RESENHA
FRADES PREGADORES E POLÊMICA ANTI-HERÉTICA MEDIEVAL: NOVAS LEITURAS DA SUMMA CONTRA HERETICOS (PSEUDO GIACOMO DE CAPELLIS)
. Summa contra hereticos. Edizione critica a cura di Paola Romagnoli. Introduzione, appendici e bibliografia a cura di Maurizio Ulturale. 2018. Milano. Vita e Pensiero. 402pp.pp. |
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Recepção: 31 Março 2022
Aprovação: 08 Julho 2022
Após um longo período de espera, eis que, finalmente, em 2018, foi publicada a edição crítica comentada da Summa contra hereticos fratris Iacobi de Capellis, um dos tratados mais notórios da polêmica anti-herética medieval. O prefácio do volume (pp. VII-XI) é assinado por Lorenzo Paolini, professor da Universidade de Bolonha e estudioso da heresiologia na Idade Média. A introdução (pp. 3-39), os apêndices (pp. 327-394) e a bibliografia (pp. 395-402) ficaram a cargo de Maurizio Ulturale – aluno de Paolini e especialista em movimentos heréticos do Baixo Medievo –, após a desistência do historiador alemão Alexander Patschovsky. Finalmente, o trabalho de reconstrução filológica do texto é de Paola Romagnoli (pp. 41-326), outra aluna de Paolini e responsável pela primeira edição crítica do texto (ROMAGNOLI, 1991-1992).
A Summa contra hereticos ocupa, por várias razões, um lugar de destaque no universo da controvérsia medieval católica contra os hereges. Em primeiro lugar, por ter levantado discussões em torno da sua autoria. Durante muito tempo, acreditou--se que a obra fosse de origem franciscana, o que a tornava o único texto da controvérsia minorítica do século XIII conhecido. Em segundo lugar, por conter aspectos que destoam de outros tratados da mesma natureza. Ao contrário da totalidade da literatura antidualista, o polemista da Summa emprega uma abordagem indulgente quando trata da moralidade dos seus adversários, desmentindo os rumores populares que os depreciavam e destacando a pureza dos seus costumes e a sua generosa hospitalidade.2
Nas breves páginas confiadas a Lorenzo Paolini, o professor felicita a nova edição crítica e aproveita para marcar o seu lugar e o de seus alunos no terreno atual dos estudos sobre as heresias medievais. Opondo-se ao movimento dito “desconstrucionista” – que tende a dar pouca ou nenhuma relevância às notícias sobre os hereges contidas nas fontes da polêmica anti-herética, em função das deformações e das manipulações inerentes a esses textos –, Paolini atribui à crítica histórica o dever de identificar as informações estereotipadas e abstratas daquelas reais e confiáveis (PAOLINI, 2018, p. VII-XI).
Na introdução, Maurizio Ulturale traz um conjunto valioso de informações sobre a Summa, de modo que as questões ali discutidas se mostram tão fundamentais quanto a edição crítica. Ele inicia o texto, abordando o superficial interesse historiográfico pelo tratado (L’interesse storiografico per la ‘Summa’). De fato, salvo alguns estudos de Charles Molinier, Ilarino da Milano, W. L. Wakefield e Mariano D’Alatri, a obra, de um modo geral, foi analisada com pouca profundidade.3
Ulturale discute ainda os reveses da autoria da Summa. Desde Charles Molinier, o texto foi atribuído ao franciscano milanês Giacomo de Capellis (MOLINIER, 1888, p. 150-153; 280-282), o que foi reforçado por diversos historiadores (Ilarino da Milano, Antoine Dondaine, Mariano D’Alatri, Raoul Manselli, Giovanni Gonnet, entre outros). Mesmo com a constatação de Mirella Ferrari, em 1979, de que o nome “Iacobus de Capellis”, no manuscrito ambrosiano, indicava, na verdade, o proprietário do documento e não o seu autor, a autoria franciscana seguiu persistindo na historiografia (FERRARI, 1979, p. 440-441). Ulturale acena para as novas hipóteses em torno da datação e do âmbito de produção da obra trazidas por Paola Romagnoli, porém esses pontos só são discutidos por ele mais à frente.4
O historiador italiano situa o contexto de composição e utilização da Summa, relacionando-a a outras obras da controvérsia anti-herética do período (Gli ambiti di composizione e di fruizione). Para ele, a obra representou uma etapa do progressivo refinamento das estratégias refutativas que, mais tarde, culminaria no grande opúsculo anti-herético do frade dominicano Moneta de Cremona (?-1250), de “finalidade mais complexa” (ULTURALE, 2018, p. 9). Ao contrário dos tratados de refutação das heresias que a antecederam e a influenciaram, em particular, o Contra hereticos, do teólogo e cisterciense Alain de Lille (1128-1202), uma das novidades trazidas pela Summa seria a alusão constante a um público de leitores, expresso pela fórmula “ad lectoris notitiam” (Ibidem, p. 10).
Adiante (Nota sullo Pseudo Giacomo), é discutida a procedência das informações coletadas pelo polemista anônimo acerca das crenças dualistas, alvo do tratado.5 É bastante provável que essas informações tenham sido retiradas de fontes heréticas – o que também se verifica em outros textos anti-heréticos da época – e/ou católicas. Por outro lado, o conhecimento atento do Pseudo Giacomo sobre os rituais dos dissidentes não descarta a possibilidade de que ele próprio pudesse ter tido contato direto com eles. Ulturale menciona, mas se distancia da hipótese lançada por alguns historiadores de que o autor da Summa poderia ter sido um ex-herege. Tal suposição se baseia na expressão “per experientiam”, empregada pelo controversista para descrever os costumes dos dualistas e negar a prática da endura.6 O historiador italiano também rejeita a ideia de que o autor da Summa teria sido um inquisidor (ULTUR ALE, 2018, p. 12).
Questões sobre os destinatários e a data de composição do texto são desenvolvidas na seção Un modello rinnovato: la strutura scolastico-operativa della ‘Summa’. A Summa, conforme Ulturale, com sua organicidade concisa nas argumentações, característica típica dos tratados escolásticos, foi dirigida a um público a ser preparado e treinado para a atividade direta da pregação e da refutação anti-herética. Reafirmando as opiniões de Paola Romagnoli, a qual situa a composição do tratado em âmbito dominicano, o medievalista italiano considera que o público-alvo da obra eram Frades Pregadores em formação (Ibidem, p. 19-20). Além disso, a importância atribuída ao livro como um instrumento escolástico-profissional, característica da Ordem dos Frades Pregadores, é vista por ele como um dos aspectos que confirmaria a suposta origem dominicana do tratado anti-herético (Ibidem, p. 34).
Outro problema levantado por Ulturale refere-se à datação da Summa. A dificuldade em situar cronologicamente a composição do tratado deve-se, segundo ele, à ausência de informações temporais, geográficas e contextuais em seu interior (Ibidem, p. 23). A hipótese geralmente admitida de que a escrita da Summa se deu na segunda metade da década de 30 ou próximo a 1240 é abandonada em prol da suposição de Romagnoli, que localiza a sua escritura num período anterior; a década de 20 (Ibidem, p. 20, nota 65).
Por fim, na última parte da introdução (Sulla scia del Concilio lateranense I V: tecniche della ‘persuasio’, sperimentazioni della ‘coercitio’), Ulturare lança a hipótese de que o autor da Summa, ao compilar o tratado, seguiu de perto as disposições do IV Concílio de Latrão, de 1215, que fixou as bases da correta fé (Ibidem, p. 27-29). Além disso, ele observa que o modelo de confronto da Summa apoiou-se nas finalidades da persuasio (persuasão), estando o polemista pouco interessado em tratar de temas ligados à coercitio (coerção), como a repressão e a vindicta contra os hereges (Ibidem, p. 31-36).7 Esse desinteresse do autor anônimo é intrigante, visto que o assunto da legitimidade da pena de morte dos hereges (e também de outros indivíduos tidos como malfeitores) é uma constante nos tratados anti-heréticos desde o início do Duzentos – reflexos do endurecimento das políticas papais e imperiais de repressão contra as heresias.8
Um ponto importante retomado por Ulturale e que permanece latente no decorrer do volume gira em torno da confiabilidade dos testemunhos dos textos polêmicos para a reconstrução do fenômeno herético medieval, questão já mencionada por Paolini, no prefácio. O estudioso destaca o pessimismo demonstrado, atualmente, em torno dessas mesmas fontes pela vertente historiográfica “desconstrucionista”, representada por historiadores como Robert I. Moore, Monique Zerner, G. Zanella, M. G. Pegg, entre outros. Tal problemática ganhou força nas últimas décadas, sacudindo os alicerces do conhecimento sobre os movimentos heréticos medievais, a ponto de alguns pesquisadores considerarem a heresia, em particular a dualista, como uma projeção fantasmagórica de inquisidores e polemistas. Contrapondo-se a essa visão, Ulturale afirma que “não se trata de reiterar passivamente aquisições e conhecimentos recebidos da heresiologia do passado, mas de voltar a reconsiderar tais fontes”, que são “distintas entre si e, todavia, funcionais ao mesmo objetivo polêmico, persuasivo e escolástico-formativo” (ULTURALE, 2018, p. 16, tradução nossa).
Sobre esse ponto, concordamos com Ulturale acerca da importância desses textos para o estudo dos diversos enfoques da polêmica anti-herética medieval e das mensagens por ela veiculadas. Seus usos e funcionalidades, a nosso ver, não foram suficientemente esclarecidos.9 Por outro lado, nos parece que o historiador tende a tomar as notícias sobre os dualistas, transmitidas por esses documentos, de forma literal, problematizando pouco as deformações e a unilateralidade existentes neles. Moneta de Cremona, por exemplo, um dos polemistas citados por Ulturale, ao apresentar e refutar o conteúdo das crenças dos dualistas, no seu longo opúsculo anti--herético, toma como plano estruturante da polêmica o corpus dogmático da Igreja católica em seus mais diversos aspectos, o que reforça a ideia de uma igreja herética concorrente ou, como ele mesmo nomeia, “ecclesia malignantium” (CREMONENSIS, 1743, ed. Ricchini, p. 389a). Desse modo, torna-se difícil estabelecer, claramente, as questões postas pelos hereges.
No que podemos chamar de segundo momento da obra, Paola Romagnoli apresenta propriamente a edição da Summa. O texto é introduzido por um breve estudo sobre a descrição e a classificação dos manuscritos, a estrutura do texto e os critérios adotados.
A edição baseia-se nos cinco manuscritos sobrevividos do tratado, indicados pelas letras A, L/LI, M, P e S: A= Milão, Biblioteca Ambrosiana, J.5 inf. (séc. XIII); L/LI= Leipzig, Universität Bibliothek, 835 (séc. XIV?); M= Cesena, Biblioteca Malatestiana, S.I.8 (séc. XIII); P= Praga, Biblioteca do Capítulo metropolitano, C XCV (séc. XIII) e S= Sevilha, Biblioteca Colombina Capitular de Sevilha, 5.1.26 (séc. XIII). Tais manuscritos, compostos em latim, são anepígrafos e desprovidos de prólogos, sendo uma parte deles homogênea (manuscritos A e M) e outra parte compósita (L/L1, P e S) (ROMAGNOLI, 2018, p. 41-45). Por outro lado, no que diz respeito aos ambientes de circulação desses códices, as notas de posse, compra e doação indicam, conforme a historiadora, que a utilização do texto se deu em âmbitos mendicantes (Ibidem, p. 45).
As particularidades de alguns manuscritos – como a ausência de alguns fólios nos códices A e P e a presença de duas seções distintas do texto no códice L; uma seção breve (L1), na qual consta uma transcrição quase completa do primeiro capítulo, e uma seção longa (L), que abrange todo o texto, incluindo a reescrita do primeiro capítulo – não excluem, segundo Romagnoli, a uniformidade geral dos textos conservados (Ibidem, p. 45-46). A comparação sistemática dos testemunhos encontrados possibilitou definir um stemma codicum, evidenciando seu alinhamento em três famílias distintas: x (manuscritos A e S); y (códices P e y1, antígrafo de L e L1); z (códice M). Ao analisar algumas coincidências significativas de erros nos testemunhos, a estudiosa conclui que os três agrupamentos descendem de um arquétipo comum (w) (ROMAGNOLI, 2018, p. 50-51).
No que tange à estrutura do texto, uma das constatações feitas por Romagnoli – assim como Walter L. Wakefield, na década de 50 do século passado10 – é a proximidade entre os capítulos da Summa destinados à exposição do catecismo católico, construídos por séries temáticas de autoridades bíblicas, e as summae auctoritatum, um tipo de texto constituído por listas de citações de passagens do Novo Testamento, agrupadas em torno de um determinado dogma em discussão. A autora supõe que o polemista da Summa se utilizou, de modo personalizado, de uma categoria de materiais a que pertencem as “Sumas de Autoridades” (ROMAGNOLI, 2018, p. 54).
Concepite come prontuari di un catechismo finalizzato alla confutazione, le summae auctoritatum appartengono a una categoria di materiali sicuramente noti all’autore della Summa, che li piega al próprio schema, personalizzandone l’utilizzo. Si ipotizza così l’esistenza di uma tipologia di composizioni che, sostanzialmente simili alle summae auctoritatum, si siano poste all’origine di un articolato ventaglio di strumenti confutativi, oscillanti tra sintetici prontuari detati dall’urgenza del contradditorio – le summae auctoritatum – e composizioni più complesse, destinate, come nel caso della Summa, alle pause dell’approfondimento... (ROMAGNOLI, 2018, p. 54)
Contudo, Romagnoli conclui que, embora se possam encontrar elementos na Summa que a caracterizam como uma compilação (reemprego de diversos materiais contemporâneos católicos e heréticos), há, ao mesmo tempo, elementos estruturais originais. Exemplos disso são o conhecimento preciso do autor sobre o assunto abordado e a organização coerente que faz dos elementos que expõe, tornando a obra uma composição unitária e orgânica (Ibidem).
De um modo geral, a nova edição da Summa contra hereticos satisfaz as antigas e as novas demandas de uma revisão crítica do texto e lança luz, sobretudo a introdução, aos aspectos tradicionalmente problemáticos de autoria, período de composição e operacionalidade da obra. Além disso, a tese de uma proveniência dominicana do tratado impulsiona novas perspectivas de pesquisa, as quais poderão apresentar, ou não, indícios mais substanciais que vinculem, de modo mais cabal, a Summa do Pseudo Giacomo aos membros da Ordem de Domingos.
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira