Resumo: O papiro Hermitage 1115 contém uma das composições literárias mais completas do período faraônico. O texto apresenta a narrativa sobre um marinheiro que naufraga em uma ilha fantástica e, depois de retornar ao Egito, tem a oportunidade de contar sua história na sua velhice. Neste artigo, trazemos uma tradução comentada do Conto do Náufrago, com o texto hieroglífico, a transliteração e sua contextualização histórica atualizada sobre a geopolítica egípcia durante o Reino Médio (c. 2055-1650 AEC). Um glossário egípcio-português conclui a obra.
Palavras-chave: Papiro Hermitage, egípcio clássico, literatura egípcia, fronteira, Punt.
Abstract: Papyrus Hermitage 1115 contains one of the most complete literary compositions of the Pharaonic period. The text presents the narrative about a sailor who is shipwrecked on a fantastic island and, after his return to Egypt, had the opportunity to tell his story in his old age. In this article, we present a translation and a commentary of the Shipwrecked Sailor, with the hieroglyphic text, the transliteration, and an updated historical context on the Egyptian geopolitics during the Middle Kingdom (c.2055-1650 BCE). An Egyptian-Portuguese glossary concludes the work.
Keywords: Papyrus Hermitage, middle Egyptian, Egyptian literature, frontier, Punt.
ARTIGO
O CONTO DO NÁUFRAGO (P. HERMITAGE 1115) – TRADUÇÃO COMENTADA1
THE TALE OF THE SHIPWRECKED SAILOR (P. HERMITAGE 1115) – TRANSLATION AND COMMENTARY
Recepção: 09 Outubro 2022
Aprovação: 14 Junho 2023
A tradução e o estudo do Conto do Náufrago são tarefas inevitáveis para qualquer estudante da língua egípcia clássica (o egípcio clássico ou egípcio médio). No que diz respeito ao exercício da tradução, o texto apresenta um vocabulário rico e estruturas verbais e nominais que fornecem uma base sólida para o avanço no estudo da língua. Sua importância, contudo, não se dá apenas pelo aspecto linguístico. O conteúdo literário expressa valores fundamentais sobre a história e a sociedade egípcia antigas. De fato, a sua popularidade e importância são as razões para a existência das muitas traduções disponíveis, também em língua portuguesa (CARDOSO, 1998; BRANCAGLION, 2006; CANHÃO, 2012, 2014).5
O presente trabalho é resultado de um esforço coletivo durante os anos de 2020 e 2021 para a realização do primeiro curso de língua egípcia clássica online e gratuito no Brasil (PEREIRA; ROCHA DA SILVA, 2021). O curso reuniu professores e alunos de 24 instituições brasileiras de todas as regiões do país e incluiu uma universidade argentina. Ele foi promovido pelo Laboratório do Antigo Oriente Próximo da Universidade de São Paulo (LAOP-USP) e pela Universidade Federal de Santa Catarina, ministrado pelos autores deste texto. As vídeo-aulas estão disponibilizadas com acesso aberto no canal do Grupo de Trabalho de História Antiga (GTHA-ANPUH) no YouTube.6
Esse projeto teve como objetivo principal suprimir uma deficiência na formação dos pesquisadores brasileiros dedicados à história e à arqueologia do Egito Antigo, que é o treinamento em língua egípcia clássica. A familiaridade com a escrita e a língua egípcia antigas é o que possibilitará que novos pesquisadores não dependam de traduções estrangeiras, seja em espanhol, inglês, francês ou alemão, e possam verdadeiramente se aproximar de uma visão êmica sobre o Egito Antigo. Mais ainda, problematizar aquilo que foi estabelecido por traduções enviesadas e problemáticas ao longo dos séculos XIX e XX.
No caso brasileiro, é preciso reconhecer esforços anteriores, como os de Ciro Cardoso e Antonio Brancaglion, mas que, infelizmente, ficaram limitados geograficamente à região sudeste do Brasil, ou aos seus respectivos alunos de pós-graduação. Com a expansão do número de especialistas na década de 2000 e de novos centros de formação em outras áreas, era necessário criar condições para que esse conhecimento se tornasse acessível e democratizado. O protagonismo da produção lusófona sobre a antiga sociedade egípcia certamente passa pelo estudo do egípcio clássico.
O Conto do Náufrago possui três versões brasileiras. A primeira publicação ocorreu em 1998 em tradução bilíngue (CARDOSO, 1998, p. 95-144). A segunda, de 2000, apresenta apenas uma tradução em português, integrada a uma antologia (ARAÚJO, 2000, p. 73-79). A terceira, de 2006, foi editada como uma nova versão bilíngue (BRANCAGLION, 2006, p. 161-191).
Em Portugal, o conto foi publicado pela primeira vez em 1901 (ESTEVES PEREIRA, 1901, p. 5-23), embora se trate apenas de uma tradução a partir da versão francesa produzida por Maspero (1882).7 Uma tradução portuguesa do original egípcio só foi produzida em 2010 numa tese de doutorado (CANHÃO, 2010a; 2010b). O autor republicou o mesmo texto numa obra autônoma em 2012 (CANHÃO, 2012) e reaproveitou o texto numa antologia em 2014 (CANHÃO, 2014). Todavia, essa versão apresenta incoerências na relação entre a transliteração e a tradução.8
Além disso, o autor apoiou uma teoria superada a respeito da localização do país de Punt, ao defender uma proposta antiga e polêmica de que a história se passava no Nilo, e não no Mar Vermelho.9 Essa era uma proposta difícil de ser defendida no meio acadêmico (COUYAT; MONTET, 1912, p. 34, n. 114; SAYED, 1977, p. 138-178; KITCHEN, 1982, col. 1198-1201), mas afetou a tradução do conto feita por Le Guilloux (LE GUILLOUX, 1996, p. 9).10 O caso foi encerrado pelo progresso da investigação arqueológica no Mar Vermelho, auxiliada pelas repetidas referências ao “grande verde” no registro epigráfico de oficiais egípcios em serviço na região, como Henu, Ameny, Ankhu e Antefoker (OBSOMER, 2019, p. 7-66).
Este trabalho pretende ampliar o alcance das contribuições lusófonas sobre o tema. Apresenta-se aqui o texto original transcrito para a escrita hieroglífica e uma tradução comentada, do ponto de vista gramatical e estrutural da língua, junto ao debate em torno da interpretação de determinadas passagens. Espera-se que esta versão se torne uma ferramenta para estudantes e professores de egípcio médio em português e promova mais acesso ao seu conhecimento.
A gramática, a terminologia e as convenções de transliteração das palavras aqui adotadas seguem Pereira (2016 [2014]).11 O dicionário adotado foi o de Hannig (2006), com ocasionais consultas comparativas aos dicionários de Bonnamy e Sadek (2010 [2009]), Faulkner (1991 [1962]), e ao Thesaurus Linguae Aegyptiae (TLA).
O papiro Hermitage 1115 (= P. Leningrad 1115; = P. St. Petersburg 1115) encontra-se em exposição no Museu Hermitage, em São Petersburgo. Ele possui 12 cm de largura por 3,8 m de comprimento. O texto está organizado em colunas (1-123) e passa para linhas (124-176). Finalmente, o texto retorna ao formato de colunas (177-189). Aceita-se que o texto seja datado entre as XI e XII dinastias (Reino Médio).12
Vladimir Golénischeff apresentou o papiro à Academia no V Congresso de Orientalistas em 1881. Todavia, o texto só foi publicado integralmente pela primeira vez em 1908, com a sua primeira transcrição proposta por Erman (1908). Golénischeff (1913) propôs uma transcrição hieroglífica própria em um estudo geral sobre os papiros conservados no Museu Hermitage.
Outra transcrição foi publicada por Blackman (1932, p. 41-47). De Buck publicou uma revisão dessa transcrição em 1948 (DE BUCK, 1948, p. 100-106). Essas duas obras se alternavam como a versão dominante entre os egiptólogos. A de Blackman veio a sofrer um novo ajuste num artigo de Posener (1976, p. 146-148). Atualmente, uma nova transcrição discute o texto original diretamente do hierático, sendo esse o modelo mais atualizado do texto disponível (POE, 2010 [1996]). Dentre as inúmeras versões traduzidas para antologias, destaca-se a de Miriam Lichtheim (1973, p. 211-215).
O escriba comete erros nas linhas 7, 12, 31, 74, 142 (talvez) e 143. Uma particularidade da ortografia desse escriba é a substituição dos hieróglifos (D37) e
(D40) pelo
(D36), mais simples. Essa característica foi respeitada na transcrição do texto, mas o glossário do apêndice corrigiu a anomalia para facilitar a consulta dessas palavras em dicionários mais completos. Outra peculiaridade do texto é o uso do pronome dependente de primeira pessoa,
wj, num modelo incomum de construção reflexiva (linhas 53, 156 e 161).
O texto é rico em exemplos de formas verbais no estativo e relativas, e de verbos na voz passiva. Esses casos normalmente estão escritos com uma terminação defectiva, o que é útil para testar os conhecimentos gramaticais do leitor.
A transcrição de todos os casos de escrita defectiva está corrigida com o acréscimo de conteúdo entre parênteses.
Uma expedição egípcia fracassada retorna da Baixa Núbia (Wawat). O comandante, receoso por seu futuro, é consolado por um leal membro da corte. Enquanto o navio atraca nos arredores de Elefantina, ele oferece conselhos inspiradores e então lhe conta uma história incrível sobre algo que lhe acontecera no passado.
Tem início, então, o relato sobre uma expedição a uma remota região mineradora. O personagem, agora transformado em protagonista, tornara-se o único sobrevivente de um naufrágio. Enquanto ele explorava uma ilha misteriosa nos confins do Punt, deparou-se com uma serpente mágica gigantesca.
Após se tornarem amigos, a serpente acolheu o náufrago como hóspede na sua então chamada “Ilha do Ka”, até que ocorresse o seu resgate por uma outra expedição egípcia. O relato é concluído com a chegada do protagonista à corte faraônica, onde ele reporta a sua experiência. O faraó recebe os presentes da serpente e o náufrago é generosamente recompensado.
Ao final do relato fantástico, o leitor é transportado para o presente narrativo, retornando para o cenário inicial do navio aportando em Elefantina e para os esforços do protagonista em consolar o seu líder.
A Ilha do Ka é um espaço idealizado, geograficamente distante e inacessível, onde se constrói retoricamente uma proposta social, política e espiritual. O contato com a ilha ocorre nos confins do mundo conhecido, num país semilendário e exótico (KITCHEN, 1982, col. 1198-1201). Os relatos heróicos, os espaços monstruosos e as interações com o sobrenatural ocorrem com maior frequência em narrativas ambientadas em fronteiras simbólicas, sempre associadas ao mar ou a acidentes geográficos particulares (ALBUQUERQUE, 2010, p. 50 ff.; MARTINEZ, 1999, p. 243-279).
Um forte simbolismo da ilha está ligado ao mito da criação e ao momento em que emerge o monte primordial e o deus Tatenen. Ilhas também são representações comuns na descrição do além (ALTENMÜLLER, 1975, p. 321 ff.; FAULKNER, 1972, p. 91 ff.).13 A Ilha do Ka, enquanto fronteira transcendente, está situada entre os mundos físico e espiritual e é guardada por uma serpente demoníaca.14
Um demônio-guardião está “aprisionado” ao espaço que protege, seja ele no mundo material ou imaterial, possivelmente por obediência ao desígnio de um deus de quem é vassalo (EDWARDS, 1960). Assim, fica aqui proposta a leitura de um possível nome/epíteto, “Governante do Punt”, referido na linha 151. Ele poderia descrever uma delimitação física do domínio da serpente e o espaço que limita a sua mobilidade enquanto guardião espiritual.
A natureza ambígua da serpente se reflete na palavra egípcia para “veneno” (mtw.t), que é também empregue para “esperma” (HANNIG, 2006, p. 396). Uma vez que é o seu esperma que traz a morte, contrariamente ao que ocorre com os demais seres vivos, uma tênue separação entre vida e morte faz da serpente uma criatura de natureza imprevisível e contraditória. A serpente pode representar igualmente forças negativas e positivas (STEGBAUER, 2019). Os poderes do demônio-guardião condizem com essas características. Paralelamente ao veneno de uma serpente que queima quando inoculado e provoca febres na sua vítima, a serpente do conto pode lançar chamas pela sua boca (linhas 70-73).
A natureza da poderosa serpente Governante do Punt é um mistério, embora muito se especule a esse respeito. O fato de conseguir criar uma filha com o poder das suas preces (linha 129), demonstra que a serpente possuía um logos criativo divino, tal como ocorre no mito da criação pelo verbo da “Teologia Menfita” (FLEMING; LOTHIAN, 1997). Essa informação é muito relevante, porque a fronteira ontológica entre deuses e demônios é delimitada pela premissa de que os demônios não possuiriam a capacidade de criação. Assim, o Governante do Punt não seria um mero demônio-guardião a serviço de uma divindade, mas sim a manifestação de um aspecto de uma divindade criadora. Um caso similar ocorre no Livro da Vaca Celeste, em que o demônio Sekhmet é, na verdade, um aspecto da deusa Hathor (HORNUNG, 1982).
Especula-se uma conexão entre a serpente e o deus Rá. Na linha 127, a serpente menciona que a ilha era habitada por 75 serpentes, número que descreve os aspectos do deus na “Litania de Rá” (PIANKOFF, 1964; DERCHAIN-URTEIL, 1974, p. 101). Se a serpente for um aspecto de Rá, confirma-se a proposta de Derchain-Urteil de que a filha criada pela serpente era, de fato, uma referência à deusa Maat (DERCHAIN-URTEIL, 1974, p. 83-104).
As campanhas de conquista do Wawat iniciam-se no reinado de Mentuhotep II (XI dinasta, ca. 2055-2004 a.C.) e seguem com os governantes da XII dinastia. Senusret I (ca. 1956-1911 a.C.) estabeleceu a fronteira em Buhen, e Senusret III (ca. 1870-1831 a.C.) expandiu o Egito até Semna. A presença egípcia na região exigiu o estabelecimento de uma fronteira fortificada na área de Semna, criada durante o reinado de Senusret III.15
Uma complexa estrutura administrativa também viabilizava as rotas de longa distância para o sul do Mar Vermelho. A sua logística dependia de portos intermediários estabelecidos ao longo do Deserto Oriental. Um porto estratégico naquela área foi Tjau (), a Myos Hormos da documentação greco-romana (atual el-Quseir) (PEACKOK et al., 2011).16 Uma rota terrestre, de aproximadamente 200 km, percorre todo o wadi Hammamat, ligando aquele porto a Coptos (g b t j w).17
A rota terrestre do wadi Hammamat tornou-se um recurso epigráfico importante para a documentação desse tráfego, graças ao grande número de grafites deixados pelas expedições através de séculos de uso da trilha. Estima-se que essa rota para o Punt18 tenha sido estabelecida no Reino Médio, no final da XI dinastia, sob o governo de Mentuhotep III, em ca. 1996 a.C.19
A conexão terrestre com o Mar Vermelho integrava as navegações na região mineira do Sinai e portos de escala mais próximos da capital (TALLET, 2015, p. 31-72). Desses portos, Mersa Gawasis tornou-se particularmente relevante para o comércio com o Punt (OBSOMER, 2019, p. 7-66). Os grandes navios para lá destinados eram construídos em secções em Coptos (gbtjw) e Qena (), incluindo velas de linho, cordames de cânhamo, pranchas, mastros etc., e transportados em seções para Mersa Gawasis através do wadi Hammamat ou do wadi Safaga.20 Em seguida, os navios eram armados e equipados para as expedições.21
As expedições para o Punt incluíam o comércio com populações locais (negociações lideradas pelo emissário) e a atividade mineira (MANZO, 2017, p. 87-108; BARD; FATTOVICH, 2018). Possivelmente, as “Minas do Soberano” referidas no conto são uma alusão a um lugar denominado “Minas de Punt” (), ligada à extração de ouro. O registro epigráfico no Mar Vermelho aponta esse termo pela primeira vez numa inscrição da XII dinastia, no porto egípcio de Mersa Gawasis (SAYED, 1977, p. 176). 22
Quando o termo “Minas de Punt” ocorre na estela do emissário Ameny, ele refere-se ao local onde uma grande expedição marítima desembarcou nos tempos de Senusret I (ca. 1956-1911 a.C.) (FAROUT, 1994, p. 144; FAROUT, 2006, p. 44-45; TALLET, 2009, p. 695). A expedição de Ameny incluía o seguinte contingente:23
50 seguidores do Senhor v.p.s –
1 intendente do Grande Conselho v.p.s –
500 marujos da equipagem do Senhor v.p.s –
5 escribas do Grande Conselho –
3.200 soldados –
Uma lista de navios com nomes basilofóricos em honra a Senusret I indica que, na XII dinastia, os egípcios intensificaram sua conexão comercial com a região de Punt (FAROUT, 2006, p. 48). A descoberta de uma série de ostraca e etiquetas de jarros em Mersa Gawais confirma um aumento no fluxo de gêneros alimentícios egípcios no Mar Vermelho a partir dessa época, tendo como função prover as expedições destinadas ao país de Punt (SAYED, 2008, p. 267-334).
O Conto do Náufrago também contribui para a compreensão da logística dessas navegações na rota de Punt. Uma vez que a serpente profetiza o resgate do náufrago precisamente após quatro meses (linha 118) e por uma tripulação conhecida (linha 121), há uma sugestão de que o trânsito no Mar Vermelho estaria associado a grupos de trabalho sazonais.
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