Resumo: Estes escritos priorizam a análise das epidemias que atingiram Santos entre 1880-1900 num contexto de intensas transformações desta cidade-porto e da difusão das epidemias (febre amarela, varíola, peste bubônica, entre outras) cuja intensidade gerou a alcunha de “porto maldito”. Nesse contexto, discute-se as sensibilidades emergentes diante das vivências cotidianas dos surtos epidêmicos, tais como o medo — aqui observado como sentimento multifacetado, que durante a vigência das epidemias se tornou onipresente atingindo a todos pelo espectro da contaminação e da morte. A investigação encontra-se sedimentada numa ampla e diversificada documentação que inclui manuscritos do Arquivo Público de Santos, relatos de viajantes, imprensa local, nacional e internacional.
Palavras-chave: Epidemias, porto, medo, biopoderes, higienismo.
Abstract: This essay analyzes the epidemics that hit Santos between 1880 – 1900, following the intense changes seen by this port city and the spread of epidemics (yellow fever, smallpox, bubonic plague, among others) whose intensity gave it its alias “accursed port.” It discusses, therefore, the emerging sensitivities regarding the daily experiences of epidemics outbreaks, such as fear — here observed as a multifaceted feeling which became omnipresent during the epidemics, swiping the population with contamination and death. The investigation is based on a wide and diversified documentation that includes manuscripts from the Public Archive of Santos, traveler accounts, and local, national and international press.
Keywords: Epidemics, port, fear, biopower, Social Hygiene Mouvement.
ARTIGO
UM “PORTO MALDITO”: EPIDEMIAS, COTIDIANO E MEDO – SANTOS (1880 – 1900)1
AN “ACCURSED PORT”: EPIDEMICS, EVERYDAY LIFE AND FEAR – IN SANTOS (1880 – 1900)
Recepção: 06 Fevereiro 2021
Aprovação: 05 Novembro 2021
Sob o título “Triste”, na sexta-feira de 9 de maio de 1893, era reproduzida na primeira página do Jornal do Brasil (RJ) uma longa narrativa extraída do Diário de Santos. O relato contava a saga do casal Francisco Ramos (português de 57 anos), Justina Cuen Reyna (espanhola de 41 anos) e seus oito filhos. A família chegou a Santos no dia 11 de abril de 1893 vindos do interior de São Paulo, pretendendo viajar para se reunir aos parentes estabelecidos em Las Lomas de San Mora, no entorno de Buenos Aires.
Contudo, devido à situação epidêmica, a Argentina não estava aceitando vapores vindos de Santos, então o casal comprou passagens para Porto Alegre. Na espera pelo embarque, a família se instalou na casa de pasto de Teixeira Sampaio & C. No dia 17 de abril, a situação se tornou drástica: o chefe da família e a pequena filha de 6 anos faleceram vitimados pela febre amarela.
Apesar das perdas, no dia estipulado, a viúva e seus filhos se dirigiram ao embarque. Nesta ocasião, uma outra criança se encontrava doente e, após exame médico, toda família foi proibida de seguir viagem, sendo expulsos à força do navio. Ficaram abandonados no cais do porto.
Condoído da sorte dos infelizes, “João de tal”, dono de uma embarcação, permitiu que eles passassem a noite num pequeno barco cobertos apenas por um encerado. No dia seguinte, perante a ameaça de forte temporal, a vizinhança buscou a ajuda da polícia, que acolheu a viúva e as crianças no quartel. A mãe e os dois filhos já estavam contaminados e foram internados na Santa Casa de Misericórdia. Justina não resistiu e no dia 8 de maio faleceu. As crianças sobreviventes foram recolhidas ao Asilo de Órfãos da Infância Desvalida de Santos.4
O triste destino de Francisco, Justina e filhos impediu a realização do sonho de reunificação familiar, vitimados pela febre amarela que assolava constantemente a cidade de Santos. Naquele ano de 1893, a epidemia combinada de febre amarela e varíola ceifou a vida de mais de 1.600 pessoas: imigrantes nacionais e visitantes, negros e brancos, homens e mulheres, populares, trabalhadores portuários e marítimos. Histórias passadas tornam-se um desafio para a reflexão dos historiadores imersos nas experiências da pandemia da covid-19 de 2020.
Na segunda metade do século XIX, a expansão da produção cafeeira rumo ao oeste do estado de São Paulo encontrou, entre outras dificuldades, a do transporte e escoamento do produto, obstáculo superado com a inauguração da ferrovia Santos-Jundiaí (1867), que possibilitou um transporte regular, eficiente e seguro, impulsionando ainda mais a cafeicultura. A partir de então, as exportações do produto foram concentradas no porto de Santos, desencadeando um processo contínuo de crescimento da cidade.
Este momento coincidiu com o processo de mundialização e expansão capitalista, o aumento das conexões internacionais através da difusão dos transportes a vapor (trens e navios) e com a intensificação dos deslocamentos de mercadorias, capitais e pessoas. Estas transformações nas formas de circulação e comunicação chegaram a Santos através de um trinômio: navios transatlânticos (rotas dos vapores internacionais estabelecidas em Santos a partir de 1870), locomotivas (1867, com a inauguração da São Paulo Railway) e conexão através de telégrafo internacional (com a instalação da Western Telegraph em 1873 no porto paulista).
Na virada do século XIX para o XX, Santos adquiriu centralidade devido à ampliação das exportações da produção cafeeira e da entrada de mercadorias importadas, somadas ao expressivo contingente de viajantes, imigrantes e migrantes que chegavam à cidade. Os velhos problemas urbanos foram ampliados com o crescimento desordenado do movimento portuário e da população, enfrentando as dificuldades dos ancoradouros desarranjados, precária vigilância sobre as embarcações, ruas estreitas com trânsito intenso de carroças, elevado número de cocheiras e cortiços, agravamento das condições ambientais e fazendo com que tornassem constantes os surtos de epidemias.
O porto era composto por trapiches velhos e malconservados e não comportava adequadamente o crescimento do tráfego marítimo, criando obstáculos para a agilidade das atividades com a lentidão no embarque-desembarque e até congestionamentos, com navios fundeados na costa santista por longos períodos à espera do momento de carga e descarga. Esta situação se agravou nas décadas de 1880 e 1890, quando as exportações de café pelo porto de Santos ultrapassaram as do Rio de Janeiro.
A precária situação sanitária da cidade levava ao afastamento dos navios, causando prejuízos aos negócios. Desta feita, se intensificavam as preocupações na reorganização, higienização do espaço urbano e aparelhamento/modernização do porto, ainda com o sistema de trapiches e suas pontes de madeira. Nesse contexto, visando modernizar as atividades e remodelar o porto, a Companhia Docas de Santos ganhou o contrato para a construção do novo cais (1888), através de uma concessão muito lucrativa e monopolística de quase cem anos (HONORATO, 1996). As obras foram iniciadas em 1890 e o primeiro trecho do novo cais de pedra foi entregue em 1892.
Todavia, as obras realizadas no porto pela Companhia Docas eram vistas como uma solução e como um problema: os trabalhos desenvolvidos em marcha acelerada perturbavam a movimentação portuária e acreditava-se que, ao revolver o mangue, as matérias acumuladas levavam a intensificação das doenças, provocando alta mortalidade e aumentando o temor das epidemias.
O processo de expor tação do café demandava ar ticulações entre várias etapas desde a produção até o embarque final. Apesar da estrada de ferro e do porto serem de ramos distintos, possuíam interesses convergentes e buscavam a integração de ações para que as mercadorias fluíssem eficientemente atingindo o consumidor internacional.
As sacas de café, ao chegarem a Santos, eram descarregadas dos vagões dos trens e colocadas nos depósitos; alinhados ao longo da via férrea, carroças e carretões estacionavam junto a esses locais e retiravam a mercadoria, iniciando o transporte para os armazéns e/ou para o porto. Apesar da existência de firmas organizadas, os carroceiros, na sua maioria imigrantes, dividiam entre si esta função. Estas atividades dependiam da safra, quando seu ritmo era intensificado e o número de carroças transitando crescia em proporção direta ao aumento da quantidade de café exportado. Pelas ruas estreitas, sob um calor sufocante, os carroceiros corriam ao lado dos veículos puxados a burro; nos armazéns eram feitas a viragem, as misturas e o reensaque do café para exportação. No porto, o embarque se realizava carregando-se os sacos de café; como num formigueiro, humanos trabalhadores subiam e desciam com sacos nos ombros as pranchas do cais para o convés dos navios, ou de um navio para outro.
Os portos, além de porta de saída dos produtos (em Santos, especialmente o café), eram porta de entrada, recebendo um grande número de mercadorias, visitantes e imigrantes. A virada do século XIX e o início do XX foi marcada por intenso deslocamento de pessoas, imigrantes, migrantes e ex-escravizados que, na busca por novas oportunidades, tinham em Santos um polo de atração. A urbe passou por um crescimento demográfico, a população de pouco mais de 9 mil habitantes (1872) ampliou-se para quase 30 mil habitantes (1893), aproximando-se dos 90 mil (1913).5,6
O número de habitações existentes não acompanhava as necessidades da população crescente que enfrentava dificuldades com a moradia se amontoando pelos becos e vielas em cortiços, habitações precárias e superlotadas.7 Quase todos os cortiços se encontravam em estado deplorável e péssimas condições sanitárias, sem água, esgoto e iluminação; eram úmidos, pouco ventilados e com falta de latrinas. Tratava-se de locais com grande acúmulo de pessoas, “casinhas”, “quartinhos”, “cubículos” baixos, alguns feitos de tábuas ou caixotes, cobertos de zinco, compostos de um só cômodo ou habitações coletivas, incluindo sublocações de quartos e porões, moradias nos fundos de quintais e pátios, quartos anexados às tavernas, botequins, bilhares, casas de pasto e de prostituição.
Dada a escassez de locais para viver, havia também as cocheiras-cortiços que, em sua maioria, eram também habitações coletivas, onde cocheiros e carroceiros viviam com suas famílias em palanques construídos sobre as baias, coabitando com mulas e cavalos. Como outros cortiços, não tinham água nem esgoto, eram abafados e insalubres. Essas habitações eram ocupadas por imigrantes, majoritariamente portugueses e espanhóis (BLUME, 1996).
O grande número de cocheiras facilitava a difusão de ratos e pulgas, transmissores da peste bubônica; já as águas paradas nas ruas e nos pátios difundiam o mosquito transmissor da febre amarela que, juntamente com outras epidemias, atingia particularmente a população pobre e imigrante, considerados “não aclimatados”8 e mais vulneráveis, talvez por causa das condições de viagem, da contaminação a bordo ou pela falta de adaptação ao clima.
O conjunto dos problemas foi delineado como uma questão urbana, a situação preocupava autoridades, médicos, comerciantes, comissários e exportadores de café, que passaram considerar a cidade-porto um organismo doente, vulnerável a febres e epidemias. Tornava-se urgente ações para controlar a difusão das doenças e do contágio (regras de entrada, inspeção e controle, quarentenas, isolamento). Propalava-se a necessidade de intervenções (“ações de cura”) saneando a área, com particular atenção aos assuntos de saúde público-sanitária, medidas vinculadas aos pressupostos de higienização; difundia-se a necessidade de remodelações garantindo um bom funcionamento portuário e combatendo a alcunha de “porto maldito”. 9
Esses escritos priorizam a análise das epidemias que atingiram Santos, entre 1880 e 1900. Inicialmente, observa-se o processo contínuo de crescimento da cidade-porto gerando questões urbano-sanitárias que possibilitaram a expansão das epidemias (sendo aqui privilegiadas as de febre amarela e varíola) cuja intensidade gerou desconfiança sobre o porto que recebeu a alcunha de “porto maldito”.Na sequência, discute-se as sensibilidades emergentes diante das vivências cotidianas dos surtos epidêmicos, tais como o medo — aqui observado como sentimento multifacetado, mas que, durante a vigência das epidemias, tornou-se onipresente atingindo a todos pelo espectro da contaminação e da morte.
Desde os tempos coloniais que Santos era assolado periodicamente por surtos epidêmicos, sendo a varíola, ou “mal das bexigas”, a principal doença. A febre amarela aportou na cidade na década de 1850, após reaparecer nos portos de Salvador e Rio de Janeiro. Ao longo da segunda metade do século XIX e início do XX, as duas enfermidades deixaram rastros na cidade, com surtos nos anos de 1873, 1876, 1878 e graves epidemias ocorridas entre os anos de 1889 e 1895.
O médico sanitarista Guilherme Álvaro da Silva, no seu compêndio memorial e histórico das epidemias (período de 1872-1905), registrou o crescimento de moradores de Santos de pouco mais de 9 mil pessoas (1872) para cerca de 60 mil habitantes (1905), destacando um decréscimo da população em 1890 devido às epidemias (cólera, febre amarela, varíola). Pela obra se observa que eram várias as moléstias que vitimavam a população santista e que geravam assustadoras taxas de mortalidade (tuberculose, tétano, cólera, coqueluche, impaludismo)10. No período de 1889-1905 faleceram 30.173 pessoas, dessas 6.789 atingidas pela febre amarela, que junto com a varíola e a febre bubônica foram as epidemias que provocaram maior morbidade.11
Todavia, para entender a crise sanitária de Santos na década de 1890 é preciso observar alguns números. Em uma compilação de dados apresentados pelo médico sanitarista no ano de 1919 (Tabela 2)12, Santos aparecia com uma população crescente entre 10 mil e 20 mil habitantes nos anos de 1872 a 1889; observa-se, porém, um decréscimo significativo de habitantes no ano de 1890.
Esta situação gerava desconfiança sobre o porto, que despontava como o principal escoador de café do país, afetando o comércio exportador e a estabilidade econômica (MATOS; CARMO, 2019). Em 1892, escrevia-se:
A situação em Santos tem sido por algum tempo a repetição do que ocorreu ano passado. Último mês as mortes por febre amarela sozinhas somaram 480, o que para uma cidade com população de quase 20.000 dá uma assustadora taxa de mortes. Do que pudemos perceber, o curso dos eventos ali é uma reprodução aproximada das terríveis cenas as quais caracterizara aquele pest hole (buraco pestilento) o ano passado.15
Principal doença epidêmica desse período, a febre amarela ainda não tinha causa conhecida, dividindo a opinião de médicos infectologistas e cientistas16. De um lado estava a teoria do contágio, que acreditava que a contaminação se dava pela transmissão pessoa a pessoa, vindo na esteira da microbiologia que se desenvolvia na última década do século XIX. O outro lado adotava a teoria da infecção, entendendo que a transmissão se dava por uma combinação de fatores ambientais e atmosféricas: o clima úmido da cidade e o forte calor dos verões na região; o temível vento noroeste dos maus ares; as emanações dos mangues santistas e rios que corriam a descoberto pela cidade; entre outras (BENCHIMOL, 1999; CHALHOUB, 2006). Cabe observar que essas concepções nem sempre foram conflitantes e, muitas vezes, suas práticas de combate foram combinadas (AMORIM, 2013). No fim do século XIX, a teoria da transmissão da febre amarela pelo mosquito Aëdes aegypti foi comprovada por médicos sanitaristas, possibilitando a adoção de ações mais eficientes de prevenção.17
Ademais, ponderava-se sobre os hábitos de higiene da população, que contribuíam para a péssima situação sanitária da cidade. Além das condições de vida nas moradias coletivas, tinha-se o despejo de dejetos e lixo nos quintais, becos, mananciais e até mesmo no canal do porto (BENCHIMOL, 1999).18
Notícias sobre a situação sanitária eram veiculadas:
Capitão [nome omitido] relata que quando o [nome do navio omitido] deixou Santos, em 12 de maio, a febre amarela reinava por todos os lados. Homens caíam mortos nas ruas e morriam aos montes na cidade e nos navios do porto. Algumas embarcações tinham suas bandeiras a meio mastro dia a por dia e por semanas, enquanto homem após homem de suas tripulações sucumbiam para o flagelo. Barcos fúnebres circulavam pelo porto dia e noite de barco em barco, coletando os mortos e levando-os à terra para serem enterrados. Algumas das embarcações tinham apenas um ou dois homens restantes de toda sua tripulação, e muitos deles estavam impossibilitados de retornar. Marinheiros eram escassos, e quando os navios perdiam toda sua tripulação, era com grande dificuldade que se garantiam homens para tomar seus lugares. Capitães de embarcações exercitavam grande cuidado para prevenir que suas tripulações desertassem ou fossem seduzidos para terra em busca de pensões.19
As notas que circulavam sobre a situação epidêmica afetavam o mercado de café; visando acalmar os ânimos e proteger os interesses dos produtores e comerciantes, apareciam desmentidos: “Não reina epidemia alguma; o tempo é favorável. O número de óbitos é, na média, de três por dia. Os hospitais epidêmicos estão fechados, o comércio animado, reina paz em todo o Estado”.20 Contudo, o número de mortos era impactante (apesar de imprecisos) e o interior paulista criou barreiras para evitar a propagação de enfermidades vindas do porto pelos trilhos dos trens.21
No auge do surto epidêmico, devido à grande demanda por enfermarias, foram criados espaços provisórios em diversos edifícios da cidade como nos Conventos de São Bento, Santo Antônio e do Carmo, no Teatro Rink, além dos hospitais da Santa Casa, da Beneficência Portuguesa e da enfermaria de isolamento, criada na Chácara da Filosofia, no Saboó.
Nesse mesmo sentido, a expansão espacial de Santos em fins do século XIX e inícios do XX foi marcada por referências de doença-morte e de saúde-higiene. Para a doença-morte, buscou-se instalar locais de isolamentos e se cuidou para que os enterramentos fossem realizados em áreas mais afastadas. Já para a saúde-higiene, apregoava-se todo um conjunto de ações preventivas, ritos de higiene e cuidados em relação ao corpo22. Defendia-se a busca dos “bons ares” e locais de refúgio, ampliando os horizontes urbanos para áreas pouco habitadas, particularmente, em direção à Barra Grande, as praias.
Santos, 22 de janeiro de 1887.
Minha prezada companheira de estudos
Aqui estou, pela primeira vez em minha vida, no porto de mar de nossa província, em Santos, terra úmida, sufocante…
Eu me vejo em apuros, mas é para dizer o que vem a ser esta nesga do litoral em relação à climatologia; é para achar-lhe um termo de comparação.
Falam no Senegal: o Senegal é mais quente, valha a verdade, mas não é tão abafado. Lá respira-se fogo, mas respira-se. Aqui não se respira nem fogo, nem coisa nenhuma. O ar é pesado, oleoso; parece que lhe falta algum elemento, isso quando não há o vento célebre que os noroeste: quando sopra, reina esse semoum africano, esse vendaval-peçonha, Santos é miniatura do inferno: Imagine-se um tufão dentro de um forno...
A vida aqui é uma negação da fisiologia, é um verdadeiro milagre: não há hematose perfeita, as digestões são laboriosíssimas, sua-se como no segundo grau da tísica pulmonar, como na convalescença de febres intermitentes. Eu, se fosse condenado a degredo em Santos, já não digo por toda a vida, mas por um ano ou dois, suicidava-me. (RIBEIRO, 1999 [1888])
Em sua breve e malfadada passagem por Santos, o escritor Júlio Ribeiro deixou registrado suas impressões sobre a cidade no romance A Carne, publicado em 1888. No trecho citado, o personagem Manuel — em carta para sua “prezada companheira de estudos”, Lenita — reproduzia o impacto vivenciado e seu medo de ser acometido pelas epidemias. Suas representações sobre a cidade circularam, se difundiram e provocaram reações como a presente na crônica de Carvalho de Mendonça, publicada no Indicador Santista:
Julio Ribeiro passou entre nós exactamente como o Bargossi: a correr. Fixou aqui residencia e abrio um externato, com as mais firmes intenções de se acclimatar na terra dos Andradas. Mas os ventos não lhe correram propícios … e vieram-lhe molestias. […]. Começou a perseguil-o o terror da febre amarella: escreveu sobre ella, deu rebate falso, alarmou o interior por causa de um ou dous casos insignificantes — que a seus olhos de inexperiente tomaram proporções assustadoras. E atraz do primeiro emprego que encontrou — atirou-se para São Paulo, desiludido e furioso. Pouco antes de ir dizia-me elle, enxugando o suor, indignado contra o calor, fulminante: “Si encontrar um homem que se mude para Santos, digo-lhe francamente: pegue um revólver, e mate-se. Isto não é terra: é o inferno. Um inferno, um inferno!”.23
Os temores das epidemias se alastravam. Richard Francis Burton, que foi cônsul britânico em Santos (1865-68), pediu transferência para São Paulo, alegando que a cidade era um “pântano imundo e malcheiroso, um grande mangue cheio de mosquitos e cobras”.24 Nas representações, a má fama da cidade estava vinculada ao seu clima e atmosfera (calor forte, vento noroeste, umidade) considerados facilitadores da proliferação de doenças epidêmicas, constituindo “ciclos pestilentos”.
O porto paulista apareceria ainda no poema de 1902 intitulado Fever Ship, no qual o inglês John Masefield descreveria a cidade como um porto cruel e uma terra faminta, com covas já abertas e enfileiradas, prontas para receber o homem do mar.25 Mesmo antes desse período de intensificação da mortalidade pela febre amarela, a cidade já tinha fama de mortal aos europeus. O conto de horror fantástico publicado em 1887 pelo escritor francês Guy Maupassant (1850-1893) intitulado Le Horla trouxe em seu enredo um navio saído de “um porto da província de São Paulo” que, com destino à França, levaria a bordo uma epidemia de loucura que se espalhou pela Europa (ATANES, 2011).
O porto era identificado como lugar de contágio e marcado pelo medo de que a qualquer momento navios aportariam trazendo enfermidades. No dia 29 de fevereiro de 1876, foi encaminhado para o Hospital da Santa Casa o primeiro doente de febre amarela registrado naquele ano. Atribuía-se a introdução da doença a um tripulante do brigue sueco “Ida”, que chegou a Santos vindo de Pernambuco com um carregamento de açúcar. Durante a sua estadia, o navio perdeu quase toda sua tripulação, salvando-se apenas o capitão e um grumete. Do “Ida” a moléstia passou para o navio dinamarquês “Padilha”, se alastrando pelo porto e pela cidade.26
A movimentação portuária era considerada uma das culpadas pela propagação das epidemias e como as medidas sanitárias se mostravam insuficientes, os surtos se tornaram recorrentes. Em 1889, a epidemia de febre amarela foi maior do que a de anos anteriores, iniciando um ciclo que se manteve pela década seguinte, ampliando e difundindo o temor da contaminação e da morte.
As notícias que circulavam pela imprensa (local, nacional e internacional) contribuíam para alardear a crise sanitária e espalhar o medo das epidemias. O artigo de 1892 intitulado “O que inglês vê”27 destacava que a febre se propalava em Santos, atingindo em particular os europeus residentes e a classe marítima. Nesse ano, 63 das 65 embarcações fundeadas no porto tiveram sua tripulação atingida pela febre amarela. Em algumas situações a equipe inteira adoeceu e no caso do navio “Japhet II”, todos morreram.28 Como eram longos os períodos de espera para aportar e para finalizar a carga e/ou descarga, marujos circulavam pela cidade difundindo e contraindo a doença. Os capitães de embarcações buscavam coibir a saída da tripulação dos navios e quando a equipe era perdida, tornava-se difícil conseguir marinheiros para o retorno.29
Com as comunicações telegráficas transatlânticas, as notícias sobre os perigos de se aportar em Santos e das mortes de tripulações inteiras chegavam rapidamente nas praças de Liverpool, Londres, Hav re, Marseille, Roterdam, entre outras, alastrando o pânico. No auge da epidemia de 1892, o cônsul britânico em Santos comunicou a Londres que mais de dois terços dos casos de febre amarela evoluíam à óbito.30 Muitas companhias marítimas se recusavam a enviar navios para Santos e começaram a evitar o porto, os fretes se encareceram, embarcações resistiam a atracar. Algumas vezes, passageiros destinados a São Paulo foram desembarcados em Buenos Aires, tendo que retornar por terra ou navegação de cabotagem (T EL AROLLI J UNIOR , 1996).
Atribuindo aos poderes públicos a culpa pela situação epidêmica, exigiam-se ações preventivas de fiscalização no porto, já que o fluxo das embarcações era acusado de propagar a epidemia. Assim, eram requeridas medidas como a inspeção de navios, a recusa de embarcações provenientes de portos infectos e/ou com doentes a bordo31 — determinando as quarentenas dos lazaretos32 — e a desinfecção dos barcos, bagagens e mercadorias. Contudo, devido à falta de condições, estas determinações não foram implementadas adequadamente.33
Clamava-se por providências urgentes dos poderes instituídos que eram culpabilizados pela situação sanitária. Em 1876, os vice-cônsules da Holanda, Dinamarca, Áustria, Estados Unidos e os cônsules da Alemanha e Inglaterra, através de ofício dirigido à municipalidade, denunciaram a situação e exigiram providências.
Tendo se queixado alguns Capitães de navios mercantes que dia e noite o porto e parte dos subúrbios dele, por causa das immundicias acumulados ahi, exalem um cheiro insuportável e tendo já se dado desde quarta-feira vários casos de Febre amarela, que por parte podem ser atribuídos aos estado da putridão de materiaes fecaes, pede os abaixo assignados que V.Sa mande dar a ordem competente, que não somente se procede imediatamente a limpeza, como tambem que hajão umas vigias, afim de que não se lancem materiaes fecaes e deteriorados nas proximidades dos navios.34
Visando coibir a difusão de miasmas na cidade, reivindicava-se a drenagem e/ ou aterro dos pântanos ou depósitos de águas estagnadas, assim como o estabelecimento de normas para o descarte de lixo e materiais fecais, proibindo o rejeite em lugares públicos, baldios, praias, rios, córregos, quintais e pelas janelas. Aos moradores se recomendava que evitassem circular em locais públicos, aumentassem a ventilação nas habitações coletivas, dormissem em aposentos arejados, que vivessem sobriamente controlando “excessos de qualquer ordem” e se mantivessem longe das “paixões deprimentes”, “evitando o medo” e cultivando a “tranquilidade de espírito”.35 Os apelos pelas ações médico-governamentais imediatas eram combinados com esforços para manter a calma entre a população, pois o pânico rondava e o descontrole parecia iminente. O temor da contaminação inquietava a vizinhança que quando sabia do falecimento e/ou de um doente em tratamento domiciliar apresentava queixas à municipalidade.
A falta de hábitos de asseio na cidade e as condições de vida nos cortiços, considerados focos de contaminação e transmissão das epidemias, criaram articulações entre pobreza e sujeira, difundindo a ideia de que os populares contaminavam as elites36. A pobreza, além de ser vista como perigo e foco de contágio, era portadora de vícios presentes nos seus comportamentos, modos de vida, maneiras de morar e trabalhar. O sistema de fiscalização sanitária e controle mesclava observações de ordem sanitária e moral. Os cortiços passaram a ser foco de atenção das inspeções, cujas visitas eram temidas, pois caso existissem pessoas doentes, debilitadas e sem condição de serem tratadas no próprio local, seriam enviadas para hospitais de isolamento.
O temor37 de ser enviado para o isolamento ou ser tratado em hospital fazia com que táticas fossem criadas para iludir a verificação dos domicílios, escondendo os doentes ou até os mortos. Na sessão da Câmara Municipal de 11 de novembro de 1896, relatou-se que num quartinho da rua Bitencourt foi localizado um homem de nacionalidade espanhola atacado pela varíola, já em estado bastante avançado da doença; junto foi encontrada sua filha morta. O doente foi encaminhado para o hospital de isolamento municipal e o corpo da criança conduzido para o cemitério, sendo “o quarto desinfectado, fechado por 48 horas e os moradores intimados a não se agglomerarem em tão pequeno espaço (…)”.38,39
As pessoas que dispunham de recursos para fazer o tratamento, realizavam-no em domicílio, contudo, sem tomar qualquer cuidado com a manutenção do isolamento, recebendo visitas de parentes e amigos. A remoção de doentes pobres para internações hospitalares e em isolamentos causava revoltas e resistência da população; questionava-se a superlotação, os tratamentos ineficazes e a falta de pessoal competente. Os hospitais não eram reconhecidos espaços de cura, sendo difundido que se tratava de lugares em que se ia para morrer (FOUCAULT, 2013). Por esse motivo, eram administrados por ordens religiosas ou caritativas de beneficência, em Santos, a Santa Casa de Misericórdia e a Beneficência Portuguesa.
No auge da epidemia de 1892, foi inaugurada a enfermaria Almeida Moraes, que recebeu mais de mil pessoas infectadas pela febre amarela, uma cifra considerável para um local temporário. No ano seguinte, o recém-instalado Serviço Sanitário Estadual implantou, na mesma localidade, o primeiro Hospital de Isolamento permanente na cidade e custeado pelo Estado, acolhendo e tratando pessoas com enfermidades contagiosas.
O aumento do número de enfermos e mortos gerava uma sensação de impotência que proliferava o medo. Em tempos de epidemia, eram temidos os ditos miasmas mefíticos, liberados por putrefação, principalmente aqueles vindos dos enterramentos e exalados dos cemitérios; considerava-se que o lugar e a forma do enterramento ampliavam o contágio, assim não só os cadáveres “ainda escaldando da febre mortífera” eram temidos, como a putrefação dos corpos em si, por causa da contaminação do ar através dos miasmas (AMORIM, 2013).
O primeiro cemitério municipal de Santos — Cemitério do Paquetá — foi construído entre 1850 e 1854, e em trinta anos de existência já tinha recebido mais de 11.500 corpos enterrados em covas rasas, pois, devido à proximidade do mar, não se podia afundá-las. De lá, exalavam os fogos fátuos com suas diversas tonalidades. O cemitério próximo ao centro apavorava a todos, em particular nos picos das epidemias. Durante o surto epidêmico do primeiro semestre de 1889, nuvens negras se desprendiam de labaredas de alcatrão que iluminavam sinistramente as ruas desertas da cidade; os portões do Cemitério Público não se cerravam e durante a noite conservavam uma lanterna com luz vermelha para indicar a chegada de mortos.
Impunha-se o anonimato na morte, os corpos eram atirados em cima de outros corpos em largas valas comuns abertas pelos coveiros (FRANCO, 1951, p. 172). Esse surto epidêmico foi um dos mais fortes, mas não o pior. Nos anos seguintes, entre 1890 e 1892, a mortalidade subiu, chegando a atingir 10% da população total. A cidade empesteada não conseguia absorver seus mortos, os enterros com acompanhamento foram vedados, sendo determinado o abandono dos ritos familiares e coletivos de sepultamento e de manifestação de tristeza.
Quando das epidemias da década de 1890, foi constatada a superlotação do Cemitério do Paquetá e a urgência de se providenciar um outro espaço de sepultamento. Existia a tendência de impelir para fora do centro urbano os locais de isolamento e de morte — notadamente enfermarias e cemitérios —, assim, a indicação da Chácara da Filosofia, no Saboó, para o novo cemitério — Cemitério da Filosofia — devia-se ao fato da região ser utilizada para a enfermaria de isolamento. Deu-se preferência por alocar o cemitério próximo a essa área, o que evitaria a circulação de cadáveres, que eram transportados nos bondes públicos e carroças, pela cidade, o que poderia facilitar a transmissão e difusão das pestes.40,41
Em 24 de julho de 1893, a Agência Havas-Reuter, principal veículo de notícias telegráficas à época, divulgava que a febre amarela estava se disseminando, atingindo cerca de 200 óbitos por dia. Frente ao medo coletivo, as famílias saíam da cidade e o mercado de café estava paralisado.42 Apavorados, comerciantes e comissários encarregados pelas negociações do café fechavam os estabelecimentos e se recusavam a residir na cidade, optando por fazer o percurso diário de trem “serra acima”. Vivia-se com medo e em estado de alerta, já que “vinte por cento dos estrangeiros, entre eles corretores e caixeiros de todas as nacionalidades, morreram durante os últimos quatro meses, e que, no mesmo intervalo, setenta por cento fugiram para São Paulo”.43
Durante esse período, com o agravamento da crise sanitária, o temor da contaminação e da morte pela febre amarela ou varíola se ampliou. Observa-se a disseminação do medo através dos pedidos de afastamento, de desligamento de função, da desistência de cargos, bem como pelas comunicações de adoecimento e morte de funcionários da municipalidade — como se viu no ofício de 10 de abril de 1890, do alferes João José Ribas que deixava de exercer o cargo de fiscal do mercado44, ou de 17 de junho do mesmo ano pertencente ao advogado da Intendência; ambos estavam impossibilitados de comparecer à sessão por motivo de moléstia.45
As queixas de saúde foram causas de afastamentos e resignações de mandatos de alguns dos vereadores e intendentes municipais. Foi o caso de Júlio Conceição, último Presidente das Câmaras Imperiais, que adoeceu de febre amarela e se afastou do cargo em março de 1889;46 do Intendente Affonso Veridiano, que pediu resignação do cargo em 7 de fevereiro de 189347; e de Alexandre de Mello Junior, que também deixou seu cargo à disposição em 29 de junho daquele mesmo ano.48 Até o chefe político santista Cesário Bastos, que resignou ao seu mandato de presidente da Intendência Municipal em fevereiro de 189349, foi acusado de “fugir” da cidade em meio ao caos sanitário, mesmo não tendo anunciado publicamente o motivo da renúncia:
O outro chefe do mesmo partido, dr. Cesario Bastos, quando aqui ha poucos annos foi presidente da nossa Camara, declarou em sessão — que por causa do municipio de Santos não estava disposto a sacrificar sua saude e interesses —; e pouco depois abandonava esta distincta e nobre terra á mercê das epidemias de febre amarella e bexiga.50
De fato, foram expressivas as fugas populacionais da cidade no período das últimas duas décadas do século XIX. A quantidade de recém-chegados e a correlação da mortalidade das doenças epidêmicas em não aclimatados ao clima e atmosfera santista fizeram com que a cidade fosse almejada e temida ao mesmo tempo. A população decrescia em uma proporção expressiva, fazendo com que aqueles que podiam, se retiravam para São Paulo. Quem não tinha essa possibilidade, na busca por bons ares, se refugiavam nos novos bairros como Vila Mathias, Vila Macuco ou Nova Cintra; por fim, havia os que permaneciam na urbe sujeitos à própria sorte e apavorados com as nefastas condições.
A situação epidêmica tornava premente o saneamento da cidade-porto. Contudo, o município não possuía recursos financeiros suficientes; as pressões cresceram, em particular, do setor comercial-exportador de café. Neste sentido, a Associação Comercial de Santos se manifestava: “O saneamento de Santos torna-se uma necessidade inadiável para garantir não só a vida da população, mas, altos interesses de ordem econômica”.51 Era considerado imprescindível manter o fluxo dos negócios cafeeiros e, para tanto, o funcionamento eficiente do porto; assim, o governo do Estado assumiu a empreitada.
Depois de diversos estudos, enfrentando a burocracia e outros obstáculos políticos, foi aceito um projeto urbano-sanitário de remodelação e interferência. Para implementá-lo foram constituídas duas Comissões: uma sanitária, coordenada pelo médico Guilherme Álvaro52 e outra de saneamento, sob a liderança do engenheiro Saturnino de Brito53 (BERNARDINI, 2006).
Quanto à parte sanitária, com a identificação do mosquito como agente difusor da febre amarela, cresceram as ações de pulverização, bem como os serviços de brigadas contra o mosquito e de limpeza pública e manutenção da vigilância sanitária, culminando na institucionalização do Serviço de Febre Amarela (1902-3). Isso contribuiu para a diminuição da incidência dessa moléstia. Da mesma forma, outras ações de controle foram tomadas para com a varíola54 e a peste bubônica.55
O sonho da cidade higienizada transparecia no projeto, que se propunha “reparador absoluto das dificuldades”. Os canais foram construídos em cimento armado, geralmente a céu aberto; tinham pontes e passadiços na parte superior. O sistema garantia a drenagem do solo e recebia dos emissários as águas pluviais, em tubos de cimento armado. Estes canais ocupavam o espaço central das avenidas, facilitando a circulação e o arejamento urbano; as árvores nas calçadas laterais tornavam a paisagem urbana amena, com espaços de circulação para pedestres e veículos. A longa extensão dos canais e a largueza das avenidas favoreciam a penetração das brisas marítimas no interior da ilha, refrescando-a.
Em 1905, foram iniciados os trabalhos e, em 1907, festividades marcaram a inauguração do primeiro e maior dos canais, o Canal 1, que continha o antigo Ribeirão dos Soldados. Muitos eram os motivos para comemorar: considerava-se as epidemias extintas, o moderno sistema de esgoto tornou a cidade mais saudável e as inundações evitadas, os negócios do café estavam revitalizados depois do Convênio de Taubaté (1906) e o porto funcionava a todo o vapor. As ações reformadoras encaminhadas distinguiam a história de Santos em duas etapas: antes e após o saneamento. Em 1908, já eram 45 mil metros de canais, que por sua utilidade e beleza passaram a marcar as memórias afetivas da cidade, alterando as representações urbanas.
Os escritos deixados por vários viajantes registraram as mudanças urbanas. Entre outros, o uruguaio Manuel Bernardez, que visitou Santos em 1907-08, rememorava a antiga situação lastimável do porto e as epidemias, detalhando a superação das dificuldades e a reorganização das atividades portuárias.
Vem-se do Prata com a vaga noção de um porto sujo, onde se carrega muito café, mas donde as tripulações, enquanto atracam os navios, têm de fugir para sanatórios especiais, para escapar à febre… Tudo isso era assim poucos anos atrás… Há até bem poucos anos, não havia cais, … o telégrafo tinha que transmitir continuamente despachos sinistros: “Tripulação dizimada pela febre”, “Fretes encarecidos pela febre”… Hoje Santos é um porto limpo na acepção completa do vocábulo, e é um grande porto, em potência de ser dos primeiros, no Brasil, no continente e no mundo.56
Da mesma forma, o italiano Vitorio Buccelli, de passagem pela cidade no início do século XX, registrava nos seus escritos as dificuldades de outrora e destacava os progressos após a construção do cais e higienização da cidade.
A cidade não é hoje o que era a quinze ou dez anos antes. Nesta época, os navios tinham que atracar no meio do canal, as ruas feias, miseráveis, sujas causavam tristeza aos viajantes, que não tinham outro desejo senão de partir, sentindo-se perseguidos pelo fantasma da morte; no vagão do trem, esperavam ansiosos para emitir um longo suspiro de alívio quando ouviam o apito de saída. Ainda pior eram as condições de higiene da cidade: as epidemias de febre amarela retornavam quase todos os anos, e durante os meses de verão massacravam os estrangeiros e os que vinham do interior para realizar os seus negócios. Mas, com a construção das docas (Docas), e com um trabalho constante de limpeza e drenagem, a cidade ressurgiu para uma nova vida…57
O conjunto de transformações dinamizou os desejos de modernidade vinculados aos ideais civilizatórios (ELIAS, 2011) que articularam crescimento urbano, higienização e saneamento, dinamizando ações, como o alargamento das ruas no centro, a construção de novas avenidas abertas em direção ao mar e a ocupação de áreas consideradas mais salubres na região da Barra, onde nas praias as chácaras cediam lugar às mansões das elites.
A cidade higienizada diversificava suas funções. As praias, que antes eram espaços de pescadores e de desembarques clandestinos, mudaram sua paisagem e passaram a receber visitantes na busca por “bons ares”, dos milagres curativos do banho de mar e das virações marítimas consideradas medicinais.58
O estabelecimento de linhas de bondes para além do centro urbano, aberta pelos ingleses da City of Santos Improvements até a praia do Embaré e pelos alemães da Emmerich & Ablas para São Vicente (década de 1870) dinamizaram o movimento na Barra. Na última década do século XIX, a rede hoteleira de luxo começou a se deslocar do centro para as praias, onde foi instalado o Hotel Internacional e depois o luxuoso Hotel Parque Balneário.
Santos se constituiu enquanto estância balneária, com a gradativa ampliação da frequência à beira-mar que atraía moradores e visitantes para os banhos de mar, passeios, lazer e práticas esportivas. As praias se tornaram espaços de lazer, sociabilidade e exposição dos corpos (marcados pela beleza e sensualidade) (CORBIN, 1989).
As pandemias e epidemias são episódios insólitos e intensos, momentos de crise que explicitam tensões e conflitos desencadeando desequilíbrios, provocando rupturas no cotidiano e na ordem constituída. Tais crises colocam em xeque a capacidade dos serviços de saúde e de assistência aos doentes, com questionamentos ao conhecimento científico de diagnóstico, controle da doença e tratamento, impondo desafios de reordenações sociais, econômicas e políticas.
No caso das epidemias que assolaram a cidade-porto de Santos no período de 1860-1910, mesmo não sendo consensual o entendimento das causas e das ações mais apropriadas para o seu combate, observa-se o gradativo crescimento da órbita de influência do conhecimento científico e médico, que norteou as medidas profiláticas de higiene, prevenção do contágio e de tratamentos. Pode-se dizer que as enfermidades contagiosas/epidêmicas se constituíram em fenômenos biopolíticos (com implicações políticas, sociais e econômicas), num processo no qual os corpos infectados se tornaram problema de saúde pública e que ante possibilidade de contágio, justificaram as interferências dos poderes constituídos (FOUCAULT, 2013).
Assim, para se enfrentar os surtos epidêmicos cíclicos que atingiam Santos e difundiam o medo da doença, da contaminação e da morte, os poderes constituídos se esforçaram em planejar ações diversas de controle, como inspeções, isolamentos, desinfecções e quarentenas, estabelecendo regimentos, posturas e regulamentos, instituindo comissões e sistemas de fiscalização e repressão. A não atenção e o descumprimento das normas presentes geravam punição e multa, ou seja, pressupostos marcados pelos princípios de vigiar e punir. Contudo, as epidemias envolvem múltiplas experiências, visões e percepções, que podem ser observadas a partir da perspectiva dos poderes estabelecidos, de quem trata a doença, das práticas da população e dos pacientes — estabelecendo tensões, relações de força, reações e resistências (população, proprietários dos cortiços, entre outros), como a oposição às medidas e recusas à vacinação (NA SCIMEN TO et al, 2018) .
Num primeiro aspecto, identificou-se a preocupação em reconhecer as origens das epidemias, localizando o porto como vetor de entrada e difusão das doenças e dirigindo as ações de controle sobre este local. Diante da preocupação com a grande quantidade de vapores que cotidianamente aportavam, buscou-se identificar os navios que vinham de lugares infectados, dirigindo ações de inspeção à embarcação e de revista à tripulação, aplicando o sistema de quarentena com a criação de espaços de isolamento, mas não foram localizadas notícias de torna-viagem.
Visando controlar a propagação das epidemias, atuou-se através de ações de desinfecção e purificação, seja dos navios, mercadorias, bagagens e até mesmo das pessoas (tripulações e passageiros). Ampliaram-se as medidas de combate ao contágio, com a fiscalização de sítios públicos e moradias; nos locais onde foram encontrados doentes e mortos, ocorreram ações de desinfecção e expurgo. Com a difusão do conhecimento científico e a ampliação das noções de contágio, no caso da difusão de febre amarela pela identificação do vetor do mosquito, foram implementadas ações sistemáticas de pulverização através da “Brigada contra mosquitos e moscas” a fim de eliminar os insetos e focos de larvas. Já no caso da bubônica, a identificação da cadeia de transmissão (ratos e pulgas) dirigiu a atuação para a limpeza, caça aos ratos (nos navios, no porto, nas cocheiras e moradias) e compra dos roedores.
Cuidar/isolar os doentes e enterrar os mortos se tornaram necessidades prementes; foram constituídos espaços de confinamento dos contaminados, de cuidados e de cura, além de novos lugares de enterramento. Assim, instalaram-se locais de atendimento para receber e cuidar dos doentes nos Conventos, hospitais e enfermarias de isolamentos. A elevada mortalidade fez com que fossem abandonados os rituais de morte, os enterros eram realizados de forma rápida (inclusive à noite) e em valas comuns. As dificuldades com a capacidade de enterramento culminaram na necessidade de construir um novo cemitério — o Cemitério da Filosofia —, que teve como lugar escolhido a mesma área de isolamento/tratamento na região do Saboó. Outra forma de expressão do medo era o abandono da cidade, quem tinha possibilidade partiu e outros buscavam se refugiar em locais de “bons ares”, o que levou à ocupação da área das praias.
Se a vida é uma experiência histórica com e no corpo, entre o nascimento e a morte, essa experiência é marcada por acontecimentos com vivências de segurança da saúde e pelo medo do prenúncio da finitude (da doença, da dor, da morte). Assim, as doenças assumem forte carga simbólica, ainda mais em ocasiões nas quais adquirem contornos epidêmicos, quando se interligam com as noções de punição e flagelo, difundindo o medo do desconhecido, do contágio e da proximidade da morte, além da procura aflitiva de explicações, tratamentos e curas. Apesar das trajetórias de vida dos sujeitos históricos se encontrarem marcadas por ritos de nascimento e morte, não são conservadas a memória do nascimento e nem a consciência da morte; contudo, a doença (ser e estar doente) é marcada por experiências íntimas, pessoais e coletivas, com registros dos sintomas, dores, desconfortos e medos.
As paixões, sensibilidades e suas manifestações são produzidas e experienciadas histórica, social e culturalmente com variações nos sentidos e expressões das emoções. O medo é uma emoção constituída através de processos históricos e se encontra inserido em diferentes repertórios emocionais, podendo ser identificado como uma das paixões da alma pouco heroica. No caso das epidemias em Santos, o medo do desconhecido, do inexplicável, da contaminação, da doença e da morte surgiu como reação, uma necessidade de proteção frente ao perigo iminente que ameaçava a preservação da vida(DELUMEAU, 1990; ELIAS, 1993; MATOS, 2012; NASCIMENTO; GOUVÊA, 2014).
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira
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