Resumo: O objetivo deste artigo é analisar como os poemas homéricos são abordados como fontes históricas nos manuais de História Antiga. Inicialmente, apresenta-se um contexto de transformações da maneira como se compreendem os processos de composição poética oral. Em seguida, discute-se as transformações ligadas à compreensão da noção de autoria. Em cada um dos manuais selecionados, a repercussão dessas ideias nas interpretações sobre o papel dos poemas como fontes para a História da Grécia é investigada, constatando-se uma grande diversidade de propostas de datação dos poemas. Por fim, pretende-se demonstrar como há uma tendência de tomar Homero não apenas como o autor da Ilíada e da Odisseia, mas como uma autoridade sobre uma temporalidade quase mítica, que estaria na origem da sociedade grega histórica.
Palavras-chave: História Antiga, poemas homéricos, autoridade e autoria, poesia oral, manuais universitários.
Abstract: The aim of this paper is to analyze how the Homeric poems are approached as historical sources in Ancient History Handbooks. First, it will be presented an academic context of transformations in the way the oral composition process is comprehended. Secondly, the transformations on the idea of authorship is discussed. The repercussion of those ideas in the interpretation of the role the poems have as historical sources will be analyzed on each Handbook, with a great variety of possible dates being identified. Lastly, the present paper intends to demonstrate that there is a tendency to take Homer not merely as the author of the Iliad or the Odyssey, or as the name that identifies those poems as a group. There is another tendency, to transform Homer in an authority over an almost mythic temporality, one that is in the origins of a historical Greek society.
Keywords: Ancient History, Homeric poems, authority and authorship, oral poetry, History handbooks.
ARTIGO
OS POEMAS HOMÉRICOS NOS MANUAIS DE HISTÓRIA ANTIGA: AUTORIA, AUTORIDADE SOBRE O PASSADO E O MITO DAS ORIGENS DA SOCIEDADE GREGA ANTIGA1
THE HOMERIC POEMS IN THE ANCIENT HISTORY HANDBOOKS: AUTHORSHIP, AUTHORITY OVER THE PAST AND THE MYTHICAL ORIGINS OF ANCIENT GREEK SOCIETY
Recepção: 23 Fevereiro 2021
Aprovação: 30 Maio 2021
Os poemas homéricos ocupam uma posição central em qualquer síntese sobre a História Antiga, de maneira geral, ou sobre a História Grega, especificamente. O uso deles como fonte histórica é um dos pontos mais polêmicos entre os historiadores3. Neste artigo, pretendo investigar como a questão é tratada nos manuais introdutórios, voltados para a graduação em História, muitos deles adotados no Brasil.
Para contextualizar o debate, é preciso destacar o ponto de partida dessa polêmica, que diz respeito a dificuldades ligadas à autoria dos poemas. Chamada de “questão homérica”, a problemática inclui, na verdade, um conjunto de questões: se existiu um poeta chamado Homero que compôs a Ilíada e a Odisseia; se a composição dos poemas foi realizada por dois poetas, um para cada poema; se foram compostos por uma série de autores e posteriormente reunidos por um ou múltiplos compiladores; se eles foram compostos oralmente ou por escrito; e, por fim, o período em que a composição teria ocorrido4.
Desde o final do século XIX até meados dos anos de 1920, o debate ficou extremamente polarizado. De um lado, havia os chamados analistas, que defendiam a teoria da compilação dos poemas a partir de pequenos trechos compostos por diferentes poetas5. Do outro lado, estavam os unitaristas, que defendiam a autoria individual dos poemas6. O debate perdeu fôlego com o avanço das teorias de que os poemas foram fruto de processos de composição oral,7 a partir dos estudos comparativos de Milman Parry e Albert Lord, nos Bálcãs, sobre o funcionamento das tradições orais vivas entre os anos de 1930 e 19608.
Esses autores sugeriram que, no interior de tais tradições, a figura do poeta nunca é percebida dentro da lógica moderna da autoria. Para eles, a composição dos poemas homéricos acontecia da mesma maneira que as canções que observaram nos Bálcãs: no momento das performances orais. Seria um processo no qual o poeta usa fórmulas tradicionais9, previamente conhecidas, para montar os versos de sua canção rapidamente, no momento da apresentação. Ao mesmo tempo, ele tem liberdade para construir uma canção original em cada contexto10. Assim, duas versões de um poema, com o mesmo título, apresentadas em ocasiões diferentes, pela mesma pessoa ou por pessoas diferentes, podem ter grandes variações. A busca por um texto original fixo de um autor, concebido no sentido usual, não faz sentido em uma tradição com essas características. Essa busca seria inapropriada tanto para a tradição dos Bálcãs quanto para a tradição dos poemas homéricos (LORD, 1960, p. 99–123).
Em um artigo recente, Jensen, uma homerista que também faz pesquisas de campo,defendeu que as principais ideias desses pioneiros acerca do funcionamento das tradições orais vivas ainda são válidas. Para tal, ela realizou um balanço dos resultados dos últimos 70 anos de trabalho de campo em diversas dessas tradições. Segundo Jensen, apesar das possíveis variações entre elas11, um elemento permanece constante: a fuidez das performances poéticas, em que nenhuma apresentação é idêntica a outras de um mesmo poema, mesmo que realizada pelo mesmo poeta. Apesar disso, todo poeta de épicos orais afirma que sempre apresenta sua composição da mesma maneira, sem ter o desejo de inovar ou criar algo que possa ser considerado novo. Eles se orgulham de sua capacidade de manter as performances da forma como aprenderam, preservando a tradição, segundo sua concepção, palavra por palavra. Contudo, os registros dos pesquisadores de campo demonstram que as composições são, na verdade, extremamente fuidas quando são comparadas diferentes performances do que seria, supostamente, uma mesma composição poética na concepção dos indivíduos que compartilham da tradição. Isso evidencia que a percepção de unidade textual neste tipo de gênero poético não é a mesma da produção literária escrita moderna. O mesmo pode ser dito da ideia de autoria, uma vez que esses poetas nem sempre afirmam ser os autores dos poemas, mas meros apresentadores de material tradicionalmente estabelecido (JENSEN, 2017, p. 6).
Portanto, em um primeiro momento, com a querela entre analistas e unitaristas, há um debate acerca do problema de se determinar uma autoria, ou uma multiplicidade de autorias para os poemas homéricos. Assim, a Ilíada e a Odisseia são tomadas como textos que não seriam tão distintos de obras escritas em períodos mais recentes, apesar de suas particularidades de composição12. Em um segundo momento, a partir de Parry, com a sugestão de que os poemas homéricos fariam parte de uma tradição oral, a autoria concebida num sentido contemporâneo é confrontada com a realidade fluida dos textos e dos processos de composição oral em performance. Em uma tradição oral compartilhada, os poemas circulariam em estados de maior ou menor fuidez ao longo do desenvolvimento da tradição, sendo retrabalhados ao longo do tempo por diversos poetas, o que também seria verdadeiro para os poemas homéricos13.
Em paralelo ao desenvolvimento específico da análise da épica homérica e da composição oral, outro conjunto de refexões, também relevante para o estudo que proponho realizar, desenvolveu-se a partir do final da década de 1960, notadamente com Foucault e Barthes e, posteriormente, com Chartier.
O objetivo aqui não é apresentar esse debate de maneira aprofundada. Para a presente discussão, basta indicar que Barthes tinha entre seus objetivos criticar a concepção de que um autor tem sempre autoridade para determinar os sentidos da leitura sobre um texto (BARTHES, 1988)14. Por sua vez, Foucault (2009) propõe pensar o autor não necessariamente como figura histórica, introduzindo a ideia da função do autor. Trata-se de tomar o autor como um princípio de organização de discursos em uma sociedade, permitindo agrupar e separar textos por suas semelhanças e diferenças. Tradicionalmente, alguns conjuntos de textos são associados a um determinado nome, um autor, tendo ele sido uma pessoa que existiu, como Balzac, ou não, como possivelmente é o caso de Homero (FOUCAULT, 2009, p. 273-274)15. Por fim, Chartier discute como a atribuição de determinados discursos a uma pessoa não é uma prática universal, afirmando que essa concepção particular de autoria é historicamente construída e não deve ser projetada para todos os contextos (CHARTIER, 1999)16.
Assunção (2010) faz relevante discussão acerca do alcance dessa problemática nos estudos sobre a autoria na antiguidade, em particular no caso dos poemas homéricos, a partir, sobretudo, das teses de Foucault17. Ele evidencia a necessidade de se atentar para o problema da autoria de Homero a partir de uma perspectiva historicamente construída, que leve em consideração concepções próprias de cada contexto (ASSUNÇÃO, 2010).
Contudo, pouco do intenso debate acerca da questão da autoria como conceito alcançou as abordagens que analiso aqui. Estas se referem àquelas apresentadas nos manuais de História Antiga, História da Grécia ou mesmo nos textos específicos sobre Grécia arcaica ou “primitiva”18. De maneira geral, as abordagens sobre autoria e composição dos poemas homéricos seguem, em larga medida, os debates ligados à “questão homérica”, tal como ela é estabelecida desde, pelo menos, o século XIX.
Os autores aqui analisados se posicionam dentro de um conjunto de possibilidades. A primeira é a suposição de Homero como poeta responsável pela Ilíada e pela Odisseia. A segunda é a suposição do princípio de uma autoria dupla, com a identificação de dois poetas, um para cada obra. Uma terceira possibilidade é a identificação dos poemas pelo título, pelo adjetivo “homéricos” ou mesmo pelo recurso convencional do nome “Homero”. Nessa última possibilidade, geralmente não há posicionamento preciso quanto às dificuldades ligadas aos problemas de composição e de atribuição da autoria dos poemas. A questão da autoria, ou a do uso do nome para identificar as obras, fica apenas subentendida. Em todos esses posicionamentos, portanto, parece haver um reconhecimento implícito da função do autor, convencionalmente denominada ou não como Homero. Tal função do autor operaria como uma agência que organiza os discursos das obras, seja para a Ilíada e para a Odisseia tomadas como conjunto, seja para cada obra individualmente.
Em todo caso, geralmente nem mesmo o problema da oralidade e as características específicas que envolvem a composição em performance de poesia oral merecem mais do que uma menção tangencial nas discussões, se é que aparecem nesses manuais. Como demonstrarei, alguns deles reconhecem que a tradição de que os poemas homéricos fazem parte é oral. Contudo, a composição das obras é pensada como evento específico, que pode ser datado em um contexto bem delimitado. Esse contexto estaria relacionado à ação de um autor, um poeta que escreve a partir de temas e estruturas narrativas oriundas dessa tradição oral, ou um poeta que realiza uma performance oral que teria sido registrada por outro indivíduo que dominaria a escrita.
Os textos que analiso formam um conjunto composto por manuais concebidos para um público universitário, ou utilizados no contexto das universidades brasileiras, originalmente publicados em inglês, francês, alemão e português, entre 1948 e 2013. Os critérios de escolha do conjunto foram o alcance destas obras como textos introdutórios voltados para o ensino superior e a disponibilidade delas no Brasil19. Selecionei apenas obras autorais que apresentam uma síntese histórica sobre a História Antiga ou a História da Grécia, realizadas por um ou mais autores20. Portanto, não foram incluídos nesse levantamento textos que integram trabalhos colaborativos como coletâneas, compêndios e dicionários temáticos, em que cada autor é responsável por seções específicas dentro da obra. Tampouco foram incluídas obras que tratam especificamente dos poemas homéricos ou fazem um recorte limitado aos períodos históricos específicos relacionados à sociedade que estaria descrita na Ilíada e na Odisseia.
A maior parte do material trabalhado foi publicada após a difusão dos debates modernos sobre autoria, desde o final dos anos de 1960, com Barthes, Foucault e Chartier, bem como após a difusão da teoria de composição oral desenvolvida por Parry e divulgada por Lord (1960). Somente os manuais de Robinson (1948), Bengtson (1971)21 e Forsdyke (1957) são anteriores a tais marcos, mas foram incluídos na análise a título de comparação. Em alguns casos, os estudiosos apresentam mais de uma possibilidade sobre a origem da composição dos poemas, nem sempre apontando uma vertente preferida. Por isso, podem ser listados em mais de uma categoria.
Primeiro, irei tratar da ideia de autoria, sem necessariamente entrar no mérito da relação dos poemas com a oralidade. A autoria única, com Homero identificado como poeta ou sendo usado como termo para identificar um agente criador, aparece claramente em Robinson (1948, p. 20), Forsdyke (1957, p. 12), Osborne (2009, p. 3)22, Pomeroy et al. (2004, p. 6), Lefèvre (2013, p. 93)23, Jones (2008, p. 6–7) e em uma breve lista de possibilidades apresentadas por Cartledge (2009, p. 29). É uma seleção surpreendente de autores, por incluir os dois textos mais antigos consultados, que antecedem os debates mencionados, e alguns dos mais recentes.
Parte desses autores até cogita alternativas, mas demonstra uma preferência pela autoria única. Robinson admite que não se sabe se os poemas foram fruto de um único indivíduo, chamado Homero, ou um processo de composição gradual, envolvendo vários poetas. Contudo, defende que a unidade interna dos poemas indica que, em algum momento, um “gênio” trabalhou nas obras, entre 900 e 700 a.C. É possível que não seja o mesmo “gênio” a trabalhar na Ilíada e na Odisseia, mas Robinson considera ser conveniente tomá-las como feitas por Homero (ROBINSON, 1948, p. 20).
Forsdyke até discute a possibilidade de autoria dupla, mas expressa da seguinte maneira sua preferência pela autoria única:
[…] a Ilíada e a Odisseia se assemelham em seu projeto dramático, na delicada representação dos personagens e na expressão de uma humanidade serena e sensível, que está estranhamente associada às brutalidades do campo de batalha na Ilíada. [...] a rara humanidade é o refexo do caráter do poeta e pode ser decisiva para [a hipótese da] autoria única, caso seja tomada por si só (FORSDYKE, 1957, p. 12)24.
Osborne, por sua vez, reconhece que “a Ilíada e a Odisseia são o resultado de uma única mente trabalhando sobre materiais que foram transmitidos e reelaborados oralmente em um período de séculos” (OSBORNE, 2009, p. 3). É uma posição semelhante à de Pomeroy et al. (2004, p. 6). No caso dessa última obra, os autores sugerem que os textos teriam sido ditados por um poeta iletrado a um indivíduo que dominava a escrita (ibidem, p. 43).
Como já apontei, a autoria dupla, que leva em conta um poeta para Ilíada e outro para Odisseia, é considerada por Robinson (1948, p. 20) e Forsdyke (1957, p. 12-13), apesar de ambos defenderem a autoria única como mais plausível ou conveniente. A hipótese também é contemplada por Lefèvre (2013, p. 93) e Cartledge (2009, p. 29) entre as possibilidades que levantam. Nenhum desses dois toma posição com relação à polêmica, apenas apresentam as múltiplas possibilidades. Vale observar que todos esses autores mantêm, no decorrer de suas análises, a identificação tradicional do conjunto dos poemas pelo nome de Homero, como ficou convencionado, apesar de cogitarem a possibilidade de que os poemas sejam de autores diferentes. Por sua vez, Finley também defende essa ideia no já mencionado Grécia Primitiva, após apresentar um breve preâmbulo quanto à dificuldade da questão (FINLEY, 1990, p. 89).
Existe uma alternativa que pode ser compreendida como sendo intermediária entre a autoria única e a dupla: um único poeta teria composto as obras em dois momentos diferentes de sua vida, separados por cerca de 50 anos. Assim, haveria um Homero jovem e um velho. Isso explicaria a existência de visões de mundo e instituições históricas na Odisseia que parecem ser inexistentes na Ilíada, esta última, mais antiga. Tal alternativa é sugerida por Corvisier (1996, p. 18, 22), além de ser mencionada na lista de Cartledge (2009, p. 29), em que o autor não se posiciona, e por Forsdyke (1957, p. 12).
Em parte dos manuais, contudo, o problema da autoria é inteiramente evitado sem qualquer tipo de debate. A autoria única é, todavia, presumida, ou, ao menos, considera-se que existe uma força criadora dos poemas que é denominada como Homero. Tal procedimento está presente em diversos momentos das obras de Bengtson (1971), Vernant (2003)25, Austin e Vidal-Naquet (1977)26 e Snodgrass (1981). Funari apresenta Homero apenas como nome convencional, afirmando explicitamente que é a este nome que os poemas são atribuídos. Além disso, afirma que Homero é um personagem que “hoje se sabe ser lendário” (FUNARI, 2002, p. 20–21). Guarinello cita Homero com outros autores que passam a ser publicados no ocidente europeu a partir do século XIV (GUARINELLO, 2013, p. 18). O que Guarinello está preocupado em mostrar, vale apontar, é como os textos atribuídos a Homero fazem parte do que virá a ser considerado como cultura erudita europeia, com outras obras oriundas da Antiguidade.
Martin, por sua vez, até esboça uma discussão mais detida sobre a composição dos textos. Ele identifica a hipótese de que os poemas circularam por séculos em uma tradição oral, tendo sido fixados pela escrita no período arcaico, bem como a de que teria havido uma composição completamente escrita dos poemas no século VIII a.C. (MARTIN, 2013, p. 7)27. Contudo, o autor não se posiciona quanto à questão da autoria. No restante de seu texto, ele apenas faz o uso convencional do nome de Homero como identificador da função do autor dos poemas.
Duas dessas obras se destacam e merecem um olhar mais atento. Apesar de não apresentarem qualquer debate sobre questões de autoria e de funcionamento da tradição, Snodgrass (1981) e Austin e Vidal-Naquet (1977) consideram Homero como um agente literário criador, que observa e seleciona características históricas das diferentes épocas que são registradas nos poemas. Snodgrass mostra tal concepção de maneira bastante sugestiva, quando, ao discutir questões ligadas a práticas econômicas, constrói formulações como: “Homero fala com mais de uma voz acerca dessa questão [...]. Essa faceta do retrato de Homero é, portanto, provavelmente derivada de uma época anterior [...]” (SNODGRASS, 1981, p. 35).
Austin e Vidal-Naquet até evidenciam que consideram ser problemático aceitar completamente a autoria de Homero para a Ilíada e a Odisseia, mas fazem isso por meio do recurso pontual e pouco esclarecedor de colocar o termo entre aspas, sem explicar a razão da relativização do uso do nome (AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1977, p. 37). Indicam que há uma dificuldade nesse uso, mas não especificam qual é.
Somente Finley, em obra originalmente publicada em 1963, rejeita completamente pensar em termos modernos de autoria, influenciado não pelo debate pós-estruturalista francês do final da década de 1960, mas, especificamente, pelas teorias de composição oral veiculadas por Lord a partir do início da mesma década (FINLEY, 1988, p. 17). É o único dos textos a evitar completamente falar da composição dos poemas por meio da escrita, apesar de não se preocupar com a discussão de como os poemas teriam sido fixados desta forma.
A tendência, no entanto, diferentemente do exemplo solitário e contraditório de Finley28, é adotar uma outra estratégia. Em todos os demais manuais analisados, pouco se problematiza a aplicação do conceito historicamente construído de autoria para contextos tão recuados. O tratamento do processo de composição oral, quando mencionado pelos autores29, é tomado apenas como estágio de desenvolvimento do período anterior à composição ou fixação final dos poemas. Nesse caso, pouco importa se essa composição teria sido completamente escrita, ou se ela é resultado do registro escrito de uma performance oral ditada. Mesmo essa última hipótese mantém a concepção de composição autoral fixada em determinado momento, em que a performance oral original teria gerado um texto copiado por outro indivíduo com domínio da escrita30.
Qual será a razão da perseverança destas posições nos textos introdutórios sobre história antiga? Seria uma simples questão de falta de aprofundamento das obras? É verdade que são textos introdutórios que propõem realizar sínteses sobre a História Antiga ou a História Grega, e não estudos específicos sobre Homero como fonte histórica. Contudo, creio que a razão para esses posicionamentos seja outra, que nada tem a ver com a extensão das discussões específicas sobre tal tema.
Ela está ligada à maneira como os historiadores31 abordam os poemas como vestígios, pistas para interpretar o passado. Ora, os poemas homéricos não são tomados apenas como fenômenos literários pelos estudiosos da História Antiga, mas como fontes, documentos usados para tratar do passado grego32. Isso ocorre, de maneira relativamente sistemática, desde o século XIX33. Todavia, as formas de uso de tais poemas como fontes se ampliaram significativamente no decorrer do século XX e XXI34. No campo dos estudos homéricos, foram propostas muitas análises, algumas delas extremamente ricas e de teor altamente diversificado35. Portanto, apesar das dificuldades de datar os poemas homéricos, os escritores dos manuais analisados, assim como muitos historiadores que estudam a antiguidade, não se furtam de usar tais obras como fontes que trazem informações sobre o passado. De fato, são materiais com enorme potencial para a compreensão da História Grega. Contudo, o que pretendo mostrar é a maneira como, por vezes, os estudiosos tomam os poemas como fontes para contextos temporais e geográficos muito bem delimitados. É esse procedimento que pode gerar alguns limites nas leituras propostas nas sínteses analisadas aqui.
O uso dos poemas homéricos como fontes históricas traz problemas particulares de tratamento, frequentemente negligenciados pelos historiadores que se desdobram sobre tais textos. Outros conjuntos textuais compartilham problemas semelhantes, seja de datação, seja de identificação do contexto para o qual a fonte teria informações históricas relevantes, mas a situação dos poemas homéricos é particularmente incômoda.
Em outra oportunidade, realizei um mapeamento das propostas de estudiosos para a datação e uso das informações trazidas nos poemas como relevantes para uma compreensão histórica. Essas informações estão contidas em um espectro temporal que abarcava um período de cerca de mil anos, entre os séculos XVI e VI a. C., a depender da proposta de cada autor de como abordar os poemas homéricos (OLIVEIRA, 2012).
O desenvolvimento das teorias de composição oral e a identificação de tradições poéticas fuidas e de longa duração deixaram a questão ainda mais complexa. Dentro de uma tradição com essas características, fuidez textual e longa duração, qual seria o momento histórico sobre o qual uma canção épica registrada pela escrita teria mais a informar? Seria sobre o período em que as narrativas relacionadas aos poemas começaram a circular? Ou seria sobre o período em que as versões escritas deles teriam sido fixadas? Seria algum período intermediário entre esses dois momentos? Talvez, por conta dessas dificuldades ligadas ao debate sobre tradições orais e contextos de composição, uma autoria não problematizada, ainda que presumida, seja uma estratégia tão adotada nos manuais analisados. Um autor, concebido como figura histórica, embora presumida, ancora seus textos a um contexto no qual o indivíduo estaria ativo, um pressuposto tomado por muitas análises históricas. Assim, uma fonte diria respeito a um determinado contexto de produção sobre o qual ela poderia ser interrogada como portadora de informações relevantes36. Além dessa possibilidade, alternativas criativas são apresentadas, de maneira a explicar como as fontes, produzidas em determinado contexto, informam, na verdade, acerca de outro.
O problema de quem produziu a fonte é resolvido rapidamente, em todos esses casos, para permitir dizer quando ela foi produzida, ou sobre quando ela fala. A ênfase na relativização do conceito tradicional de autoria, ou na fuidez e longevidade da tradição de composição oral, seriam estratégias contraproducentes para a resolução desta dificuldade central.
Assim, cada estudioso se apega a um período delimitado da produção final dos poemas. Usualmente, esse é um ponto menos polêmico. Grande parte dos autores, incluindo aqueles analisados aqui, consideram que a composição final da Ilíada e da Odisseia teria acontecido entre os séculos VIII e VII a.C. Em seguida, cada estudioso também se apega a um potencial de alcance temporal das fontes, no que diz respeito ao período relevante para o seu tratamento. É nesse último quesito que a escolha é mais variada. Se o momento final de composição é aceito sem grandes controvérsias, o alcance dos poemas para falar do passado não é tomado da mesma maneira nesses manuais. Quase todos aceitam que os poemas incorporam camadas de informação de múltiplas temporalidades, acrescidas de elementos ficcionais. No entanto, divergências impressionantes aparecem quando se trata de discutir sobre qual período os poemas teriam mais a dizer.
Robinson (1948, p. 18–21), Bengtson (1971, p. 118–119) e Forsdyke (1957, p. 14–19) alternam entre a predominância do núcleo de informação relativo ao período do Bronze Tardio (c. 1200 a.C.) com algumas intromissões do período de composição do poeta (c. 700 a.C.). A lógica é a mesma de Snodgrass (1981, p. 27–31), Corvisier (1996, p. 17), Osborne (2009, p. 140–141), Vernant (2003, p. 9, 31–34, 37, 42, 44, 123–124)37 e Cartledge (2009, p. 26). Contudo, a ênfase desses últimos é no aspecto da reelaboração do material tradicional de acordo com os valores do presente da composição.38 Tais elementos do presente do poeta teriam mais presença na Ilíada e na Odisseia, a despeito do núcleo micênico formador de que tratam os episódios sobre a Guerra de Troia. O seguinte trecho de Cartledge evidencia como essa reelaboração é compreendida. Nele, o autor demonstra como os gregos do período da composição final dos poemas conheciam pouco o período do Bronze Tardio, quando esse conhecimento é comparado ao que sabemos hoje:
[...] os épicos se predispõem a descrever uma civilização há muito perdida, vastamente superior [à da audiência], do tipo da que os vestígios visíveis de Micenas e outras capitais da Idade do Bronze Tardio evocavam [a elas]. Contudo, o que as audiências gregas dos séculos VIII e VII a.C. – ou seja, a era em que os épicos alcançaram sua forma monumental final – imaginavam ser colossais estruturas palacianas, era eclipsado pela realidade revelada por meios inacessíveis aos gregos, a saber, a Arqueologia, a História da Arte e a Linguística (op. cit.).
Por sua vez, Finley, em posição proposta desde 1954, quando escreveu o livro World of Ulisses (FINLEY, 1991), defende o alcance do poema até o passado recente dos contextos de produção, na chamada Dark Ages, Idade das Trevas ou Período Obscuro, sobretudo entre os séculos X e IX a.C. (FINLEY, 1988, p. 17–25; 1990, p. 89–100). Ele é seguido por Austin e Vidal-Naquet (1977, p. 36–48), Pomeroy et al. (2004, p. 44–52)39 e Martin (2013, p. 7, 55–58).
O seguinte trecho de Pomeroy et al. (2004) demonstra muito bem essa concepção, de que, apesar da composição dos poemas ter ocorrido entre os séculos VIII e VII a.C. e de as obras trazerem elementos fictícios, elas são válidas como fontes para um contexto anterior:
[...] aspectos desse mundo imaginário – seus interesses, paixões, ideologias e, em algum grau, suas instituições – devem ter se adequado às experiências da vida real das audiências. As normas e valores da sociedade homérica são internamente consistentes e coerentes o suficiente para serem atribuídas ao passado não-tão-distante, que podemos grosseiramente atribuir ao final da Idade das Trevas grega (POMEROY et al., 2004, p. 44).
É bastante significativo que o trecho fale em elementos variados dos poemas que são adequados à vida real das audiências. Alguns desses componentes são de natureza ideológica, um sistema de valores, enquanto outros dizem respeito às instituições históricas mais amplas. Tampouco nisso os manuais entram em acordo, acerca da natureza do tipo de informação histórica transportada pelos poemas, se relativas a essas instituições sociais observadas e registradas nos textos, ou se apenas ao sistema de valores compartilhados por poetas e audiências.
A maior parte do material analisado considera os poemas como fontes que, de fato, transportam informações relevantes sobre instituições históricas, apesar das divergências de atribuição temporal entre os manuais acerca de qual período essas informações seriam relevantes. Um balanço da maneira diversificada de como esses elementos aparecem nos manuais é bastante revelador. Tais práticas já são observadas entre os manuais mais antigos analisados neste artigo, como na identificação de transformações políticas e sociais nas poleis observadas por Robinson na cena do escudo de Aquiles (ROBINSON, 1948, p. 27–28). Forsdyke defende que as contribuições históricas de Homero não estariam tanto nos eventos e personalidades, mas nos detalhes da vida doméstica e militar, assim como nas condições políticas e sociais (FORSDYKE, 1957, p. 27, 160).
Finley defende uma coerência interna geral que indica uma sociedade histórica evocada por um poeta, e não por um historiador. Logo, existe a possibilidade de imprecisões e desvios (FINLEY, 1970, p. 92–94, 100), mas isso não impede que Finley proponha uma reconstrução relativamente detalhada dessa sociedade (FINLEY, 1988, p. 19–25). Reconstruções que buscam instituições nos poemas a partir de uma abordagem semelhante também podem ser observadas em Austin e Vidal-Naquet (1977, p. 40–48), Pomeroy et al. (2004, p. 44–52) e Lefèvre (2013, p. 94–96). Snodgrass faz considerações pontuais acerca das instituições analisadas a partir dos poemas, mas é bastante consistente na lógica de que Homero observaria e selecionaria elementos históricos (1981, p. 27–29, 34, 74), assim como faz Vernant (2003, p. 44, 123–124).
Entre os manuais brasileiros, a questão aparece em segundo plano e com pouca profundidade, dada a natureza resumida das obras, que abarcam temáticas extensas em um espaço reduzido40. Guarinello sugere da seguinte maneira a possibilidade do registro pelos poemas de práticas sociais específicas a partir do século VIII a.C.:
Em muitos lugares, uma elite guerreira parece ter se apropriado de parte da nova riqueza em circulação, provavelmente dominando a população camponesa no entorno. É assim que o personagem Sarpedão, aliado de Troia, justifica o seu poder sobre os lícios na Ilíada: é por termos nossas lanças, diz, e por sermos os primeiros no combate, que os lícios nos oferecem a melhor comida e o melhor vinho (GUARINELLO, 2013, p. 65–66).
A despeito da diferença entre as análises, a posição de Funari é semelhante, quanto ao potencial dos poemas como documentação:
As lendas homéricas refetem tanto o mundo de reis e guerreiros do tempo de Micenas, quanto aspectos da própria época em que foram elaboradas, séculos depois: são mencionados palácios, mas no centro da ação estão os guerreiros da nova era. As cidades citadas em Homero, escavadas pela Arqueologia, existiram realmente, mas os detalhes narrados são invenções poéticas (FUNARI, 2002, p. 21).
Outros autores enfatizam que o principal elemento registrado nos poemas não são propriamente as instituições históricas, mas o sistema de valores e as formas de pensamento das sociedades que produziam e transmitiam tais fontes. Corvisier, apesar de propor uma reconstrução histórica relativamente detalhada a partir dos poemas (CORVISIER, 1996, p. 22–29), defende que o principal elemento transportado por estes é o ideal aristocrático. Para ele, o mundo dos poemas não teria sido de fato comprovado como real (ibidem, p. 15–17). É uma postura semelhante à de Cartledge (2009, p. 29) e à de Osborne. O último oscila entre a descrição da sociedade dos poemas (OSBORNE, 2009, p. 141–149, 165, 176) e uma indicação clara de que existem grandes limites na capacidade da Ilíada e da Odisseia de registrar instituições históricas específicas, para além do sistema de valores:
O historiador, que deve ter um enorme cuidado em tomar qualquer objeto ou instituição descritos na Ilíada ou na Odisseia como pertencente ao mundo em que vivia o poeta responsável pelos poemas na forma em que os temos, não deve ter quaisquer escrúpulos em aceitar que o mundo do poeta dividia os valores que os poemas exploram (ibidem, p. 149).
Essa tensão também pode ser observada em Martin, que, ao mesmo tempo em que marca que o tipo de informação registrado nos poemas diz respeito aos valores da elite da Idade das Trevas (MARTIN, 2013. p. 55–56), não resiste em utilizar Homero como ilustração de práticas sociais específicas: o atrito social entre classes (ibidem, p. 63), a atuação dos mercadores (ibidem, p. 70), o papel do fundador de uma colônia (ibidem, p. 72) ou questões ligadas às técnicas de guerra (ibidem, p. 79, 82). Jones, por sua vez, apenas menciona certa validade histórica geral dos poemas homéricos, sem salientar se prevalecem instituições sociais ou um sistema de valores (JONES, 2008, p. 6–7).
Apesar das referidas divergências, outro aspecto é compartilhado pelos autores. Do ponto de vista da construção de uma síntese da História Grega, afinal, são manuais gerais de História Antiga, História da Grécia ou especificamente da Grécia “primitiva” ou arcaica, o período ao qual os poemas homéricos estariam relacionados funciona como uma personificação da ideia de antigo. Seria uma espécie de período originador dos elementos históricos gregos que passariam a ser característicos do período arcaico,41 ou ainda, um momento de passagem de sociedades anteriores, quase míticas, ou por demais obscuras, para os períodos efetivamente históricos. A questão é colocada de maneira explícita por Robinson, que identifica as populações do período anterior como “aqueias”, reservando o termo “gregas” para as populações do período que ele considera histórico, que Homero teria ajudado a formar:
Os heróis aqueus de fato eram homens violentos e, por vezes, de paixões desenfreadas. Mas, assim também eram os seus descendentes. Não se engane acerca dos gregos. [...] Toda a sua História é um conto sobre a luta pela supremacia da razão sobre os instintos da barbárie. [...] Foi o empreendimento contínuo dos “profetas” da Grécia (se nós pudermos chamá-los de “profetas”) que inculcaram esses preceitos de razoabilidade e autocontrole. Homero – o mais antigo e mais influente de todos eles – estabeleceu o modelo de conduta e o caráter para a raça. [...] Pegando o código de comportamento aristocrático tradicional e o idealizando, Homero fez evoluir a concepção de que, por falta de uma palavra melhor, nós devemos chamar de “cavalheiro” grego (ROBINSON, 1948, p. 23).
Essa perspectiva de Robinson é evidenciada em toda sua discussão, estando bem marcada nas passagens em que o autor trata especificamente de Homero (ibidem, p. 25–28). A abordagem de Snodgrass, ainda que consideravelmente menos ingênua, parte de premissas semelhantes, quando o autor lista uma série de transformações operadas entre o início do século VIII e o início do século VII a.C. Longe de ser o único fator, os poemas homéricos figuram com uma série de outros fatores que funcionam como elementos originadores de um novo período histórico (SNODGRASS, 1981, p. 47–48, 216). Essa concepção de Homero, como uma espécie de mediador temporal, também é articulada por Finley (1988, p. 24–27, 42–43).
A postura de que os poemas homéricos indicam um começo, um meio de transformação, ou evidenciam práticas muito antigas, fica evidenciada nas expressões frequentes que se utilizam da construção “desde Homero” ou “já em Homero” para introduzir temáticas variadas sobre a sociedade grega histórica, quando um novo assunto é abordado. Dessa maneira, “Homero” é transformado não apenas em autor de obras, mas em um identificador do tempo histórico refetido nessas obras. O próprio Snodgrass se vale dessa formulação:
Já em Homero, existem sinais efêmeros de que um poeta épico, completamente dependente das casas aristocráticas para seu emprego e sua resposta cultural imediata, poderia discretamente dar voz, ou colocar nas bocas de seus personagens, sentimentos que eram críticos ao éthos aristocrático [...] (SNODGRASS, 1981, p. 169)42.
Austin e Vidal-Naquet também usam essa estratégia para demonstrar como certas práticas econômicas e sociais aparecem “já em Homero” (AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1977, p. 11, 13, 19, 41, 53, 74), assim como faz Osborne (2009, p. 30, 298). Vernant fala da epopeia homérica como “um primeiro exemplo” do processo de uma ampliação do acesso a um plano espiritual e intelectual, antes restrito apenas à elite guerreira e sacerdotal (VERNANT, 2003, p. 55). Corvisier retoma Homero em quase todo novo tópico temático de sua discussão, para falar sobre colonização (COVISIER, 1996, p. 41), conhecimento geográfico (ibidem, p. 52), guerra (ibidem, p. 80), religião (ibidem, p. 105), entre outros assuntos (ibidem, p. 93, 108, 112, 114). Guarinello também usa uma formulação semelhante, ao tratar da transformação de certos elementos da organização política da pólis:
Essa contestação já aparece em certos momentos da poesia épica. Na Odisseia, de Homero, por exemplo, Telêmaco, filho de Ulisses, um dos heróis da guerra de Troia, não conseguiu prevalecer na própria casa na ausência de seu pai, mesmo que sua mãe, Penélope, fosse assediada por muitos pretendentes, que consumiam os recursos de pai e filho. Telêmaco compareceu à ágora, queixou-se de sua humilhação perante a população, que o ouviu, comentou, mas não interveio (GUARINELLO, 2013, p. 83)43.
Mais do que uma autoridade sobre a produção das ideias internas do texto, portanto, a concepção de autoria aplicada aos poemas homéricos pelas análises apresentadas nos manuais estudados opera também em outro sentido. A autoridade de Homero é exercida sobre uma esfera temporal, identificando um período específico. Trata-se de uma ideia por vezes vaga de “tempo antigo”, que pode funcionar como um período originador de transformações, ou um período quase mítico e a-histórico de origens. A concepção por trás deste procedimento muitas vezes está embasada pelo fato de os autores dos manuais considerarem os poemas homéricos as fontes históricas gregas mais antigas que temos disponíveis em forma escrita. Por isso, o indício mais longínquo de determinada prática é registrado “já em Homero”.
Contudo, essa estratégia também cria uma concepção de temporalidade especial, original, baseada em Homero como única fonte de documentação. Essa atribuição temporal, bastante conveniente, permite aos manuais tratar os poemas e seu criador como iniciadores da sociedade grega. “Em Homero” acaba sendo um dublê da expressão “no tempo de Homero”, uma espécie de identificação do mito de origem da sociedade grega. Tal procedimento independe do período histórico específico privilegiado pelo pesquisador ao analisar essas fontes. A operação, portanto, é transformar “Homero” em uma temporalidade, ou, além de ser a autoridade por trás dos textos em si, ser uma autoridade por trás desse momento44. Os casos mais extremos são os dos autores que efetivamente identificam a temporalidade com o termo “período homérico” ou colocam nele uma “sociedade homérica”45.
Essa abordagem, independentemente da qualidade dos resultados46, negligencia uma dificuldade central: os poemas que temos são textos sem contexto de produção definido e delimitado, a despeito da convicção dos autores de apontar a passagem dos séculos VIII e VII a.C. como consensual. Essa dificuldade de delimitação está diretamente ligada a uma concepção mais fuida de autoria e ao conhecimento que hoje se detém acerca do funcionamento de tradições poéticas orais.
Como essas dificuldades poderiam ser enfrentadas? A alternativa talvez esteja justamente no debate sobre autoria como conceito historicamente construído, bem como nas teorias sobre composição oral. Os poemas homéricos podem ser pensados como testemunhos de uma tradição duradoura. Não é necessário delimitar o evento de composição centrado na figura de um autor pensado sob uma lógica moderna. Talvez a ênfase mais apropriada seja justamente nos processos de composição dentro da tradição, processos de longa duração compartilhados por uma infinidade de poetas em relação direta com suas audiências, por séculos e séculos de desenvolvimento. Essa seria uma alternativa à ênfase dada ao momento criador individualizado e bem datado da composição da Ilíada e da Odisseia47.
Para que fique bem claro, a minha ideia aqui não é embarcar em uma abordagem pós-moderna que relativiza a possibilidade de serem propostas interpretações acerca do passado, nos moldes discursivos e simbólicos propostos por White (1994) e debatidos por Munslow (1997). Em vez disso, o que proponho é encarar as dificuldades de se abordar fontes complexas como são os poemas homéricos, bem como ter consciência das conseq uências de se adotar soluções que negligenciam o enfrentamento dessas mesmas dificuldades.
Pensar os poemas como veículos de uma visão compartilhada sobre o passado e de fato desenvolvida por um processo de composição de longa duração permitiria ultrapassar a prática evidenciada nos manuais analisados neste artigo. Essa é uma prática que, essencialmente, transforma os poemas homéricos em portadores de informações sobre um período originador quase mítico, por meio de um processo que confere a Homero uma autoridade sobre os textos e sobre o tempo. Não seria esta uma busca por uma espécie de mito de origem, desde muito criticada no campo da historiografia?Afinal, nos moldes que identifiquei aqui, Homero, seus poemas ou o seu período funcionam exatamente como uma espécie de “começo que explica”, tal como apresenta Bloch, em sua famosa denúncia do “ídolo das origens” entre os historiadores (BLOCH, 2002, p. 56-60).
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira
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