO, 2013, p. 21-39; p. 84-90; LEMOS, 2016, p. 173-174). No início da década de 1830, o Curato de Santo Antônio do Rio Bonito recebeu uma visita paroquial, na qual o visitante anônimo relatou que a região não era mais a mesma: estava cheia de fazendeiros, sesmeiros e até negociantes. Mas, ainda assim, avistou alguns poucos índios, que foram crismados, “mas não dei a nenhum as patacas, que me pediam, para se não embebedarem, e também porque só um me soube repetir o credo, e os mais nem palavras”.44
O discurso do alcoolismo também foi bastante presente nos relatos de algumas autoridades para confirmar o baixo número de índios em outros aldeamentos e vilas da Capitania do Rio de Janeiro. Porém, é sempre importante frisar que o desaparecimento político dos Coroados não deve ser confundido com o seu “desaparecimento étnico e até físico” (LEMOS, 2016, p. 178). Os Coroados continuavam naqueles espaços, a despeito das autoridades insistirem em sua ausência para poderem apropriar-se de suas terras. E as ameaças não paravam de acontecer.
Eleutério Delfim da Silva, aquele que tentou usurpar a sesmaria do aldeamento em 1815, entrou novamente no jogo de apropriação das terras, dessa vez da própria Vila de Valença, em julho de 1827. Alegando que os índios “tem procurado aldear-se na paragem do Rio Bonito”, Eleutério Delfim da Silva inferia que por não mais haver aldeamento dos índios na sede matriz de Nossa Senhora da Glória, ele poderia conseguir a “renovação daquela sesmaria” na própria Vila de Valença. Dizia que as despesas da medição já estavam pagas e por isso poderia readquirir aquela concessão.45
Novamente, os moradores de Valença apresentaram um requerimento pedindo a revogação desta sesmaria, revalidada em 5 de julho de 1827. Segundo eles, a nova concessão feria o domínio de terras da Câmara e de vários moradores.46 Incrivelmente, nenhuma palavra foi dita acerca dos direitos de propriedade dos aldeados, deliberadamente esquecidos na consideração dos moradores, que alegaram não estarem aqueles residindo na vila “porque desgraçadamente andam errantes sem domicílio” (LEMOS, 2016, p. 176). Mais uma vez o discurso do desaparecimento indígena, que dificultava o desenvolvimento da cidadania de indivíduos diariamente usurpados e expropriados debaixo dos olhos do Estado imperial (GOMES, 2003; MIKI, 2018). De qualquer forma, o sesmeiro não conseguiu levar a frente o que estava planejando.
Por ironias da história, encontramos o nome de Eleutério Delfim da Silva nos livros de Atas da Câmara de Valença, dois anos depois desta contenda. Em 1829, ele já era um membro ativo da Câmara, por onde acumulou diversos cargos, tanto no âmbito judicial (Juiz Ordinário e Promotor Público) quanto no âmbito administrativo (Secretário e Fiscal da Câmara) no decorrer da década de 1830.47 De mero alferes do Regimento de Cavalaria de Milícias na década de 182048, o usurpador de terras se tornou um político da Câmara de Valença e até conseguiu um terreno na Rua São José “para nele edificar umas casas” em 1829, e uma licença para ali construir uma morada de casas, em 1834.49 Já na década de 1840, recebeu o diploma de Cavaleiro da Ordem da Rosa e de Cavaleiro da Ordem de Cristo por decreto de 1848.50 Em 1851, era fazendeiro e, no ano seguinte, negociante, na Freguesia de Nossa Senhora da Glória de Valença na listagem do Almanaque Laemmert.51
Como fiscal da Vila, Eleutério Delfim da Silva tinha reais poderes para regularizar as terras. No Código de Posturas de 1828, identificamos que o fiscal poderia fiscalizar as obras, proceder na demolição de construções que atrapalhassem o interesse público e até multar os moradores. Havia, inclusive, uma menção ao “abuso de propriedade alheia” que deveria ser controlado na Vila. As únicas referências à “propriedade comum” eram os córregos e ribeirões que percorressem “por terrenos de mais de um dono”, com a única condição de não poder “desviá-los de seus leitos naturais para as suas obras ou qualquer mister”.52 Logo, na Vila, tudo era passível de controle: os índios não poderiam mais se divertir, dançar, se mover, sem antes estarem supervisionados pela figura do Fiscal da Câmara, ironicamente o mesmo que tentou, por duas vezes, usurpar as terras do aldeamento e da própria Vila recém-criada! Essa foi mais uma forma de restrição da propriedade indígena.
Por Lei Provincial de 14 de abril de 1835, passavam aquelas terras a ser patrimônio da Câmara Municipal, já se achando “erigida a cidade, e a câmara o tem distribuído em aforamentos.”53. Assim, na Vila de Valença, vários indivíduos começaram a requerer terras na condição de foreiros. Em 1836, a Câmara Municipal encarregou uma comissão para examinar as condições em que seriam feitos os aforamentos. Por esta Comissão ficou determinado que todos os posseiros que têm requerido terrenos eram obrigados a tirarem na Câmara seu título de aforamento no prazo de 30 dias. Depois disso, o foreiro seria obrigado a pagar por cada braça de frente com 15 de fundo a quantia de 100 réis. As cartas de aforamento seriam lavradas em um livro pelo Secretário da Câmara, cargo este já ocupado por Eleutério Delfim da Silva em 1834.54
Só existe um livro de 1838, onde constam 148 cartas de aforamento concedidas a moradores da Vila de Valença.55 Neste livro de 1838, confirma-se a individualização dos direitos de propriedade na Vila depois de revertidas as terras coletivas ao patrimônio da Câmara: todos os 148 moradores requereram os terrenos que ocupavam e conseguiram suas respectivas cartas de aforamentos sem nenhum empecilho, com exceção de dois foreiros que ainda deviam pagar as despesas da medição de suas terras.
Identificamos que muitos foreiros haviam chegado há pouco tempo na Vila. Isto poderia sinalizar a expulsão daqueles primeiros moradores que se estabeleceram em Valença no início do XIX e que foram despejados pelos sesmeiros (MUNIZ, 1979, p. 73-74; STEIN, 1990). A maioria dos que requereram cartas de aforamentos eram posseiros, muitos recém-chegados (76%), totalizando 113 indivíduos que declararam ter posse de casas. Percebemos que 23% (34 moradores) declararam possuir “moradas de casas” ou casas no plural, muitas delas com plantações, para requerer suas cartas de aforamento. Alguns deles eram também fazendeiros em Valença. Na Vila, parece que mantinham essas moradas de casas como forma de extração de aluguel das pessoas que continuavam vivendo ali, mas que não foram registradas como foreiros. Além destes, 12% requereram a posse de terrenos considerados devolutos, totalizando 18 moradores que rapidamente apropriaram-se destes lugares. 7% declararam ter adquirido seus terrenos por compra, totalizando 10 moradores, e somente 5% (7 moradores) não declararam a forma de aquisição. E, mais uma vez, identificamos Eleutério Delfim da Silva, o usurpador e político da Câmara de Valença, dessa vez na condição de foreiro, requerendo um terreno situado na Estrada da Passagem, “considerado devoluto”, requerendo a carta de aforamento, passada em 1841.56
O processo de privatização das terras indígenas era uma clara tentativa de impor a propriedade individual entre os índios no processo mais amplo de territorialização do Estado-Nação que, por sua vez, limitava o reconhecimento de “territórios tradicionais” dentro de seu território totalizante. Este processo não foi exclusivo do Império do Brasil. Na Argentina oitocentista de Alsina, Verónica Secreto (2014) também identificou projetos de governo semelhantes que previam a divisão parcelária dos terrenos e a criação de um cadastro com títulos regulares de propriedade para cada um dos membros das tribos pampianas com “o firme propósito de incluir os índios ‘aliados’ no processo de individualização da propriedade.” Neste contexto, os índios seriam assimilados, devendo adequarem-se à nova lógica proprietária. Segundo a autora, aquele “individualismo agrário” que fincou raízes na Europa, declarando fim aos usos comunais da terra, “foi um fenômeno que também incluiu às jovens nações americanas, neste último caso, se sobrepondo aos costumes criados durante o período colonial e independente e aos direitos e costumes indígenas.” (SECRETO, 2014, p. 212-215; BLOCH, 2001).
Embora a análise da lista dos foreiros de 1838 tenha-nos apresentado um perfil da população composto basicamente de posseiros práticos que regularizaram suas posses via aforamento, acreditamos que os índios Coroados continuaram vivendo neste espaço. Uma possibilidade é pensar na anti-lista “dos que conseguiram se esgueirar e não ser registrados como foreiros”, como propôs Pedroza (2018, p. 633; 2020) em seu estudo sobre os aforamentos na Fazenda de Santa Cruz. É claro que uma proposta dessas requer um mínimo de imaginação histórica, até porque as evidências são esparsas e as fontes oficiais oitocentistas insistem em apagar o passado indígena da História. Mas o desafio é necessário.
Uma possibilidade para alguns índios era a própria arma do ocultamento e da dispersão. Puderam ter acionado a mobilidade como forma de resistência, decidindo sair do terreno da Vila. O uso das matas continuou a ser exercido por esta pequena parcela da população indígena, mesmo que agora esta prática fosse criminalizada pelo Estado imperial. Segundo os Relatórios do Presidente da Província do Rio de Janeiro de 1844 e de 1850:
Em Valença, desapareceu o aldeamento, que deu origem a esta Vila, e os Índios que restam, vagam em pequeno número, sem domicílio, ou residência certa.57
Aldeias antigamente fundadas em Valença, Mangaratiba e Resende desapareceram inteiramente; (...) ainda custa acreditar que (...) vivam ainda algumas hordas de índios bárbaros, habitando as selvas, que de tempo em tempo se mostram em malocas (...). Em Valença, há alguns Índios sem domicílio certo.58
O discurso do desaparecimento dos índios foi fortalecido, dessa vez, pela própria Câmara de Valença, em 1872. No Relatório populacional apresentado pela Câmara constava o seguinte:
Informa a Câmara a Vossa Excelência que neste município existiram dois grandes aldeamentos de índios Coroados, um nesta freguesia (de Nossa Senhora da Glória), outro na freguesia de Santo Antônio do Rio Bonito e ambos desapareceram inteiramente. Informar que em todo o município poderão existir dispersos oito de dez índios. A causa do desaparecimento quase total atribuiu ao uso imoderado de bebidas alcoólicas, bexigas e outras moléstias que adquirem (...), pois que os índios neste município (...) ficaram desamparados e sem a proteção dos antigos Diretores e Juízes conservadores.59
Nestes termos, a Câmara de Valença atribuiu ao alcoolismo (e às doenças) as principais razões para o “desaparecimento” dos índios. O reforço do argumento da invisibilidade dos Coroados assumiu aqui um caráter político de expropriação: frisar que eles não mais existiam era uma estratégia cruel para apagá-los da História e desproteger seus antigos direitos de propriedade.
Nos livros de batismos e óbitos de Nossa Senhora da Glória entre 1815 a 1836, Lemos identificou uma diminuição da participação dos nascimentos indígenas e um aumento dos óbitos de escravos, como reflexo do seu grande aumento na população da Vila. O autor afirmou que muitos índios não tiveram seus óbitos registrados ali pois aquele território era hostil aos índios, o que “levou a não registrarem nenhum enterro no cemitério local” pelo fato dos ritos fúnebres ocorrerem nos matos (LEMOS, 2016, p. 180-192). De qualquer forma, é presumível que o número de indígenas nos sertões é muito menor depois de três décadas de contato com os colonos brancos, se comparado com o número expressivo de “índios posseiros” no Setecentos. Em vista disso, o discurso da Câmara mascarava o extermínio desta população ao longo do processo de instalação da propriedade cafeeira que só ocorreu depois de uma expropriação dos índios de seus meios de produção, numa espécie de “acumulação primitiva colonial” (RICUPERO, 2009) inscrita “nos Anais da Humanidade com traços de sangue e fogo” (MARX, 1996, p. 341; MARX, 2017; MARQUESE; MARQUES, 2020, p. 105-132).
De outra parte, Lemos (2016, p. 197) identificou uma população cabocla no município de Valença nos censos: totalizavam 219 caboclos em 1872 e 729 caboclos em 1890. Neste ínterim, outra possibilidade para que os índios não aparecessem no livro de aforamentos de 1838 se deve a uma rehierarquização dos seus direitos de propriedade. Explico melhor: Marcelo Lemos identificou diversos índios vivendo como agregados nas fazendas nos registros eclesiásticos. Em alguns casos, a teia de relacionamentos criada pelo batismo levava também a “processos de utilização da mão-de-obra indígena pelos padrinhos e o aparecimento de agregados nas fazendas, principalmente quando os laços étnicos ficavam enfraquecidos” (LEMOS, 2016, p. 122; p. 151).
Acreditamos que vários fazendeiros continuavam utilizando a mão-de-obra dos índios, só que estes eram reconhecidos como “caboclos” misturados à população.60 Ou seja, não eram mais aldeados com direito à terra coletiva: foram “senhoriados” como mão-de-obra cabocla destes fazendeiros, passando a serem os últimos da fila na hierarquia dos direitos de propriedade. Ou seja, uma parcela grande dos Coroados passou “a ser identificada como caboclos, portanto vistos como integrados ao modo de vida dos brasileiros, e os que ficavam ‘errantes pelo mato’ ganharam uma grande invisibilidade histórica, que somente num documento ou outro reaparece” (LEMOS, 2016, p. 193-194). Dispersos pelo mato ou servindo como agregados dos senhores, os poucos índios que sobreviveram continuavam circulando por ali.61 No entanto, a nova aliança que o Estado decidiu tecer passava pela defesa dos interesses dos Barões do Café e não mais pela garantia de direitos aos índios – aqueles “primários e naturais senhores” das terras – como ratificava a política indigenista do final do Setecentos (MOREIRA, 2014, p. 37). Enquanto alguns direitos de propriedade eram protegidos pelo Estado, outros foram desprotegidos na Vila.
Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza (...). Desde muito tempo, a minha comunhão com tudo o que chamam de natureza é uma experiência que não vejo ser valorizada por muita gente que vive na cidade. Já vi pessoas ridicularizando: ‘ele conversa com árvore, abraça árvore, conversa com o rio, contempla a montanha’, como se isso fosse uma espécie de alienação. Essa é a minha experiência de vida.
Ailton Krenak. O amanhã não está à venda.
A transformação socioespacial da Serra fluminense esteve intrinsecamente ligada aos conflitos étnicos e agrários que delimitaram os direitos de propriedade dos índios no movimento de avanço da fronteira luso-brasileira na virada do século XVIII para o século XIX. Foi um longo e tortuoso processo para que as fazendas de café conseguissem se entranhar naqueles sertões, isso porque a propriedade indígena dificultava a realização desta propriedade cafeeira no momento aqui considerado. Vimos que os índios conseguiram fechar a fronteira até a segunda metade do século XVIII. Lançamos a hipótese de que as correrias foram, na verdade, estratégias proprietárias de proteção da propriedade indígena, caracterizada pela ampla mobilidade nas matas localizadas Serra Acima. A identidade étnica de “índios posseiros” demarcou exatamente esta elasticidade do exercício de direitos de propriedade costumeiros nos sertões fluminenses até o fim do século XVIII.
A proposta luso-brasileira de criação do aldeamento de Nossa Senhora da Glória em 1801 foi uma tentativa de restringir esta mobilidade destes “índios posseiros”, o que foi inicialmente experimentado por eles como uma afronta a seu modo de vida e a seus direitos costumeiros. Não foi à toa que, num primeiro momento, os índios rejeitaram a proposta do aldeamento. No entanto, a chegada significativa de colonos começou a modificar os espaços: o sertão era cada vez mais transformado e as fazendas começaram a aumentar em tamanho e número. Lançamos a hipótese de que esta ocupação inaugurou uma fase de insegurança para os índios posseiros, o que fez com que alguns deles percebessem o aldeamento como um lugar de liberdade possível frente às arbitrariedades que pudessem ocorrer no sertão cada vez mais ocupado por brancos. Os anos de aldeamento, na verdade, inauguraram uma primeira fase de territorialização e de restrição dos direitos de propriedade dos índios, agora identificados numa nova categoria étnica: os “aldeados”. Neste processo de etnogênese, o espaço do aldeamento reservou-lhes uma localidade segura durante o processo de colonização luso-brasileiro e também lhes assegurou o direito sobre a terra coletiva daquele espaço colonial (ALMEIDA, 2003). Assim, a nova identidade étnica e a propriedade indígena foram transmudadas no aldeamento, e era preciso defendê-lo a qualquer custo.
Apesar de ter sido ratificado em 1819, pelo próprio rei D. João VI, que as terras do aldeamento eram pertencentes aos índios aldeados para a sua missionação e catequese, poucos anos depois o Estado imperial decidiu pela criação de uma Vila na localidade de Valença, em consequência do grande número de fazendas já instaladas na região. A elevação da Vila foi considerada a última cartada no processo de usurpação dos direitos indígenas, visto que, em um curto espaço de tempo, a terra coletiva do aldeamento foi rapidamente revertida ao patrimônio da Câmara, que apostou na individualização dos direitos de propriedade como forma de apagar o passado de luta indígena pela terra. Neste momento, a imposição da identidade étnica de “caboclos” desconstruiu não só o direito às terras costumeiras usufruídas pelos “índios posseiros” nos sertões, mas a própria terra coletiva dos “aldeados” foi loteada pela Câmara de Valença para atender aos novos atores que chegavam naquela região.
Nestes termos, o que antecedeu a instalação da plantation cafeeira foi justamente este “roubo colonial” (RICUPERO, 2009) no qual os índios foram expropriados e exterminados em massa. Para aqueles que sobreviveram, o resultado foi a sua transformação em mão-de-obra cabocla e forçada nas primeiras fazendas criadas na Vila, o que não deixou de configurar uma expropriação maquiada por novas identidades étnicas que restringiam a propriedade indígena. Nos anos seguintes, a aquisição de escravos africanos adicionaria mais um elemento de apagamento do trabalho destes caboclos nestas fazendas.
É importante frisar que “cada passo é uma pequena burla, e o produto final, resultante desses passos mesquinhos, é uma expropriação total” (CUNHA, 1992, p. 146). Ou seja, a cada nova identidade étnica que surgia ocorria uma transformação dos direitos de propriedade dos índios, o que representava, na verdade, uma diminuição, uma restrição: uma expropriação em “passos mesquinhos” que desestruturava o legítimo direito dos índios à terra, reconhecido até o final do século XVIII. Luiz Henrique Eloy Amado, antropólogo, advogado e ativista de direitos humanos, em especial, para a causa indígena no Brasil republicano, resume politicamente este processo da seguinte forma:
O que se entende hoje por Estado brasileiro foi constituído a partir de atitudes autoritárias que não levaram em consideração os territórios originários, a cultura, a organização social, os sistemas jurídicos próprios, as línguas e os modos próprios de ver e de entender o mundo da ótica indígena. O campo da política indigenista no Brasil, desde o período colonial até os dias atuais, ou seja, sob o manto republicano, foi idealizado e implementado a partir da perspectiva da desterritorialização, dominação e assimilação dos povos originários. O sistema colonial, marcado principalmente pela implantação do processo de conquista, com o qual se buscou legitimar a escravização da mão-de-obra indígena, o processo ‘civilizatório’ por meio da catequese e o apossamento do território; foi também um período marcado pela forte resistência indígena (AMADO, 2019, p. 704).
Ante todo o exposto, é preciso politizar todo o processo histórico reconstituído até aqui, afirmando que: sempre quando falamos de consolidação da propriedade cafeeira, é necessário ter em mente o processo de expropriação de outra propriedade – a indígena – que existiu naquela Serra fluminense. Ao conferirmos visibilidade a este Vale do Paraíba indígena que existiu antes do Vale do Paraíba cafeeiro, reconhecemos que “o índio não virou pó de café” (LEMOS, 2016, p. 202) e que a resistência destes povos indígenas merece ser recontada e revisitada pela historiografia, que focaliza o seu olhar para o desenvolvimento econômico ímpar conquistado por esta região opulenta do Vale do Paraíba nos tempos áureos do café no Império do Brasil.
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira
Contato Universidade Federal Fluminense, Instituto de História, Rua prof. Marcos Waldemar de Freitas ReisSão Domingos – Bloco O – 5º andar, 24210-201 – Niterói – Rio de Janeiro – Brasil f.m.alvarenga@hotmail.com