Resumo: Tendo como base estudos transnacionais que apontam para a relevância do historicismo enquanto conceito-chave do pensamento histórico, neste artigo objetivamos revisitar a reapropriação do termo, realizada na obra tardia de Sérgio Buarque de Holanda. De forma geral, buscamos sustentar que a aproximação do autor com o historicismo representou o capítulo brasileiro de uma tendência à relativização e adaptação do conceito moderno de história à realidade multiétnica e multicultural da América Latina. Assim, desenvolvemos a hipótese de que, em especial no texto O atual e o inatual em L. von Ranke (1974), Sérgio Buarque se preocupava com o processo de crise da velha matriz europeia de entendimento da história na modernidade, atentando para percepções alternativas e descontínuas sobre a questão do sentido na história.
Palavras-chave: Sérgio Buarque de Holanda, Historicismo, Leopold von Ranke, Historiografia alemã, História dos conceitos.
Abstract: Based on transnational studies that point to the relevance of historicism as a key concept of historical thought, this article aims to revisit the reappropriation of the term carried out in the late work of Sérgio Buarque de Holanda. In this article we claim that the author’s approach to historicism represented the Brazilian chapter of a tendency of relativizing and readapting the modern concept of history to the multiethnic and multicultural reality of Latin America. In this regard, the text raises the hypothesis that, especially in O atual e o inatual em L. von Ranke (1974), Sérgio Buarque was concerned with the crisis of the old European matrix for the understanding of history. This concern helps to explain why he showed a strong interest in alternative and discontinuous perceptions on issues associated with the meaning of history.
Keywords: Sérgio Buarque de Holanda, Historicism, Leopold von Ranke, German historiography, Conceptual history.
ARTIGO
SENTIDO E HISTORICIDADE NOS TRÓPICOS: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E AS APORIAS DO HISTORICISMO1
MEANING AND HISTORICITY IN THE TROPICS: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA AND THE APORIAS OF HISTORICISM
Recepção: 07 Outubro 2022
Aprovação: 04 Abril 2023
O historicismo é um dos conceitos mais polêmicos do pensamento histórico contemporâneo. Apesar da polissemia gerada por seu caráter controverso, o termo é geralmente definido na historiografia do Atlântico Norte segundo dois sentidos gerais: (1) como um paradigma, associado a um programa que pelo menos desde o século XIX afirma o caráter da história como empreendimento científico; e (2) como a historicização fundamental de uma perspectiva histórica que, embora conduza a consequências relativistas, é um dos principais resultados do surgimento e da expansão da modernidade pelo globo (IGGERS, 1995, p. 137-138).
Originado no pensamento filosófico alemão do final do século XVIII e início do XIX, o conceito só adquiriu alcance global, contudo, na primeira metade do século XX, quando seus dois significados básicos se difundiram dos dois lados do Atlântico nas historiografias de línguas inglesa, italiana, francesa, espanhola e portuguesa.4 Por suas características globais, transnacionais e multidisciplinares, alguns intérpretes recentemente o definiram como um “conceito itinerante”, ou seja, como “uma palavra de advertência e um conceito depreciativo invocado por estudiosos das ciências humanas e sociais ao longo do século XX” e que tem frequentemente viajado “através de divisões disciplinares e através do tempo e do espaço” (PAUL; VELDHUIZEN, 2020, p. 1).5
De todo modo, apesar dessas buscas por um olhar transnacional, as abordagens da história desse conceito-chave do pensamento histórico ainda são em grande medida limitadas aos mundos europeu e anglo-americano, com um tipo de restrição analítica que tem impedido a maioria dos trabalhos sobre o tema, de entender como o historicismo foi recebido e reapropriado em contextos intelectuais diferentes do Norte Global. Da mesma forma, abordagens monolinguísticas ou centradas em um único caso nacional muitas vezes correm o risco de levar àquilo que Otto Gerhard Oexle denominou “desproblematização” do tema, isto é, a um tipo de interpretação que reduz o alcance do conceito a uma dimensão paroquial, ignorando como o chamado “problema do historicismo”6 está imbricado às aporias da modernidade e às contradições inerentes à ideia de um conhecimento científico moderno “livre de valores” (OEXLE, 2007, p. 24-25).
Muitas abordagens sobre a história do conceito negligenciaram o papel de discussões sobre o historicismo ocorridas fora do eixo Norte-Atlântico. O pouco interesse sobre a dimensão transnacional desse debate ocorre em detrimento de muitas pesquisas que apontam para as potencialidades pluralistas associadas ao tema.7 Sabe-se, por exemplo, que o historicismo desempenhou um papel central na configuração do cenário para a ascensão do pensamento histórico profissional na América Latina de meados do século XX.8
Com o declínio do Velho Mundo e a disseminação de um clima desenvolvimentista na região, romper com padrões universalistas de pensamento foi quase uma pré-condição para a germinação de uma primeira geração de historiadores e filósofos com formação universitária em países como México, Argentina, Uruguai e Brasil. Entre as décadas de 1930 e 1960, com correntes de pensamento como o existencialismo e a fenomenologia, o historicismo ajudou a abrir caminho para a emergência de um pensamento voltado às circunstâncias históricas dos países de língua espanhola e portuguesa do continente americano.
Esse ambiente intelectual criou condições para que pensadores como Leopoldo Zea (1912-2004) e Edmundo O’Gorman (1906-1995), por exemplo, refletissem sobre as condições de produção do conhecimento histórico no México. Assim, enquanto Zea ligava a relatividade do ponto de vista histórico com a “circunstância humana” (ZEA, 1945, p. 20), O’Gorman defendia o “relativismo da consciência historicista” como única forma de se escapar das armadilhas da historiografia positivista (2006 [1947], p. 102). Da mesma forma, no Uruguai, Arturo Ardao (1912-2003) saudava a ênfase do historicismo na “historicidade do espírito” como crucial para a “descoberta de si mesma como objeto filosófico” da América (ARDAO, 1946, p. 114); enquanto na Argentina, José Luis Romero (1909-1977) opunha formas ingênuas de realismo em detrimento de uma distinção de perspectiva histórica “entre o transitório e o eterno” (ROMERO, 2008 [1936], p. 43).
Já no Brasil sabe-se da proximidade de autores como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em relação à clássica tradição historicista de rejeição dos “padrões rígidos” de pensamento de autores como Toynbee e Spengler, em nome de uma definição da história como o “domínio do individual, do espontâneo e do concreto” (HOLANDA, 2011 [1951], p. 88). No entanto, para além de uma mera crítica ao cientificismo historiográfico, não seria errôneo entender essa aproximação de Sérgio Buarque com o historicismo como o capítulo brasileiro dessa tendência geral à relativização e adaptação do conceito moderno de história à realidade multiétnica e multicultural da América Latina.9 É precisamente essa a tese que buscaremos desenvolver no presente artigo.
No entanto, antes de avançarmos com o detalhamento de nossa hipótese, é preciso reconhecer que, apesar de serem bastante conhecidas as afinidades do intelectual paulista com a historiografia alemã, apenas no final de sua carreira o historiador lidou de forma direta com a temática do historicismo, tratando daquilo que de relevante e obsoleto haveria no legado iniciado por Leopold von Ranke no pensamento histórico alemão.
Publicado pela primeira vez no número de jubileu da Revista de História em 1974, o texto O atual e o inatual na obra de L. von Ranke chama a atenção, pois se constitui em um dos poucos momentos da obra de Sérgio Buarque em que o autor discute abertamente temas relacionados com o ofício do historiador e a escrita da história.10 Posteriormente integrado ao volume sobre Ranke da coleção Grandes Cientistas Sociais da editora Ática, esse é um dos seus últimos textos, escrito, coincidentemente, em um momento bastante autorreflexivo da sua obra.11
Apesar da ausência de estudos sistemáticos sobre esse texto, a relação da ideia de história de Sérgio Buarque de Holanda com o historicismo alemão é um tema abordado recorrentemente pelos analistas de sua obra. Seguindo uma tendência estabelecida por seus balanços de final de vida, sua discípula Maria Odila L. S. Dias, em texto escrito pouco após a morte de Sérgio Buarque no início dos anos 1980, enfatiza a profunda afinidade do autor com o historicismo alemão, principalmente em razão da sua preocupação com as pulsações individuais e com o vir a ser das formas (DIAS, 1985, p. 25-26). O trabalho de Dias frutificou um interessante debate sobre a influência alemã em sua obra mais conhecida, Raízes do Brasil.
Em continuidade com a análise de Dias, duas teses acadêmicas produzidas na década de 1990 têm como objeto de análise o método de composição de Raízes do Brasil, associando-o a Max Weber (MONTEIRO, 1999), em um dos casos, e a Wilhelm Dilthey (CARVALHO, 1997), no outro. Essas interpretações são muito mais complementares do que excludentes e se constituem em uma considerável contribuição à história intelectual do Brasil do século XX. De todo modo, apesar dessas contribuições, poucos foram os intérpretes que se dedicaram a compreender aquele que acreditamos ser o mais importante elo do historiador brasileiro com o tema do historicismo: a crítica ao sentido adquirido pela história na era moderna.
Mais do que revelador de uma mera afinidade com a tradição historicista de pensamento histórico, defendemos que o texto de Sérgio Buarque sobre Ranke é sintomático da preocupação do intelectual com aquilo que passou a enxergar na última parte de sua carreira como o processo de crise e de dissolução da velha matriz europeia de entendimento da história na modernidade. Por isso, acreditamos que o interesse do historiador pelo tema do historicismo pode ser interpretado tanto como uma busca por soluções para o problema em tela a partir do apelo a percepções alternativas – e descontínuas – sobre a questão do sentido na história quanto como uma chave de leitura, conscientemente construída, de todo o seu legado intelectual. Essa é uma hipótese verificável não só a partir de uma análise mais minuciosa do texto e dos seus vínculos com o debate internacional sobre o historicismo como também a partir da compreensão do contexto intelectual de escrita do trabalho nos anos 1970.
A fim de comprovarmos a nossa hipótese, partiremos, na seção subsequente, para uma análise de O atual e o inatual na obra de L. von Ranke, atentando especialmente para a leitura buarquiana do trabalho de Ranke à luz da questão do sentido histórico, bem como do lugar de sua interpretação no rol das leituras principais sobre o problema do historicismo na historiografia das últimas décadas. Em seguida, concluiremos com uma breve reflexão sobre a recepção que Sérgio Buarque realizava naquele momento de outra importante tendência historiográfica alemã que emergira nos anos 1970: a história dos conceitos.
Na mesma direção do que é possível interpretar em relação ao contato do historiador com o historicismo, sugerimos ser possível entender o entusiasmo de Sérgio Buarque com a Begriffsgeschichte como evidência de sua reivindicação por uma reflexão sobre a linguagem da historiografia e pela pluralização do pensamento histórico, sobretudo diante do iminente processo de redemocratização do Brasil e de outras sociedades latino-americanas naquelas décadas finais do século XX.
No início dos anos 1970, Sérgio Buarque havia acabado de publicar seu último grande livro – Do Império à República –, obra que também marcava o encerramento de sua participação como organizador da coleção História Geral da Civilização Brasileira. Nos anos consecutivos, o historiador publicou apenas um livro, Tentativas de mitologia, e realizou a revisão da segunda edição de Cobra de vidro, respectivamente em 1979 e 1978. Segundo depoimento registrado em uma entrevista do período, até pouco antes de falecer, Sérgio Buarque de Holanda trabalhou na ampliação de Do Império à República, mas tal trabalho nunca chegaria a ser concluído (GRAHAM, 1982, p. 8-9).
O texto sobre o historiador alemão Leopold von Ranke pode, portanto, ser enquadrado na última fase da produção intelectual de Sérgio Buarque, não só pela evidente proximidade de sua publicação com a data de seu falecimento. A publicação de Tentativas de mitologia e Cobra de vidro marca um momento em que o historiador pareceu preocupado em ajudar a moldar a imagem de si que deixaria para a posteridade. Tentativas de mitologia, por exemplo, parece ter sido elaborada segundo esse ânimo, a começar pela própria escolha do título.
Como ressaltou o autor, a seleção dos artigos procurou privilegiar polêmicas e debates (HOLANDA, 1979a, p. 33-35) travados com intelectuais brasileiros e estrangeiros, representantes de diversas correntes de interpretação do Brasil, como Oliveira Viana, Jaime Cortesão, Gilberto Freyre, Antonio Candido, Eduardo d’Oliveira França, entre outros. Apesar de majoritariamente publicados em periódicos do início da década de 1950, os ensaios constitutivos de Tentativas de mitologia são antecedidos por uma grande introdução, composta em tom de balanço de vida, na qual o autor busca estabelecer nexos entre suas posições intelectuais e seu percurso pessoal. Nesse texto, Sérgio Buarque analisa momentos centrais de sua trajetória, como sua experiência modernista, a viagem à Alemanha no início dos anos 1930, sua incursão pela crítica literária e sua formação como historiador profissional. Tentativas de mitologia soa, assim, como uma espécie de testamento destinado a servir de guia aos que pretendessem compreender sua obra e os debates intelectuais brasileiros de boa parte do século XX.
Nesse contexto, não surpreende que o autor tenha, no final de sua vida, escrito um artigo com o objetivo de refletir sobre o ofício ao qual se dedicou durante tantos anos. Menos surpreendente ainda é a escolha do tema historicismo e de seu mais famoso expoente, dado o reconhecido aporte de referências à historiografia alemã e, particularmente, aos historicistas em sua obra (DIAS, 1985, p. 9; NOVAIS, 2005, p. 391). Uma análise adequada do texto O atual e o inatual na obra de L. von Ranke não pode se esquivar do questionamento sobre o que há em sua tessitura que possa contribuir à compreensão da concepção de história de Sérgio Buarque de Holanda.
Como expresso no próprio título do trabalho, mais do que uma simples análise do autor e do contexto de produção de sua obra, em seu texto sobre Ranke, Sérgio Buarque deixa claro o seu intuito de analisar tanto o que ele considera atual quanto aqueles que seriam os elementos inatuais do trabalho do clássico historiador alemão. Por isso, são discutidos dois grandes pilares do ofício do historiador que podem ser atribuídos ao pensamento de Ranke e que, ao mesmo tempo, fundamentariam a sua epistemologia e a sua historiografia. O primeiro diz respeito à necessidade de reconstituir os eventos considerando a perspectiva de seus contemporâneos, sem qualquer julgamento valorativo. A segunda questão se relaciona com a necessidade analítica do historiador, como organizar esses eventos enquadrando-os em movimentos mais amplos. De um modo geral, poderia se afirmar em um primeiro momento que o texto de Sérgio Buarque tem como problema a contribuição de Ranke para o estabelecimento da história como ciência.
Dedicando muitas páginas a essa questão, o imperativo de imparcialidade contido na ideia atual de ciência coincidiria com um dos princípios centrais propagados pela historiografia rankeana, mesmo que muitas vertentes científicas atuais neguem sua atualidade. A imparcialidade ou “amoralismo” de Ranke não se resumiria apenas em verificar os fatos “como realmente aconteceram” (revivendo suas pulsações o mais próximo possível da perspectiva dos sujeitos históricos), sendo necessária também uma acurada capacidade crítica para os integrar em quadros mais amplos, estabelecendo nexos e dotando-os de sentido (HOLANDA, 1979b, p. 15).
É nesse momento de sua análise que Sérgio Buarque passa a explorar um ponto central para a sua interpretação do legado rankeano e de sua atualidade para a historiografia. Se o catedrático de Berlim constituiu a sua posição epistemológica em manifesta oposição à pretensão totalizante da filosofia hegeliana – desprezando o caráter sistêmico e teleológico da filosofia em sua época –, qual teria sido a base para a construção de sua visão sobre a história e sobre o estudo do passado?
Segundo o historiador brasileiro, a chave para compreender as características da concepção histórica de Ranke residiria na maneira pela qual o intelectual inovou a articulação da noção de “nexo de sentido” – i.e., uma mediação conceitual baseada na avaliação de regularidades existentes entre agrupamentos de eventos – em sua escrita histórica. Na sua primeira obra, História dos povos romanos e germânicos de 1494 a 1514 (1824), por exemplo, Ranke defendia a ideia de uma grande conexão de sentido que teria marcado toda a história moderna: “Protestantes e católicos são galhos de uma só árvore, a da cristandade ocidental” que, depois das lutas religiosas manifesta-se sob forma de “afeições, preceitos, instituições, códigos de compostura individual e coletiva” (HOLANDA, 1979b, p. 25).
Apesar da propagada imparcialidade, Sérgio Buarque nota que as posições do historiador alemão seriam impregnadas por seus valores e pelos desígnios de seu tempo. A história de Ranke seria, portanto, eminentemente eurocêntrica – incluindo, quando muito, as colônias do além-mar –, e mesmo assim sua Europa excluiria a Polônia, a Hungria e a Rússia. Fora desses limites, restaria apenas o caos (HOLANDA, 1979b, p. 26-30).
Não se trataria, desse modo, de uma questão de estilo ou de ênfase de perspectiva. O foco de Ranke nos povos romanos e germânicos constituiria o fundamento da concepção de história do autor ou, nas palavras de Sérgio Buarque, do seu nexo de sentido: “Esse mundo, porém, deixa de ser informe ou multiforme apenas na medida em que se organize em torno de um nexo de sentido, como o que oferece, em grau eminente, a história comum do ocidente europeu” (HOLANDA, 1979b, p. 26). Mais do que uma especificidade rankeana ou alemã, esse tipo conservador de concepção histórica esteve presente de forma ainda mais intensa em boa parte da historiografia e do pensamento filosófico europeu dos séculos XIX e XX. Característica de uma forma de urdir e de pautar o passado humano em apelo à força e a sólidos valores morais, parte desse nexo de sentido eurocêntrico e nacionalista-burguês passaria a ter a sua validade contestada, sobretudo, após as guerras mundiais e as catástrofes humanitárias da primeira metade do século XX.
Sérgio Buarque destaca que uma das principais vozes responsáveis por descortinar os limites dessa forma tradicional de se conceber o nexo de sentido da história seria o filósofo judeu-alemão Karl Löwith, que, no seu Meaning in History (O sentido na História) (1948), afirmava que a história pretensamente científica não faria mais do que secularizar o princípio judaico-cristão da providência, transferindo o télos da história a entidades como povos ou Estados (HOLANDA, 1979b, p. 42-45).
Para Löwith, a história seria, no fundo, organizada segundo o princípio da providência, modificado em relação à historiografia do século XVIII. Com a aspiração de uma história científica no século XIX, esse princípio teria se secularizado, afastando-se de sua conotação judaico-cristã original, mas permanecendo em sua forma, o que significaria afirmar que os fatos narrados seriam subordinados teleologicamente a um fim: “E não é por acaso, observa Löwith, que, em nossa linguagem ordinária, palavras tais como ‘sentido’ e ‘fim’, ‘sentido’ e ‘destino’ são intercambiáveis” (HOLANDA, 1979b, p. 42).
Tendo vivido as consequências do nacional-socialismo na Europa, o que estava implícito no estudo de Löwith era a possibilidade de superação dessa limitada dinâmica teleológica de atribuição de sentido à história nos tempos do pós-guerra. Por isso, em grande medida, o texto de Sérgio Buarque acompanhava a argumentação de Löwith com o intuito de problematizar a questão do sentido e, talvez de forma ainda mais aguda, da descontinuidade na história. Esse era, precisamente, o elemento que suscitava parte considerável do seu interesse pela obra de Ranke e por aquele que ele acreditava representar tanto a origem das mais severas críticas de Löwith como a fonte de parte das soluções para a questão do sentido na história: o historicismo alemão.
Mesmo que limitada pelo conservador nexo de sentido da política europeia do século XIX, a historiografia rankeana trouxe algo de atual para se pensar uma ruptura em relação àquele antigo senso de continuidade existente no pensamento histórico ocidental. Por isso, a ênfase em afirmar o seguinte:
No caso de Ranke dá-se exatamente o oposto. Uma das constantes críticas que lhe foram feitas ainda em vida dirige-se contra sua recusa deliberada a querer dar um sentido à História. Não será por acaso que, entre os autores citados por Löwith para ilustrar sua tese da secularização da escatologia judaico-cristã, ou seja, do caráter teleológico do pensamento histórico depois de Vico e Voltaire, nem uma vez aparece seu nome
(HOLANDA, 1979b, p. 46-47).Ao longo de boa parte de sua obra, e principalmente nas palestras proferidas em Berchtesgaden (1854), Ranke expunha sua desconfiança em relação àquela que seria uma vontade geral que dirigiria o desenvolvimento do gênero humano de uma a outra etapa ou em uma espécie de impulso espiritual que levaria a humanidade forçosamente a um fim determinado. Rompendo não só com a teleologia hegeliana como também com a organologia de Herder, Ranke expressava sua crítica à noção de continuidade histórica através da ideia de que “cada época é imediata a Deus”. Mais do que impor sua visão de mundo sobre o significado da história, essa máxima explicitava a intenção do historiador em dar voz à “vida individual” representada pela ação dos indivíduos no passado: “O valor de cada época, acrescenta, não se encontra de modo algum naquilo que dela possa ter resultado. Descansa, sim, ‘em sua mesma existência, naquilo que ela efetivamente for’” (HOLANDA, 1979b, p. 54). Desse modo, contemplar e compreender seriam os objetivos maiores do historiador, devendo esse buscar uma espécie de perspectiva sub specie aeterni – claramente derivada do luteranismo de Ranke –, capaz de revelar o passado “como ele realmente aconteceu” (wie es eigentlich gewesen) e não simplesmente “como ele se tornou” (wie es geworden).
Havia em Ranke, portanto, uma clara crítica “à religião do progresso”, assim como uma espécie de renúncia à demanda por sentido (e fim), tão cara à historiografia dos séculos XIX e XX. Esse era o ponto que justificava boa parte da atualidade do pensamento do historiador alemão, podendo a sua concepção histórica ser entendida como uma espécie de precursora da crítica realizada décadas mais tarde por Löwith. Apesar de ser um exagero afirmar que Ranke previu as tão atuais contradições inerentes à ideia de sentido histórico, não seria um equívoco associar a sua obra a uma espécie de gênese da percepção do problema da continuidade e da descontinuidade no pensamento histórico ocidental. Por esse motivo, Sérgio Buarque dedica muitas páginas de seu texto não apenas à compreensão do legado de Ranke como também a um melhor entendimento das especificidades daquela “mentalidade” derivada dessa historicização rankeana da ideia de sentido histórico, isto é, o historicismo alemão.
Historicizar o sentido outrora atribuído à história universal significava, em grande medida, deparar-se com as possíveis consequências perniciosas dessa perspectiva. Para Sérgio Buarque, essa era uma atitude intelectual que havia assumido contornos bastante específicos na realidade alemã, podendo a sua atualidade ser resgatada a partir de um olhar sobre as contradições e sobre a herança intelectual do historicismo alemão. É exatamente sobre essa interpretação do autor brasileiro para o tema do historicismo que trataremos a seguir.
É principalmente com o intuito de pensar aquilo que a obra de Ranke possui de atual que Sérgio Buarque inicia uma ampla discussão a respeito do significado do historicismo. Antes de aprofundar-se nos debates sobre o tema, contudo, o historiador preocupa-se em definir esse tão polissêmico conceito associado à historiografia rankeana. Para ele o historicismo não seria um método, tampouco uma escola de pensamento, mas sim uma “mentalidade”, isto é, um modo de ver e ser bastante característico do universo intelectual alemão dos séculos XIX e XX:
Indicando antes uma mentalidade do que um método, e tendo aparecido na jurisprudência, na teologia, na filosofia, na filologia, antes de se manifestar na historiografia, sempre tivera ele na Alemanha a sua grande fortaleza, e mesmo quando fertilizou o pensamento na Europa Ocidental, guardou muito da marca de origem. Se é certo que em sua oposição ao jusnaturalismo do século XVIII pareceu filiar-se por um lado ao pensamento contra-revolucionário, não é menos verdade que também teria justificado e fundado em grande parte a auto-afirmação sediciosa do princípio das nacionalidades entre povos oprimidos, que parece já despontar em Herder
(HOLANDA, 1979b, p. 8).Embora hesite em oferecer uma posição demasiado taxativa, Sérgio Buarque deixa transparecer a ideia de que, apesar de ter equivalentes em outras nações, o historicismo seria um fenômeno eminentemente alemão. Isso seria perceptível não tanto devido ao seu sucesso enquanto forma de conceber a história e o seu lugar no rol das ciências modernas, mas principalmente pela maneira como o cenário intelectual alemão passou a perceber a face dupla inerente àquela mentalidade:
Ao reagir contra o naturalismo a-histórico, onde geralmente se presumiam, em suas diferentes manifestações, uma estabilidade obrigatória da natureza humana e a necessidade de certos postulados eternos e universalmente válidos, a nova corrente de pensamento levava a uma reflexão individualizante e historizante, isto é, tendente a mover-se de acordo com o curso imprevisível da história
(HOLANDA, 1979b, p. 8-9).Se, à época de Ranke, o relativismo implícito nessa premissa parecia não encontrar fortes objeções, na primeira metade do século XX, e em especial nos anos do pós-guerra, o aspecto negativo do historicismo encontraria ressonância cada vez maior: “O clima trágico dos anos do 3º Reich, da guerra, do após-guerra não se compadecia com o otimismo sossegado que o pensamento rankiano tendia a infundir” (HOLANDA, 1979b, p. 40). Só reconhecendo ideias históricas, “no tempo”, rejeitando como abstratas ideias puras e permanentes, mais do que em qualquer outra realidade nacional, seria na Alemanha que inúmeros intelectuais passariam a atentar pela primeira vez para as consequências dessa forma historicista de entender a história e o seu significado para o presente:
A consciência desses limites, agravada ainda mais pela ação devastadora do nazismo, e o espírito de emulação provocado por aqueles exemplos estrangeiros fizeram com que se generalizasse na pátria de Ranke uma tendência para revisão das posições antigas
(HOLANDA, 1979b, p. 58).Por isso, a análise de Sérgio Buarque parece girar em torno de uma preocupação principal: a compreensão desse momento de autorreflexão vivido pela mentalidade historicista com as suas consequências para a elaboração de uma crítica à noção de sentido (e de continuidade) histórico na Alemanha. A partir desse diagnóstico, o historiador acreditava ser capaz de revelar aquilo de atual (e de inatual) que o historicismo poderia ainda apresentar para as reflexões contemporâneas a respeito da história. Embora fosse um exagero afirmar que essa mentalidade teria levado invariavelmente à relativização de qualquer significado ou valor objetivo na história, não seria possível ignorar as posições radicais de alguns intelectuais que levaram o historicismo às suas últimas consequências.
Exemplos de pensadores comprometidos com essa forma radical de compreender a história seriam encontrados na filosofia da existência de Martin Heidegger, na negação dos valores éticos universais defendida por Carl Schmitt, assim como no “niilismo heroico” presente na literatura de Ernst Jünger. Tal qual expresso pela noção heideggeriana de historicidade, através desses intelectuais, o historicismo parecia ter atingido a conclusão lógica da “anarquia de valores” típica de sua propensão ao relativismo.12 Não é de se estranhar, portanto, que a mentalidade historicista tenha sido associada, muitas vezes, à atmosfera intelectual que permitiu a ascensão da ideologia nacional-socialista na Alemanha.13
Apenas dissolvendo antigos valores e concepções éticas, poderiam os apoiadores do hitlerismo sustentar a sua defesa – e não é à toa que Heidegger, Schmitt e Jünger o fizeram em distintos momentos – do totalitarismo. Mas se essa vertente extrema realmente existiu a ponto de influenciar negativamente o ambiente político alemão, não seria justo resumir o legado do historicismo a essa conotação antiquada. Sérgio Buarque aponta que, apesar dessa face radical, houve também aqueles que se preocuparam em extrair do historicismo o antídoto para a crise civilizacional vivida àqueles anos pela Alemanha e pelo mundo ocidental.
Entre os nomes que teriam se esforçado no intuito de superar de forma positiva as aporias do historicismo, destacar-se-ia especialmente o nome de Friedrich Meinecke. Historiador formado no seio da tradição rankeana, Meinecke era uma das principais referências oferecidas por Sérgio Buarque com o intuito de explanar os contornos daquele exame de consciência vivido pelo historicismo na primeira metade do século XX e nos anos do pós-1945. Além de ser evidente a influência exercida pelo historiador alemão na definição que ele trazia do conceito,14 Sérgio Buarque destacava que, em meio à catástrofe do nazismo, Meinecke nunca se conformaria com o quietismo rankeano, buscando enxertar na mentalidade historicista uma espécie de autocrítica construtiva e consciente de suas contradições: “com a ordem nova que instaurara o 3º Reich, ele, o historiador do historismo, jamais se conformará, e o preceito rankiano do ‘como efetivamente aconteceu’ vai mudar-se numa pergunta: ‘como pôde acontecer?’” (HOLANDA, 1979b, p. 37).
Apesar de ter considerado as posições de Jacob Burckhardt no final de sua carreira, Meinecke jamais sucumbiria por completo ao pessimismo resignado do historiador suíço. Salientava Sérgio Buarque que, desde o pós-1918 Meinecke havia desenvolvido a sua tese a respeito do significado da razão de Estado, atentando não só para a face maligna implícita na prática do poder político, como também para o equívoco em se identificar o culto ao poder do Estado como algo exclusivo do ethos político alemão. Já no período entreguerras, Meinecke teria se voltado para uma profunda revisão de sua visão de mundo e da situação política de seu país. Tornando-se republicano e democrata “por razão”, o historiador iniciaria uma reflexão sobre a tradição histórica alemã, buscando superar aquela que seria a “crise do historicismo” revelada por Karl Heussi nos anos de Weimar:
Entre as revisões que já lhe pareciam inevitáveis, não hesita mesmo em situar a do historismo clássico. Punha agora em dúvida, especialmente a tese da bondade do relativismo histórico e da neutralidade ética, inseparáveis da “escola histórica alemã”, de que tinha sido até pouco antes um intransigente campeão
(HOLANDA, 1979b, p. 39-40).Nos anos pós-1945, Meinecke continuaria a problematizar a relação entre o relativo e o absoluto na história, atentando em especial para as consequências do desmoronamento da antiga crença no Estado Nacional fundado na força. O historiador enfatizava que a necessidade teórica e prática de aceitação de um princípio absoluto e perene – tal qual expresso em sua definição do historicismo – seria acompanhada pela urgência da suspensão-abolição de valores antigos em nome de uma nova forma de existência dos povos ocidentais. Em outras palavras, Sérgio Buarque identificava em Meinecke não só uma ruptura com o antigo otimismo da historiografia rankeana, mas também a evidência de um processo de autorreflexão surgido na mentalidade historicista diante dos traumas políticos vividos pela Alemanha no século XX.15
Experimentando as consequências dessa fratura elementar, Meinecke incorporava parte dos insights sobre o problema da descontinuidade histórica tão em voga na historiografia internacional dos anos pós-Segunda Guerra. Mesmo aquela que foi a principal reação a essas aporias – isto é, a história estrutural – possuía, na Alemanha e em outros países, elos claros com a antiga mentalidade historicista. A título de exemplo, Sérgio Buarque aponta que, se, em sua tentativa de diferenciar entre a longa, a média e a curta duração, Fernand Braudel recorreu à analogia das águas do oceano, Otto Hintze, pensador diretamente associado ao historicismo, havia décadas antes utilizado metáforas geológicas com o intuito de pensar os ritmos e as dinâmicas do processo histórico.16 Portanto, se a história estrutural defendida por esses dois intelectuais pretendia superar a velha contradição entre o consciente e o inconsciente, o individual e o coletivo ou entre o contínuo e o descontínuo na história, essa era uma intenção diretamente ligada a antigos motes do historicismo (HOLANDA, 1979b, p. 59-60).
Assim, é possível inferir que, para o autor brasileiro, essa ode à pluralidade de ritmos e cadências da história seria a mais convincente das respostas aos abusos da atribuição apriorística de sentido ao processo histórico. Mas, uma vez consciente dessa necessidade epistemológica elementar, como poderiam historiadores e historiadoras incorporar a diversidade dos ritmos históricos ao próprio fazer historiográfico? Ciente da complexidade de tal empreitada, mas também do quanto ela fugia à finalidade introdutória de seu texto, Sérgio Buarque se recusava a realizar uma ampla resenha dos últimos desenvolvimentos da historiografia que pudessem exemplificar esse necessário movimento crítico e autorreflexivo no pensamento histórico de sua época. De todo modo, e embora ele não o fizesse de maneira exaustiva, em suas páginas finais, o historiador apresentou uma curta exceção ao apreciar uma novidade historiográfica que, em suas palavras, poderia “remoçar” sem trair “o espírito da ‘escola’ histórica alemã”, isto é, a história dos conceitos. As nossas considerações finais tratam do pioneirismo de Sérgio Buarque na recepção da história conceitual no Brasil, focando especialmente em sua interpretação das potencialidades da Begriffsgeschichte em latitudes latino-americanas.
Elemento relativamente novo em interpretações sobre a concepção de história de Sérgio Buarque, enquanto teórico da história, o autor possuiu um interesse especial na historicidade dos conceitos mobilizados pela historiografia profissional.
Sobre esse tema, Raphael Guilherme de Carvalho nota, por exemplo, que, ao menos desde o final dos anos 1960, o historiador buscou enfatizar a historicidade do próprio conhecimento histórico em contraposição a um tipo ingênuo de defesa da cientificidade da disciplina. Essa preocupação com o caráter dinâmico do saber histórico se encontrava em consonância, naquele momento, com a resistência por parte do autor em relação à leitura que alguns de seus colegas historiadores realizavam do estruturalismo e da concepção braudeliana de longue durée (CARVALHO, 2018, p. 309-310). Contra as armadilhas de um imobilismo a-histórico, ele enfatizava que mesmo os vocábulos possuem uma historicidade, assim como “cada época da história tem as suas peculiaridades distintas, que não se deixam impunemente transferir às outras” (HOLANDA, 2018 [1967-1969], p. 335).
Já no início da década de 1970, o intelectual abordou o mesmo tópico, tendo desta vez um adversário direto: Carlos Guilherme Mota, historiador a quem acusava do uso excessivo de uma linguagem pretensamente científica para o saber histórico. Denunciando esse fetiche por um “vocábulo puro” (“perfeitamente unívoco, petrificado, e válido para todo o sempre”), Sérgio Buarque afirmava que se, por um lado, a superação do tradicionalismo factualista havia representado um ganho para a historiografia, por outro, a ênfase nessa concepção superficial de linguagem poderia levar a uma “terminologia simplificadora a um tanto sestrosa” e incapaz de “transmitir a complexidade do real” (HOLANDA, 2011b [1973], p. 433). Dito de outra forma, o apego a um olhar simplista sobre a linguagem historiográfica corria o risco de remeter os historiadores à mesma estreiteza epistemológica anteriormente associada à histoire évènementielle. Sendo assim, não é surpreendente que nessa etapa de sua carreira Sérgio Buarque estivesse interessado em esclarecer, de forma complexa e não dogmática, o lugar da linguagem no ofício historiográfico, conferindo ênfase especial à necessidade de se compreender tanto a temporalidade dos vocábulos mobilizados pelos historiadores quanto a de termos e expressões encontrados em suas fontes.
É esse o contexto do seu primeiro contato com a história dos conceitos, ocorrido muito provavelmente quando o historiador se encontrava em viagem à Alemanha no ano de 1973 (CARVALHO, 2018, p. 336). Como dito, nas páginas finais do texto sobre Ranke, o autor não escondia seu entusiasmo com os dois primeiros volumes do Léxico dos Conceitos Fundamentais da História (Geschichtliche Grundbegriffe), destacando a originalidade do projeto que, muito além de um mero dicionário filológico, pretendia “mostrar a transformação das noções, de maneira que a experiência nelas condensada permita esclarecer os aspectos teóricos” (HOLANDA, 1979b, p. 61). De igual maneira, sem universalizar suas posições ou se render a paroquialismos a-históricos sobre a experiência europeia, os autores do léxico preferiam enfatizar o caráter instável da “ruptura revolucionária” ocorrida na passagem da era moderna para a contemporânea, que teria correspondido a “uma revolução no mundo das noções e de seus significados” (HOLANDA, 1979b, p. 61).
Essa rejeição de “definições abstratas e exteriores à História” era verificável na importante diferenciação que a Begriffsgeschichte estabelecia entre palavras e conceitos. Enquanto a palavra conteria possibilidades concretas de significação, o conceito estaria sempre em disputa, devendo ser entendido de forma não estática, processual e plurívoca. Em meio a outras possibilidades interpretativas, era o caráter cético, imanente e sempre aberto à historicização da história dos conceitos o que Sérgio Buarque destacava como mais promissor nessa tendência historiográfica vista por ele como continuadora do legado iniciado pelo historicismo de Ranke no século XIX.
Conforme destacado nas páginas anteriores, não é possível dissociar as boas-vindas oferecidas por Sérgio Buarque à Begriffsgeschichte de sua crítica à concepção teleológica de sentido histórico, característica das modernas filosofias da história. Essa rejeição de um telos centrado na experiência histórica europeia não poderia implicar a importação passiva de concepções acríticas ou a incorporação de um cientificismo historiográfico incompatível com a complexidade do caso brasileiro. Nesse sentido, a história conceitual parecia oferecer respostas a algumas questões que Sérgio Buarque via como urgentes para a historiografia do país naquele momento, como, por exemplo, a importância de os historiadores repensarem a forma e o alcance de sua linguagem ou, ainda, a necessidade de se refletir sobre a política,17 a partir de uma profunda revisão da experiência brasileira com a modernidade e, sobretudo, com a democracia.18
Por fim, é possível concluir que essa opção pela história conceitual como forma de arrematar os argumentos sustentados em seu estudo sobre Ranke representa a primeira etapa de um importante processo que, embora preconizado por Sérgio Buarque, segue em curso na historiografia latino-americana até os dias atuais, qual seja, a leitura e a adaptação inventiva do legado teórico de Otto Brunner, Werner Conze e Reinhart Koselleck.19 Se, como visto, o autor associava a atualidade do historicismo à sua capacidade de conferir ênfase ao descontínuo na história, para Sérgio Buarque a Begriffsgeschichte radicalizava esse salto à alteridade na historiografia, revisando a experiência moderna sem perder de vista um horizonte de expectativa diferente do olhar europeu sobre o contínuo e o descontínuo no transcurso do processo histórico. Portanto, é justo reconhecer que, apesar de não ter tido tempo de testemunhar os inúmeros avanços trazidos por essa tendência historiográfica no espaço ibero-americano,20 o autor de Raízes do Brasil foi um dos primeiros a identificar o potencial de estímulo ao pluralismo, que hoje é marca registrada da prática da história conceitual nos mais variados idiomas e tradições historiográficas em boa parte da academia internacional.21
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