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O TEATRO, LUGAR ONDE SE ESCUTA: ENTREVISTA COM MARIE-MADELEINE MERVANT-ROUX1
LE THEATRE, LIEU OU L’ON ENTEND. ENTRETIEN AVEC MARIE-MADELEINE MERVANT-ROUX
Revista de História (São Paulo), núm. 182, a05023, 2023
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História

DOSSIÊ HISTÓRIA E CULTURAS SONORAS - ENTREVISTA


Recepção: 30 Maio 2023

Aprovação: 10 Julho 2023

DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2023.212560

Financiamento

Fonte: CNPq

Número do contrato: 102479/2022-4

Descrição completa: Entrevista realizada por e-mail, em francês, entre os dias 25 de abril e 14 de maio de 2023, como parte do projeto de pesquisa “Som e Escuta no Teatro Musicado de São Paulo”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Científico - CNPq (Processo n° 102479/2022-4). Tradução realizada pela entrevistadora, que também é responsável pelas notas, e revista pela entrevistada.

Marie-Madeleine Mervant-Roux é pesquisadora emérita do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica da França) e integrante do Thalim (Teoria e História das Artes e das Literaturas Modernas), unidade de pesquisa sob a tripla tutela do CNRS, da ENS (Escola Normal Superior de Paris) e da Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3). Há mais de três décadas vem investigando o teatro no contexto francês, tendo publicado, entre outros livros, L’Assise du théâtre: pour une étude du spectateur (O assento do teatro: por um estudo do espectador, CNRS, 1998) e Du théâtre amateur: approche historique et anthropologique (O teatro amador: abordagem histórica e antropológica, CNRS, 2004).

Nos últimos quinze anos, a pesquisadora tem se interessado pela dimensão auditiva do teatro ocidental, temática pouco estudada e de grande interesse para este dossiê, na medida em que põe a nu os regimes de escuta de diferentes períodos e propõe uma história sonora do teatro. Suas pesquisas concentram-se especialmente no chamado “longo século” (1875-2000), período que assistiu ao surgimento da gravação sonora e da radiodifusão, bem como à passagem do som acústico ao som elétrico e, mais tarde, ao digital. Entre 2008 e 2012, em parceria com o pesquisador canadense Jean-Marc Larrue, do CRI (atualmente CRIalt: Centro de Pesquisas Intermediais em Artes, Letras e Técnicas) da Universidade de Montreal, M.-M. Mervant-Roux coordenou o programa internacional “O som do teatro (séculos XIX-XXI)”, que resultou na obra coletiva homônima publicada em 2016.

Através de uma parceria institucional com o Departamento de Artes do espetáculo da BnF (Biblioteca Nacional da França), dirigido por Joël Huthwohl, e com uma equipe de técnicos de acústica e informática do LIMSI (Laboratório de Informática para a Mecânica e Ciências da Engenharia) do CNRS, dirigida por Brian Katz, o programa desdobrou-se no projeto ECHO (“Escrever a História da Oralidade”), financiado pela ANR (Agência Nacional de Pesquisa da França) entre 2014 e 2018.

Tendo como marco espaçotemporal a França da segunda metade do século XX, e após constatar que o teatro, em sua forma ocidental, havia sido acusticamente organizado pela e para a voz falada, a equipe de pesquisadores decidiu estudar sob essa perspectiva o fenômeno teatral do período, bem como o impacto das novas tecnologias sonoras, do gravador de fita magnética à estereofonia, em sua performance e escuta. Além de publicações acadêmicas clássicas (dois números da revista online RSL), parte dos resultados da pesquisa foi reunida na plataforma pedagógica disponível no site da BnF “Entendre le théâtre. Un voyage sonore dans le théâtre français au XXe siècle” (“Ouvir o teatro. Uma viagem pelo teatro francês do século XX”).3

Com base em diversos arquivos sonoros de espetáculos teatrais conservados, em sua maior parte, no Departamento de Artes do Espetáculo da BnF, alguns deles provenientes do INA (Instituto Nacional do Audiovisual), a plataforma propõe quatro itinerários que abordam tanto os aspectos técnicos e acústicos do espetáculo teatral quanto as dimensões estéticas e sociopolíticas da voz encenada. Acompanhados de podcasts e de algumas experiências de escuta, eles abordam desde a evolução dos sotaques cênicos (regionais ou estrangeiros, marcados pelos contextos da centralização parisiense, da descolonização e da mundialização) até as formas teatrais puramente auditivas, surgidas após o advento do disco e do rádio. A continuidade do trabalho se deu por meio do blog “L’Écoute du théâtre” (“A escuta do teatro”) que, com o mesmo didatismo, propõe para o grande público exercícios de escuta daqueles mesmos arquivos sonoros, bem como de depoimentos de espectadores contemporâneos dos espetáculos.

Nas páginas que se seguem, em uma narrativa bastante generosa com o leitor, a pesquisadora retraça sua trajetória acadêmica e conta como surgiu seu interesse pelo som do teatro, resultante de uma súbita tomada de consciência (por parte de alguns pesquisadores) da surdez dos Estudos Teatrais. Também revela a importância da História e da historicização do som em seu percurso de pesquisa, destacando o esforço de sua equipe em aproximar os estudos do som francófono e anglófono, marcados por diferenças epistemológicas e metodológicas importantes.

Nas entrelinhas, deixa entrever sua relação com o Brasil, onde esteve em 2013 para ministrar uma disciplina de pós-graduação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e participar do seminário interno do grupo de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. Também acompanhou ou orientou doutorandos brasileiros inscritos na Universidade Sorbonne Nouvelle.

Gostaria de começar perguntando sobre seu histórico profissional. Qual é sua formação de base?

Estudei Literatura. Como fui muito boa aluna no Ensino Médio, meus professores convenceram meus pais de que eu deveria seguir os estudos superiores (sou de origem popular). Eu gostava muito de literatura, mas não tinha qualquer projeto profissional ligado a essa escolha. Depois de concluir a Escola Normal Superior em Fontenay-aux-Roses4 e obter a Agregação5 em Letras Modernas (em 1973), tornei-me professora de francês em uma escola técnica da periferia. Eu sabia que havia pessoas que escreviam livros acadêmicos, mas isso ainda me parecia um mundo distante e abstrato. Minha trajetória profissional já era extraordinária para mim. Em 1979, quando já era mãe de dois filhos, senti a necessidade de revitalizar meu cérebro, um pouco cansado das jornadas letivas e das tarefas familiares, e de ir para a universidade. Hesitei entre o cinema (que eu adorava como espectadora) e o teatro, que me parecia mais próximo, mais familiar: eu havia atuado em pequenos esquetes escolares quando criança, assistia ao teatro amador e frequentemente levava meus alunos, que também eram de origem popular, para assistir a espetáculos. Eu havia sido aluna de Anne Ubersfeld (em curso sobre La Fontaine) durante meu curso de Agregação, então matriculei-me no IET (Institut de Estudos Teatrais) na Sorbonne Nouvelle, onde ela lecionava, e acompanhei todo o curso, nos dias em que não estava trabalhando.

Sua tese de doutorado em Estudos Teatrais, defendida na Universidade de Paris 3 em 1996, trata do lugar do público de teatro. O que a levou a esse tema? Qual era o lugar da audição e do som em sua pesquisa naquela época?

Em 1983, após ler o trabalho que eu lhe havia enviado, Denis Bablet, cujo seminário era sobre Tadeusz Kantor, propôs que eu me candidatasse ao CNRS (ele era então chefe do Laras, Laboratório de Pesquisas sobre Artes do Espetáculo) e me sugeriu vários possíveis temas de pesquisa. Como desconhecia a maioria deles, escolhi o que se referia ao espectador, que a priori era o mais acessível: “O espectador era realmente o ‘quarto criador’ do espetáculo (de acordo com a fórmula de Meyerhold)? E, em caso afirmativo, como sustentar essa ideia?”. Entrei para o CNRS em 1987. Após um longo período de hesitação metodológica, decidi estudar séries de representações de diferentes espetáculos, adotando uma abordagem etnográfica. Do ponto de vista teórico, o trabalho de Élie Konigson, um historiador de teatro da Idade Média e do Renascimento com formação antropológica, me deu uma estrutura sólida. Foi durante meu trabalho de campo, realizado em teatros, que comecei a usar gravações de áudio das apresentações que eu estava estudando. Para mim, essa era uma forma de ter um registro contínuo de cada espetáculo para melhor descrever suas variações ao longo do tempo. Eu dispunha de minhas anotações, tomadas após (às vezes durante) cada apresentação, bem como as respostas dos espectadores (cerca de dez por noite) aos quais eu havia entregado um questionário manuscrito, com um envelope para a resposta. Faltava-me um eixo temporal para organizar esses dados. Tive a ideia de perguntar ao diretor do teatro onde eu estava trabalhando (o novíssimo Théâtre de la Colline) se ele registrava os espetáculos. Voltei para casa com algumas fitas cassete de áudio. Ao escutá-las, percebi que tinha em mãos muito mais do que apenas um suporte técnico: o público era audível, e esse fato era certamente fundamental para o evento teatral. Comprei um pequeno gravador e comecei a gravar, do meu assento, todos os espetáculos a que assistia. No livro que resultou de minha tese, L’Assise du théâtre, a terceira e última parte seria intitulada “O grande ressonador”, uma metáfora para descrever o público, e o teatro seria definido como “um lugar onde se ouve”. Agora posso responder à sua pergunta: o papel do arquivo de som tem sido importante porque trouxe à tona, de forma objetiva e mensurável, a intervenção permanente do espectador, um espectador raramente “criador”, às vezes destruidor, mas sempre ator, quer ele queira ou não, do evento teatral. Entretanto, essa descoberta não me levou imediatamente a pensar no som e na audição como uma dimensão estrutural do teatro. Essa tomada de consciência só ocorreria dez anos mais tarde. Eu ainda percebia os fenômenos que havia captado como o resíduo de uma experiência que permanecia fundamentalmente visual. Não tinha ideia de que as gravações com as quais eu estudava o público e a relação palco-plateia poderiam ser usadas para estudar espetáculo em si, para apreendê-lo de outra forma que não pela observação.

Depois de ter trabalhado com outros temas, como o teatro amador e a arte de Claude Régy,6 você retomou sua pesquisa sobre o público teatral, não mais para entender o teatro como “um lugar onde se vê”, mas para entendê-lo como “um lugar onde se ouve”. Por que e como você fez essa mudança de perspectiva?

Antes de mais nada, uma palavra sobre esses trabalhos, cujos objetos [Claude Régy e o teatro amador] podem lhe parecer situados nas extremidades opostas do arco teatral (um grande criador radical, por um lado; um teatro desprezado por sua falta de arte, por outro) e sem qualquer conexão com a dimensão auditiva do teatro. Na realidade, eu os vejo como tendo algo em comum: ambos dão muito espaço ao texto (o som primordial do teatro é a chamada voz “falada”) e ambos incorporam – de forma muito diferente, é claro – o que eu chamaria de princípio-teatro, conforme se desenvolveu na Europa, ou seja, o dispositivo teatral básico, que permite o exercício social do jogo dramático, para além de suas formas explicitamente sociopolíticas. O interesse por esse dispositivo básico tem sido uma constante em meu trabalho, o que talvez explique por que eu estive atenta à possibilidade de uma lacuna fundamental em sua percepção pelos estudiosos modernos dessa arte. Mais uma observação sobre a pesquisa sobre Claude Régy. Embora ele seja, mais do que outros, um artista da fala e do silêncio, a pesquisa coletiva que dirigi sobre seu trabalho de 2001 a 2007 não explorou de forma alguma as numerosas transmissões radiofônicas de suas criações, e eu só gravei (com sua concordância) certas apresentações para trabalhar novamente com as variações da relação entre plateia e palco. Um exemplo que mostra até onde pode ir nossa surdez teórica!

Esses dois projetos de pesquisa estavam quase concluídos quando uma jovem estudante, Melissa van Drie, recém-chegada dos Estados Unidos, entrou em contato comigo. Formada em Musicologia e leitora de Patrick Feaster, James H. Johnson, Jonathan Sterne e Emily Thompson, ela tinha vindo à França por motivos pessoais e queria fazer uma tese de doutorado sobre o efeito da tecnologia sonora no teatro dos anos 1880. Um colega a enviou para mim, pois sabia que eu tinha interesse em som. Esse encontro, como sempre enfatizei, foi decisivo, pois Melissa van Drie desempenhou um papel real como ponte entre o mundo anglo-saxão dos Sound Studies e o nosso mundo teatral. Concordei em orientar seu trabalho e, em 2010, ela defendeu uma tese pioneira, infelizmente ainda não publicada, intitulada “Théâtre et technologies sonores. 1870-1910. La réinvention de la scène, de l’écoute, de la vision” (“Teatro e tecnologias sonoras: 1870-1910. A reinvenção do palco, da audição e da visão”). Um pouco antes, em 2007, os organizadores quebequenses do congresso “Intermedialidade, teatralidade, (re)apresentação e novas mídias”, realizado em Montreal, queriam que eu representasse no evento o meu laboratório, que havia se tornado o Arias (Oficina de Pesquisa em Intermedialidade e Artes do Espetáculo). Tive a ideia de uma dupla intervenção sobre o som e, para acompanhar o trabalho de Melissa sobre o final do século XIX, decidi abordar dispositivos de escuta originais da cena contemporânea. Frequentemente relembramos como, no final desse colóquio, falando com alguns sobre a flagrante desproporção entre o número de comunicações dedicadas a sons e aquelas dedicadas a imagens, demo-nos subitamente conta do esquecimento de nossa disciplina com relação à dimensão sonora em si mesma. Essa observação originou um projeto internacional do CNRS/CRI (Centro de Pesquisa em Intermedialidade) dedicado à relação entre o teatro e as tecnologias sonoras. Seus resultados foram publicados em três edições de periódicos e em um livro: Le son du théâtre (XIXe-XXIe siècle). Histoire intermédiale d’un lieu d’écoute moderne (O som do teatro (séculos XIX-XXI). História intermedial de um moderno lugar de escuta, CNRS Éditions, 2016). Descobrimos que nosso campo científico ilustrava particularmente bem a situação descrita por Jonathan Sterne: o problema não era a completa ausência de trabalhos sobre o som (tanto em Montreal quanto em Paris, tínhamos contribuído para isso até certo ponto), mas o fato de que esses trabalhos (dedicados à dicção, aos efeitos sonoros, à acústica etc.) haviam permanecido totalmente separados uns dos outros, não tinham sido pensados como conectados entre si. Por que é tão difícil pensar globalmente no teatro como um lugar auditivo quando a voz, a música e a acústica são essenciais para ele desde a Antiguidade? Responder a essa pergunta foi tão importante para mim quanto os “estudos sonoros” em si. De qualquer forma, você pode ver que essa pesquisa, que foi coletiva desde o início, não foi de forma alguma uma reformulação do meu trabalho sobre o público. Durante anos, sequer pensei em associá-la à minha tese. Havia tarefas mais urgentes! Para sair do essencialismo que caracterizava as abordagens usuais da audição e da voz, tínhamos que fazer história e começamos com a história das diferentes tecnologias para reproduzir e mediatizar o som do teatro, dentro e fora do palco. Esse foi um trabalho enorme e empolgante: exploramos paralelamente muitos domínios pouco conhecidos, desde o teatrofone7 até os primeiros usos teatrais do microfone. Rapidamente, percebemos que, bem próximos de nós, havia arquivos sonoros dormentes, para os quais nenhum pesquisador havia dado atenção: só o Departamento de Artes Cênicas da BnF, que havia se tornado nosso parceiro, mantinha quase mil deles. Começamos a ouvi-los e a tentar entender como haviam sido ouvidos. Pessoalmente, optei por lidar com o disco de teatro, que está totalmente ausente das histórias do teatro existentes. A questão do público só ressurgiu muito recentemente: fui convidada, por exemplo, a escrever sobre os aplausos. Em breve, participarei de uma sessão do programa de rádio Métaclassique, de David Christoffel, dedicado a esse assunto, em dupla com uma artista visual, Blandine Brière, que usou minhas análises de aplausos para uma de suas criações.

Ao estudar o som teatral, você entrou em um diálogo com a história das sensibilidades e, acima de tudo, com os Estudos do Som. Qual é a importância desses dois campos de estudo em seu trabalho?

Antes de podermos entrar em um diálogo com os Sound Studies, fomos fortemente abalados por sua descoberta... Como eu disse, nossa pesquisa nasceu de um encontro entusiástico com essa cultura ainda recente e majoritariamente anglófona que, após nos alertar para a possível importância das tecnologias sonoras na história do teatro (por meio de Melissa Van Drie), nos ofereceu uma hipótese geral capaz de explicar a incrível surdez que acabávamos de constatar em nós mesmos (o oculocentrismo geral da cultura ocidental moderna) e nos abriu uma perspectiva de trabalho: a de uma história técnica e cultural crítica. Em termos concretos, nossa equipe franco-quebequense aproximou-nos tanto da pessoa quanto do trabalho de uma das grandes personalidades dos Estudos do Som, Jonathan Sterne, que lecionava na Universidade McGill. Nós o conhecemos em um ambiente que pode ser descrito como intermediário: a pesquisa sobre intermedialidade conduzida em francês – mas aberta ao inglês – pelo CRI em Montreal. Ao longo dos anos, pude verificar o impacto que teve e ainda tem em nosso trabalho a obra de Sterne, com a qual pudemos gradualmente entrar em diálogo, criticando algumas de suas propostas: sua abordagem, apresentada como generalista, acabou sendo fortemente influenciada pelo modelo musical. Isso às vezes a torna frágil em nosso campo: por exemplo, no que diz respeito à distinção entre acústica e equipamento de sonorização, essencial no teatro – daí nossa colaboração com os técnicos do LIMSI, especialistas na história acústica das salas. No aperfeiçoamento de nosso próprio modelo, um papel auspicioso foi desempenhado por Alain Corbin, historiador de sensibilidades arraigado em uma outra cultura, europeia, de mais longo prazo. Nós o lemos ou relemos, em especial Les cloches de la terre (1994), e dialogamos diretamente com ele por instigação de outra grande pesquisadora, Viktoria Tkaczyk, que criou e dirigiu a equipe “Epistemes of Modern Acoustics” (Epistemologias da Acústica Moderna) no Instituto Max Planck de História da Ciência em Berlim e colaborou conosco. Alain Corbin, ao mesmo tempo em que nos deu uma grande lição de humildade, mostrou-nos que a história do som e da audição poderia ser reconstituída por meio de outros arquivos, além dos sonoros ou técnicos (por exemplo, jurídicos e religiosos); indicou que ela era indissociável de uma história da atenção e enfatizou a importância, para além das sonoridades “objetivas”, das construções intelectuais e dos imaginários historicamente desenvolvidos em torno dos sons.8

Em sua pesquisa sobre som teatral, você usou principalmente fontes sonoras (registros de teatro, gravações de arquivo de apresentações, transmissões de rádio de apresentações). Como Jonathan Sterne observou corretamente, embora essas fontes nos deem uma noção dos sons do passado, elas não nos dizem como esses sons eram ouvidos. Como, então, elas podem ser usadas para entender a dimensão sônica do teatro do passado?

Essa é uma pergunta fundamental, e a frase de Sterne à qual você se refere (“Na era da reprodução tecnológica, às vezes podemos vivenciar um passado audível, mas só podemos presumir a existência de um passado auditivo”), essa declaração, extraída da introdução de seu livro The audible past, traduzido para o francês e publicado por nós em 2010, tem nos acompanhado constantemente em nossa pesquisa. Ela ativou uma reflexão metodológica em meu próprio trabalho, apresentada em três artigos, o primeiro dos quais (em 2013) intitulado “Peut-on entendre Sarah Bernhardt ? Le piège des archives audio et le besoin de protocoles” (“Podemos escutar Sarah Bernhardt? A armadilha dos arquivos sonoros e a necessidade de protocolos”).9 Gostaria de sublinhar a importância que a historiadora da cultura Pascale Goetschel teve no desenvolvimento dessa reflexão metodológica, ao convidar-me desde 2009 para falar sobre esses arquivos, mais “esquecidos” do que “escondidos”. A primeira e mais espinhosa dificuldade é, de fato, a que Sterne evoca implicitamente na frase citada – em outras palavras, a existência no ouvinte de uma poderosa propensão que consiste em tomar o que se ouve hoje pelo que foi ouvido pelos contemporâneos do fonograma. Ao contrário das imagens, o som, como diz o designer de som, pensador e membro da nossa equipe Daniel Deshays, “vive no presente”. Um som oriundo do passado engana a orelha do ouvinte, que, mesmo avisado, reage como se ele emanasse de seu próprio presente. A primeira tarefa, seja qual for o campo de pesquisa, é definir um protocolo capaz de controlar essa escuta espontânea: 1) reconstituir a história do documento (hoje geralmente digitalizado); 2) reconstituir as circunstâncias e as condições da gravação original (e suas eventuais reedições); 3) reconstituir as condições das (possíveis) escutas do fonograma original (e de suas reedições): se possível, ver pessoalmente os dispositivos de reprodução de som, ter uma ideia de como eles funcionam, situar a audição em seu contexto técnico, comercial, social e cultural (estudar a imprensa técnica, a publicidade), reconstituir a ampla experiência dos ouvintes da época, coletar depoimentos de ouvintes; 4) escutar outros documentos sonoros da mesma época; 5) multiplicar e variar as audições, sendo a primeira de todas, se possível, uma “audição reduzida”, como definida por Pierre Schaeffer, seguida, conforme o caso, por audições sem texto e com texto, com fones de ouvido e sem fones de ouvido, solitárias e coletivas, com imagens e sem imagens, com documentos de arquivo etc. Embora seja impossível escutar um som do passado como seus primeiros ouvintes, é possível se aproximar dessa experiência, embora reconhecendo as limitações desse exercício. Nesse processo, o pesquisador pode ter que explorar uma grande variedade de arquivos, desde o monumento-testemunho que é uma sala de espetáculo pouco alterada até a crítica da imprensa sobre uma apresentação, desde os catálogos de gravadoras até os escritos particulares de contemporâneos.

Além das gravações, que outras fontes podem ser utilizadas na produção de uma história sonora do teatro?

Elas são extremamente variadas (objetos, suportes de fonogramas, documentos em papel, gravações audiovisuais – cujo áudio nem sempre é famoso etc.). Entre as fontes das quais nos ocupamos com mais afinco, em função de seu risco de desaparecer ou de nem menos chegar a existir, mencionarei em primeiro lugar os testemunhos dos profissionais: diretores de palco, técnicos, engenheiros de som pertencentes às gerações anteriores à nossa, que Daniel Deshays, em particular, está tentando coletar antes que desapareçam, já que depois disso não haverá nenhuma memória precisa dessa cultura. Sem esquecer os arquivos pessoais desses técnicos, que devem ser cuidadosamente coletados e preservados. Uma de minhas ex-alunas de doutorado, Rafaella Uhiara, acaba de apresentar um projeto no Brasil organizado em torno de um arquivo desse tipo, da “sonoplasta” (termo que não tem tradução em francês!) Tunica Teixeira. Em seguida, temos os depoimentos dos espectadores/ouvintes, evocados anteriormente. Trechos de alguns deles, coletados oralmente, às vezes 50 anos após as representações, por nossa colega antropóloga Hélène Bouvier no âmbito do projeto ECHO, podem ser encontrados em nossas publicações e em nossa mais recente produção on-line.

Um dos resultados do projeto ANR ECHO (2014-2018) é o percurso pedagógico Entendre le théâtre (Escutar o teatro), que pode ser consultado no site da BnF desde março de 2020. Por meio de uma jornada pelos arquivos, esse tour destaca as mudanças que afetaram a maneira como as vozes são ouvidas nos palcos franceses na segunda metade do século XX. Além de analisar as gravações sonoras de apresentações mantidas na BnF, o projeto procurou reconstruir a história arquitetônica e acústica de dois dos locais em questão (Théâtre de l’Athénée e Palais de Chaillot). Por que divulgar os resultados dessa pesquisa para o público em geral? Qual é a importância da “educação sonora” e da historicização da audição e do som no mundo contemporâneo?

O aspecto pedagógico estava presente desde o início do projeto: tínhamos um grande orçamento, proveniente de dinheiro público, e queríamos que os resultados de nossa pesquisa fossem divulgados fora do círculo de especialistas. Além das publicações para pesquisadores e acadêmicos, a equipe acrescentou à sua lista de “resultados” produções acessíveis – em todos os sentidos da palavra – a públicos amplos. Pensamos especialmente em professores e estudantes do Ensino Médio, universitários de várias disciplinas, alunos de escolas de teatro (atores, mas também diretores de som, designers de som) e de escolas de arquitetura, técnicos de acústica, profissionais das artes cênicas e vários amantes do teatro, praticantes ou espectadores, ouvintes de rádio ou ouvintes de podcasts criativos. Depois de imaginar uma exposição sonora em um espaço físico, que teria sido efêmera e cara, concebemos um itinerário de escuta on-line e convencemos o BnF a produzi-lo, com base em um modelo que desenvolveríamos.

Queríamos, na verdade, contribuir para restaurar um senso de profundidade histórica para os jovens que, em geral, são ouvintes múltiplos, mas carecem de uma verdadeira cultura sonora, técnica e estética. Também esperávamos proporcionar aos nossos visitantes, que estão presos no ritmo do zapping e muitas vezes incapazes de se concentrar, o prazer inesperado que pode provocar a escuta íntima, e por um longo período, de vozes faladas não comuns, não musicais, não acadêmicas e não geracionais. Por fim, queríamos ajudá-los a descobrir a leveza e o poder fantasmático do teatro por meio da audição.

O primeiro itinerário, “Entendre le Théâtre” (“Ouvir o teatro”),10 foi agora completado por um segundo, realizado pela mesma equipe nos mesmos arquivos de som, como parte de um projeto dirigido por Marion Chénetier-Alev que dá continuidade ao ECHO. Tornando o visitante muito mais ativo, livre de imagens (com raras exceções) e dinamizado pelos testemunhos dos espectadores, ele corresponde mais de perto ao nosso protocolo metodológico. Intitulado “Exercices d’écoute et mémoires orales” (“Exercícios de escuta e memórias orais”),11 e progressivamente enriquecido com novas sequências, ele é proposto no blog da plataforma Hypotheses intitulado “L’écoute du théâtre [lieux, spectacles et voix]” (“A escuta do teatro [lugares, espetáculos e vozes]”, que é igualmente de fácil acesso.

Em sua opinião, quais são os principais desafios enfrentados por pesquisadores de diferentes áreas que se interessam pelos sons do passado?

Essa é uma pergunta difícil, que exigiria uma reflexão real. Estou pensando, em primeiro lugar, nos desafios sociopolíticos. Desde o início de nossa pesquisa, há quinze anos, a dimensão sonora dos fenômenos tem se imposto às Ciências Humanas e Sociais. No entanto, ainda é difícil para jovens pesquisadores especializados nesse campo encontrarem trabalho. Ouvir gravações leva muito tempo, é cansativo e sua análise é muitas vezes difícil, e esse tipo de pesquisa não é adequado para divulgação: nada de belas imagens em livros! Nos colóquios, nada de apresentações rápidas durante as quais se percorrem os recursos visuais: o pesquisador não pode falar enquanto se escuta um arquivo de som. Se as questões de direitos são objetivamente complicadas, se a digitalização, que torna possível ouvir mídias frágeis, também envolve todos os perigos ligados à desmaterialização, parece-me que é a questão do tempo e, portanto, do dinheiro, que representa o maior desafio. Mas é também porque o arquivo sonoro impõe sua duração (não se folheia um fonograma) que ele é, neste momento, tão precioso.

Outra dificuldade deriva do fato de que os arquivos sonoros revelam brutalmente a alteridade do passado, enquanto hoje há uma forte tendência na sociedade de perceber – e julgar – os homens do passado como se fossem semelhantes, ou mais ou menos semelhantes, aos do presente, de “decretar” – para usar as palavras de Alain Corbin em Les cloches de la terre – em vez de “detectar [...] as paixões que os animavam”. Essa irredutibilidade dos sons pode, é claro, tornar-se um ponto forte para aqueles que realmente querem fazer história.

Financiamiento

1 Entrevista realizada por e-mail, em francês, entre os dias 25 de abril e 14 de maio de 2023, como parte do projeto de pesquisa “Som e Escuta no Teatro Musicado de São Paulo”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Científico - CNPq (Processo n° 102479/2022-4). Tradução realizada pela entrevistadora, que também é responsável pelas notas, e revista pela entrevistada.
3 Disponível em: http://classes.bnf.fr/echo/. Acesso em: 26 maio 2023.
4 Comuna francesa da região da Ilha de França, a sudoeste de Paris.
5 Concurso público francês que permite o ingresso na carreira de professor do Ensino Médio ou Superior.
6 Claude Régy (1923-2019), diretor de teatro francês conhecido como “apóstolo do silêncio” e reverenciado por seus espetáculos marcados pelo despojamento, pela penumbra e pela defesa de uma imersão total no texto.
7 O teatrofone foi um tipo de transmissão telefônica de espetáculos teatrais ou musicais existente em Paris e em outras cidades europeias entre o final do século XIX e os anos 1920.
8 A esse respeito, ver CORBIN, Alain. Historiographie de l’écoute. In: LARRUE, Jean-Marc; MERVANT-ROUX, Marie-Madeleine. Le son du théâtre: XIXe – XXIe siècle. Paris: CNRS Éditions, 2016, p. 23-35. O texto é resultante da conferência dada pelo historiador durante as jornadas de estudo “O espaço sonoro do teatro. Abordagens científicas e artísticas”, realizadas no INHA (Instituto Nacional de História da Arte) nos dias 1 e 2 de junho de 2011. O texto também traz o debate travado com o público após a conferência.
9 Publicado na revista Sociétés & Représentations, n. 35, p. 165-182, 2013/1. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-societes-et-representations-2013-1-page-165.htm. Acesso em: 30 maio 2023.
10 Disponível em: http://classes.bnf.fr/echo/. Acesso em: 24 maio 2023.
11 Disponível em: https://edt.hypotheses.org/44. Acesso em: 24 maio 2023. No mesmo blog, encontram-se os nomes de todos os pesquisadores, professores e estudantes integrantes da equipe, além de uma bibliografia completa.

Organizadores do Dossiê História e Culturas Sonoras

Virgínia de Almeida Bessa

Juliana Pérez González

Cacá Machado

José Geraldo Vinci de Moraes

Autor notes

Editores Responsáveis Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco
2 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP, em cotutela com a Universidade de Nanterre. Pós-doutoranda do Departamento de História da FFLCH/USP, Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Estadual de Campinas e Pesquisadora da Linha de Investigação Literatura, Humanismo e Cosmopolitismo do Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta (Lisboa, Portugal).

ContatoRua Elis Regina, 50 Cidade Universitária – Zeferino Vaz 13083-854 – Campinas – São Paulo – Brasil vbessa@unicamp.br



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