Resumo: O artigo traça um panorama da produção recente voltada para a historicização dos sons e das escutas, presente nos textos que compõem o dossiê História e Cultura Sonora. De modo geral, é possível indicar que três grandes correntes predominam nesses trabalhos: os Sound Studies anglófonos, a História das Sensibilidades de tradição francesa e os estudos latino-americanos que, embora inspirados nos dois anteriores, procuram não se limitar às discussões clássicas para refletir sobre as especificidades da produção sonora e dos modos de escuta de suas culturas. O texto também avalia o impacto da fonografia e da digitalização dos acervos sonoros na produção historiográfica no campo da Cultura Sonora.
Palavras-chave: Cultura sonora, história das sensibilidades, estudos do som, fonografia, história cultural.
Abstract: The article provides an overview of recent production focused on the historicization of sounds and listening, present in the texts that compose the dossier História e Cultura Sonora. In general, it is possible to indicate that three major currents prevail in these works: the anglophone Sound Studies, the History of Sensibilities of French tradition and Latin American studies, which, although inspired by the previous two, strive not to confine themselves to classical discussions but to reflect on the specificities of sound production and modes of listening within their cultures. The text also evaluates the impact of phonography and the digitization of sound collections on historiographical production in the field of Sound Culture.
Keywords: Sound culture, history of sensibilities, sound studies, phonography, cultural history.
DOSSIÊ HISTÓRIA E CULTURAS SONORAS - ARTIGO
HISTÓRIA E CULTURA SONORA: A HISTORICIZAÇÃO DAS ESCUTAS E DOS SONS1
HISTORY AND SOUND CULTURE: THE HISTORICIZATION OF LISTENING AND SOUNDS
Recepção: 03 Julho 2023
Aprovação: 18 Agosto 2023
As duas últimas décadas foram marcadas pela aceleração e multiplicação do número de investigações no campo das Humanidades, e na História em particular, relacionadas à historicidade dos sons e das escutas. De modo geral, é possível identificar pelo menos dois pressupostos que têm orientado essas pesquisas. Primeiro, a ideia de que os sons cumprem função estruturante nas sociedades humanas, servindo a finalidades não apenas comunicativas ou estéticas – talvez as mais evidentes –, mas também econômicas, sociais, políticas e existenciais. Segundo, esses trabalhos reconhecem ainda que, se o ambiente sonoro se transforma com o passar do tempo, igualmente se modificam os modos como indivíduos e grupos ouvem, produzem sons e os tornam audíveis. É possível, então, sugerir que os regimes de escuta6 não variam somente no tempo ou de uma cultura para outra, mas igualmente são marcados por clivagens no interior das comunidades ou sociedades, indicando distinções sociais e ordenando o que podemos chamar de “a partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2005 [2000]). A expressão, de conotação eminentemente política,7 refere-se não apenas à divisão e à distribuição dos sentidos e das experiências estéticas, mas também a seu compartilhamento por toda uma comunidade. A contemporaneidade pode nos ajudar a situar melhor o problema. Num mundo marcado por uma espécie de sonorreia,8 que multiplica e bombardeia em escala inédita a produção sonora, e pela existência de sons cada vez mais manipuláveis (dispositivos portáteis que sonorizam nossos atos e tarefas cotidianas, mensagens de áudio que se aceleram, deepfakes que emulam vozes e até discursos jamais proferidos), que escutas ainda podemos identificar e compartilhar? E em que medida esse (não) compartilhamento revela a historicidade dos sons e de nossos singulares modos de ouvir?
O objetivo principal do presente dossiê foi exatamente o de procurar sondar e reunir pesquisas atuais, provenientes de diferentes campos do conhecimento que poderiam contribuir para o estudo das relações entre a História e aquilo que aqui denominamos Cultura Sonora. Tal noção não é de modo algum prescritiva e deve ser compreendida como o conjunto de práticas, percepções e concepções associadas às sonoridades e às escutas de uma dada comunidade ou sociedade em determinadas circunstâncias históricas. Trata-se, portanto, de destacar as dimensões sonoras da vida humana, de sua reprodução e, consequentemente, de suas dinâmicas históricas. Esse território inclui a produção e a percepção dos sons ambientes, assim como os imaginários sonoros, as epistemologias do som, as práticas auditivas e suas tecnologias, as escutas impostas ou compartilhadas, a (in)audibilidade de certas culturas e/ou grupos sociais, a organização musical dos sons e as formas como eles são percebidos e difundidos. A comparação com o campo de estudo nomeado Cultura Visual é incontornável. Mas enquanto este já acumulou reflexões teóricas e análises empíricas que permitiram sua estruturação e seu reconhecimento como um objeto do saber histórico,9 a Cultura Sonora ainda tateia o terreno, especialmente no Brasil.10 Afinal, investigar os sons do passado é uma tarefa um pouco mais complicada, em razão da condição essencialmente evanescente e performática do som. Alguns marcos, contudo, sinalizam o desenvolvimento desse campo.
Desde pelo menos a década de 1980, o interesse pelos sons orientou pesquisadores que procuravam ultrapassar os limites estritos da acústica e da musicologia, áreas vinculadas, respectivamente, à materialidade dos sons e a suas apropriações em forma de música. Preocupados com os processos culturais de produção, circulação e recepção de sons fortemente presentes em nosso cotidiano, eles deram passos importantes no sentido da compreensão de uma Cultura Sonora, como fez naquela década o antropólogo estadunidense Steven Feld (1982 e 2015). Unindo as palavras “acústica” e “epistemologia”, ele cunhou o termo acustemologia (acoustemology, em inglês), a fim de “compreender como a produção e a escuta do som (que inclui a música) pode ser um instrumento para a produção de conhecimento, de relações entre humanos e não humanos, e desses com o ambiente mais amplo” (BRITO, 2019). Mas foram os avanços tecnológicos da era digital os principais responsáveis pela virada acústica que marcou as Ciências Humanas.
No último quartel do século XIX, ao permitir o registro audível11 de sons sobre suportes materiais, o advento da fonografia esteve na origem de novas práticas, tais como a escuta musical privada e individual, a patrimonialização do som por meio da preservação das “vozes dos mortos”, o desenvolvimento de novas técnicas auditivas12, entre outras. Por sua vez, a desmaterialização desses mesmos registros, impulsionada pelas tecnologias de digitalização disseminadas a partir dos anos 1990, promoveu novas atitudes investigativas. Isso porque a possibilidade de resgatar, limpar, decompor, modificar e compartilhar, entre outras ações, uma infinidade de arquivos sonoros ampliou enormemente a reflexão sobre o som nas sociedades modernas. Na virada para os anos 2000, o interesse crescente pelos aspectos históricos e político-sociais da reprodução sonora deu origem ao campo denominado Estudos do Som, do inglês Sound Studies (IAZZETTA, 2015), que teve em Jonathan Sterne (2003) um dos seus primeiros sistematizadores. Tendo como um de seus objetivos “imaginar o som como um problema que vai além do contexto empírico imediato”, conectando sua história com “os projetos mais amplos das Ciências Humanas” (STERNE, 2020 [2003], p. 6), os Estudos do Som impactaram diferentes disciplinas, da Sociologia à Musicologia. Especialmente para a Historiografia, eles proporcionaram, entre outros aspectos, o surgimento de novos objetos e abordagens.13
Inicialmente, contudo, os pesquisadores desse campo se interessaram pelo universo de escuta de um grupo relativamente elitista e restrito. Inaugurando uma nova perspectiva, Ana Maria Ochoa avançou significativamente ao se valer de certa noção de “auralidade” (no original em inglês aurality) para compreender a construção de ideias sobre a natureza e a cultura sonora no contexto latino-americano. Com base em uma investigação histórico-documental, ela refletiu, no campo da Antropologia Histórica, sobre as medições entre conhecimento, escuta e escrita no mundo colonial colombiano do século XIX (OCHOA GAUTIER, 2014).14
No campo específico da História, a crescente ampliação e a facilitação do acesso a acervos sonoros, por meio da digitalização e disponibilização online de registros dificilmente consultáveis em seus suportes analógicos originais, como cilindros, discos de 78 RPM, LPs, fitas magnéticas, entre outros, abriu um novo e promissor universo de pesquisas. É certo que uma história da fonografia já existia antes disso,15 mas ela estava motivada pela história dos músicos e se interessava mais pelos objetos fonográficos, sua produção e comercialização, do que pelo som em si mesmo. Como o acesso à escuta desses objetos era restrito, essa historiografia não formulava perguntas sobre seu impacto nas formas de ouvir e de se relacionar com o mundo auditivo. Além de facilitar a manipulação, a edição e a comparação de numerosas e variadas coleções de fonogramas, os acervos sonoros digitais transformaram as formas de difusão e de preservação dessas coleções, interferindo, portanto, na construção das memórias sonoras e musicais e, consequentemente, nas narrativas sobre os sons do passado (MACHADO, 2015).
Contudo, ao encanto inicial provocado pela ampliação e facilitação do acesso a fontes sonoras se contrapõem ao menos dois problemas historiográficos fundamentais. Primeiro, o som gravado não pode ser usado como fonte senão dos períodos posteriores à década de 1870. Se o fonograma é um objeto privilegiado para a compreensão da chamada “modernidade sonora”, inaugurada bem antes do advento do fonógrafo,16 ele tem pouca utilidade para a compreensão dos sons e das escutas de sociedades, digamos, pré-modernas, bem como para as práticas sonoras pouco afeitas ao registro fonográfico, como sons cotidianos, da natureza,17 ruídos, falas, gritos etc. (MORAES, 2018). Mesmo assim, como veremos a seguir, esse fato não impediu que nos últimos anos a historiografia desenvolvesse modos e ferramentas conceituais e epistemológicas para investigar sons não registrados mecanicamente ou aqueles distantes da notação escrita na forma de partitura.18
O segundo problema historiográfico relacionado à historicidade do som gravado reside no fato de que, embora possamos experimentar um passado audível por meio da fonografia, “não podemos fazer mais do que presumir a existência de um passado auditivo” (STERNE, 2020 [2003], p. 25). Ou seja, os discos fazem chegar até nós sons registrados no passado, mas pouco informam sobre o modo como esses sons eram percebidos, significados, hierarquizados e interpretados. Eles não permitem saber como as pessoas os ouviam. Tal limitação remete, necessariamente, às discussões em torno da chamada história sensorial ou das sensibilidades, que, décadas antes do advento dos Estudos do Som, já se preocupava de diversas maneiras com a historicidade dos sons e da escuta.
Em 1990, no artigo intitulado História e antropologia sensorial, Alain Corbin afirmou que uma história da sensibilidade implicaria “detectar a configuração do que é experimentado e do que não pode sê-lo no seio de uma cultura em dado momento histórico” (CORBIN, 1990, p. 14). Entre tais experiências, figuram certamente a audição e a produção de sons – tema sobre o qual o historiador francês começava então a se debruçar e que seria o cerne de uma obra inaugural lançada poucos anos depois (CORBIN, 1994).19 O artigo mapeou, ainda, as armadilhas e dificuldades enfrentadas pelo historiador interessado em se aventurar pelo universo dos sentidos. A primeira delas, como sempre, seria a tentação positivista – e até certo ponto ingênua – de querer reconstituir a evolução do ambiente sensorial. No caso do universo sonoro, tal tentação estaria na origem, por exemplo, da produção de inventários de sons passíveis de serem escutados em determinada época ou lugar. Por mais útil e sedutor que seja, proporcionando certa imersão imaginativa no universo auditivo de outras épocas, esse empreendimento (realizado, por exemplo, no relato histórico proposto por Murray Schaffer (2003 [1997]) em Afinação do mundo) acabaria por negar a historicidade das modalidades de escuta, do significado dos sons, dos limites culturais e temporais entre o tolerável e o intolerável. Como se o que separasse o ambiente sonoro contemporâneo daqueles do passado fosse apenas a qualidade e a quantidade de sons, e não o equilíbrio dos sentidos – verdadeiro objeto, segundo Corbin, do historiador do sensível.
O segundo embaraço seria confundir a realidade do emprego dos sentidos com a representação desses usos decretada pelos observadores contemporâneos. Para citar um exemplo brasileiro, seria o caso de deduzir, com base nas crônicas teatrais do início do século XX, que ao popular e “ruidoso” público das galerias, tal como descrito na imprensa da época, opunha-se uma plateia silenciosa, contida, quase inerte. Vale lembrar que uma autêntica educação dos sentidos foi empreendida entre as elites ao longo da segunda metade do século XIX em favor do silêncio (GAY, 1999), o que provavelmente promoveu o desenvolvimento de uma técnica auditiva que captava os sons do público em função da origem social de seus emissores. O fato é que os sons produzidos pelas elites posicionadas nos lugares mais nobres dos teatros (comentários, tossidas, aplausos ou mesmo vaias) não eram percebidos como ruídos pelos contemporâneos e por isso não chegavam a ser condenados ou sequer mencionados nos relatos da época. Disso deriva outro risco enfrentado pelo historiador do sensível: o de confundir o não dito com o não experimentado. Se o som dos automóveis tende, hoje, a tornar-se inatual ou mesmo desaparecer da descrição das grandes cidades, provavelmente será difícil saber, no futuro, se ele deixou de ser percebido ou se sua banalidade de certa forma o “naturalizou”, levando-o a deixar de ser evocado. Do mesmo modo, afirma Corbin, certas interdições relativas à descrição de experiências ligadas ao prazer do corpo, ao paladar, aos odores e aos ruídos poderiam levar à falsa impressão do primado do visual, menos interdito.
Depois de mais de 30 anos, as questões levantadas pelo historiador francês permanecem atuais, sobretudo para quem analisa o universo sonoro do passado por meio de relatos verbais. Em estreito diálogo com a história das sensibilidades, o artigo que abre o dossiê se debruça sobre a questão da memória e do patrimônio sonoros. Ao analisar como velhos habitantes e trabalhadores do município de Rio Grande, RS, evocam as extintas sonoridades de duas indústrias têxteis da cidade, Rheingantz e Ítalo-brasileira, as autoras Olivia Nery e Maria Leticia Ferreira destacam o papel dos sons na construção memorial e identitária dos cidadãos. A centralidade do apito das fábricas na regulação da memória cotidiana não só dos operários, mas dos rio-grandinos em geral; o som produzido pelo “bater dos tamancos” das operárias em seu trajeto matinal para o trabalho, que marcou o imaginário afetivo de muitos moradores da cidade; a diversidade dos sotaques ouvidos entre os trabalhadores fabris; o barulho contínuo das máquinas ou o som estridente da sirene acionada em caso de acidente de trabalho: diversos elementos são mobilizados na rememoração de um passado não muito distante, vivido entre os anos 1950 e 1970.
Inevitável não recordar aqui as semelhanças dessa dinâmica gaúcha com as lembranças do professor José de Souza Martins. Numa espécie de ego-história, ele produziu uma penetrante análise sociológica com base na rememoração do tempo em que foi operário na cidade de São Caetano do Sul, cujos “apitos de fábrica e dobres de sinos” regulavam os sons da vida suburbana na grande São Paulo, colaborando assim para formar uma espécie de paisagem sonora relacionada ao mundo operário para além dos limites regionais (MARTINS, 2008). Embora as autoras utilizem a noção de soundscape (paisagem sonora), formulada pelo pesquisador canadense Murray Schafer para se referir ao “ambiente acústico geral de uma sociedade” (SCHAFER, 2011 [1977], p. 23), elas não cedem à tentação empirista de “discernir a evolução do ambiente sensorial” de uma época ou lugar (CORBIN, 1990). De certo modo, buscam escapar dos usos abusivos do conceito, que durante certo tempo se tornou, nas ciências sociais, numa espécie de elixir explicativo e analítico do universo sonoro, expediente criticado já há um tempo, por exemplo, pelo etnomusicólogo Luc Charles-Dominique (2013), pelo antropólogo Tim Ingold (2015 [2011]) ou pela historiadora Emily Thompson (2002). As autoras procuram compreender o “patrimônio sensível” (SIMMONOT; SIRET, 2014) formado pela memória de experiências efêmeras, estímulos e sensações que, apesar de intangíveis, constituem um universo socialmente compartilhado. Sem ignorar que a memória é interpretação e reconstrução “sempre problemática do passado”, como apontava Halbwachs (1990 [1968]), elas destacam sua função como elemento de coesão e identidade.
Os próximos quatro artigos do dossiê abordam, sob diferentes ângulos, a relação entre a fonografia e os processos históricos de naturezas variadas. O estudo das tecnologias e de suas transformações tem a capacidade de apresentar processos e relações sociais até então naturalizados, o que talvez explique a atual preponderância do som gravado nas preocupações dos estudiosos interessados nas sonoridades do passado.20 Vale destacar que, no campo da Cultura Visual, os trabalhos em torno da história da fotografia e da imagem fotográfica foram os que, inicialmente, melhor absorveram a problemática teórico-conceitual da imagem; mais investiram em documentação, com a produção de bases de dados, muitas delas digitalizadas; e mais sensibilidade demonstraram para a dimensão social e histórica dos problemas introduzidos pelas técnicas de reprodução da imagem (MENESES, 2003, p. 21). Não é de se espantar que o mesmo fenômeno ocorra, no campo da Cultura Sonora, com o som gravado, utilizado não só como fonte de informação sobre as sonoridades do passado, mas também como modelo de novos modos de ouvir e fator ativo dos regimes de escuta.
Ao analisar um conjunto de discos políticos produzidos na França ao longo do século XX, Jonathan Thomas propõe que eles funcionavam como “mediadores fluidos” de diferentes culturas políticas, o que lhes permitiria infiltrar culturas políticas adversárias e ocupar certos espaços sociais inesperados. Tal característica, segundo o autor, não se restringiria aos discos de propaganda política explícita (aqueles que pretendem mobilizar explicitamente os ouvintes por meio de discursos militantes), mas estaria igualmente presente nos discos de música (que promovem certa estetização da política) ou nos chamados discos históricos (que reúnem testemunhos ou registros de época). Essa fluidez medial do disco só se tornou possível graças a certo imaginário construído em torno do som gravado, segundo o qual este seria um agente de verdade, funcionando, a um só tempo, como amostra do real e prova factual. Essa promessa de verdade do disco é identificada por Thomas como um “imaginário veritativo” do som gravado.
O autor chama atenção para o fato de que Thomas Edison, ao prever os primeiros usos de seu invento, concebia o fonógrafo como tecnologia de reprodução, mais do que de criação e estetização de sons. Ora, antes mesmo do advento da fonografia, um certo número de tecnologias de reprodução sonora já permitia que uma mesma sequência de sons (em geral, musicais) fosse mecânica e identicamente reproduzida, como nos casos do realejo ou da pianola. Porém, muito embora possibilitassem uma replicação sonora exata, tais dispositivos não eram percebidos como reprodutores, e sim como simples geradores de sons replicáveis. Foi somente com o fonógrafo que surgiu a ideia (ou antes a ideologia) de que o som poderia ser “separado” de sua fonte e reproduzido, de forma idêntica, em outro contexto, o que daria origem a um som “original” e suas “cópias”. Trata-se daquilo que, mais tarde, os músicos eletroacústicos chamaram de acusmática, e Murray Schafer (2011 [1977]), de esquizofonia, noções problematizadas por Sterne (2003, Capítulo 5). Thomas se apoia nas ideias desse autor para revelar os usos políticos do caráter naturalista do som gravado, o qual possuiria “a capacidade, derivada de suas qualidades imaginárias, de se imiscuir em todos os espaços sociais, apesar das eventuais interdições de circulação das significações que ele carrega”.
No artigo seguinte, Laura Jordán apresenta uma análise crítica de algumas produções de música chilena realizadas entre as décadas de 1950 e 1980 pelos selos estadunidenses Folkways, Monitor e Paredon, pertencentes ao catálogo da Smithsonian Institution. Com base nas traduções dos textos que acompanhavam os LPs, a autora questiona as estratégias discursivas utilizadas para apresentar essas músicas como “autênticas”, levantando dúvidas sobre o tratamento negligente das informações coletadas e sua relação com os sons registrados. O artigo ressalta o papel da difusão fonográfica internacional na formação de ouvintes capacitados a gostar de sons que inicialmente lhes eram desconhecidos ou distantes. A análise de Jordán permite constatar que as gravadoras se valeram da tradução dos encartes para ativar diversos “filtros acústicos”, moldados por imaginários enraizados na cultura dos ouvintes. Estes teriam, assim, sua escuta mediada por elementos muito mais próximos de suas expectativas do que pela compreensão das circunstâncias em que aquelas músicas surgiram. O estudo propõe que a percepção auditiva pode ser condicionada pelas estruturas de poder e, nesse sentido, mostra como as gravadoras estadunidenses, seguindo suas agendas comerciais e políticas, traduziram os sons do Chile para categorias familiares ao público internacional, seja por meio do exotismo e da autenticidade ou por meio do engajamento político. Embora se concentre na música chilena, o artigo serve de fonte de inspiração para pesquisadores interessados em músicas de outras regiões que também foram transformadas em produtos fonográficos. Considerando que os mesmos selos (e talvez com critérios muito semelhantes aos apontados pela autora) registraram músicas de diversos lugares do planeta em suas coleções, o texto de Jordan oferece direcionamentos metodológicos para a análise da forma como essas músicas foram apresentadas a ouvintes distantes dos contextos originais de sua produção e uso.
Ainda no universo da indústria fonográfica, Maya Suemi Lemos e Pedro Aragão analisam as representações sonoras de grupos étnico-raciais brasileiros difundidas em discos de 78 RPM gravados por cantores, instrumentistas e compositores negros nas primeiras quatro décadas do século XX. Os autores procuram analisar o processo por meio do qual populações negras brasileiras foram, no contexto pós-abolição, compreendidas como um “outro interior” que se contrapunha à identidade moderna que o país vinha forjando para si. Para tanto, utilizam a noção de “linha de cor sonora” (sonic color line), cunhada por Jeniffer Stoever (2016) para designar as estratégias sonoras usadas na demarcação ideológica entre brancos e negros nos Estados Unidos, deslocando-a cuidadosamente para o contexto brasileiro. Afastando-se dos estudos que se interessam pelos sons em si mesmos, suas tecnologias de (re)produção e as ideologias a elas subjacentes, os autores apresentam as dimensões políticas e ideológicas dos usos sociais do som, mais particularmente na construção daquilo que denominam de “racialidades sonoras”, as quais identificam determinados timbres vocais, sotaques ou sons musicais com corpos racializados. Discutem como estratégias de representação sonoro-musicais da alteridade, elaboradas desde o século XIX em registros literomusicais como o lundu, são ressignificadas e amplificadas no universo fonográfico.
No último artigo do dossiê, Bruno Tavares analisa os 18 fonogramas presentes no primeiro volume da publicação 500 anos da música popular brasileira, livro-CD comemorativo publicado pelo Museu da Imagem e do Som no Rio de Janeiro (MIS-RJ) em 2001. Somada aos textos que compõem a publicação, a seleção original de áudios propõe uma narrativa sobre os cinco séculos da Música Popular Brasileira, na qual os documentos sonoros aparecem como mera ilustração de uma história centrada em compositores, intérpretes e obras. Em sua análise, Tavares desloca a centralidade do repertório e dos músicos para os técnicos de som – os mixer men – responsáveis pelas gravações. Historicamente, a fonografia esforçou-se para ocultar o conjunto de imbricados recursos técnicos que imprimiam uma ou outra sonoridade às gravações de determinada época. A intenção era fazê-los passar despercebidos pelo ouvinte, criando uma sensação de fidelidade e proximidade com a experiência da escuta ao vivo. Para se obter essa “ilusão de realidade”, era necessário que os recursos técnicos fossem pouco divulgados e até mantidos em certo segredo, moldando uma escuta desatenta às técnicas de gravação. Ao desvelar esses recursos, Bruno Tavares destaca o impacto das escolhas dos profissionais de estúdio no resultado sonoro final apresentado na publicação do MIS-RJ. Sérgio Ospina já havia identificado algo semelhante nas práticas de gravação mecânicas realizadas pelos técnicos da Victor Talking Machine Company na América Latina e no Caribe durante as primeiras duas décadas do século XX. Tal como indica Tavares para o início do século XXI, os técnicos de som da Victor também não pretendiam mostrar o funcionamento das máquinas e de suas práticas, criando desse modo certa aura de mistério em relação à tecnologia utilizada (OSPINA, 2019; 2021; LOPES, 2021).21 Além das características técnicas das gravações históricas utilizadas no CD, o autor chama a atenção para as adaptações e os ajustes realizados em faixas produzidas especialmente para a publicação, a fim de adequá-las aos cânones de escuta do início do século XXI. Por meio dessa análise, Tavares revela um aspecto importante da nossa cultura sonora na transição do século XX para o XXI: a tendência de desconsiderar certas camadas sonoras presentes nos fonogramas, como efeitos de reverberação, volumes associados às distâncias entre instrumentos e microfone(s), edição e cortes na produção, “limpeza” do som durante a digitalização de discos de 78 RPM etc. No entanto, essas camadas desempenham um papel crucial no caráter acústico que é captado inconscientemente pelo ouvinte moderno. Portanto, de certo modo, há uma preocupação em última instância com os impactos técnicos da “música no cérebro”, tema de interesse dos estudos de Levitin (2010 [2006]), aliás, originalmente um engenheiro de som.
Além dos artigos, o dossiê também traz uma instigante entrevista com a pesquisadora francesa Marie-Madeleine Mervant-Roux. Especialista em Estudos Teatrais, ela desenvolveu uma importante investigação sobre o papel do público nos espetáculos cênicos, sempre ruidoso. Nos últimos anos, porém, direcionou suas preocupações para aspectos sonoros da arte teatral, que durante muito tempo permaneceram ignorados pelos estudiosos do campo. Partindo da compreensão do teatro como “lugar onde se escuta”, suas pesquisas analisam desde a acústica das salas até o papel dos sotaques nas representações cênicas, propondo uma história acústica e sonora do teatro. Aproximando-se tanto da história das sensibilidades como dos Estudos do Som, Mervant-Roux julga serem necessárias a aproximação e a complementaridade entre os estudos francófonos e anglófonos para uma melhor compreensão dos estudos dos sons do passado. Ela e sua equipe apostam também na extroversão de suas pesquisas, ao difundir seus resultados para o grande público por meio de blogs e podcasts que exploram elementos sonoros do teatro e propõem exercícios de escuta.
Três resenhas colaboram para ampliar as discussões apresentadas nos artigos deste dossiê. As obras examinadas exemplificam bem algumas das principais tendências no campo dos estudos da Cultura Sonora. Publicada em 2023, Earshot: perspectives on sound, do pesquisador australiano Bruce Johnson, sintetiza algumas das principais questões levantadas nas últimas décadas pela corrente anglófona dos Sound Studies. Músico, pesquisador e autor de dezenas de trabalhos sobre jazz, história sonora e música de cinema, o autor retoma nesse livro alguns temas e problemas envolvendo as relações entre sons, memória, modernidade e poder, formulados ao longo de sua carreira. Por sua vez, mais interessada na interpretação das experiências sensoriais subjetivas do que em teorizações, a História do silêncio de Alain Corbin é um desdobramento da tradição francófona da História das Sensibilidades. Publicada originalmente em francês em 2016 e traduzida para o português em 2021, a obra retoma e aprofunda suas investigações em torno da história do mundo sensível, deslocando o foco, já explorado pelo autor em outras obras, das percepções e representações dos sons do passado em direção ao silêncio, seus usos e significados. Representante das tendências latino-americanas dos estudos sonoros, Ciudades vibrantes: sonido y experiencia aural urbana en América Latina, obra coletiva publicada em 2020 sob a direção da musicóloga mexicana Natalia Bieletto, emprega a já mencionada noção de auralidade para tratar das práticas sociais audíveis nas cidades latino-americanas. Com uma perspectiva fortemente interdisciplinar, contando com a contribuição de etnomusicólogos, músicos, sociólogos, historiadores, antropólogos, musicólogos e estudiosos da comunicação, a obra busca refletir sobre as especificidades das experiências musicais e sonoras da América Latina sem se limitar às perspectivas e epistemologias tradicionais.
De certo modo, como debatido neste texto de apresentação, estudar as escutas e os sons do passado pressupõe penetrar surdamente no mundo aural, que tem sua própria historicidade e imbricamentos. Com certa licença poética, o escritor Oswald de Andrade pode ajudar a resumir essa discussão. Ele comentou, em uma de suas obras, com perspicácia e aquele senso crítico modernista, que “a gente escreve o que ouve – nunca o que houve”.22 Essa boutade diz muito, como livre inspiração, sobre o trabalho do historiador que se propõe a investigar a Cultura Sonora, cujas práticas e problemáticas são apresentadas neste dossiê. Se a tradição historiográfica durante muito tempo produziu um conhecimento relativamente surdo aos sons, tratando muito mais daquilo que “houve”, as investigações sobre as sensibilidades se interessam pelo modo como ouvimos e deixamos de ouvir, os interesses com que o fazemos e por que razões nos silenciamos. Desse modo, talvez o historiador preocupado com os sons do passado deva caminhar (oswaldianamente) no tênue limite entre aquilo que “houve” e o que e como se “ouve”.
Juliana Pérez González
Cacá Machado
José Geraldo Vinci de Moraes
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