Resumo: No Candeal Pequeno, bairro popular da cidade do Salvador, há um altar dedicado ao orixá Ogum, que, segundo a memória oral, foi estabelecido por um próspero casal de africanos, senhores de muitas terras e fundadores do bairro. O presente texto reconstrói a trajetória da família e do seu envolvimento no culto a Ogum, identificando influências étnicas heterogêneas que variaram ao longo do tempo. Depois, o texto discute o papel desse orixá entre diferentes povos da região do Golfo do Benim e sua importância para lavradores, atividade principal do casal e de várias gerações de seus descendentes. O caso individual da família fornece insumos importantes sobre o envolvimento de africanos libertos na lavoura e sobre as influências mútuas entre grupos étnicos africanos no âmbito religioso no Brasil e na África.
Palavras-chave: Candomblé da Bahia, hauçás, tradição oral, Ogum, culto familiar, sincretismo.
Abstract: In the working-class neighborhood of Candeal Pequeno, located in the city of Salvador, there is a family shrine dedicated to the orixá Ogun. According to oral tradition, the shrine was established during the time of slavery by a prosperous African couple who owned large amounts of property and who founded the neighborhood. This article first reconstructs the family’s trajectory and its involvement in the cult to Ogun, identifying heterogeneous ethnic influences which varied over the course of time. The paper then discusses Ogun’s role among different peoples of the Bight of Benin region, with special attention to his importance for farmers such as the couple who created the shrine. The individual case study of the family in Candeal sheds light on the involvement of freed Africans in agriculture, as well as on the mutual influences among different African peoples in the religious domain both in Brazil and in Africa.
Keywords: Candomblé in Bahia, Hausas, Oral tradition, Ogun, Family shrines, Syncretism.
ARTIGO
FOI LÁ NO CANDEAL QUE PLANTEI A MINHA MATA. UM CULTO FAMILIAR A OGUM. SALVADOR C. 1813 – C. 19701
CANDEAL IS WHERE I PLANTED MY ORCHARD A FAMILY SHRINE TO OGUM. SALVADOR C. 1813 – C. 1970
Recepção: 14 Janeiro 2021
Aprovação: 27 Agosto 2021
Localizado no distrito de Brotas da cidade de Salvador, o bairro popular do Candeal Pequeno é conhecido do grande público como o berço do bloco afro Timbalada e do seu idealizador, o compositor e músico Carlinhos Brown. No centro da comunidade, no interior de um terreno murado, há um antigo altar dedicado ao orixá Ogum, onde, no primeiro dia do ano, são realizados festejos em seu louvor, com uma missa católica seguida por ritos afro-brasileiros. O culto teria sido estabelecido por um próspero casal africano, Josefa de Santana e seu marido, Manoel Mendes. Josefa teria nascido em 1769. Chegado à Bahia aos doze anos de idade, livre, em busca de uma parenta escravizada, teria se casado no ano seguinte, na igreja matriz da freguesia. Mendes, que era muçulmano, teria dado a sua noiva, como presente de casamento, uma pedra que trouxera da África dentro de um amuleto que carregou enquanto lutou uma guerra. Essa pedra viria ser o componente fundamental do assentamento de Ogum estabelecido na roça do casal. Inicialmente, o assentamento era zelado por Josefa, mas após seu falecimento a tarefa foi passada a suas netas e depois às sucessivas gerações de descendentes carnais, todas mulheres. Peça central da memória coletiva dos moradores do bairro, a narrativa tem sido citada por diversos pesquisadores, fascinados pelo entrelaçamento entre as histórias do assentamento, da família que o estabeleceu e do próprio bairro, todas remontando aos tempos do tráfico de escravos.3
O presente texto, baseado em pesquisa documental em diversos tipos de fontes primárias e complementada por análise etnográfica, visa reconstruir a trajetória da família e de seu culto a Ogum. No levantamento de informações, o ponto de partida foram as narrativas da história da família relatadas pela tataraneta dos fundadores, Hilda de Santana Querino (mais conhecida como Dona Didi) e já registradas por vários pesquisadores. Os nomes, datas e eventos citados nessas narrativas serviram como bússola para orientar a pesquisa documental.4
O texto está dividido em três seções. A primeira apresenta um panorama do culto a Ogum durante a progressiva urbanização do bairro no século XX. A segunda parte desloca o foco para o passado mais distante, cruzando informações da tradição oral com dados encontrados em fontes documentais. Os diversos pontos de convergência salientam a importância de tradições orais como fontes históricas, enquanto eventuais divergências ressaltam o caráter interpretativo, questão já apontada por estudiosos do assunto. Entre as diferenças encontradas, destacam-se evidências de que ambos, Josefa e o marido, passaram pelo cativeiro. O contexto da sua escravização é analisado em relação a eventos no continente africano e à dinâmica do tráfico de escravos. A seção ainda examina a trajetória do casal depois da liberdade e seu envolvimento na lavoura. Na terceira e última seção, o texto analisa o culto familiar pela lente da diversidade étnica da família e de sua rede social. Essa heterogeneidade, tão característica de famílias afro-brasileiras durante o tempo do tráfico de escravos, torna a trajetória do culto a Ogum no Candeal um caso exemplar das dinâmicas que moldaram o estilo ritual que passou a ser conhecido como candomblé. Ao mesmo tempo, o culto a Ogum no Candeal traz novos insumos para entender o fenômeno do culto familiar que, apesar de bastante difundido é pouco comentado nos estudos da religiosidade afro-brasileira.
Além de contar com as tradições orais como fontes de informações sobre a história da família, os descendentes atuais ainda possuem dois documentos antigos que registram partes da trajetória familiar. Há, portanto, certo grau de refluxo entre os âmbitos da oralidade e das fontes escritas, fenômeno já salientado por Vansina no seu estudo clássico sobre a tradição oral (VANSINA, 1985, p. 156–157). O primeiro documento no acervo familiar, de 1865, é uma hipoteca feita por Josefa de Santana, de “uma roça com casa de telha e arvoredo de espinho, sita ao Candeal, freguesia de Brotas”, o que comprova a posse de terras no local em meados do século XIX. O credor era seu filho, Antonio Mendes da Silva.5
O segundo documento é o inventário post-mortem das três filhas de Antonio Mendes da Silva, iniciado em 1961. Neste documento, o único bem que consta é uma roça no Candeal, evidentemente a mesma citada na hipoteca de 1865.6 Nascidas entre 1855 e 1867, essas irmãs, Celestina, Maria Irênia e Francisca Romana, são citadas na tradição oral como zeladoras de Ogum, sucessoras da avó no cargo. No inventário, a propriedade é descrita como um terreno com uma área de 5.267m2, sendo a maior parte “ocupada com cerca de setenta casas [...] pertencentes a rendeiros”.7 Celestina não deixou descendentes e a propriedade foi dividida entre os herdeiros das outras irmãs. A parte do terreno com o assentamento de Ogum foi para a filha mais velha de Francisca Romana, Tolentina (1887–1975).8 Quando esta faleceu, o terreno – e junto com ele a responsabilidade pelo culto a Ogum – passou para suas duas filhas, a já mencionada Dona Didi e sua irmã Noêmia, especialmente a primeira, que já atuava como braço direito da mãe. Hoje com mais de cem anos de idade, ela conta com o auxílio de parentes e outros familiares mais jovens.9
Ao longo do século XX, a antiga roça foi progressivamente engolida pela expansão urbana da cidade de Salvador. Vieram muitas novas construções, algumas erguidas pelos próprios descendentes de Josefa e seu marido, outras por pessoas de fora que arrendaram ou compraram terrenos. Assim nasceu o bairro do Candeal Pequeno, que hoje abriga mais de cinco mil pessoas (GADÊLHA, 2004, p. 27). A partir da década de 1980, prédios de luxo começaram a ser construídos nas adjacências, eventualmente invadindo terrenos baldios até então utilizados pela comunidade como espaços de lazer. Esse processo de urbanização foi registrado numa música gravada pela Timbalada em 1996, Pé de Prédio. Estruturada como um diálogo entre “Papai Ogum” e seus filhos espirituais, a “Gangue Ogum”, a música conta uma história resumida do bairro. Ao relatar os eventos do passado para a geração mais nova, Papai Ogum cita os pomares de outrora, cujas colheitas lucrativas acabaram se transformando num novo tipo de “pé”: edifícios de grande porte: “Foi lá no Candeal que eu plantei a minha mata ... Plantei tanto cacau que até pé de prédio dava”. O narrador aponta os grupos africanos presentes nos primeiros tempos, citando jejes, malês, iorubás e angolas. Desta forma, ao passo que sinaliza a importância histórica da lavoura, dos povos africanos e do culto a Ogum no cotidiano do bairro, a composição documenta o espanto dos antigos moradores diante da inusitada transformação social sinalizada pelo nascimento de “pés de prédio” (LIMA, 2001; TRUEBA, 2004; BROWN & NINHA, 1995).
O terreno que acolhe o assentamento de Ogum, protegido por um muro com dois metros de altura, é uma das poucas áreas verdes que restam da enorme roça de outrora. Ao passar pelo portão de entrada, o visitante se depara com várias espécies prediletas da divindade, como aroeira, espada-de-Ogum e peregun.10 No centro do terreno está o assentamento: uma pedra do tamanho de um melão, rodeada por cinco quartinhas tampadas e dezesseis ferramentas em ferro, tudo cercado por muretas baixas de adobe. É dito que quando foram plantados os axés do assentamento a pedra era do tamanho de um caroço de jaca. Com o passar do tempo, teria crescido paulatinamente até chegar ao tamanho atual.11
Muito provavelmente, o lugar do assentamento marca a entrada do antigo quintal da “casa de telha” citada no documento de 1865, mas desaparecida há muitas décadas. Em muitos terreiros de candomblé, os assentamentos de Ogum são abrigados em casinhas fechadas, mas na África os lugares consagrados a este orixá estão sempre ao ar livre, estrategicamente posicionados nas entradas dos palácios reais, dos mercados e dos templos de outros orixás (VERGER, 2018, p. 93). Caçador e guerreiro, Ogum é invocado para proteger contra inimigos, sejam humanos ou do reino dos espíritos. A localização de seus assentamentos nas entradas potencializa sua capacidade de neutralizar forças maléficas. No candomblé de nação ketu, embora essas características sejam associadas a Ogum, a capacidade de abrir caminhos é geralmente atribuída ao orixá Exu. Na nação jeje, porém, Legba – o equivalente a Exu dos nagôs – compartilha com Ogum (especialmente a qualidade conhecida como Ogum Xoroquê), o poder de afastar o mal (VERGER, 2018, p. 82–85; PARÉS, 2006, p. 335–337). Contudo, a qualidade do Ogum assentado no Candeal é outra: Ogunjá, cujos atributos e trajetória histórica serão analisados mais adiante.12
A força protetora de Ogum contra inimigos explica, em parte, seu papel como patrono de guerreiros e soldados. A chave real dessa força, entretanto, é seu domínio das técnicas de trabalhar com ferro. Por isso ele é patrono não apenas de soldados e guerreiros, mas também de ferreiros, caçadores e de toda profissão que depende de objetos de ferro. Também por isso seus assentamentos no Brasil geralmente são feitos de ferro. Na África, porém, pedras são elementos centrais nos assentamentos de Ogum, embora objetos de ferro sejam frequentemente presentes (BARNES & BEN-AMOS, 1997, p. 57, 58; BABALOLA, 1997, p. 162; PEMBERTON, 1997, p. 108–09; PEEL, 1997, p. 267–268). No Candeal, a recordação de que a pedra que representa Ogum fosse componente de um amuleto que protegeu o fundador da família durante uma guerra já evoca uma clara associação com a mitologia em torno desse orixá. Por outro lado, historicamente Ogum era reverenciado também como protetor dos agricultores, que também dependem de ferramentas de ferro (VERGER, 2018, p. 92). Esse aspecto do orixá acrescenta outra dimensão a sua importância para uma família engajada na lavoura por mais de um século, desde os tempos dos fundadores até o surgimento dos primeiros “pés de prédio”.
Nos anos 1920, Francisca Romana e seus filhos desenvolveram laços afetivos e religiosos com o babalorixá Eduardo Antonio Mangabeira (1881–1982), conhecido como Eduardo Ijexá, em referência a sua nação, cujo terreiro ficava nas adjacências do Candeal Pequeno.13 Muito conhecido entre o povo de santo e também um interlocutor importante para diversos pesquisadores na primeira metade do século XX, Seu Eduardo passou a assessorar a realização dos preceitos para Ogum, e sob sua orientação instalou-se um segundo assentamento no terreno, este dedicado a Exu, mensageiro dos outros orixás.14 A escolha da segunda divindade não foi por acaso. Como foi dito acima, Exu e Ogum compartilham várias características. Frequentemente descritos como irmãos, ambos são considerados orixás “de rua”, atuando juntos para abrir caminhos (PARÉS, 2006, p. 335–340).
No Candeal, Ogum é festejado no primeiro dia do ano, data que frisa a atuação do orixá em abrir caminhos. Em 1950, já no final da vida de Francisca Romana, a festa passou a incluir uma missa católica para Santo Antônio de Lisboa, que, no sincretismo afro-católico da Bahia, é associado com Ogum (GADÊLHA, 2004, p. 26; VERGER, 2018, p. 100).15 A inclusão da missa seguiu uma prática comum em vários terreiros históricos de Salvador, onde algumas festas – especialmente aquelas em louvor aos orixás patronos da casa – começam com uma romaria matinal para uma igreja católica. Nessas procissões, ícones católicos que correspondem ao orixá homenageado são levados por um cortejo de filhos de santo da casa para uma missa católica encomendada pelos dirigentes do terreiro. Depois de “tomar a benção” ao padre durante a missa, os ícones são levados de volta para o terreiro, agora acompanhados por membros do público que presenciou à missa. No retorno ao terreiro, a comitiva é recepcionada por ritos afro-brasileiros que se encerram com um café da manhã.16
Durante os primeiros anos, a missa para Santo Antonio nos festejos de Ogum no Candeal acontecia na igreja matriz da freguesia. Localizada a cerca de um quilômetro da antiga roça, a matriz de Brotas é de grande importância na história da família, citada nas tradições orais como o lugar onde Josefa e seu marido se casaram e onde, décadas depois, foram sepultados. Em algum momento, porém, o padre dessa igreja se incomodou com o caráter sincrético do evento, o que provocou o deslocamento para outra igreja.17 A introdução da missa sinalizou um novo patamar em relação ao alcance dos festejos para Ogum no Candeal. No início dos anos 1950, além de ser uma celebração da família consanguínea e seus conhecidos, as festividades já envolviam novos residentes do bairro, então em crescente fase de urbanização. Como foi dito acima, muitos dos novos moradores estavam assentados em terrenos que pertenciam a descendentes de Josefa de Santana e seu marido. Essa centralidade da família na transformação da roça em bairro forma o pano de fundo para a inserção do enredo sobre Josefa e seus descendentes na memória coletiva do bairro.
Apesar desse emaranhamento, ao longo do tempo, entre a história particular e coletiva, um aspecto singular do assentamento a Ogum é que sempre permaneceu um culto familiar, uma modalidade ritual pouco documentada na literatura sobre o candomblé. Em trabalho de campo realizado em Sergipe nos anos 1980, a antropóloga Beatriz Dantas constatou a presença de assentamentos em casas particulares, frisando sua importância, apesar da escassez de estudos a seu respeito (DANTAS, 1988, p. 62–68). No caso do Candeal, é de se notar que apesar da alargada visibilidade que a celebração católica trouxe para as festividades de Ogum, o culto permaneceu no âmbito familiar, sem almejar a ampliação da rede religiosa por meio da criação de um terreiro, da iniciação de filhos de santo, da inclusão de outras datas no calendário ritual etc.
A centralidade da festa de Ogum no cotidiano do bairro surge em outra música de Carlinhos Brown, Vanju Concessa (BROWN, 1996). Sua família mora no Candeal desde os tempos de seus avôs, em terreno arrendado a Francisca Romana. Brown nasceu em 1962, poucos anos depois do falecimento da matriarca, quando o processo jurídico da divisão de seus bens estava ainda em andamento. As letras da música são um caleidoscópio das experiências do compositor como criança no bairro, com a festa de Ogum retratada como evento agregador na teia de relações sociais dos moradores. Divulgada pelo serviço de alto-falante, a festa atraía a criançada com a promessa de abundantes iguarias: “Eco ecoou, no alto-falante / É festa de Ogum / Tome cem refrigerantes”. Durante os preparativos, as crianças eram acionadas para ajudar os adultos: “Pega a palha de dendê lá em Narbal / Areia branca e pitanga pra enfeitar o Candeal”. O termo “palha de dendê” se refere ao mariô, palavra iorubá usada no candomblé para uma franja feita com folhas desfiadas do dendezeiro. Um dos principais símbolos de Ogum, o mariô é usado como enfeite na roupa do orixá manifestado. Colocado em cima de portas e janelas nos terreiros, o mariô serve para invocar a proteção de Ogum contra energias e espíritos maléficos. O Narbal citado na música era morador do Candeal, numa casa com um terreno amplo, cheio de dendezeiros. Quando chegava o dia da festa, Narbal tirava folhas que seriam utilizadas na fabricação de mariô. A folha de pitanga, também citada na música, é utilizada no candomblé também, mas é associada a Oxum, estimada por ajudar a atrair a riqueza. Essa folha ainda tem usos medicinais e espirituais na cultura popular baiana, especialmente no período natalino. Junto com a areia branca, folhas de pitanga fazem parte das decorações de presépios. Na virada do ano, jarras cheias de folhas de pitanga e aroeira são colocadas no interior das casas, para chamar a prosperidade e abrir os caminhos. Ao apontar para a justaposição de elementos próprios da simbologia do orixá homenageado com outros, típicos das comemorações populares do final do ano, a música evoca o caráter híbrido das festividades para Ogum no Candeal.18
Além dos documentos guardados no acervo familiar, nos arquivos encontrei muitos outros, cujas informações confirmam elementos centrais da tradição oral sobre Josefa e seu marido, trazendo também novos detalhes que acrescentam textura e nuance ao enredo. Por vezes, a documentação escrita ainda aponta algumas diferenças, como geralmente acontece em análises comparativas de tradições orais, tanto no contexto afro-brasileiro como alhures. De acordo com Vansina, além de ser fontes de informações sobre o passado, tradições orais são ao mesmo tempo interpretações do passado, como qualquer outra narrativa histórica, oral ou escrita.19 Enfim, como no caso de narrativas escritas, é preciso dar crédito e ao mesmo tempo manter uma visão crítica.
Em relação a Josefa de Santana e seu marido, dois documentos fundamentais são o testamento deste, de 1855, e a partilha dos bens depois da sua morte em 1857.20 Esses documentos revelam que, apesar de a tradição oral lembrá-lo pelo nome Manoel, ele se chamava Antonio, igual ao filho. Por isso, este acrescentava “júnior” ao nome. Outro dado importante que surge no testamento é o nome do ex-senhor de Antonio Mendes pai: Francisco Mendes da Silva.21 Documentos sobre o ex-senhor ajudam a desvendar a trajetória dos fundadores da família. Ele morava na vizinhança do Candeal desde pelo menos 1804, quando se casou com a filha de uma família residente nos entornos da igreja matriz de Brotas, os Vaz Sodré. No alvorecer do Oitocentos, a freguesia de Brotas era um arrabalde da cidade da Bahia. No largo da igreja matriz, onde Francisco Mendes da Silva e sua esposa tinham uma casa, havia uma pequena povoação, aparentemente a maior da freguesia.22
Como mostra a historiadora Maria das Graças de Andrade Leal em seu estudo da evolução do bairro de Brotas, no início do século XIX a maioria do território pertencia a grandes fazendas e engenhos, remanescentes de um antigo morgado, cujos proprietários também tinham casas na cidade. A principal atividade econômica da freguesia, a lavoura, dependia de mão de obra escrava, que constituía a maioria da população. Os poucos residentes livres e libertos também se sustentavam com a lavoura, em terrenos arrendados aos grandes latifúndios. Na segunda metade do século a compra de pequenas roças passou a ser comum, e mesmo depois da Abolição a agricultura permaneceu a principal atividade econômica até as primeiras décadas do século XX, especialmente no Candeal (LEAL, 2014, p. 541–545; NASCIMENTO, 2019, p. 204-321, 427).
Os sogros de Francisco Mendes da Silva tinham uma roça no Candeal e depois de casado ele passou a dividir seu tempo entre este local e um sobrado na freguesia urbana de São Pedro.23 Nos registros paroquiais encontrei evidências de dezesseis cativos africanos que viviam sob seu poder.24 A documentação disponível indica que homens eram a grande maioria desses cativos, provavelmente empregados no cultivo da roça do senhor. A primeira notícia do escravo chamado Antonio é de 2 de fevereiro de 1814, quando se casou com outra cativa do mesmo senhor chamada Josefa.25 Os nubentes foram descritos como naturais da Costa da Mina, termo que então designava a região entre o Forte de São Jorge da Mina, na atual República de Gana, e a cidade de Onim (Lagos), na atual Nigéria, uma área que incluía centenas de grupos étnicos (PARÉS, 2006, p. 27–28).
Esse registro de casamento evidentemente é dos fundadores do assentamento de Ogum, mas a condição jurídica registrada na descrição de Josefa contradiz um aspecto importante da tradição oral da família, segundo a qual ela teria vindo ao Brasil como mulher livre. Contudo, vários outros documentos confirmam que ela vivenciou o cativeiro, a começar com o registro de batismo da filha primogênita, Maria de Santana. Datado de 16 de agosto de 1814, seis meses depois do casamento, esse documento descreve a menina como “filha legítima de Antonio e Josefa, escravos de Francisco Mendes”.26 Não localizei a carta de alforria de Josefa, mas em vários documentos ela consta como liberta – ou seja, ex-escrava – e não “livre” como eram descritas pessoas que nunca vivenciaram o cativeiro. O registro de seu óbito, por exemplo, de 12 de janeiro de 1884, a descreve como “natural d’África, liberta, moradora ao Candeal, viúva de Antonio Mendes, africano liberto”. Seu nome também consta, ao lado de Antonio Mendes, numa relação de africanos libertos residentes na freguesia de Brotas em 1849.27
Ao interpretar essa divergência com as informações reivindicadas pela tradição oral, é preciso relembrar um aspecto fundamental desse gênero narrativo. Como já foi dito, tradições orais são interpretações do passado e como tais envolvem rememoração seletiva. Em relação a ancestrais de prestígio, experiências dolorosas ou desconfortáveis podem ser relegadas ao segundo plano ou expressas indiretamente por meio de metáforas, enquanto acontecimentos mais aprazíveis são colocados em relevo (VANSINA, 1965, p. 65-71). No caso do terreiro da Casa Branca, por exemplo, as tradições orais aludem a algum parentesco sanguíneo entre a fundadora, Iyá Nassô, e sua sucessora, Marcelina Obatossi, provavelmente uma expressão metafórica para o laço entre elas que consta claramente na documentação: senhora e cativa (PARÉS & CASTILLO, 2015, p. 114-125). No mesmo terreiro, a narrativa oral mais conhecida sobre o africano Bamboxê Obitikô afirma que veio ao Brasil como pessoa livre, enquanto a documentação indica que chegou inicialmente na condição de escravo, alforriando-se sete anos depois e retornando à África repetidamente durante mais de vinte anos (CASTILLO, 2016). Aparentemente, o estilo telegráfico da tradição oral condensou essa sequência de desembarques em um só, privilegiando sua vida de liberto. No caso de Josefa, a descrição dela como livre e rica funciona como se fosse um instantâneo de um determinado tempo de sua vida que, acalentado pelas gerações posteriores de descendentes, virou uma metonímia para toda sua vida.
Quanto à sua procura por uma parenta escravizada, é bem possível que familiares de Josefa tenham sido escravizadas antes dela. O tráfico de escravos tendia a explorar repetidamente as mesmas regiões. Em cidades portuárias como Salvador, a chegada de muitos cativos da mesma região possibilitava, por vezes, reencontros de parentes.28 Nos documentos que encontrei sobre Josefa, não há referências explícitas a parentes nascidos na África. Por outro lado, como veremos em breve, ela pertencia a uma das maiores nações da população africana na Bahia naqueles tempos, o que deixa bem aberta a possibilidade de que tenha reencontrado familiares.
Há diversas outras diferenças ligeiras entre as informações guardadas pela tradição oral sobre Josefa e seu marido e aquelas que constam nos registros escritos. Mas muita coisa também confere. Voltando ao registro de casamento, por exemplo, o ano que consta no documento é 1814, diferente das narrativas da família, que falam de sua chegada em 1781, com o casamento no ano seguinte. Apesar da diferença de três décadas quanto ao ano de chegada, a ideia de um curto intervalo entre a chegada e o matrimônio é confirmada pelo registro de seu batismo, ocorrido no primeiro dia de novembro de 1813.29 Uma vez que escravos africanos eram geralmente batizados dentro de um ano, Josefa provavelmente desembarcou na Bahia no início de 1813, portanto cerca de um ano antes do casamento, justamente como lembra a tradição oral.
Como o registro de casamento, a certidão de batismo descreve Josefa como escrava de Francisco Mendes. Este documento também oferece informações mais precisas sobre sua nação: descreve-a como “preta jeje”, termo que, na Bahia, designava africanos que falavam dialetos do tronco linguístico gbe, oriundos da região sul da atual República do Benim. Dos escravos embarcados na Costa da Mina para a Bahia, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira década do XIX, os jejes predominavam (PARÉS, 2006, p. 23–57). A designação jeje não era uma etnia. Referia-se a povos vizinhos que, além de possuir afinidades linguísticas, o que facilitava a comunicação entre si, compartilhavam vários aspectos culturais e religiosas. Os jejes também formaram minorias significativas no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, onde frequentemente eram conhecidos como minas-jejes, ou minas, termo derivado de Costa da Mina (SOARES, 2019, p. 129–31; SOARES, 2000, p. 95–127). A prevalência demográfica dos jejes nesse período era nítida no caso dos africanos escravizados por Francisco Mendes da Silva: a metade era dessa nação.
O senhor também tinha cativos de outras nações, entre eles três hauçás, sendo um, Antonio, o marido de Josefa. Apesar de sua nação constar no registro de casamento apenas como Costa da Mina, cinco anos depois, quando ele foi padrinho de outros escravos de seu senhor, foi identificado como hauçá. A mesma nação consta na sua carta de alforria, emitida em janeiro de 1824, em troca de 190 mil-réis.30 Essa informação sobre seu grupo étnico é bem compatível com a afirmação, na tradição oral, de ele ter sido muçulmano.
Um dos maiores grupos étnicos da região norte da atual Nigéria e do sul do Níger, os hauçás começaram a adotar o islã no século XIV (PALMER, 1908, p. 59, 70, 92–94). A conversão, porém, não conseguiu apagar a religiosidade local, chamada maguzanci ou bori. Caracterizado por um panteão de entidades espirituais (iskoki) cultuadas por meio de sacrifício animal e da possessão dos adeptos, o bori permanece até hoje entre os hauçás, ao lado de e misturado com elementos do islã popular. Isso foi especialmente o caso no ambiente rural, onde a penetração do islã ortodoxo foi pequena, mas também atingiu o islã praticado pelas elites nas cidades. Por volta de 1804, esses lapsos na observância dos ensinamentos do Profeta tornaram-se pretextos convenientes para o lançamento de um jihad encabeçado por Usman dan Fodio, fundamentalista muçulmano e xeque de Sokoto, um califado hauçá. Os conflitos duraram vários anos, gradualmente atingindo todo o território hauçá e outros reinos da região. Foram feitos muitos prisioneiros, a maioria vendida a traficantes de escravos. Uma boa parte desses prisioneiros chegou à Bahia como escravos. Ainda não foi feito um estudo sistemático da presença hauçá na Bahia, mas, a julgar pelos registros de batismos de cativos, essa foi uma das maiores nações africanas que chegou à cidade do Salvador entre 1810 e 1820, proporção que provavelmente se estendia ao interior da capitania (LAST & AL-HAJI, 1965, p. 231–240; REIS, 2014, p. 70–76; DANFULANI, 1999, p. 433–440).
A identificação de Antonio Mendes da Silva como hauçá, encontrada na sua carta de alforria, oferece uma janela para compreender uma afirmação central da tradição oral: que ele tivesse lutado numa guerra na África. A julgar pela idade estimada de 80 anos que tinha quando faleceu em 1857, ele teria nascido por volta de 1777.31 Portanto, quando o jihad contra os estados hauçás começou, o futuro marido de Josefa tinha por volta de 25 anos, idade ideal para participar da luta em defesa de seu povo. A ideia de que ele carregava um amuleto no corpo para se proteger também procede. Entre os hauçás e outros povos islamizados da África, o uso de amuletos era e ainda é bem difundido. Fabricados tanto por líderes muçulmanos quanto por sacerdotes de religiões tradicionais, eram carregados no corpo ou pendurados no lar. A versão islâmica mais ortodoxa tem como elemento central um papel escrito com um verso do Alcorão ou uma reza; outros incluem ainda desenhos cabalísticos. Tudo é embrulhado numa pequena bolsa, feita de couro ou outro material. Frequentemente, entretanto, além de textos muçulmanos, os amuletos reúnem outros objetos que, na religiosidade tradicional, são investidos de propriedades protetoras, como folhas de determinados tipos, dentes ou ossinhos animais, búzios ou pós (REIS, 2003, p. 180–97; REIS, 2014, p. 97–98; DANFULANI, 1999, p. 436; DIOUF, 1998, p. 128–134).
As sequelas do jihad, que resultou na escravização dos hauçás, fizeram-se sentir na Bahia através de três levantes protagonizados por cativos dessa nação, em 1807, 1809 e 1814 (REIS, 2003, p. 69–90; REIS, 2014, p. 68–115). Nessas revoltas, o uso de amuletos para proteger o corpo era comum. Em 1807, entre os objetos confiscados pelas autoridades estavam amuletos contendo “certas composições supersticiosas” (REIS, 2003, p. 73). O livro com os batismos da freguesia de Brotas para as décadas iniciais do século XIX, bastante estragado pelo tempo, é de leitura difícil e não consegui identificar o registro do batismo do escravo hauçá que como liberto era conhecido como Antonio Mendes da Silva, o que torna difícil saber se ele estava na Bahia durante as rebeliões de 1807 e 1809. Contudo, ele certamente estava na última e maior revolta protagonizada por seus conterrâneos, que teve lugar em 28 de fevereiro de 1814, duas semanas depois de seu casamento com Josefa. Não há evidências, porém, que levem a crer que ele tenha estado envolvido. Embora uma parte do planejamento tenha acontecido na freguesia de Brotas, foi num lugar chamado Sangradouro, relativamente distante do Candeal.
Ademais, nenhum dos outros escravos hauçás de Francisco Mendes da Silva foi acusado de participação. Porém, alguns dos réus certamente transitavam na área da igreja matriz de Brotas. Um dos senhores com vários escravos acusados na rebelião, Manoel Ignácio da Cunha, proprietário da maioria das terras na freguesia e futuro Visconde do Rio Vermelho, batizou muitos cativos hauçás nessa igreja. É possível que alguns deles conhecessem seu conterrâneo Antonio, cujo senhor morava ao lado da igreja.32
A mais conhecida rebelião baiana com influências muçulmanas foi a Revolta dos Malês, acontecida em 1835, cujo nome vem da palavra iorubá para muçulmano, ìmàle. Nessa altura, Antonio Mendes da Silva era liberto há onze anos e senhor de quatro escravos. Além de ser pai de família, ele já era avô: sua filha primogênita, Maria de Santana, casada com um liberto hauçá, desde 1827, teve uma filha em 1831.33 É pouco provável, portanto, que ele tenha se envolvido nesse levante, não apenas por sua situação de vida, mas pelo viés étnico. Diferente das revoltas anteriores, a de 1835 foi idealizada e protagonizada principalmente por nagôs. Como João Reis argumenta, apesar de vários hauçás serem acusados, a maioria foi absolvida e nenhum dos poucos hauçás condenados foi apontado como cabeça da conspiração (REIS, 2003, p. 296, 333, 345-346, 597). Um africano chamado Antonio Mendes foi preso na freguesia de Brotas, acusado de participar da rebelião, mas esse era de nação nagô. Ao que parece, era um homônimo do nosso personagem: outro cativo de Francisco Mendes da Silva, batizado em 1825. Consta no registro de batismo que era nagô. Nessa altura o nosso Antonio Mendes – que, lembramos, era hauçá – já era forro.34
Uma vez libertos, o hauçá Antonio Mendes da Silva e sua esposa Josefa de Santana permaneceram nas redondezas. Em 1849, constam como lavradores numa relação de mais de duzentos africanos libertos residentes em Brotas, quase todos com a mesma ocupação, o que ressalta a centralidade da agricultura no cotidiano da freguesia.35 Outros africanos da rede socioafetiva de Josefa e Antonio foram identificados também como lavradores, entre eles o marido da filha mais velha, o hauçá liberto Benedito Nobre, que também tinha uma roça no Candeal.36
Em 1857, quando Antonio Mendes da Silva morreu, possuía três roças (LEAL, 2014, p. 542–547). A primeira, localizada na “rua do Candeal”, onde a família morava, era em terreno arrendado e tinha centenas de árvores frutíferas de vários tipos, a maioria laranjeiras. A segunda propriedade, lá perto, na Fazenda Pomar, era também arrendada e plantada com legumes e mandioca. A terceira, com plantações de árvores frutíferas, ficava no caminho para o povoado do Rio Vermelho. Esta, a única que consegui identificar a data de aquisição, não era arrendada. Foi comprada em 1854, em nome dos filhos.37 Em tempos de safra, as plantações dessas três propriedades seguramente empregavam muitas mãos. Ademais, as roças eram situadas em terreno de alto declive, o que dificultava o trabalho. Segundo a tradição oral da família, Josefa e seu marido tinha doze escravos, afirmação respaldada pela documentação. Encontrei registros de oito africanos, divididos igualmente entre homens e mulheres, a metade de nação nagô. Havia também quatro crianças, filhos de duas das africanas. A mão de obra desses cativos seguramente foi fundamental para a manutenção e a colheita. Em 1859, porém, quando a propriedade foi partilhada, depois da morte de Antonio Mendes da Silva, dos cativos africanos restaram apenas quatro, descritos como velhos. Por outro lado, havia vários crioulos do sexo masculino, na última fase da adolescência e já capazes de realizar trabalho braçal.38
Na Bahia, alguns africanos bem-sucedidos continuaram investindo em mão de obra escrava até a véspera da Abolição, como a nagô liberta Marcelina da Silva, segunda ialorixá do Terreiro da Casa Branca (CASTILLO & PARÉS, 2007, p. 146–148). Mas, no caso de Josefa, não há evidências de novos investimentos em cativos depois da morte do marido, talvez em parte por uma redução das posses. As benfeitorias da roça na Fazenda Pomar aparentemente foram vendidas, enquanto a roça no caminho para o Rio Vermelho já estava escriturada em nome dos filhos. Apenas a roça do Candeal ficou com Josefa. Mas esta propriedade tinha mais de quatrocentas árvores frutíferas, em tempos de safra trabalho demais para o número reduzido de escravos que a viúva ainda possuía. É provável que ela tenha recorrido também a mão de obra livre, na forma de meeiros, jornaleiros ou rendeiros. Com a morte da matriarca em 1884, os cativos crioulos citados acima – os últimos da família – ficaram libertos.39 Antonio Mendes da Silva Júnior tinha morrido em 1871 e a roça passado para sua viúva e as três filhas. É provável que algumas das “casas de rendeiros” mencionadas no inventário post-mortem das três filhas remontem a esse período, quando o gerenciamento dos plantios da propriedade passou a depender de mão de obra livre.40
De acordo com D. Didi, no início, as plantações da roça eram apenas de “pés de dendê e candeia”, até o início do século XX, quando um bisneto de Josefa, Tertuliano José Damasceno, teria plantado outras espécies de árvores.41 A partilha dos bens deixados por Antonio Mendes pai, porém, sequer menciona dendezeiros ou candeeiros, citando muitas outras espécies de árvores frutíferas, a maioria laranjeiras. Poucos anos depois, quando Josefa hipotecou a roça ao filho, a descrição da propriedade se referiu apenas a “arvoredo de espinho”, ou seja, de frutas cítricas.42
É provável que a referência a dendezeiros e candeeiros seja outra reelaboração simbólica, desta vez uma alegoria para a antiguidade da família no local e a importância do culto a Ogum. É dito que o Candeal recebeu seu nome devido ao grande número de candeias (Eremanthus erythropappus) na mata que inicialmente cobria a região (LEAL, 2014, p. 538). Dizer que na roça de Josefa e seu marido tinha muitos candeeiros, portanto, sugere que a presença da família remonta aos primórdios da lavoura no local. Em relação ao dendezeiro, como já foi dito, o mariô, feito com as folhas dessa palmeira, é um dos símbolos principais de Ogum. Ademais, o coco do dendezeiro é utilizado na produção do azeite de dendê, ingrediente fundamental na grande maioria das comidas oferecidas não apenas a Ogum, mas também aos outros orixás. No âmbito maior da culinária afro-baiana, o azeite de dendê é usado em pratos como acarajé, caruru e moqueca. O gosto baiano pelo dendê veio da África, onde Elaeis guineensis é nativa e o azeite de palma é um dos principais ingredientes da alimentação de diversos povos (LIMA, 2010, p. 145–150; SOUSA, 2014, p. 127–142; BASCOM, 1951, p. 42–43; ROBINS, 2018, p. 69–103).
Na documentação, a primeira menção ao cultivo de dendezeiros na roça da família é no inventário dos bens de Antonio Mendes da Silva Junior, de 1872. A maioria do arvoredo era de laranjeiras, mas também havia dez dendezeiros.43 Nesse período, o cultivo dessa palmeira estava crescendo na Bahia. Antes, a maioria do azeite de dendê consumido no Brasil era importada da África, mas depois do fim do tráfico de escravos o comércio com a África caiu, entrando em decadência nos anos 1880. Segundo Watkins, foi justamente nesse período que o cultivo do dendezeiro começou a crescer na Bahia. Sua introdução nos plantios da família parece inserido nessa conjuntura econômica, talvez estimulando, ao mesmo tempo, o crescimento da importância para o culto familiar a Ogum (CUNHA, 2012, p. 139; WATKINS, 2015, p. 39–40).
O assentamento de Ogum no Candeal não foi o único altar afro-brasileiro dentro de uma roça nos subúrbios de Salvador no século XIX. Em outro canto da mesma freguesia, no distrito do Matatu, o terreiro do Alaketu foi instalado num terreno comprado pela nagô liberta Maria do Rosário nos anos de 1830. Quando ela faleceu, vinte anos depois, o terreno tinha já mais de cem árvores frutíferas de várias espécies, especialmente jaqueiras, mangueiras, cajueiros e dendezeiros.44 No caso do terreiro da Casa Branca, estabelecido no Engenho Velho da Federação, freguesia da Vitória, por volta de 1860, o primeiro documento disponível sobre a propriedade é o inventário post-mortem dos bens da terceira ialorixá, Maria Julia de Figueiredo, de 1892. O documento cita árvores frutíferas, além de uma plantação de cana-de-açúcar.45 Outro terreiro, hoje extinto, localizado na fazenda Santa Cruz, não muito longe do Candeal e provavelmente estabelecido por volta de 1895, pertencia ao africano liberto Joaquim Vieira da Silva, personagem ancestral da Casa Branca. Segundo as tradições orais, foi aí que Mãe Aninha – futura fundadora do terreiro de Ilê Axé Opô Afonjá – abrigou-se, quando se afastou da Casa Branca. Em 1902, quando Joaquim morreu, a roça estava plantada com mangueiras, jaqueiras, dendezeiros e coqueiros.46 Esse emaranhado histórico entre lugares de culto aos orixás e a lavoura se faz sentir ainda hoje no uso da palavra roça como sinônimo para terreiro, tão comum entre pessoas do candomblé.
O contexto rural dos terreiros mais antigos de Salvador ajuda a explicar por que Oxóssi, orixá caçador, é patrono do terreno em vários terreiros históricos. Na África, como no Brasil, Oxóssi é considerado irmão de Ogum. Ambos têm domínio sobre as florestas e por isso são invocados para a escolha de lugares propícios a novas povoações e roças (VERGER, 2018, p. 118–119; DENNETT, 1910, p. 80, 124). A agricultura faz parte da competência desses dois orixás. Embora Orixá Okô, outra divindade, seja mais especificamente ligado a agricultores, mesmo assim os versos de Ifá o descrevem também como caçador, ligado a Ogum e Oxóssi. Diferente destes dois, Orixá Okô acabou se assentando e passou a se sustentar da lavoura (PEEL, 1997, p. 275–277; BASCOM, 1993, p. 48).
Refletindo sobre as relações entre os três orixás caçadores no contexto africano, Verger aponta para as mudanças que ocorreram na cosmogonia do candomblé. Houve uma redução nas coincidências funcionais entre orixás distintos, enquanto as diferenças entre eles ganharam maior destaque. Segundo o autor, as funções associadas à agricultura teriam sido alvos especiais de apagamento:
Ogum, no Brasil, é conhecido sobretudo como deus dos guerreiros. Perdeu sua posição de protetor dos agricultores, pois os escravos, nos séculos anteriores, não possuíam interesse pessoal na abundância e na qualidade das colheitas, e, sendo assim, não procuravam sua proteção neste domínio. Isso explica, igualmente, o pouco-caso que os iorubás, escravos no Brasil, deram ao Òrìṣà Oko, cujo culto continua popular na África. Como deus dos caçadores, Ogum foi substituído por Oxóssi.47
É incontestável que no candomblé, hoje, Ogum seja considerado um orixá guerreiro. Contudo, os já citados exemplos de terreiros estabelecidos em roças pertencentes a africanos libertos despertam dúvidas sobre a suposição de que “os escravos” – aqui Verger se referia, implicitamente, a todos os devotos dos orixás no Brasil – não tivessem “interesse pessoal na abundância e na qualidade das colheitas”. Os libertos que assentaram seus orixás nos seus pomares seguramente tinham bastante interesse nas safras. Até cativos frequentemente tinham hortas. Embora Verger tenha razão ao dizer que o culto a Orixá Okô seja pouco comum hoje no candomblé, ele é cultuado ainda no venerável terreiro do Alaketu, apesar de Oxóssi ser o “dono da terra” (CASTILLO, 2011, p. 232–235, 244). Quanto a Ogum, seu histórico no Candeal como padroeiro de uma família de lavradores sugere que a transformação sinalizada por Verger ainda não tinha acontecido nos tempos de Josefa e seu marido.
Entre os hauçás, a lavoura era, e ainda é, uma ocupação importante, especialmente entre os maguzawa, como são conhecidos os adeptos da religião tradicional, o maguzanci ou bori. Entretanto, apesar do grande número de iskoki representados como caçadores, agricultores e guerreiros, alguns associados a outros grupos étnicos, não há notícias de Ogum. Contudo, estudiosos do bori concordam que a sobrevivência do culto, diante da hostilidade do islã, num primeiro momento, e depois a dos colonizadores europeus, foi possibilitada por sua extrema plasticidade. Ao invés de uma rejeição categórica às práticas e divindades oriundas de outros povos, houve um processo de ressignificação seletiva. Em decorrência disso, os espíritos cultuados no bori incluem grandes números de entidades identificadas como muçulmanos ou até europeus, vestígios das mudanças sucessivas no cenário sociopolítico do território hauçá (DANFULANI, 1999, p. 421–427, 435–438, 440–441; REIS, 2014, p. 72; ONWUEJEOGWU, 1971, p. 287–288, 291–300; MASQUELIER, 1994, p. 11–13).
Voltando à trajetória específica do hauçá liberto Antonio Mendes da Silva, já vimos que um aspecto central da narrativa sobre ele é o patuá que teria carregado dentro da roupa, com a pedra que no Brasil seria consagrada a Ogum. Esses detalhes sugerem que, apesar de ser identificado pelos descendentes como muçulmano, sua religiosidade foi bastante influenciada pelo bori, como a de tantos conterrâneos seus. Os amuletos consistindo de versos do Alcorão eram sancionados pela ortodoxia islâmica, mas quando acrescentavam objetos do universo mágico-religioso africano eram mal vistos. Na África negra, porém, era justamente este último tipo o mais utilizado pelos povos islamizados, adotados ainda por diversos grupos não-islamizados. No mundo lusófono, amuletos africanos eram conhecidos desde pelo menos o século XVI, ganhando o nome de “bolsas de mandinga”. Ao longo do tempo os patuás passaram a incluir simbologia do imaginário cristão e escritos em português (REIS, 2003, p. 180–97; CALAINHO, 2008, p. 173–186; SANTOS, 2008).
Ao que parece, no Brasil do início do século XIX, com o influxo de grandes números de africanos islamizados, especialmente hauçás e nagôs, o uso de escritos islâmicos nos patuás ganhou renovada importância. Contudo, como na África, nem todo mundo que valorizava o poder místico desses escritos era muçulmano. Em 1835, na esteira da Revolta dos Malês, os filhos da nagô liberta Francisca da Silva – fundadora do terreiro hoje conhecido como a Casa Branca – foram presos depois que as autoridades encontraram “um pedaço de couro cosido, com uma polegada e meia”, contendo “um papel escrito com caracteres árabes” entre seus pertences. Para as autoridades, a posse do amuleto era prova do islamismo dos irmãos e de sua cumplicidade com os rebeldes. Mas outras evidências sobre a religiosidade dos irmãos apontam não para o Islã, mas para a participação no culto familiar a Xangô (VERGER, 2002, p. 376; CASTILLO & PARÉS, 2007, p. 120–122). Menos de vinte anos depois, no recôncavo baiano, o hauçá liberto Cipriano José Pinto dirigia um culto que misturava elementos do Islã com preceitos para “o santo de sua terra” – talvez algum espírito magunzaci – auxiliado por uma liberta de nação efon, um subgrupo iorubá. No mesmo período, em Salvador, o hauçá Manoel Joaquim Ricardo foi acusado de promover ajuntamentos de africanos, que, segundo a polícia, eram de candomblé (REIS, 2008, p. 249–255; SOARES, 1992, p. 133–142; REIS, 2016, p. 54).
O Islã negro se fez sentir também em outras partes do Brasil. Na cidade do Recife, nos anos 1850, o nagô liberto Rufino José Maria era um conhecido alufá, palavra iorubá que significa mestre muçulmano. Usava diversos amuletos no corpo e “vivia de fazer orações a fim de dar às pessoas que o consultavam [...] aquilo que desejavam”. Além de redigir pequenos textos em letras árabes, Rufino se avaliava de saberes mágico-religiosos de vários outros tipos. Seus clientes não eram apenas africanos; ele era consultado também por pardos e brancos (REIS & GOMES; CARVALHO, 2010, p. 306–311, 368, 369). No Rio de Janeiro, exemplares do Alcorão eram vendidos em pelo menos uma livraria na segunda metade do século XIX e há registros até os anos 1930 sobre a presença de alufás, geralmente rotulados de feiticeiros por causa de seu leque heterodoxo de saberes. Um dos mais conhecidos foi o alufá Assumano, cujos clientes incluíam o escritor José do Patrocínio Filho (RIO, 2006, p. 25–28; SILVA, 2004; PRESTES, 1929, p. 8; BASTIDE, 1978, p. 152; FARIAS, 2005, p. 265–297). No mesmo período, em Maceió havia casas de culto afro-brasileiro identificadas como malês, lideradas por sacerdotes que se intitulavam alufás. Em Salvador, alguns adeptos do candomblé utilizavam inscrições islâmicas para proteger seus lares ou locais de trabalho das forças maléficas e alguns terreiros identificavam sua nação como muçurumim, corruptela do árabe muslimūn (muçulmano).48
Além de revelar a presença de práticas mágico-religiosas associadas ao Islã no passado distante, esses exemplos apontam para a influência do Islã no processo de bricolagem ritual que deu origem ao candomblé contemporâneo, onde as bolsas de mandinga ainda são utilizadas. Nesse pano de fundo insere-se o amuleto hauçá que deu origem ao assentamento do orixá Ogum no Candeal. De grande importância na cosmogonia nagô, Ogum é cultuado, com os mesmos atributos, por povos conhecidos no Brasil como jejes, sob o nome de Gu. Pode ter sido, inclusive, através da esposa Josefa – que, lembramos, era desta nação – que o jovem guerreiro hauçá Antonio conheceu o culto ao vodum padroeiro de soldados como ele.
Segundo Barnes e Ben-Amos, Gu tornou-se importante na região do Daomé devido a sua importância para os ferreiros e as demais ocupações que dependiam de implementos de ferro. Os autores citam um mito daomeano sobre a criação do mundo, no qual o Criador teria trazido Gu à Terra consigo, na forma de uma espada cerimonial [gubasa] que segurava na mão. Com a gubasa, o Criador “limpou o mato e ensinou o povo a construir casas, cultivar a terra e usar metal, para que eles também pudessem desfrutar do poder de Gu”. Aqui, o conhecimento de Gu aparece como fundamental no desenvolvimento social dos seres humanos, especialmente no âmbito da agricultura, uma ideia evidente na iconografia de seus assentamentos, frequentemente decorados com miniaturas de enxadas e de outras ferramentas de ferro, característica registrada em relatos europeus desde o século XIX e presente ainda hoje (BARNES & BEN-AMOS, 1997, p. 53–54).
Apesar do papel central na criação do mundo atribuído a Gu no mito, na cosmogonia fon ele faz parte de um grupo de voduns considerados “nagôs” (LE HERISSE, 1911, p. 241). O fato de o culto ser tratado como elemento forasteiro sugere que, quando foi introduzido, a religiosidade daomeana já estava estruturada, ou seja, bem depois da criação do mundo. Não é claro quando isso teria acontecido, mas um relato do final do século XVIII sugere que Gu já tinha importância então entre os reis do Daomé (PARÉS, 2016, p. 216). A importância de Gu teria crescido por causa das predações realizadas pelos daomeanos nas terras de povos vizinhos, a procura de cativos para vender ao tráfico atlântico, sobretudo no reinado de Guezo, na primeira metade do século XIX (BARNES & BEN-AMOS, 1997, p. 54; BAY, 1998, p. 189–190, p. 319).
Contudo, há sugestões indiretas que o culto a Gu já estava bem disseminado no Daomé no século XVIII. No Haiti, que recebeu muitos cativos da região das línguas gbe nesse período, Ogou é uma das divindades mais importantes, associado aos heróis da independência, especialmente o general Jean-Jacques Dessalines, cujo espírito é cultuado como uma qualidade da divindade, Ogou Desalin (COSENTINO, 1997, p. 298–301, 312; DAYAN, 1995, p. 19, 29-36, 114, 139). Na Bahia, os indícios do culto a Gu entre a população jeje são do final do século XVIII. Em 1786, um ritual realizado por um grupo de africanos jejes e nagôs na freguesia da Conceição da Praia envolveu o sacrifício de um cachorro – comida preferida de Ogum e Gu na África. A essa freguesia, alguns anos depois, veio para morar o jeje Francisco Nazareth de Etra, devoto de Ogum. Posteriormente um ator importante na fundação do terreiro do Gantois, durante o cativeiro Francisco Nazareth serviu a um senhor jeje, que provavelmente lhe iniciou no culto.49 Era igualmente de Ogum a africana liberta Ludovina Pessoa, personagem lendária nos primeiros tempos dos terreiros jejes mais antigos da Bahia, o Seja Hundé e o Bogum, já em atividade em meados do século XIX (PARÉS, 2006, p. 183, 186).
Nesse cenário, é bastante plausível que Josefa de Santana tivesse algum conhecimento do vodum Gu, já na sua terra ou por meio de contatos com conterrâneos seus no Candeal. Lembremos que entre seus companheiros de cativeiro havia várias pessoas de nação jeje. Na música da Timbalada citada acima, a referência a africanos de nação “jeje-malê” na história do Candeal, parece dialogar com a memória coletiva sobre Josefa e seu marido, pois na linguagem popular da Bahia, malê virou sinônimo de muçulmano. A afirmação, na tradição oral, de que Antonio Mendes da Silva encarregou a esposa da responsabilidade sobre a pedra que estava no seu amuleto é também plausível, pois no bori hauçá as mulheres constituem a liderança do culto (DANFULANI, 1999, p. 427–431). O papel de Josefa no culto familiar seguramente se consolidou depois da morte do marido em 1857. É fácil imaginar, pois, que ela tivesse bastante autonomia para estabelecer uma associação sincrética entre o vodum Gu, tão conhecido na sua terra, ligado à guerra e também padroeiro da lavoura, atividade que sustentava a família, e a entidade guerreira que protegeu seu marido na luta contra o jihad de Sokoto. Diante do ecumenismo do bori em relação a cosmogonia religiosa de outras culturas, Antonio Mendes da Silva teria tido poucos motivos para recusar essa associação sincrética.
Portanto, nos tempos da fundação, os rituais em torno do assentamento a Ogum provavelmente misturavam influências jejes e hauçás. Há sugestões de influências iorubás também, porém em tempos mais recentes. Como foi dito na primeira seção deste texto, segundo os zeladores atuais, a qualidade específica do Ogum assentado no terreno da família é Ogunjá. Esse nome, de origem iorubá, não consta na literatura etnográfica sobre o Daomé ou os jejes no Brasil. Como foi mencionado acima, a única qualidade de Ogum de que se tem notícias na literatura etnográfica sobre o candomblé jeje é Ogum Xoroquê.
Na Iorubalândia, onde o panteão de orixás é enorme, Ogum faz parte de um pequeno grupo cultuado, historicamente, em todas as regiões. Contudo, os orikis (poemas panegíricos) da divindade, bem como os versos de Ifá, sugerem que o culto nasceu na região oriental, precisamente na povoação de Iré, no reino de Ekiti. O culto a Ogum é especialmente forte também nos reinos vizinhos de Ijexá e Ondo (PEEL, 1997, p. 266; VERGER, 1998, p. 152–154, 189, 191–195). No candomblé ketu/nagô, é comum referir-se a Ogum como Onirê [i.e., senhor de Iré]. Considera-se que há sete qualidades, entre elas Ogunjá, com vínculos estreitos com Exu. Na África, o nome Ogunjá consta também em várias tradições orais da região leste da Iorubalândia, onde o culto a Ogum é especialmente importante. Na cidade de Akure, hoje capital do atual estado de Ondo, um rei do século XVII, descendente da família real do reino de Ijexá, chamava-se Ogunjá.50 Ainda no estado de Ondo, Ogunjá aparece como figura ancestral e filho de Ijá (outro orixá caçador) nos mitos de fundação da pequena cidade de Ile-Oluji. Ao que parece, o culto a Ijá hoje é relativamente pequeno. Sobre Ogunjá as informações são mais escassas ainda. Os cultos a esses dois orixás parecem ser limitados à região oriental do território iorubá.51
Entre o povo de santo de Salvador, Ogunjá é mais conhecido por ter sido a qualidade do Ogum do conhecido babalorixá Procópio Xavier de Souza (c.1870 –1958). Seu terreiro, Ilê Ogunjá, no vale do Matatu, freguesia de Brotas, foi frequentado por vários estudiosos do candomblé. Entrevistado pelos antropólogos Melville e Frances Herskovits em 1942, Procópio afirmou ser neto de africanos. Os pais do pai teriam sido de nação ijexá, mas no lado materno a ascendência teria sido jeje. A mãe foi iniciada no terreiro jeje do Bogum, onde Procópio também foi iniciado, aos seis meses de idade. Segundo os Herskovits, porém, Procópio destacou que seu santo não era jeje: teria sido feito na nação ketu.52
O sociólogo Donald Pierson, que foi “suspenso” (i.e., escolhido) para o posto de ogã no terreiro de Procópio em 1936, registrou informações um pouco diferentes sobre os pais do babalorixá. Na sua versão, o pai de Procópio nasceu na África e era de nação jeje. Quanto à mãe, Pierson não comentou sua ascendência, apenas disse que nasceu no Brasil. Tampouco disse onde ela foi iniciada, mas registrou que teria sido mãe de santo, consagrada a Ogum, e que Procópio, feito para o mesmo santo, recebeu dela o cargo de babalorixá, evidentemente como “herança”. No caso, o terreiro herdado da mãe provavelmente foi estabelecido na segunda metade do século XIX. Ainda segundo Pierson, Procópio falava um pouco de quatro dialetos iorubás, entre eles ijexá, o que reforça a informação registrada por Herskovits, de sua ascendência ijexá.53 Neste caso, a qualidade de seu Ogum, Ogunjá, pode ser interpretada como vinculada a esse aspecto de sua genealogia. Por outro lado, há relatos sobre filhos de santo de Procópio que aprenderam dele preceitos jejes. Evidentemente, sua prática ritual foi marcada por influências heterogêneas.54
Por volta dos anos de 1930, várias gerações de descendentes de Josefa de Santana e Antonio Mendes da Silva formaram laços com o terreiro chefiado por Procópio, talvez em parte devido a afinidades com suas influências jejes. Nos anos 1930, Hilda de Santana Querino (Dona Didi) foi iniciada por Procópio, enquanto seu cunhado, Edgard Antonio Querino, se tornou ogã do orixá do próprio pai de santo. A avó de Didi, Francisca Romana, e sua neta Noêmia (irmã de Didi e esposa de Edgard), também frequentavam a casa desse pai de santo. Ao mesmo tempo, como já foi dito, a família também tinha vínculos com o terreiro chefiado por Eduardo Ijexá, laços que foram se estreitando depois da morte de Procópio em 1958. Diferente de Procópio, Seu Eduardo convidava para suas obrigações apenas seu círculo social imediato, sem almejar públicos maiores. Nesse sentido, apesar de ter constituído terreiro, o modelo de culto se assemelhava ao culto familiar praticado pelos descendentes de Josefa. Nos anos 1970, Noêmia foi confirmada como equede na casa de Seu Eduardo, e sua filha Luzia acabara se casando com Raimundo Mangabeira, filho carnal do babalorixá.55
A criação de vínculos com esses pais de santo, laços mantidos até os dias de hoje, sugerem uma crescente influência nagô no assentamento de Ogum do Candeal. A atribuição de Ogunjá como a qualidade específica do orixá aponta, inclusive, para a importância da cosmogonia ijexá nessa metamorfose ritual. Assim o caráter já heterogêneo das influências étnicas do assentamento se tornou mais polivalente ainda.
Este texto reúne diversos tipos de evidências documentais e etnográficas na tentativa de reconstruir o percurso do culto a Ogum no Candeal e da família que o criou. Extraordinária por si mesma, por abranger um período de mais de cento e cinquenta anos, a micro-história dos descendentes de Josefa de Santana e seu marido é apoiada por detalhadas tradições orais cuja relevância não se restringe ao âmbito de seus descendentes consanguíneos, repercutindo também entre os membros da comunidade ao seu redor. Num sentido mais amplo, a trajetória dessa família de lavradores negros na periferia semirrural da cidade da Bahia ajuda a compreender a trajetória de tantos outros afrodescendentes em áreas rurais cujas histórias foram ocultadas pelo racismo estrutural.
O cruzamento das tradições orais da família com registros escritos e a historiografia africanista confirma elementos centrais das narrativas familiares, bem como revela algumas divergências que apontam para a presença de ressignificações alegóricas. Mas, afinal, narrativas sobre o passado transmitidas de uma geração à outra não deveriam ser interpretadas como documentos estáticos, mas como construções dinâmicas, um aspecto fundamental apontado por vários estudiosos do assunto. Nesse sentido, as tradições orais dessa família afro-brasileira, como tantas outras, são caracterizadas pela bricolagem: são mosaicos de informações introduzidas em diversos momentos históricos, algumas fatuais, outras altamente simbólicas.56
Quanto ao assentamento, há vários pontos de interesse especial, em primeiro lugar por se tratar de um culto familiar, uma modalidade de culto pouco comentada na literatura sobre a religiosidade afro-brasileira. Outro aspecto importante é a evidência de antecedentes hauçás, um dos maiores grupos africanos na Bahia oitocentista, cujo legado religioso carece de estudos específicos. Ao mesmo tempo, ao que parece, desde os tempos dos fundadores, o culto a Ogum no Candeal foi marcado por diversas influências étnicas. Nesse sentido, sua longevidade é menos um caso de preservação de uma origem pura do que o resultado de uma complexa convivência entre retenções, metamorfoses e transformações de elementos rituais e mitológicos provenientes de diferentes grupos étnicos. Se, nos tempos de Josefa e seu marido, as cosmogonias jejes e hauçás parecem ter sido os fatores dominantes, nas primeiras décadas do século XX entrou em cena o imaginário nagô, fornecendo assim um caso contundente do processo histórico que Parés denomina a “nagoização” do candomblé (PARÉS, 2010, p. 165–185). Contudo, as evidências de interações e adaptações entre as cosmogonias que influenciaram o culto a Ogum ultrapassam o contexto do Brasil, remontando a dinâmicas em jogo na própria África.
Esse histórico de adaptações e apropriações, tanto na África como no Brasil, fornece insumos instigantes para o debate sobre o sincretismo no candomblé, que tem sido largamente enquadrado em torno da dinâmica desigual entre a força hegemônica do catolicismo e a subalternidade imposta às práticas de matriz africana. Nessa visão, com o fim da repressão ao candomblé, o sincretismo afro-católico teria perdido completamente sua raison d’être. Para sair dessa limitação semântica e conceitual, surgiu a proposta de substituir o conceito de sincretismo pela ideia mais geral de hibridismo cultural.57 As evidências apresentadas aqui, porém, sobre a trajetória de Ogum na África e a história do bori hauçá, demonstram que o sincretismo nas religiões de matriz africana não decorre apenas da relação com o catolicismo. Ao contrário, o hibridismo religioso ou sincretismo é um aspecto fundamental de processos históricos no próprio continente africano, decorrente de uma plasticidade característica, um princípio cultural bem profundo e não menos “africano” que as chamadas “sobrevivências” (APTER, 1991, p. 249–250; MINTZ & PRICE, 2003, p. 78). Neste sentido, a introdução, em meados do século XX, de uma missa católica nas comemorações anuais a Ogum no Candeal, obedece a mesma lógica ritual que interpretou a função de um amuleto hauçá através do imaginário sobre o vodum Gu, que por sua vez foi ressignificado como a entidade paralela de Ogunjá. Tal trajetória, para parafrasear Foucault, decorre de múltiplos reescritos feitos nas duas margens do Atlântico Negro, num palimpsesto ritual já embaralhado e riscado.
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira
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