ARTIGO
MODERNISMOS & MODERNIDADES: BRASIL, 1922 (O OUTRO ERA AQUI)
MODERNISMOS & MODERNIDADES: BRASIL, 1922 (O OUTRO ERA AQUI)
Revista de História (São Paulo), núm. 181, a12322, 2022
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História
Recepção: 14 Outubro 2022
Aprovação: 14 Outubro 2022
A Semana de Arte Moderna, no Brasil de 1922, foi uma atividade patrocinada por homens endinheirados, realizada num ambiente de pessoas endinheiradas e assistida por um público de homens e mulheres endinheirados. Seu alcance, todavia, ultrapassou esse universo social, astúcia das Artes, fez-se História também criticamente, às vezes sem o querer, e dialogou com outras modernidades sociais ao indagar o que era aquele Brasil.
Questões de linguagem e problemas que seus principais participantes consolidaram contemplaram presenças populares na cena social e artística, redefiniram a própria concepção de povo brasileiro. E aquele evento não surgiu do nada, dialogou com antecedentes culturais e sociais do Brasil e com vanguardas internacionais.
O mundo que se sucedeu à Revolução Russa de 1917 e ao primeiro pós-guerra não podia mais escamotear a existência dos trabalhadores pobres na cena social e cultural, como se observara na experiência soviética e, depois, no Tratado de Versalhes e na Organização Internacional do Trabalho.
O crítico literário Alfredo Bosi estabeleceu diferenças entre Modernismo e Modernidade, onde escritores de antes e depois, desvinculados da Semana de 1922 e de seus prolongamentos, foram destacados – Lima Barreto, Graciliano Ramos e outros (BOSI, 1997, p. 293-319).
A sutil ironia de Machado de Assis apontou, com alguma acidez, desencontros culturais e sociais brasileiros, deu ênfase a Capital e Ética, Escravidão e Europeísmo deslocado, Mulheres e Direitos: identidade nacional e povo eram problemas (ASSIS, [1908] 2006, p. 1095-1200).
Sylvio Romero realçou que não existia Brasil sem negros e índios: o país não era uma branca Europa tropical, índios e negros configuravam mais que exotismos locais (ROMERO, [1883], 1985).
Euclides da Cunha permitiu ver a grandeza de um povo dotado de força e saberes, ignorado e destruído por governos que se diziam, pateticamente, sua coisa (res publica) (CUNHA, 1984 [1902].
Lima Barreto escancarou um mundo de violências contra pobres e mulheres, feroz racismo, instituições disciplinares, República contra povo e potencialidades críticas (BARRETO, 1956 [1915]).
E Monteiro Lobato esboçou um Brasil que prescindia de raças para explicar seu povo, equiparou racialmente Jeca Tatu aos bandeirantes (LOBATO, 1980 [1918]).
O Modernismo brasileiro, ao combater vestígios de passado, agiu como se esses nomes nada lhe dissessem, rejeitou asperamente argumentos de Lima Barreto e Monteiro Lobato4. O principal crítico e esteta do grupo, Mario de Andrade, todavia, fez um posterior acerto de contas em relação a Machado de Assis e Lima Barreto, reconheceu-lhes a fina e inovadora Psicologia narrativa (ANDRADE, 1972 [1939], p. 149-153). E as incursões etnográficas de Mario, que Gilda de Mello e Souza considerou parte de sua Estética (ANDRADE, 1982 [1959]), retomaram faces dos escritos de Sylvio Romero.
Vanguardas europeias se interessaram por linguagens artísticas de povos de fora da Europa5. Para o Brasil, “fora da Europa” era aqui mesmo: indígenas, africanos, múltiplos imigrantes repaginados, “contribuição milionária de todos os erros” (ANDRADE, 1972 [1928]), que, conforme muitos dos Modernistas, eram acertos.
Mario de Andrade e Paulo Prado publicaram, em 1928, dois livros que desfizeram, em grande parte, a explicação racial do Brasil: Macunaíma e Retrato do Brasil (ANDRADE, 1972[1928] e PRADO, 1997[1928]).
A rapsódia de Mario trouxe um herói “sem nenhum caráter”, que nasceu negro e se tornou branco pela ação de uma fonte miraculosa; um de seus irmãos se banhou nessa água já encardida por Macunaíma, ficou mulato; e o terceiro, que recebeu a água plenamente tingida pelo negror dos outros dois, permaneceu preto, apenas palmas das mãos e solas dos pés clarearam.
Paulo Prado, em seu belo ensaio literário, construiu quase uma parábola: todas as raças que formaram o Brasil se igualavam na tristeza! As cores de pele diversificadas, portanto, foram imaginariamente niveladas pela equalização psicológica, outra negação agridoce e risível das hierarquias raciais.
Foram conquistas de pensamento e de valores intelectuais e políticos que não se confundiam com as biografias pessoais desses Autores: o mulato Mario continuou a usar pó de arroz para tornar a face aparentemente mais clara; e o branco Paulo, de acordo com fala de Tarsila do Amaral, rompeu com Oswald de Andrade porque este último se referiu publicamente a sua parenta Veridiana Prado como “gloriosa mulata”...6
O riso fiosofante e literário de Mario, Paulo e Oswald, em diferentes gêneros textuais, esteve associado a uma liberdade modernista em relação a hierarquias artísticas: paródias, caricaturas, piadas e ilustrações da Imprensa periódica, junto com música folclórica e música de mercado, Teatro de Revista e o nascente Cinema, foram postos em diálogo com modalidades artísticas consideradas tradicionalmente como eruditas. Mais que suspender padrões de qualidade7, ele problematizava cânones, convidava artistas e públicos a pensarem sobre categorias que corriam o risco de petrificação.
Embora Modernistas não se confundissem com Regionalismos, o contato entre artistas e intelectuais de diferentes estados brasileiros foi cultivado por muitos deles, especialmente Mario de Andrade. Essas relações são importantes para a compreensão de que nem tudo, no Modernismo brasileiro, se reduziu a São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Isso não diminui o peso da produção modernista naqueles três primeiros núcleos, apenas realça que não vale a pena manter o adjetivo “regional” para os demais nem os considerar enquanto meros seguidores de paulistas, mineiros e cariocas.
E os próprios Modernistas não se confundiam em bloco com o fascínio cego pela técnica: Mario de Andrade nunca aceitou a identidade de Futurista, diferenciou-se desse discurso de louvor a velocidade, guerra e qualquer novidade; e não quis saudar o futurista Filippo Tommaso Marineti, tornado porta-voz do Fascismo, em visita deste a São Paulo.
O Modernismo abrigou múltiplos projetos e não é ocasional que alguns de seus nomes tenham saudado o Fascismo e seus derivados nacionais com extrema simpatia. Outros, todavia, aproximaram-se do Comunismo. Essas buscas levaram a diferentes destinos políticos e estéticos, Brasis até opostos entre si.
Cabe salientar que a Modernidade popular, no Brasil, não dependeu apenas daquela produção artística e intelectual nascida em 1922, em São Paulo & Cia. Movimentos sociais, desde meados do século XIX, evidenciavam lutas por novos direitos, nascidas entre escravos, libertos e imigrantes pobres, a falar sobre Anarquismo, Greves, Educação, Mulheres, Moradia, Estado Laico, Divórcio e outros tópicos.
Se o ano de 1922, no Brasil, é lembrado pela Semana de Arte Moderna, pelos 18 do Forte/Tenentistas e pela criação do Partido Comunista do Brasil, não é possível esquecer lutas por direitos tão modernas e anteriores quanto Canudos, Contestado, Revolta contra a Chibata, Greve de 1917 e muitas outras, além de Anarquistas e Socialistas em defesa de espaços sociais mais amplos e vozes próprias para os trabalhadores pobres – inclusive Mulheres e Crianças. Isso também é Modernidade! Junto com o Povo dos Modernistas, é preciso pensar a respeito de Modernidade do Povo, suas facetas poliglotas (africanos, indígenas e imigrantes europeus e asiáticos) e de ousadia na invenção de outro país, de outro mundo.
O Brasil se fazia moderno a partir de diferentes sujeitos, artistas ou não. As Artes não apenas falavam (e falam) de pobres e ricos; elas existiam (e existem) num mundo de ricos e pobres, tema, problema e potencial destino de seus produtos. O poder das Artes foi (e vai) além da fala dos que já eram (e são), política, econômica e socialmente, poderosos, em sua gênese e em sua apreensão. Aquele Povo também era portador de outros poderes.
E mais Modernidades continuaram e continuam, apesar do “Pós-Moderno”.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Mario de. A Psicologia em ação. In: O empalhador de passarinho. São Paulo/ Brasília: Martins/INL, 1972, p 149/153 (Texto original de 19.11.1939).
ANDRADE, Mario de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo/Brasília: Martins/INL, 1982 (1ª ed.: 1959).
ANDRADE, Mário. Macunaíma – O herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins, 1972 (1ª ed.: 1928).
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça (Org.). Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1997 (1ª ed. do documento: 1928).
ASSIS, José Maria Machado de. Memorial de Aires. In: Machado de Assis – Obra Completa. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, pp 1095/1200 (1ª ed.: 1908).
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Brasiliense, 1956 (Obras de Lima Barreto, II - 1ª ed.: 1915).
BOSI, Alfredo. As Letras na Primeira República. In: FAUSTO, Boris (dir.). O Brasil republicano. Sociedade e instituições. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, pp 293/319 (História Geral da Civilização Brasileira, tomo III, volume 2) (1ª ed.: 1976).
CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Três, 1984 (1ª ed.: 1902).
FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade – Nascimento e destruição de um espaço plástico. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1990 (1ª ed.: 1952).
LOBATO, José Bento Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1980 (1ª ed.: 1918).
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Cia. das Letras, 1997 (1ª ed.: 1928).
ROMERO, Sylvio. Cantos populares do Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1985 (1ª ed.: 1883).
Notas
Francisco Alambert, Marcos Antonio da Silva, Nelson Tomelin Jr.
Autor notes
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira