Resumo: Neste artigo, analiso o debate feminista promovido pelo jornal Momento Feminino (MF), evidenciando os consensos e as tensões internas, bem como os desafios enfrentados por suas articulistas em um contexto atravessado tanto pelo anti-comunismo quanto pelo antifeminismo. Vinculado ao Partido Comunista do Brasil (PCB) e à Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM), o periódico era editado no Rio de Janeiro e circulou no Brasil entre 1947 e 1956. Suas páginas imprimiram um debate, à época, caro ao PCB, além de terem discutido as estruturas sociais que deixavam as mulheres em situação de inferioridade e vulnerabilidade. O MF não só defendeu a participação das mulheres na vida política e social, mas também politizou o cotidiano, comprometendo-se com um projeto feminista de sociedade, o que faz dele um importante instrumento para o entendimento da história do feminismo no Brasil.
Palavras-chave: Momento feminino, comunismo, feminismo, mulheres, política.
Abstract: This essay analyzes the feminist debate fostered by the newspaper Momento Feminino (MF), highlighting the consensus and internal disputes, as well as the challenges faced by its columnists within a context marked by both anti-communism and antifeminism sentiment. Linked to the Communist Party of Brazil (PCB) and the Women’s International Democratic Federation (WIDF), the paper was edited in Rio de Janeiro and circulated in Brazil between 1947 and 1956. Its pages gave life to a debate, at the time, dear to the PCB, besides discussing the social structures that left subjected women into a status of inferiority and vulnerability. MF not only advocated women’s participation in political and social life, but also politicized everyday life, committing to a feminist project of society, turning the newspaper into an important tool for understanding the history of feminism in Brazil.
Keywords: Momento feminino, feminism, communism, women, politics.
ARTIGO
“PARA O CORAÇÃO, SIM. MAS TAMBÉM PARA O ESPÍRITO”: MOMENTO FEMININO E O DEBATE FEMINISTA NO BRASIL REPUBLICANO (1947-1956)1
“FOR THE HEART, YES. BUT ALSO, FOR THE SPIRIT”: MOMENTO FEMININO AND THE FEMINIST DEBATE IN REPUBLICAN BRAZIL (1947-1956)
Recepção: 10 Fevereiro 2021
Aprovação: 23 Fevereiro 2022
Sexta-feira, 25 de julho de 1947. Saía nas bancas a primeira edição do semanário Momento Feminino: um jornal para o seu lar, “fundado, dirigido e redigido por mulheres” (JEAN, 1947, p. 11), editado no Rio de Janeiro e impresso pela tipografia Imprensa Popular, que pertencia ao então Partido Comunista do Brasil (PCB). O subtítulo parecia indicar que um novo periódico da chamada “imprensa feminina” ganhava as ruas.
Pela importância que o debate feminista assumiu em suas páginas, o Momento Feminino, doravante MF, pode ser compreendido como parte importante da história do feminismo no Brasil, sem perder de vista os deslocamentos de sentido que a expressão assumiu até a formação de um relativo consenso em torno do conceito, compartilhado atualmente. Atenta às variações do conceito, quando chamo a atenção para a ação e o pensamento feminista promovidos em MF, o faço como um elemento de demonstração analógica.3
Em linhas gerais, qualquer ação política – individual ou coletiva, no espaço público ou privado – preocupada em destruir a inferiorização histórica das mulheres é denominada feminista. Para Luiza Bairros (1995), feminismo é um instrumento teórico capaz de demonstrar como a construção de gênero é uma fonte de poder e um instrumento hierarquizante que impacta negativamente a vida das mulheres. “É a lente através da qual as diferentes experiências das mulheres podem ser analisadas criticamente com vistas à reinvenção de mulheres e de homens fora dos padrões que estabelecem a inferioridade de um em relação ao outro” (BAIRROS, 1995, p. 462). Implica, portanto, problematizar as naturalizações que legitimam hierarquias nas relações entre os gêneros, deixando as diversas mulheres – sobretudo as negras, pobres, não heterossexuais e/ou transgênero – que experimentam o sexismo imbricado a outros demarcadores de desigualdades em desvantagem. Na perspectiva de bell hooks (2019, p. 13), o feminismo se define como “um movimento para acabar com o sexismo, exploração sexista e opressão” e nada tem a ver com ser anti-homem. O inimigo é o sexismo. “E essa clareza nos ajuda a lembrar que todos nós, mulheres e homens, temos sido socializados desde o nascimento para aceitar pensamentos e ações sexistas” (HOOKS, 2019 [2018], p. 13).
O entendimento de que o feminismo é qualquer movimento – coletivo ou individual – em defesa da igualdade de direitos políticos, civis e existenciais para todas as mulheres é relativamente recente. A história do feminismo é marcada por disputas e tensões. Como destacou Maira Abreu (2010), apesar de o termo ser largamente utilizado como se o seu significado fosse autoevidente, seu sentido não é unívoco e varia conforme os diferentes contextos. Tais variações estão relacionadas às disputas políticas em jogo (ABREU, 2010, p. 26). No século XX, devido à carga pejorativa que por vezes era imprimida ao termo, as expressões feminismo/feminista foram evitadas por muitas mulheres, inclusive por aquelas organizadas coletivamente na luta por emancipação, como era o caso das articulistas do MF. A tentativa de desvincular o jornal do rótulo de feminista tem relação com os significados que a palavra assumiu à época e com a sua ligação ao ideário comunista.
Os estereótipos atribuídos às feministas – ora representadas como mulheres insatisfeitas com o seu gênero, ora como mulheres “histéricas” e “feias”, ora como anti-homens etc. – foram endossados por parte das colaboradoras do MF, que, para legitimar o próprio movimento como a “verdadeira luta” por emancipação das mulheres, descreveram o feminismo como um movimento de mulheres insatisfeitas com a sua condição biológica – “Para que não pairem dúvidas, reafirmamos aqui que estamos absolutamente satisfeitas de termos nascido mulher” (FIGUEIREDO, 1948d, p. 4). Ademais, o classificaram como uma maneira exagerada de expressão daquelas pouco acostumadas com a liberdade. Segundo esta perspectiva, após viverem séculos de opressão, algumas mulheres se tornavam feministas por superdimensionarem sua importância na sociedade. Nas entrelinhas está a ideia de que as feministas instituíam uma guerra de sexos ao buscarem afirmar a “superioridade feminina”. Esta foi a interpretação de Yvonne Jean (1947), que, ao elogiar o jornal, destacou que uma de suas qualidades era “não cair no defeito de um feminismo demagógico” (JEAN, 1947, p. 3).
Além da carga pejorativa, fatores ligados à linha político-editorial do periódico também ajudam a compreender a postura das articulistas frente ao feminismo. No PCB, partido com o qual o MF dialogava de maneira muito próxima, a ideia hegemônica era de que o feminismo era um movimento liberal, no sentido político-econômico4, e, consequentemente, de orientação burguesa. Na primeira metade do século XX, o grupo assumidamente feminista de maior visibilidade no Brasil – a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) – era alinhado ao liberalismo e, portanto, adversário das comunistas.
A partir das variações do conceito, as diferentes perspectivas dos grupos feministas e as disputas políticas em jogo, considero que o fato de o MF não se assumir feminista não inviabiliza compreendê-lo como tal, desde que a expressão seja pensada conceitualmente, uma vez que as variações no conceito de feminismo estão imbricadas à história do próprio movimento. Como afirma Reinhart Koselleck (2006), as palavras podem até permanecer as mesmas, mas não indicam necessariamente a permanência do mesmo conteúdo ou significado. A maneira como os grupos se apropriam delas e os significados que lhes são atribuídos em diferentes contextos temporais e espaciais são importantes para compreendermos tanto a história do conceito quanto os movimentos da sociedade. Em outras palavras, os usos e os significados do conceito são resultantes da forma como pessoas e grupos se apropriam dele, enquanto as alterações de sentido pelas quais passam são reflexos de conflitos sociais e políticos. Por isso é que os nomes não devem ser enjaulados em significados estáticos e categorias rígidas e abstratas (KOSELLECK, 2006). Como sugeriu Sérgio Buarque de Holanda (2011 [1973], p. 422-423), é inevitável “a contingência em que nos vemos de ter de lidar sempre com vocábulos de sentido equívoco ou sujeito a variações, mormente quando destacamos do seu contexto originário”. Este é o caso do conceito de feminismo.
Atualmente, o processo de revisão crítica do feminismo como movimento social continua atravessando os debates políticos e a produção acadêmica. Ademais, ainda que as disputas em torno de uma elaboração conceitual acerca da expressão não tenham sido a preocupação do MF, isto não significa dizer que um complexo debate sobre as desigualdades entre as mulheres, que aqui defino como feminista, esteve ausente de suas páginas. Assim, este artigo tem a finalidade de analisar o debate feminista do jornal, evidenciando os consensos e as tensões internas, sem deixar de pontuar os desafios enfrentados por suas articulistas em um contexto atravessado tanto pelo anticomunismo quanto pelo antifeminismo.
De 1947 até 1956, o MF circulou em diversas cidades brasileiras, especialmente nos grandes centros urbanos. Normalmente, tinha de oito a dez páginas, em tamanho tabloide.5 Este número tendia a aumentar em momentos especiais – por exemplo, datas festivas como o Dia Internacional da Mulher, Dia das Mães e Natal –, ou diminuir, quando o jornal atravessava problemas financeiros e/ou políticos. Além disso, o Momento Feminino não trabalhava com reportagens desde a primeira página e era estruturado como uma revista. A capa geralmente era ilustrada com grandes desenhos, fotografias ou histórias em quadrinhos – que não se restringiam à capa – e/ou trazia pequenos textos. Construído para atrair mulheres de todas as camadas sociais, especialmente as trabalhadoras, provavelmente as histórias contadas por meio das artes visuais eram estratégicas para tornar o jornal acessível às pessoas que não sabiam ler ou liam com dificuldade, já que as articuladoras tinham ciência de que as taxas de analfabetismo, apesar de decrescentes, continuavam altas.6
O desenho de Paulo Werneck (Figura 1), artista que fez diversas obras para a imprensa comunista, estampou a capa da primeira edição, que destoava um pouco do subtítulo – “um jornal para o seu lar”. Na imagem, ao contrário de mulheres “reinando no lar”, aparecem representações de trabalhadoras e donas de casa com semblantes tristes, provavelmente preocupadas com a vida difícil e cara que enfrentavam. A capa traz, ainda, os nomes de todas as colaboradoras daquela edição, sendo a maioria militante do PCB – Arcelina Mochel, Alina Paim, Diana de Brito, Ediria Carneiro, Eneida, Lia Correa Dutra, Maura de Sena Pereira e Yvone Jean –, mas também aparecem mulheres de outros grupos políticos, a exemplo de Lygia Maria de Lessa Bastos, então vereadora pela União Democrática Nacional (UDN), Sagramor de Scuvero, vereadora pelo Partido Republicano (PR), e Hilda Campofiorito, artista, ao que parece, sem vinculação partidária.7 Nas outras edições, Alice Tibiriçá, Ana Montenegro e Nice Figueiredo despontaram como assíduas colaboradoras.8
Além de comunistas, a maioria das colaboradoras e diretoras de Momento Feminino era branca ou socialmente branca (no Brasil), escolarizada, de classe média e residente nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. A idades variavam: havia desde jovens entre 20-25 anos, como Alina Paim, Arcelina Mochel e Jacinta Passos, até mulheres com idade mais avançada, na faixa etária dos 60 anos, como Alice Tibiriçá e Nuta Bartlet James. Eram mulheres que formavam uma elite em um país pouco escolarizado e marcado por profundas desigualdades – sociais, raciais, regionais e de gênero – e que estavam interessadas em mobilizar politicamente outras mulheres, especialmente as das camadas populares, que, no Brasil, têm sido majoritariamente negras.
Sem apoios substantivos, era muito difícil manter o MF na praça, visto que era um jornal de médio porte, vendido nas ruas por suas entusiastas e em algumas bancas do Rio de Janeiro e outras cidades do Brasil. Grande parte dos recursos provinha do esforço de suas articuladoras, que organizavam festas, bailes, coletas, leilões e vendas de assinaturas, bem como faziam “círculos de amigas” que contribuíam mensalmente com donativos. As dificuldades eram tantas que algumas edições tiveram o número de páginas reduzido “devido ao aumento do preço do papel” (GAVETA DA TIA…, 1949, p. 14), enquanto outras deixaram de circular. Manter a regularidade tanto do número de páginas quanto da circulação era um desafio, já que durante boa parte de sua existência o semanário conviveu com recursos financeiros escassos. Talvez por isso mudava de endereço com certa frequência, provavelmente para equilibrar os custos com aluguel.9 Elaborado de maneira quase artesanal e com parcos recursos, também enfrentava muitos problemas de edição, dado que não era incomum publicar textos com erros ortográficos ou problemas de montagem que, às vezes, comprometia a legibilidade.
Além das dificuldades materiais, o jornal enfrentou perseguições políticas. Em seu primeiro ano de circulação foi atacado por aqueles que se sentiam ultrajados com a sua presença e mulheres que vendiam os exemplares nas ruas eram importunadas com violência.10 Houve até uma tentativa de inviabilizar a circulação por parte do diretor geral dos Correios e Telégrafos, que proibiu a emissão de uma das remessas do jornal. As mulheres envolvidas com o jornal solicitaram amparo jurídico e reclamaram das arbitrariedades cometidas contra um jornal que tinha autorização para circular (ABERTURA DE INQUÉRITO…, 1948). Mesmo com a perseguição política nacional, em 1949, as articuladoras do MF tentaram fazê-lo circular na Europa. O projeto foi frustrado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), polícia política de Portugal, que censurou o periódico, alegando o seu caráter comunista.11
Por trás dos ataques estavam o anticomunismo e o antifeminismo. Lembremos que o MF foi fundado em 1947, momento inicial da Guerra Fria12 e de forte campanha anticomunista. Segundo Rodrigo Pato Sá Motta (2002), o anticomunismo é um corpo heterogêneo que reúne grupos e projetos políticos diversos cujo único ponto de união é a recusa militante ao projeto comunista de sociedade. Para o historiador, a motivação anticomunista é resultado da intricada mistura entre instrumentalização – ou manipulação – e convicção, que se combinaram em diferentes medidas ao longo da história. No Brasil, ainda de acordo com Mota, os valores religiosos católicos se tornaram a principal base da mobilização anticomunista, majoritariamente conservadora e reacionária. Diferentemente do cenário estadunidense, os argumentos anticomunistas de inspiração liberal foram recebidos com menos entusiasmo no Brasil. As ofensivas anticomunistas no país foram marcadas por altos e baixos. As fases mais expressivas foram: de 1935 até 1937, que culminou no golpe que deu início à ditadura do Estado Novo (1937-1945); de 1946 até 1950, contexto de Guerra Fria; de 1961 até 1964, que teve como resultado o Golpe Civil-Militar e sua consequente ditadura (1964-1985) (MOTTA, 2003).
Junto ao rótulo de comunista, o MF imprimiu ideias feministas. Numa sociedade avessa aos projetos de emancipação/libertação das mulheres, estampar o pensamento feminista atraía ainda mais a fúria conservadora. Ao analisar as organizações de mulheres – e aí se inclui grupos ligados ao MF – fichadas pelo Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS-SP) entre 1945 e 1964, Marcela Cristina Morente (2017) evidenciou que, além do anticomunismo, a repressão também foi inspirada no antifeminismo e demonstrou disposição em manter a ordem de gêneros inalterada no que diz respeito à manutenção da subalternidade das mulheres em relação aos homens (MORENTE, 2017). Como se vê, o periódico realmente incomodou em um contexto democrático na forma, como assinala Elza Macedo (2001), mas herdeiro direto do autoritarismo dos anos 1930 na essência.
É importante lembrar que o ano de 1945 foi marcado pelo final da Segunda Guerra Mundial e, consequentemente, por expectativas democráticas em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil. No país, naquele ano, o Estado Novo, que já dava sinais de falência, se desmanchava rapidamente. A ideia de que o país estava cada vez mais próximo de uma democracia começava a ganhar materialidade por meio de medidas como: a anistia dos presos políticos e exilados, em 18 de abril; a promulgação do código eleitoral, em 28 de maio; a legalização oficial do PCB, em 12 de novembro; as eleições para a Assembleia Constituinte, em 2 de dezembro; o fim da censura dos jornais, revistas e rádios e o aparecimento de partidos políticos nacionais. Tudo isso era novidade na história política do Brasil. No mesmo ano, estouraram greves de várias categorias da classe operária. Em 29 de outubro, Getúlio Vargas foi deposto por um golpe militar. José Linhares, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ocupou a presidência para reorganizar a política nacional. Em 2 de dezembro, numa tensa negociação, as eleições foram realizadas e Eurico Gaspar Dutra foi eleito presidente. Antes do pleito, desencadeou-se uma onda de prisões, intervenções em sindicatos e depredações em sedes estaduais do PCB. “O alvo era o processo de democratização em curso, mas o clima de mobilização impediu [de imediato] o retrocesso” (MORAES, 2012, p. 202).
Apesar da expectativa democrática que surgiu no período imediatamente posterior ao final da guerra, o autoritarismo e a violência continuaram presentes, sobretudo a partir de 1947. A metáfora das encruzilhadas entre autoritarismo e democracia mobilizada por Carla Rodeghero (2006) sintetiza bem o que estava em curso: era um momento de experiências cruzadas e expectativas e projetos políticos conflitantes em que diferentes grupos procuravam caracterizar a democracia. O PCB entendia que a alcançaria por meio do esforço conjunto para a manutenção da ordem, que perpassava pelo apoio a Getúlio Vargas, a derrota completa do fascismo e a solução de problemas como a carestia de vida. Por outro lado, outros grupos políticos “desenhavam um mapa no qual o comunismo e o PCB representavam uma via que se chocava com aquela da democracia e dos novos tempos” (RODEGHERO, 2006, p. 180).
A herança autoritária foi a perseguição aos movimentos sociais, em que destaco parte do movimento sindical operário e de mulheres. Ambos os movimentos tinham marcada influência comunista, o que assanhava ainda mais a repressão governamental. Entre 1947 e 1950, a repressão se tornou ainda mais contundente e as mulheres comunistas e/ou do movimento operário foram atingidas. Algumas saíram sem vida, como a comunista Zélia Magalhães e a sindicalista Angelina Gonçalves, assassinadas pela polícia em manifestações de rua em 1949 e 1950, respectivamente (ALVES, 2020); outras sofreram com prisões e violência policial. Em setembro de 1950, por ocasião das disputas eleitorais para os parlamentos estaduais, mulheres ligadas ao PCB foram presas no Distrito Federal e em alguns estados do país, entre os quais São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco (MONTENEGRO, 1950). Em novembro do mesmo ano, no estado de Pernambuco, o MF denunciou mais um ataque: a prisão de doze mulheres que se organizavam para coletar assinaturas para o “Apelo de Estocolmo” (CONTRA A PAZ…, 1950).13 Na prisão, segundo o periódico, elas tiveram os cabelos cortados com peixeiras e foram espancadas com cassetetes de borracha, socos e pontapés. De acordo com a denúncia, uma das vítimas, Abigail Barbosa, estava grávida e abortou em função dos maus tratos (CONTRA A PAZ…, 1950).
Foi nesse clima turbulento e violento que o MF viveu e resistiu, denunciando as arbitrariedades de um regime que se pretendia democrático. As mulheres envolvidas no projeto estavam convencidas da importância de mantê-lo em pleno vapor e acreditavam que o MF era o “primeiro jornal da imprensa democrática feminina de nossa terra, [...] porta voz do movimento feminino internacional e nacional” (COMO FUNCIONA…, 1950, p. 12-13).
As colaboradoras de Momento Feminino assumiram, não sem contradições e dificuldades, o engajamento político na luta em defesa das mulheres trabalhadoras, que, não podemos esquecer, têm sido majoritariamente negras no Brasil. Ainda que de forma mediada, o jornal imprimiu as vozes dessas trabalhadoras. Era frequente a publicação de reportagens relacionadas à visita aos morros, cujo principal objetivo era ouvir as narrativas das moradoras sobre os problemas que enfrentavam no dia a dia, sobretudo aqueles relacionados à falta de água, alimento, saneamento básico, emprego, moradia, segurança e creches para que elas pudessem deixar as crianças enquanto trabalhavam (ALVES, 2020).
No que diz respeito ao debate racial, houve um silêncio relacionado ao fato de a maioria das mulheres da classe trabalhadora ser negra. Em linhas gerais, suas páginas não interpretaram o racismo como um problema da formação social brasileira. Parecia prevalecer no grupo a ideia de que por aqui o maior problema era a desigualdade de classe ou que, pelo menos, as segregações segundo o signo da raça não eram tão intensas quanto nos Estados Unidos. À época, embora autores como Lima Barreto e Guerreiro Ramos já estivessem produzindo reflexões sobre as desigualdades raciais, a perspectiva preponderante era a de que o Brasil era um país positivamente miscigenado. Portanto, o grande conflito não seria racial, mas de classe (ALVES, 2020).
O Momento Feminino tinha como finalidade principal orientar as mulheres tanto para a luta dos “direitos femininos” quanto para a sua formação política mais ampla, no sentido de informá-las sobre a conjuntura nacional e internacional. Tudo isso sem perder a dimensão “feminina” da proposta. Segundo Leda Ferraro (1948, p. 14), uma das colaboradoras do semanário:
Momento Feminino é uma revista que, como as outras, fala de rádio, publica fotografias, de Hollywood, conselhos de puericultura, de gramática, de moda e de arte-culinária; que como fonte de atração, apresenta sua seção de grafologia, de contos; mas que apresentando também secos palpitantes como “nossos problemas”, “uma história por semana”, “a mulher nos cinco continentes”, “o mundo de hoje” – assume um caráter humano, real, independente e essencialmente feminino no que diz respeito não só ao seu coração (…) mas ao seu cérebro.
O jornal era ligado à Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM), criada em 1945 no Congresso Internacional de Mulheres realizado em Paris. Ainda que autoproclamada eclética, a FDIM estava conectada ao movimento comunista internacional, o que não a impediu de possibilitar a participação de organizações nacionais sem essa definição. Em linhas gerais, a organização tinha como objetivo reunir, sob políticas e diretrizes comuns, federações congêneres de vários países (MACEDO, 2001). Como todas as organizações de orientação comunista, a FDIM tinha a imprensa como meio imprescindível de articulação política. Seg uindo as recomendações teóricas de Lênin, os periódicos eram tomados como o lugar de transição entre a teoria “pura” e o apelo à ação, elementos considerados indispensáveis para a “elevação” da consciência das “massas”, leia-se, da classe trabalhadora. A imprensa significava, assim, um instrumento de organização das “massas” para a luta revolucionária, um meio de educação ideológica e de coesão interna. Certamente, no plano da formatação das mensagens, cada jornal adotou fórmulas operativas próprias, mas o espelho doutrinário leninista se refletiu em toda a imprensa comunista – o MF seguiu esta trilha. Como toda a imprensa, reelaborou o mundo em razão de imperativos políticos-ideológicos, códigos de comunicação, normas técnicas, circuitos tecnológicos e sinalizações mercadológicas (MORAES, 1994).14
Durante toda a sua existência, a FDIM cumpriu um papel importante de orientação ao MF no que diz respeito tanto à estrutura quanto aos assuntos que deveriam ocupar as páginas. Levando em consideração a relevância que a imprensa assumiu para os comunistas, a reunião do Conselho da FDIM (REUNIÃO DO CONSELHO…, 1949), realizada de 15 a 19 de novembro 1949, em Moscou, recomendou que as organizações nacionais deveriam: 1) divulgar em seus periódicos os êxitos econômicos e culturais dos países aliados da União Soviética; 2) publicar em seus jornais e revistas o boletim da FDIM, junto com análises sobre a atividade do movimento democrático internacional de mulheres “em seu conjunto e das organizações de mulheres que fazem parte da Federação Democrática Internacional de Mulheres, colocando novos problemas e tarefas” (RESOLUÇÕES: CONSELHO DA…, 1950, p. 19); 3) aumentar “o formato e a tiragem das edições femininas que já existem nas organizações democráticas femininas” (RESOLUÇÕES: CONSELHO DA…, 1950, p. 19); 4) trabalhar para que todas as organizações de mulheres tenham seu órgão de imprensa. Para as organizações que não tinham condições de ter o seu próprio jornal, o Conselho da FDIM recomendou que utilizassem o máximo possível a imprensa progressista de seus respectivos países.
Na medida do possível, o MF se esforçou para atender as orientações da federação. Na edição de 1º de agosto de 1950, Arcelina Mochel (1950) usou sua coluna para alertar sobre a necessidade de multiplicar a tiragem do jornal e garantir a sua impressão, bem como organizar e ampliar a rede de distribuição, “fazendo-o penetrar em todos os lares” (MOCHEL, 1950, p. 2). No mesmo número, o editorial reforçou as recomendações da diretora, evidenciando que era preciso atender “à resolução do Conselho da Federação de Mulheres do Brasil” (COMO FUNCIONA…, 1950, p. 13) no que diz respeito à ampliação da tiragem e rede de circulação. No ano seguinte, apesar das dificuldades financeiras, o Momento Feminino conseguiu alcançar a tiragem de 10.000 exemplares (QUATRO ANOS DE…, 1951). Além disso, não poupou textos exaltando o modo de vida dos países do bloco comandado pela União Soviética e as personalidades comunistas.15
Além disso, o jornal fez grande esforço para acompanhar a movimentação política das mulheres no Brasil em várias regiões do país. Por quase uma década (1947-1956), o MF teceu a história desse movimento (MACEDO, 2001). As mulheres que dele faziam parte se esforçaram para mantê-lo na praça. Nas palavras da comunista Ana Montenegro, o MF se incumbia da tarefa de informar e cooperar com a construção de “um programa geral” da “luta feminina” (MONTENEGRO, 1947, p. 9). Suas páginas tinham a pretensão de funcionar como “binóculos para a vida” e, consequentemente, aguçar a empatia e construir a solidariedade entre as mulheres. Ao mesmo tempo, nas palavras da sua diretora, a comunista Arcelina Mochel (1947, p. 2), o jornal pretendia divulgar “as realizações da mulher no mundo de hoje na tarefa grandiosa e ingente” e visava incentivar o engajamento de mulheres numa espécie de “luta geral”, indo além dos “assuntos sentimentais ou sociais mundanos”, atentando também “para o campo comum dos problemas gerais da vida”, integrando-se “na complexidade dos mesmos” (MOCHEL, 1947, p. 2).
Conectado aos objetivos políticos estava o interesse comercial. Era necessário vender para manter em circulação o projeto de sociedade comunista e feminista que essas mulheres defendiam. Para atrair o público desejado, o MF precisou fazer frente à concorrência. O periódico dividia espaço – com ampla margem de desvantagem – com o Jornal das Moças. Fundado e dirigido por homens, a revista publicada pela Editora Jornal das Moças Ltda tinha grande circulação, aceitação e recurso financeiro. Em 1947, quando o MF foi fundado, o Jornal das Moças já circulava há trinta anos. Bastante popular, em 1945, ocupava o primeiro lugar na “imprensa feminina” e se mantinha por meio de assinaturas e vendas avulsas em bancas de todo o Brasil. Seus editores – todos homens – divulgavam um ideal de mulher, qual seja, branca, de classe média, com determinado estilo de vida e capacidade de consumo; um modelo de família: conjugal, hierárquica, com papéis masculinos e femininos distintos e pré-definidos; valores culturais burgueses; um ideal de felicidade ligado ao consumo de bens e à adesão à moda e às normas sociais. O Jornal das Moças se colocava como paladino da moral, dos “bons costumes” e da “família estável”. Suas páginas trazem representações que indicam que as prioridades da vida das mulheres deveriam ser o lar, o casamento e a maternidade. Ademais, praticamente não fazia distinção entre classe e raça, como se os modelos de mulher que veiculava pairassem sobre as diferenças sociais. Seu público-alvo era, na verdade, a classe média. No geral, também evitava falar de política, mas não deixava de divulgar que era necessário respeitar os governantes e os militares. Em suma, veiculava valores conservadores, procurando manter as relações familiares e de gênero nos moldes tradicionais, de modo a assegurar a “ordem e a estabilidade”. Dirigida por homens, a revista destinada a tratar de “assuntos femininos” dizia valorizar a mulher e suas atividades cotidianas (PINSKY, 2014).
Por outro lado, o MF, embora mantivesse as seções culturalmente típicas do “universo feminino” – que falavam mais diretamente às mulheres das camadas médias, tinha uma estrutura e proposta opostas ao Jornal das Moças. Mesmo defendendo a estabilidade da família, era a favor da legalização do divórcio, pois considerava que a família deveria ser mantida somente se houvesse amor e respeito mútuos. Ao contrário do Jornal das Moças, foi idealizado, organizado e editado exclusivamente por mulheres, sem falar nos recursos financeiros mais escassos. Enquanto o primeiro não tinha do que se queixar, o MF, como vimos, desdobrava-se para conseguir recursos suficientes para se manter em circulação.
O MF assumia-se como “essencialmente feminino”. Partindo do pressuposto de que toda mulher era naturalmente feminina, reatualizava temas que culturalmente eram pensados como de interesse do gênero, ou seja, assuntos ligados à esfera da casa, da moda, dos sentimentos e das sensibilidades. Ao mesmo tempo que essencializava as mulheres e o feminino, temperava a suposta essência com os condimentos da razão, tradicionalmente pensada no masculino. Neste sentido, instituía, sem negar os valores tradicionais, uma feminilidade não tradicional. Outrossim, o MF seria “essencialmente feminino” não apenas no que diz respeito ao coração (sentimento), mas ao espírito (razão): “Para o coração, sim. Mas também para o espírito” (MORAES, 1954, p. 15-16). Construiu-se, assim, dentro deste paradoxo, característica que gerou tensões entre suas colaboradoras, divididas entre o “coração” e o “espírito” e/ou engajadas no esforço de unir as duas coisas.
A autonomia e a conquista do espaço público – culturalmente instituídos como masculinos – não deveriam vir acompanhadas da perda da “feminilidade”. Assim, o semanário precisava encarar a difícil tarefa de ocupar espaços pensados como masculinos sem deixar de ser feminino. Imaginemos o tamanho do desafio: manter a feminilidade, pensada na esfera da emoção e dos sentimentos, em espaços que valorizavam a razão e a frieza. A estratégia utilizada foi veicular informações necessárias à luta no/pelo espaço público instituindo que não deixava de estar à “serviço do lar”. Sua principal utopia era a mudança radical da ordem política e social, com a consciência de que o processo era lento e gradual. Suas páginas tornaram-se palco dos debates caros ao PCB, como a luta pela paz, contra a bomba-atômica, em defesa do petróleo, contra o alto custo de vida e em defesa da classe trabalhadora, mas também defendiam a libertação das mulheres, tentando conciliá-la às concepções compartilhadas pelo partido. Sua principal tarefa era, concomitantemente, servir como instrumento e meio de conscientização da luta política das mulheres e da classe trabalhadora (ALVES, 2020).
Seguindo vias bifurcadas e por vezes contraditórias, o MF trazia em suas páginas um projeto feminista de sociedade, articulando um feminismo de orientação comunista que se organizava para além do jornal, muito embora o periódico fosse um dos principais meios de articulação e comunicação (ALVES, 2020). Como já apontado, era um jornal vinculado a um projeto de emancipação da classe trabalhadora. Neste sentido, voltou-se mais especialmente à defesa dos direitos das mulheres das camadas populares, imprimindo um projeto feminista de sociedade preocupado com tal categoria.
Na coluna “Direitos da Mulher”, Ana Montenegro (1955, p. 34) denunciou que as operárias paulistas eram vítimas de “crimes horripilantes” – leia-se, estupros – quando “voltavam à casa altas horas da noite ou se dirigiam à fábrica em plena madrugada”. No mesmo texto, ela se posicionou contrariamente à discriminação às mulheres casadas e mães no mundo do trabalho e à exaustiva carga horária a que as operárias eram submetidas. Segundo Montenegro (1955), as empresas têxteis, metalúrgicas e diversas companhias norte-americanas não admitiam mulheres casadas e, quando as contratavam, as proibiam de ter filhos “sob pena de demissão sumária” (MONTENEGRO, 1955, p. 34). Ademais, nas fábricas, as operárias, fossem elas mães ou não, deveriam cumprir “oito horas de trabalho sem conforto e sem proteção” (MONTENEGRO, 1955, p. 34). Na opinião da jornalista, o quadro só seria revertido quando as trabalhadoras se reunissem em departamentos femininos nas associações de classe e, juntas, trabalhassem pelo cumprimento da legislação e pela conquista de mais direitos.16
As páginas do MF trataram de outras denúncias relacionadas às violências impostas às operárias, evidenciando as “medidas desumanas” refletidas no fato de as mulheres grávidas continuarem executando os mesmos trabalhos durante a gestação (A ASSEMBLEIA E…, 1952). Portanto, a proteção efetiva das mulheres trabalhadoras era considerada urgente. Diferentemente das mulheres das camadas médias e burguesas, elas não reivindicavam o direito ao trabalho, já que trabalhar fora de casa não era uma opção, mas um meio de sobrevivência. Portanto, para essas mulheres, “em vez de um legítimo direito, [o trabalho] constitui um sacrifício, não somente no tocante às necessidades materiais, mas a outras restrições que atentam até contra a dignidade humana”.17 Portanto, a briga era outra: garantir condições dignas de trabalho e salários justos.
Arcelina Mochel (1947, 1948, 1950), diretora do MF, também usou sua coluna “Nossos Problemas” – que abria o periódico – para defender pautas ligadas à emancipação das mulheres, muito embora tenha se dedicado mais à apresentação e à defesa da política do PCB. A maioria dos seus textos versava sobre carestia de vida e a falta de moradia adequada à boa parte da população, bem como denunciava as dificuldades que as camadas populares enfrentavam nos transportes públicos – caros e de baixa qualidade – e a falta de abastecimento de água nas periferias. Falava, ainda, sobre o problema das longas filas e os baixos salários aos quais estavam submetidos os trabalhadores e, sobretudo, as trabalhadoras. Também colocou sua pena a serviço da luta pela paz e em defesa do petróleo, bandeiras muito caras ao PCB nesse contexto. Em tempos de eleição, divulgava as candidaturas do partido e das mulheres consideradas aliadas, ainda que não fossem comunistas. No que diz respeito ao debate feminista, vez ou outra defendeu a ampliação dos direitos políticos e jurídicos para as mulheres, alertando para a necessidade de que estas defendessem aqueles já conquistados e lutassem por novos, sem deixar de refletir sobre os problemas enfrentados pelas organizações de mulheres. Quando havia eventos considerados importantes para o público-alvo, fazia a divulgação.
Já a coluna “Direitos da Mulher”, assinada por Nice Figueiredo, era dedicada exclusivamente à defesa dos direitos civis e políticos das mulheres, assumindo o compromisso de reivindicar a igualdade jurídica entre mulheres e homens, sabotada pelo Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916), então em vigor no país. A lei reproduzia as diferenças de gênero, colocando os homens como sujeitos jurídicos capazes e as mulheres como incapazes. Refletindo “tanto os valores culturais que condenavam o comportamento sexual ilícito das mulheres, mas não o dos homens, como o paternalismo tradicional que diluía os princípios liberais de igualdade e responsabilidade” (CAULFIELD, 2000, p. 69), o código restringia a cidadania e a autonomia das mulheres casadas dentro e fora do lar. Equiparadas aos menores de 16 anos, legalmente ficavam na condição de relativamente incapazes. A lei representava, portanto, uma interdição institucional do lugar de fala18 das mulheres, que não aceitaram caladas o silenciamento.
A advogada Nice Figueiredo aproveitou cada linha disponível nas páginas do MF para denunciar as violentas restrições da lei civil. Ela destacou que o Código estava ancorado em uma tradição construída historicamente e que suas orientações não se resumiam a descrever os dispositivos legais. Ademais, também analisou como as disparidades de gênero eram construídas no âmbito da cultura, enfatizando como a legislação estava baseada em princípios ligados à tradição e às “mentalidades” construídas a partir de uma “divisão de serviço estabelecida pelos homens” (FIGUEIREDO, 1948b, p. 7). Conforme destacou, as mulheres, quando casavam, ficavam impossibilitadas “de velar os interesses econômicos e morais da família em pé de igualdade com o marido, com os mesmos direitos que este, já que na prática ela tem sempre muito mais deveres” (FIGUEIREDO, 1947a, p. 7). O homem casado, ao contrário, “numa situação de privilégio”, podia aceitar ou não “o que bem lhe apraz sem o consentimento da mulher, pois corre em seu favor a presunção de que é suficientemente capaz de defender o patrimônio familiar” (FIGUEIREDO, 1948c, p. 7). O marido só precisaria do consentimento expresso da esposa para “vender, hipotecar ou litigar sobre os imóveis do casal” ou para “prestar fiança ou fazer uma doação” (FIGUEIREDO, 1948a, p. 2).
Nice Figueiredo considerava injustificada a “presunção da incapacidade da mulher para a realização de negócios” (FIGUEIREDO, 1948a, p. 2) e demonstrou que a realidade provava que muitos homens, por atitudes mal calculadas, eram responsáveis pela ruína patrimonial da família. Além disso, grande número de mulheres cumpria efetivamente todos os deveres determinados pela lei, “participando economicamente da vida do casal, não mais com dotes cujo montante, às vezes, desconhecia, mas com o produto do seu trabalho intelectual e braçal” (FIGUEIREDO, 1948a, p. 2). Ademais, como constantemente era evidenciado no MF, “um número muito elevado de mulheres trabalhadoras [eram] arrimo de família” (FIGUEIREDO, 1947d, p. 9).
A realidade das famílias trabalhadoras foi tomada por Nice como prova de que era infundado o papel de provedor e chefe da família legalmente atribuído apenas ao marido. O Código Civil, segundo ela, era surdo às experiências das famílias proletárias. Mais do que a responsabilidade material, o lugar de provedor, em sua leitura, levava a reboque a autoridade “masculina” em detrimento da “feminina”, tradição arbitrariamente construída pelos homens – economicamente privilegiados –, que, “para garantir certas vantagens, (…) tomaram a si o encargo de sustentar as famílias”. A mentalidade das mulheres teria sido formada “em função de tal princípio, aceitando-o como um estado natural de coisas”. A classe trabalhadora, cuja realidade impelia outra lógica, não seria poupada dessa construção social. Mesmo nas famílias marcadas pela fome e miséria, geralmente “o homem trabalhava desesperadamente para evitar que sua mulher concorresse com o produto do seu trabalho para o sustento da família” (FIGUEIREDO, 1947d, p. 9). Partindo da análise da vida concreta de diversas mulheres, a advogada observou que a lei deveria se pautar na realidade. Para ela, a eliminação das diferenças no mundo concreto deveria reverberar no plano legal, pois as distinções jurídicas geram um desequilíbrio de poder entre o casal. Além disso, destacou que, na prática, “por iniciativa da própria mulher, premida pelas condições de existência, desapareceram as diferenças de deveres entre marido e mulher” (FIGUEIREDO, 1948b, p. 2).
Ao discorrer sobre a possibilidade de anulação do casamento caso o marido descobrisse que a esposa não era mais “virgem” – prevista no Código Civil até 2002! –, Nice Figueiredo prontamente defendeu que a “virgindade” não deveria ser um critério para medir a dignidade de uma mulher. A ratificação legal de que as mulheres não deveriam ter relações sexuais até o casamento representava, em sua opinião, uma violação da liberdade individual. Conforme defendeu:
A virgindade é um predicado físico, cuja preservação é assunto que diz respeito tão somente a quem a possui. Dignidade é um predicado moral que independe da existência da membrana virginal. Pode existir com esta e, também, independente desta. A prática do ato sexual não desonra pessoa alguma (…) A atitude corajosa de uma mulher que sem interesses e objetivos determinados se dá ao homem que ama, não é e nunca foi, apesar da barreira de preconceitos erguida pelos homens, uma atitude indigna reveladora de falta de pudor ou recato (FIGUEIREDO, 1947b, p. 6).
Logo, considerar a “virgindade” como elemento para a anulação de um casamento, “além de uma arma perigosa contra a mulher é, sobretudo, uma humilhação que se lhe impõe em nome de um preconceito que espelha a velha concepção de atribuir absoluta liberdade ao homem e completa escravização da mulher”. O sentido da dignidade das mulheres, continuou, era amplo, “tem um valor menos anatômico e que se traduz na honestidade de seus sentimentos, na pureza de suas intenções, na coragem de suas atitudes e, sobretudo, na coragem de assumir a responsabilidade de seus atos”. Eram estas e outras “qualidades morais que qualificam nosso caráter de digno e honesto e não a ausência de uma membrana que a incompreensão dos homens tanto valoriza” (FIGUEIREDO, 1947b, p. 6).
No período em que Nice Figueiredo escrevia, os discursos conservadores eram contundentes na defesa de que as mulheres não poderiam ter relação sexual antes do casamento. A premissa era juridicamente legitimada e, caso descobrisse que a esposa não era mais “virgem” ou qualquer indício de “desvio sexual” prévio, o marido estava legalmente amparado para pedir a anulação do matrimônio. Seguindo o mesmo princípio, as filhas “desonestas” ou “impuras” estavam sujeitas à deserdação, condição que não se aplicava aos filhos (CAULFIELD, 2000, p. 66). Aquelas que desafiavam essa lógica corriam o risco de serem socialmente estigmatizadas de “mulheres fáceis”, já que, de acordo com o comportamento sexual, as mulheres eram divididas entre “honestas” e “desonestas” (PEDRO, 1994). Elas sofriam discriminações tanto no âmbito familiar quanto no mundo público, ao contrário dos homens. Estes, por sua vez, eram motivados a iniciar a vida sexual ainda muito jovens como prova de sua virilidade, fato que não deixava de gerar sofrimento àqueles que não conseguiam desempenhar a masculinidade idealizada.
Ao entrar em debates polêmicos e se posicionar contrária aos valores culturais enraizados, Nice Figueiredo desagradou muitos. Sua trajetória como colunista do MF foi marcada por tensões: algumas leitoras chegaram a reclamar e o jornal tentou assumir o lugar de neutralidade, justificando que não se responsabilizava “por conceitos emitidos em artigos assinados – é um princípio da ética jornalística”, mas sinalizou que estaria vigilante “para as opiniões que não são recomendáveis” (ATENDENDO A SUA…, 1947, p. 12). Sobre isto, Nice respondeu que os problemas só poderiam ser resolvidos se “encarados de frente, com coragem, sem subterfúgios que conseguiram mantê-los insolúveis até o presente” (FIGUEIREDO, 1947c, p. 12). Em suas palavras:
É preciso compreender que assim se orienta esta coluna no esclarecimento que pretende trazer às leitoras sobre os direitos femininos e a lei que os garante ou cerceia. Tendo de ser emitidos, e já foram antes, conceitos que estão na mente de cada um de nós, escondidos, sem forças para vir à tona. Terão de ser afirmados princípios que contrariam os anteriormente estabelecidos e convenientemente conservados. Mas serão ditos. Porque se cada um de nós mantiver escondidos, ocultos ou velados os novos conceitos, os novos princípios, além de marcar um tento favorável à hipocrisia, estará impedindo, voluntariamente, a solução de problemas sérios como são os da constituição de uma família. Não nos devemos deixar intimidar pelo temor das más interpretações, pois ao lado da saudável “voz do povo” existe sempre a maledicência, fruto da incompreensão sistemática que nada querem ver ou ouvir, mas só falar. Não deveríamos recear sermos incompreendidas, porque há sempre um terreno propício à semente lançada que germina logo que passa o primeiro contato com a terra dura e fria (FIGUEIREDO, 1947c, p. 12).
Para Nice, os problemas abordados em suas crônicas, especialmente aqueles relacionados à família e às relações matrimoniais e sexuais, poderiam até ser tratados em “linguagem açucarada dos que dizem as coisas para não serem entendidos” (FIGUEIREDO, 1947c, p. 12). No entanto, ela aspirava falar de maneira direta. Escrevia para convencer mulheres sobre a legitimidade da luta por direitos, tanto no espaço público quanto no ambiente familiar, e por isso julgou imprescindível uma linguagem franca, apesar de muitas vezes ter soado dura e/ou radical demais para um jornal que pretendia ser lido por um amplo público “feminino”. Como anos depois lembrou Eglê Malheiros, que também compôs o movimento no período, prevalecia a ideia de que “uma manifestação propriamente feminista iria afastar algumas mulheres da luta” (MALHEIROS, 2000 apud TORRES, 2009, p. 78).
Todavia, Nice parecia pouco disposta a abrir mão dos princípios que julgava fundamentais à luta pela liberdade das mulheres. Permaneceu denunciando, sem açucarar, a amarga assimetria das relações de gênero entre homens e mulheres, inclusive no tocante à moral sexual. Consequentemente, as divergências se tornaram irreconciliáveis. Seu feminismo parece ter entrado em dissintonia com o periódico e a advogada se viu obrigada a saltar fora. Seu último texto foi publicado na edição de número 70, de 15 de junho de 1950. Com sua saída, a coluna deixou de existir por um período, sendo reeditada cinco anos depois sob a rubrica de Ana Montenegro, que se ocupou em “esclarecer” as mulheres operárias sobre os seus direitos trabalhistas e incentivá-las a ingressar nas organizações de classe e sindicatos. Neste sentido, Montenegro priorizou a luta contra a desigualdade de classe, que para ela era o principal problema a ser enfrentado.19
O MF preocupou-se também em contribuir para a diminuição dos índices de analfabetismo por meio da seção de alfabetização, em que eram publicadas aulas, atividades e mecanismos de autoavaliação. Ademais, reservou colunas para divulgar os êxitos de mulheres que atuaram nos vários campos da vida política, artística e social, tanto no Brasil quanto em outros países.20 A intenção era tirar das margens a importância das mulheres nos acontecimentos históricos nacionais e internacionais e na construção do conhecimento e, concomitantemente, colocá-las como heroínas no panteão dos heróis masculinos. Neste sentido, o título da seção “Heroínas do Brasil e do mundo” é emblemática.21 É provável que o exercício tenha tido um caráter pedagógico: inspirar as leitoras e encorajá-las à militância política junto aos movimentos de mulheres organizados. Tal estratégia não era nova: na imprensa feminista do século XIX, já eram comuns espaços dedicados às biografias de mulheres consideradas exemplares para a História. O jornal O Sexo Feminino, por exemplo, trazia biografias de mulheres em várias colunas com a finalidade de “provar que o sexo feminino sempre foi útil à sociedade e fez a diferença no progresso da civilização” (SOUTO, 2013, p. 35).
Está evidente, assim, que as páginas do MF trazem à tona uma relativa diversidade de posições políticas, especialmente no que se refere ao debate feminista. Para se tornar popular, o jornal investiu em frentes de diálogos com suas leitoras, entre elas as seções “Atendendo a sua consulta”, “Confidências...”, “Conversando com as leitoras” e “Nosso amor, nossa vida”. Além disso, como já mencionado, era comum a publicação de reportagens e entrevistas sobre a vida das mulheres das camadas populares e os diversos problemas que enfrentavam no cotidiano. Para a produção de conteúdo, as repórteres costumavam subir os morros do Rio de Janeiro com relativa frequência e vez ou outra viajavam para ouvir mulheres de outras cidades, inclusive do “Norte” – nome que à época era usado para se referir às regiões do Norte e Nordeste do Brasil (ALVES, 2020).
Considero que todas essas iniciativas foram fundamentais para que os textos imprimissem a ideia de que “o pessoal é político”.22 A expressão, que se tornou lema do feminismo da década de 1970, não chegou a ser estampada no MF, mas é visível que as colaboradoras do periódico assumiram a responsabilidade de colocar no debate público os dilemas da vida privada. “Atendendo a sua consulta” e “Confidências” foram as primeiras colunas que propuseram tal discussão, mas não tiveram muito êxito. A periodicidade foi bastante irregular e não se detiveram exclusivamente às demandas da “intimidade”. Era comum em ambas as colunas a publicação de orientações jurídicas para mulheres em processo de desquite, viuvez e direitos trabalhistas, bem como dicas para o lar, receitas culinárias e sugestões de corte-costura e moda.
“Nosso Amor Nossa Vida” abriu uma interlocução mais direta com e entre as leitoras do MF. Em sua primeira fase, que durou de 20 de novembro de 1950 até maio de 1951, elas eram estimuladas a escrever cartas compartilhando suas atribulações. A maioria era assinada com pseudônimos. Na seção seguinte, outras leitoras respondiam com sugestões para a resolução do problema. Nesta fase, foram publicadas sete cartas, predominando a discussão sobre os dilemas das relações heteroafetivas – casamento, noivado e namoro. Havia, ainda, a iniciativa de premiar as melhores respostas, que abriam a seção na edição seguinte. A segunda fase, que durou de outubro/novembro de 1953 até o número 112 de 1955, teve dois momentos: os dois primeiros números mantiveram o modelo anterior, mas, a partir de março de 1954, a seção se tornou mais compacta, publicando apenas o resumo das cartas, que eram imediatamente seguidas pelas respostas, assinadas por Madalena, provavelmente um pseudônimo. Naquele momento, predominou o debate sobre a educação dos filhos, especialmente das jovens moças. Como estratégia para apresentar sugestões, ora as “cartinhas” das jovens eram respondidas diretamente, ora as mães preocupadas com a educação das suas crianças e adolescentes que recebiam resposta. No total foram compartilhados dez casos, somados a quatro pequenos comentários publicados no número 110 que não são possíveis de precisar, pois Madalena respondeu diretamente e em poucas palavras às missivistas, sem pormenorizar do que se tratava. Após o intervalo de um ano e sete meses sem compor as páginas do periódico, o texto de reinauguração da coluna voltou a frisar que a sua finalidade seria se dedicar “aos inevitáveis problemas que afetam o dia-a-dia e o coração de cada mulher... São problemas que o peso das dificuldades em que nos movemos no mundo de hoje tornam ainda mais complicados, e às vezes, parecem praticamente insolúveis” (NOSSO AMOR NOSSA…, 1953, p. 2).
Entretanto, diz a sabedoria popular, não há males sem remédio. Quem sabe se um caso doloroso de amor, uma forte contrariedade que se abate sobre nossos ombros fracos demais para suportá-la, não foram vividos e sofridos por alguns dos milhares de leituras de Momento Feminino, Brasil afora? E por que não recorrer à experiência que lhes ficou das dores passadas, não lhes pedir o conselho amigo? É isso queridas leitoras que vos facultamos ao abrir esta seção (NOSSO AMOR NOSSA…, 1953, p. 2).
A seção foi uma iniciativa que visava a politização do privado e se destinava a discutir exclusivamente os problemas que as mulheres enfrentavam na vida doméstica a partir das vozes delas. Poderíamos interrogar o grau de novidade da iniciativa, já que as “revistas femininas” da época já criavam espaços de diálogo semelhantes. Temas como casamento, família e relações afetivas heterossexuais eram comuns nessas revistas, mas geralmente os textos eram de autores homens, como era o caso do Jornal das Moças. É evidente que o fato de o MF abordar esses assuntos no âmbito público não nos permite fazer uma associação direta com o famoso lema “o pessoal é político”. Também não é razoável considerar que o MF, como um todo, rompeu radicalmente com as ideias de feminilidade forjadas no período, visto que não era incomum o jornal publicar textos que reforçavam o ideal de mulher-mãe como principal responsável pela estabilidade da família. Ainda que defendesse o divórcio, por vezes o fazia orientando que as mulheres tentassem todas as alternativas possíveis para salvar o casamento, responsabilizando-as quase que integralmente pelo sucesso ou fracasso do matrimônio e pela felicidade da família. Além disso, contribuía para firmar a ideia de que a relação matrimonial era essencial para a felicidade delas, como indicam as palavras de Maria Clara (1947, p. 4):
Achamos que o AMOR é um complemento de nossa vida, não é verdade? Entretanto, quantas vezes nos vemos perseguidas por uma dor estranha, indefinível, mas, afinal, muito sentida, quando esse amor não é correspondido com a mesma intensidade?! Então nos julgamos as únicas culpadas, vemos só os nossos pontos negativos, escurecemos (sic.) nossos dotes e chegamos ao cúmulo de nos sentirmos inferiores. Ou então nos deixamos dominar por uma vaidade doentia, uma autossuficiência lamentável. Realmente, em muitas dessas ocasiões a culpa é nossa. Mas, nunca devemos cair em desespero. Pelo contrário, nesses momentos devemos analisar o que fizemos de mal e de bem, ver o que descontentou a alguém que tanto queremos, para encontrar a causa do que está nos dando tanto desgosto.
No entanto, diferentemente das “revistas femininas” de grande circulação da época, o MF, mais do que falar de política, sugeria que as mulheres fizessem parte dela, inclusive como forma de abrandar seus problemas cotidianos. Ao insistir em levar para o âmbito público temas atribuídos à intimidade, demarcou que o debate tinha pretensões políticas. Suas redatoras sublinharam, por exemplo, que a finali-dade da seção “Nosso Amor Nossa Vida” “não é, simplesmente, a divulgação de tal ou tal caso sentimental”, mas de “contribuir para um maior intercâmbio de ideias, o que redundará em benefício coletivo” (CLARA, 1947, p. 4). As cartas giravam em torno de diversos problemas, muitas vezes abordados de forma ambígua, como a maternidade, a viuvez, pequenas dúvidas sobre a legitimidade de uma amizade masculina desinteressada (NOSSO AMOR NOSSA…, 1951b), paixões “proibidas” por homens casados (O CASO DE…, 1951) e os desafios de educar crianças e jovens, especialmente do gênero feminino (NOSSO AMOR NOSSA…, 1953), e até debatiam sobre o casamento entre pessoas de religiões diferentes (NOSSO AMOR NOSSA…, 1951).
Apesar da ambiguidade dos discursos, havia a consciência de que era preciso levar ao âmbito público os problemas considerados inerentes à esfera privada. O artigo de inauguração da seção defendeu a necessidade de um espaço como aquele, pois, segundo a justificativa apresentada, o MF costumava receber inúmeras cartas de leitoras que pediam ajuda para resolução de problemas. Dentre estas, chamou a atenção a de uma senhora que “pedia um conselho de caráter íntimo”. Assim, resolveram publicá-la, “entregando às leitoras de Momento Feminino a solução do caso apresentado”. Mas perceberam que era pouco; daí veio a ideia de criar uma seção especializada “em que as leitoras possam dirigir-se umas às outras, sobre os mais variados assuntos de suas vidas. Momento Feminino será o veículo dessa aproximação” (NOSSO AMOR NOSSA…, 1950a, p. 2).
“Nosso Amor Nossa Vida” assumiu a tarefa e não ocupou um lugar qualquer, mas sim a página principal do periódico, lugar antes reservado à coluna “Nossos problemas”, de Arcelina Mochel, diretora do jornal. Seu cartão de visitas indicava que a nova seção trataria dos temas “femininos” triviais: família, casamento e relações heteroafetivas, e assim ela foi feita, mas a partir de uma perspectiva de politização. A seção, contudo, foi recebida com ressalvas. Houve aplausos, que, segundo o jornal, marcaram a sua receptividade, mas também “censuras”, para usar uma expressão das próprias colaboradoras. Elas associaram a resistência ao estranhamento de “que num jornal altamente qualificado” se divulgasse “fatos íntimos”. As editoras não informaram de onde partiram as críticas, mas responderam justificando a importância do debate público dos temas “íntimos”. Logo na edição seguinte à inauguração, o jornal enfatizou que aquele espaço não seria para “sentimentalismos”. A finalidade seria “contribuir para um maior intercâmbio de ideias” para o “benefício coletivo” (NOSSO AMOR NOSSA…, 1950b, p. 2). Já o número posterior reiterou que a iniciativa foi motivada pelo desejo de “ajudar as amigas a encontrar o caminho justo e útil para as suas vidas, dando-lhes novas perspectivas de atividades que contribuem para o bem da humanidade, e não fazer um consultório sentimental comum” (NOSSO AMOR NOSSA…, 1951a, p. 2).
A ênfase de que o projeto não se resumiria a um “consultório sentimental comum” parece representar um esforço em convencer que os problemas que pareciam ser meramente individuais/íntimos eram experimentados por inúmeras mulheres; portanto, eram dilemas coletivos e mereciam o debate público em um jornal “altamente qualificado”. Essa perspectiva orientou o desenvolvimento do projeto. Não sei responder até que ponto todas as cartas foram realmente escritas por leitoras ou se as próprias articulistas, algumas vezes, criavam histórias e publicavam como se fossem do público. Mas isso é o que menos interessa aqui. Minha intenção é demonstrar que o debate político sobre problemas considerados de ordem privada ocupou suas páginas. Independentemente de quem escrevia, o conteúdo, ao fim e ao cabo, representa a leitura de mundo das mulheres responsáveis pela seção. Em última instância, as cartas selecionadas e o teor das respostas publicadas são condizentes com as ideias e os comportamentos que as mulheres do MF julgavam mais adequados.
Parece factível que “Nosso Amor Nossa Vida” tenha se tratado de uma iniciativa de politização dos assuntos relegados ao âmbito privado, a partir da interação entre mulheres, que abriu espaço para que elas falassem delas e para elas. A maioria das opiniões publicadas sobre temas como casamento, maternidade, relações afetivas e educação em muito destoava das análises de Nice Figueiredo e da corrente que questionou as naturalizações das relações entre os gêneros. Não era incomum as sugestões das supostas leitoras defenderem uma noção de casamento em que as mulheres deveriam servir aos maridos e aos filhos. Ao orientá-las sobre o casamento e as “obrigações domésticas”, por exemplo, Gracina Albuquerque destacou que cabia aos homens batalhar para prover a família, enquanto o salário das mulheres serviria apenas de “auxílio” à manutenção da casa. Para ela, o “trabalho feminino” era importante como um meio de formação pessoal, no sentido de promover o contato direto com as dificuldades da vida. No entanto, a principal tarefa do gênero continuava sendo zelar pelo lar. As mulheres deveriam “encarar seus trabalhos domésticos como deveres e não como obrigação” (ALBUQUERQUE apud NOSSO AMOR NOSSA…, 1950, p. 2).
Também não é possível sugerir que todas – ou parte delas – tinham alguma afinidade com a luta contra as assimetrias entre homens e mulheres; algumas tinham, como foi o caso de Leonor Gonçalves, que se opôs à concepção de que toda mulher precisava de casamento para ser feliz. Lembremos que esta era uma ideologia muito comum à época e esta perspectiva esteve presente nas páginas de MF. Mas, para Leonor, o conceito de “solteirona” – como eram chamadas as mulheres que não se casavam até os 30 anos – era atrasado. Para ela, uma mulher de 30 anos estaria “em seu pleno vigor e amadurecimento físico e mental, razão pela qual é ridículo ser apontada como ‘solteirona’”. E afirmou:
Digo mais, mesmo que se você tivesse 40 anos não seria de lamentar por ter ficado solteira, pois diz o ditado: “antes só do que mal acompanhada”. São inúmeros os casais infelizes quando o casamento se dá pelo medo de ficar solteira. A meu ver, um casamento feliz deve ser baseado no amor e no entendimento (NOSSO AMOR NOSSA…, 1953, p. 2).
Ao ler as supostas cartas e analisar todo o debate em torno delas, fica evidente que a coluna tinha por objetivo forjar laços de solidariedade entre as mulheres, o que diz muito sobre como as editoras interpretavam suas experiências. Naquele contexto, compreendiam que as mulheres (cisgênero), em que pese as diferenças de classe, raça, geração e região, enfrentavam dilemas comuns que poderiam ser amenizados a partir da compreensão de que elas não estavam sós e que muito do que parecia individual era, na verdade, coletivo e, por isso, político.23 Essa consciência foi fundamental para que, apesar das críticas, elas insistissem na iniciativa.
Embora por vezes reafirmassem os valores socioculturais de gênero, certamente não foi fácil manter o projeto de politização do privado. Não por acaso, “Nosso Amor Nossa Vida” saiu de cena entre maio de 1950 e dezembro de 1951. Provavelmente, o dilema sobre quais seriam as questões que mereciam mais atenção influenciou o recuo. Naquele contexto, as camadas populares passavam por sérios problemas sociais, como desemprego, carestia de vida, crise de moradia, carência de alimentação, epidemias, altos índices de analfabetismo, entre outros, sem falar dos problemas políticos enfrentados pelo movimento de mulheres, pelo movimento operário e pelo PCB, como destacado anteriormente.
No entanto, as mulheres responsáveis pela coluna pareciam ter noção da necessidade de, no mínimo, desgastar os muros que separavam em espaços dicotômicos as esferas pública e privada. Este caso é sintomático do que Nancy Fraser (1993) observou acerca das fronteiras arbitrariamente construídas entre as duas esferas. Frequentemente, atribuía-se à privacidade os temas envolvendo a propriedade privada em uma economia de mercado e a vida doméstica e sexual e, ao público, os assuntos relacionados ao Estado, ao bem comum e ao interesse coletivo. Mas, no mundo ocidental, a definição do que corresponde ao bem comum e ao interesse coletivo é elaborada majoritariamente por homens brancos que geralmente atuam para a manutenção dos seus privilégios (FRASER, 1993).
Neste sentido, as expressões “público” e “privado” não são meras designações diretas de âmbitos sociais, mas sim etiquetas retóricas moldadas culturalmente. No discurso político, são termos poderosos geralmente acionados para valorizar alguns interesses, opiniões e temas em detrimento de outros. A delimitação dessa fronteira é desvantajosa para os grupos sociais subalternizados, uma vez que contribui para reforçar desigualdades de gênero, raça, classe e etnia, mesmo depois da eliminação das restrições explícitas e formais. Mas as chamadas minorias políticas não assistem passivamente à delimitação das fronteiras. Ainda que não estejam incluídas nas principais esferas de tomada de decisão e atuem, sobretudo, nos espaços de formação de opinião – p. ex., a imprensa –, desgastam, paulatinamente, os muros construídos para mantê-las excluídas (FRASER, 1993)
O MF se esforçou para reformular essas fronteiras, mais diretamente com a coluna “Nosso Amor Nossa Vida”, mas não somente por meio dela. Como vimos ao longo do artigo, foram várias as iniciativas que mesclaram público e privado, na medida em que, para as mulheres, estes caminhos estão interconectados. Neste sentido, quando Nice Figueiredo denunciou o Código Civil de 1916, ela estava atenta às implicações das restrições legais na vida das mulheres, tanto na esfera pública quanto na política da intimidade. Ao mesmo tempo, quando as mulheres se deslocavam às periferias para ouvir as experiências das trabalhadoras, também interconectavam as esferas, bem como todas as iniciativas de conexão e reflexão acerca das vivências das mulheres de diferentes classes e raças. Entendo, assim, que o debate feminista é impossível sem a compreensão de que a vida das mulheres na esfera pública traz dilemas do cotidiano na esfera privada, bem como as questões que envolvem a intimidade são atravessadas por dilemas políticos – portanto, públicos e coletivos –, e o Momento Feminino entendeu e expressou esses dilemas.
Ao longo deste artigo, demonstrei que o Momento Feminino é parte importante da história do feminismo no Brasil. Articulado a um movimento internacional, representado pela Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM), suas colaboradoras não se identificavam como feministas, em função da maneira como compreendiam o movimento e das disputas políticas do contexto. Alinhado ao PCB, o jornal assumiu um compromisso com as mulheres trabalhadoras das camadas populares, sem deixar de dialogar com a realidade das trabalhadoras das camadas médias. Suas páginas expressaram, não sem contradições e tensões, a preocupação das colaboradoras em romper com as disparidades de gênero. Por isso, parto do pressuposto de que o MF pode ser compreendido como um jornal feminista de orientação comunista, na medida em que entendo o feminismo como qualquer ação política – individual ou coletiva, no espaço público ou privado – preocupada em destruir a inferiorização histórica das mulheres.
Partindo desta perspectiva, fica evidente que a política empreendida pelo periódico estava conectada a esse objetivo. As iniciativas feministas não foram promovidas sem dificuldades, tensões e contradições. No entanto, é evidente que o MF estava conectado a um discurso e a uma ação antissexista. O periódico publicou textos defendendo o fim das estruturas sociais que deixavam as mulheres em situação de inferioridade e vulnerabilidade, defendeu a participação das mulheres na vida política, politizou o cotidiano, criou iniciativas para imprimir, ainda que de forma mediada, as vozes de mulheres diversas, especialmente das camadas populares, construiu meios que ampliassem o nível de alfabetização das mulheres, preocupou-se em denunciar o quanto a falta de creches tornava difícil a vida das trabalhadoras, posicionou-se contra a Lei Civil de 1916, que interditou institucionalmente o lugar de fala das mulheres, etc.
Desse modo, o MF é parte importante da história do feminismo no Brasil e nos proporciona um outro olhar sobre as temporalidades hegemônicas construídas nas narrativas históricas sobre o movimento, que comumente é dividido em ondas que pouco ou nada dialogam. A emergência das ondas geralmente é lida com o signo da ruptura e a “nova” viria sempre propondo mudanças radicais. Um olhar sobre as temporalidades geralmente negligenciadas, como é o caso das décadas de 1940 e 1950, pode revelar outras histórias. Mas deixo esse debate para outra oportunidade.
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira
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