Resumo: A “Lei de Irrigação” foi o primeiro instrumento de regulação legislativa proposto pela Operação Nordeste, em 1959, e representa a gênese do enfrentamento da questão agrária pela Sudene. O debate e a aprovação desse projeto pelo Conselho Deliberativo do Codeno, órgão que precedeu a Sudene, expõe as disputas políticas em torno da possibilidade de desapropriação de terras, opondo as elites algodoeiras-pecuaristas cearenses ligadas ao DNOCS ao projeto da Sudene. Este trabalho analisa a formulação da “Lei de Irrigação” (PL nº 882/1959) a partir das atas do Conselho Deliberativo, observando seus antecedentes, a coalizão entre governadores nordestinos, Exército, empresários industriais, Igreja Católica e técnicos do DNOCS, assim como a reação cearense e o debate legislativo nos anos de 1959 e 1960 que obstaculizou sua aprovação. A proposta de desapropriações das áreas irrigadas com financiamento público, apesar de ser histórica na região e ser um projeto de reforma agrária moderada em sua extensão, expõe a questão fundiária latente ao projeto e o seu consequente impedimento.
Palavras-chave: Lei de Irrigação, Sudene, questão agrária, Celso Furtado, desapropriação.
Abstract: The “Irrigation Law” was the first instrument of legislative regulation proposed by the Operation Northeast, in 1959, and represents the genesis of the confrontation of the agrarian question by Sudene. The debate and approval of this project by the Deliberative Council of Codeno, the agency that preceded Sudene, exposes the political disputes around the possibility of land expropriation, opposing the cotton-livestock elites from Ceará linked to DNOCS to the Sudene project. This paper analyzes the formulation of the “Irrigation Law” (PL nº 882/1959) from the minutes of the Deliberative Council, observing its antecedents, the coalition between northeastern governors, the Army, industrial entrepreneurs, the Catholic Church and DNOCS technicians, as well as the reaction from Ceará and the legislative debate in the years 1959 and 1960 that hindered its approval. The proposal for expropriation of irrigated areas with public funding, despite being historic in the region and being a moderate agrarian reform project in its extension, exposes the land issue latent to the project and its consequent impediment.
Keywords: Irrigation Law, Sudene, agrarian question, Celso Furtado, expropriation.
ARTIGO
“LEI DE IRRIGAÇÃO” (1959) DA SUDENE: DESAPROPRIAÇÃO E QUESTÃO FUNDIÁRIA NO NORDESTE1
SUDENE’S “IRRIGATION LAW” (1959): EXPROPRIATION AND THE LAND ISSUE IN THE NORTHEAST
Recepção: 17 Outubro 2022
Aprovação: 27 Julho 2023
O Projeto de Lei (PL) nº 882/1959, da Câmara dos Deputados, que “Regula o uso da terra e da água nas áreas de irrigação do Nordeste, e dá outras providências”, é a reconhecida “Lei de Irrigação” da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene. Proposta encaminhada ao Legislativo Federal, em agosto de 1959, resultou das ações do recém-criado Conselho de Desenvolvimento do Nordeste – Codeno, órgão que iniciou suas atividades em abril de 1959, sob a direção de Celso Furtado, e que precedeu a Sudene, criada em dezembro daquele ano. O PL nº 882/1959 estabelecia uma política de irrigação da Sudene com foco no semiárido nordestino, sendo essas terras projeto de uma reestruturação para a agricultura de alimentos de combate às secas. A proposta era a formulação de um plano de irrigação que utilizasse o instrumento da desapropriação de terras, estimulando a formação de uma classe de regantes nas bacias dos açudes e áreas irrigadas, que seria formada por trabalhadores sem-terra dessa região, e destinadas ao uso “racional” da água, o que significava garantir água para a produção de alimentos, especificamente a policultura.
Este artigo objetiva analisar o processo de formulação da “Lei de Irrigação”, o PL nº 882/1959, com foco nos seus antecedentes, na formação de consenso e de oposição, e no seu respectivo naufrágio no Congresso Nacional. O caminho seguido foi (1.) identificar a trajetória desse projeto desde sua origem e formulação pelos técnicos do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS), sob a liderança de José Augusto Trindade; (2.) analisar o processo de decisão no Conselho Deliberativo (Condel) do Codeno, depois Sudene, registrado nas atas desses órgãos; (3.) observar a formação de consenso entre setores militares, empresariais e da Igreja Católica, e (4.) examinar a oposição do governo do Estado do Ceará à “Lei de Irrigação” da Sudene como estratégia de controle político do DNOCS pela aliança cearense PSD-PTB, assegurando desse modo o naufrágio do PL.
As disputas em torno da reforma agrária e do instituto da desapropriação de terras têm longa trajetória na batalha política brasileira, que consiste em questão central do capitalismo periférico desde a formação colonial, estrutura amplamente reconhecida pela literatura por sua adaptação às transformações econômicas para manutenção da concentração fundiária e intocabilidade do latifúndio.
No período republicano, a partir de 1889, até a década de 1950, a reforma agrária foi um tema estrutural das disputas políticas nacionais, reunindo diversos projetos e oposições. A reforma agrária na região nordestina, na década de 1950, figura como questão nacional com amplo impacto nas disputas políticas nacionais e teve peso decisivo no Golpe Civil-Militar de 1964, segundo Medeiros (1989) e Dezemone (2016). É indissociável das questões do mundo do trabalho rural, da atuação das Ligas Camponesas no período, da desapropriação do Engenho Galileia (dezembro de 1959), da sindicalização rural (atuação desde 1954 da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas no Brasil – Ultab, associada ao Partido Comunista Brasileiro – PCB), da pobreza rural, assim como das mudanças de legislação produzidas pelo Poder Público, como o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), de 1963, e as centenas de propostas de reforma agrária apresentadas ao Congresso Nacional no período 1950-1964.
A experiência inicial da Sudene em relação à reforma agrária, segundo Camargo (1981, p. 195), reforçou “moderadas disposições reformistas”, que tinham apoio na Igreja Católica (desde a “Carta de Salvação do Nordeste”, de 1956), de parte dos industriais paulistas e da Confederação Nacional da Indústria, mas que não atacava frontalmente a má distribuição da propriedade nem confrontava os latifundiários da Zona da Mata nordestina. A Sudene significou em 1959, para o governo Juscelino Kubitschek (1956-1960), segundo Camargo (1981, p. 199), uma alternativa para a reforma agrária na região nordestina. O período 1958-1964 (Operação Nordeste-Sudene) é o de maior destaque a respeito da obra e trajetória de Celso Furtado e foi fartamente analisado pela literatura de referência, que reconhece na “Lei de Irrigação” uma estratégia de reforma agrária para a região nordestina3. A “Lei de Irrigação” significa o primeiro ato da Operação Nordeste, momento de formação dos grupos e de interesses aglutinados no apoio e na oposição à Sudene e que perdurariam nos anos subsequentes. Oferece também pistas a respeito da extensão do projeto de reforma agrária da Sudene e de Furtado que estavam em disputa naquele momento.
Hirschman (1965 [1963]), Oliveira (1977), Camargo (1981), Carvalho (1988) e Vieira (2007), principalmente, identificaram elementos centrais da disputa desse projeto de lei. O que desejamos é lançar luz sobre essas teses defendidas, a respeito da “Lei de Irrigação”, partindo da análise documental das atas do Condel e dos anais do Congresso Nacional, no esforço de estabelecer um delineamento entre os antecedentes, os grupos de apoio e de oposição. A hipótese é a de que o projeto de reforma agrária Furtado-Sudene tenha sido o de maior capilaridade política e o mais próximo de se concretizar dentre os projetos concorrentes no período 1959-1961, e isso se deve ao alto grau de aglutinação em torno desse projeto por diversas forças políticas, como representantes da burguesia industrial paulista, do Exército Brasileiro, da Igreja Católica e dos próprios técnicos do DNOCS.
A política de reforma agrária de Furtado, através da Sudene, foi traço de distinção nas disputas do reformismo nacionalista e pode ser identificada nas forças políticas e sociais presentes na gramática da formulação da “Lei de Irrigação” aqui apresentada. O apoio reunido ocorreu devido à moderação desse projeto, por se restringir à região do semiárido nordestino, de baixo impacto contra os latifundiários. Na mesma medida, o PL nº 882/1959 insuflou a oposição cearense, reunida na aliança PTB-PSD no estado, que viu ameaçado seu controle sobre o DNOCS naquele momento, emperrando sua tramitação.
A política de irrigação para a agricultura que prevê o instrumento da desapropriação tem antecedentes históricos na região Nordeste, e a proposta do Codeno/Sudene possui vínculos com essas experiências de combate às secas da primeira metade do século XX. O PL nº 882/1959 foi uma defesa de grupo, como desejamos apresentar, que partiu dos técnicos do DNOCS, principalmente Vinícius César Silva de Berrêdo e José Guimarães Duque, posições marcadas pela trajetória de José Augusto Trindade e a geração de agrônomos da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas – IFOCS4. Partindo da defesa histórica de uma lei de irrigação, estava o posicionamento político agregador e moderado de Celso Furtado, como já apontado, que reunia ampla pactuação entre militares, empresários industriais do Centro-Sul e autoridades da Igreja Católica. Os adversários da proposta da Sudene, do mesmo modo, têm raízes históricas nas elites algodoeiras-pecuaristas do semiárido nordestino, principalmente do estado do Ceará, e que controlavam politicamente o DNOCS.
As iniciativas hídricas no Nordeste, através da açudagem e da irrigação, desde o século XIX, não produziram mudanças significativas na questão agrária da região. A primeira regulação jurídica de áreas de irrigação no Nordeste foi o Decreto nº 3.965, de 25 de dezembro de 1919, a Lei Epitácio Pessoa. Apresentada pelo deputado potiguar Eloy de Souza em 1911, foi retomada em 1919. Instituía a possibilidade de desapropriação das terras irrigáveis (art. 3º), porém assegurava os “direitos dos grandes proprietários”5 (CARVALHO, 1988, p. 213), garantindo um instrumento para a não desapropriação e mantendo a pax agrariae na região.
Trindade foi pioneiro na defesa de uma política de agricultura nas áreas irrigadas advindas das obras públicas de açudagem que atendesse os pequenos proprietários e trabalhadores em regime de meação (que não possuíam a terra), enfrentando o deslocamento dessa população e buscando a fixação desses trabalhadores na agricultura de alimentos.
Dois argumentos de Trindade (1940) se tornaram centrais para o diagnóstico da Sudene, formando uma sequência entre as ideias de Trindade e o PL nº 882/1959. Primeiro, a percepção de que “a irrigação é totalmente uma criação do Estado, como um instrumento regulador da vida econômica de uma região de chuvas de grande irregularidade, no tempo e no espaço” (TRINDADE, p. 97). Segundo, a noção de que o “aproveitamento agrícola das obras do Nordeste” se trata de “um problema sociológico, e, portanto, político, antes de tudo” (Idem, p. 106). No período da seca, segundo Trindade, a retirada da população estava concentrada na “grande classe” de meeiros e do pequeno dono de terra que constituem “o problema da seca”, ocasionando o aumento da migração. “Nesta classe é que está o estoque dos futuros irrigantes do Nordeste” (Idem, p. 106). O êxito da lavoura irrigada estaria condicionado à garantia da “terra própria” para os meeiros (Idem, p. 112).
A defesa da produção de alimentos nas áreas irrigadas, a proibição da cultura da cana-de-açúcar (“cultura individualista” e “latifundiária”) e da criação de gado, assim como a defesa de um estatuto para a irrigação, são elementos apontados por Trindade que estão no projeto da Sudene. Em 1939, o presidente Getúlio Vargas formou uma Comissão Interministerial com o objetivo de propor a regulação das terras irrigáveis, e Trindade desempenhou importante atuação como representante da IFOCS, segundo Arthur Torres Filho (1954, p. 212-213), também membro dessa comissão. Um projeto foi entregue ao presidente, em dezembro de 1940, “que traçou o aproveitamento sistemático das terras irrigáveis e sua colonização com a formação de núcleos de imigrantes, centro dos ensinamentos mais avançados da época”, que se inspiravam nas experiências dos postos agrícolas defendidas por Trindade (1940). Antonio Callado (1960, p. 7) aponta para essa proposta como a primeira lei de irrigação, e que nunca entrou em vigor.
Alguns técnicos da IFOCS e do DNOCS, na esteira de Trindade, como Berrêdo e Duque já mencionados, e Evaristo Leitão e Inácio Ellery Barreira, estiveram associados às propostas de combate à seca com desapropriação das terras irrigáveis (QUEIROZ, 2020). Berrêdo (1986, p. 97) defende uma legislação das terras irrigáveis que impusesse “um regime de severa disciplina na exploração dessas terras”, através da “desapropriação das terras dessas bacias, para seu parcelamento e colonização ulteriores, por pequenos proprietários” e a garantia da “reserva do domínio público sobre elas, e sua exploração num regime de arrendamento”. Duque (1980) segue na mesma direção, no seu trabalho Solo e água no polígono das secas6, uma referência fundamental para o PL nº 882/1959 e para a primeira geração da Sudene.
Entendemos que o açude público deve pertencer ao Governo, incluindo as bacias hidráulica e de irrigação mediante desapropriações, que o órgão técnico do Governo faça a conservação das obras, estabeleça o arrendamento dos lotes mediante contrato, no qual fica assegurada a produção de gêneros alimentícios e a preservação da fertilidade do solo, e que a exploração do açude seja facultada a uma sociedade ou cooperativa organizada com famílias de poucos recursos
(DUQUE, 1980, p. 171).Segundo Carvalho (1988, p. 217-218), essa posição de Duque está associada às formulações de Trindade e Berrêdo. Duque não tratou sobre o domínio da estrutura agrária, segundo Carvalho, fazendo uma defesa “telúrica” do Nordeste, em sua dimensão ecológica, do meio ambiente em relação às secas, porém, foi uma defesa avançada em relação aos antecessores do DNOCS, contrastando com as interpretações sobre açudagem e irrigação. A moderação na crítica ao latifúndio está presente nas posições de Trindade e Duque, e Buckley (2017, p. 148) aponta que, nas décadas de 1930 e 1940, raramente Trindade e Duque culpavam a grande propriedade no sertão como motivação para o sofrimento humano nas secas, apontando mais para a debilitação da cultura e da educação dos agricultores do semiárido.
Os antecedentes da Sudene e do PL nº 882/1959 são identificáveis em diversas manifestações da década de 1950, conforme analisaram Cohn (1976), Oliveira (1977), Camargo (1981) e Carvalho (1988). Podemos verificar a defesa das desapropriações no Congresso de Salvação do Nordeste (FELDHUES, 2014, p. 131), planejado pela prefeitura do Recife e organizado pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Codepe), em agosto de 1955, em que recomendam na Carta de Salvação do Nordeste: “a imediata desapropriação das terras situadas no Polígono das Secas, à jusante dos grandes açudes públicos, ou que tenham sido beneficiados por obras e serviços dos governos”. Sobre as secas, apontam para “a definição de um critério social para obras de irrigação, poços tubulares, pequenos e médios açudes, barragens subterrâneas” (CONGRESSO DE SALVAÇÃO DO NORDESTE, 1955, p. 10).
A declaração do Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em maio de 1956, em Campina Grande (PB), também apontou na mesma direção (ROCHA, 2016, p. 91), afirmando que as áreas dos grandes açudes públicos, por não serem desapropriadas, desde os tempos do IFOCS, são pouco aproveitadas para a produção de alimentos. Afirma também que se estimava uma área irrigável de 200 mil hectares no Polígono das Secas, que poderiam abrigar aproximadamente 400 mil trabalhadores (COHN, 1976, p. 88-89).
Alguns projetos de lei tentaram disciplinar o uso de terras do Polígono das Secas e das áreas de irrigação, originados principalmente no partido União Democrática Nacional (UDN)7. Dentre esses, o único projeto de lei cuja tramitação avançou foi o nº 35/1949, na Câmara dos Deputados (PL nº 64/1957, no Senado Federal), de autoria do deputado federal Plínio Lemos (UDN/PB). O projeto previa a desapropriação de áreas irrigadas, destinadas à produção de alimentos, e considerava o DNOCS o órgão executor para a realização da política de colonização prevista. Foi encaminhado para sanção presidencial em setembro de 1959 e vetado, pois ia de encontro ao PL nº 882/1959, debate que será apresentado adiante.
O Seminário para o Desenvolvimento do Nordeste, que ocorreu entre 25 de abril e 3 de maio de 1959, em Garanhuns (PE), realizado pela Confederação Nacional da Indústria – CNI, reuniu empresários, representantes de classe, políticos, Igreja Católica, técnicos e servidores públicos. Foi nesse seminário que se observou o primeiro registro histórico da intenção de Furtado na formulação de uma lei de irrigação, quando anunciou em sua exposição. É perceptível o ineditismo da proposta feita por Furtado e pelo coletivo do Codeno naquele momento, lembrando que a proposta da lei não estava explicitada no documento do GTDN (1959) publicado um mês antes, em março de 1959. Furtado critica na sua exposição o uso social das terras irrigadas, ponto-chave do PL nº 882/1959, e que deveriam constar na política de desenvolvimento da região:
Só se justifica descapitalizar as bacias irrigadas se as mesmas forem destinadas a um fim social, isto é, a da maior estabilidade à oferta de alimentos nas regiões afetadas pelas secas. As terras irrigadas com recursos públicos devem estar em condições de poder ser mobilizadas para a produção intensiva de alimentos ao primeiro indício de seca. Destarte, é indispensável que as bacias de irrigação estejam organizadas em empresas mistas ou cooperativas, técnica e financeiramente assistidas pelo governo, para que possam operar como uma reserva rapidamente mobilizável em caso de seca
(CNI, 1959, p. 18).Furtado segue defendendo a finalidade social dessas áreas irrigadas, sua capitalização através de empresas mistas e cooperativas, com uma agricultura adaptada ao meio e resistente à seca. Reconhece também que essa adaptação liberaria parte da mão de obra, de modo que conjugaria essa política de irrigação com o deslocamento da fronteira agrícola para as terras úmidas do Maranhão e norte goiano.
A dinâmica do Seminário compreendia a realização de sessões com expositores, seguida por um debate e a aprovação de recomendações pelos participantes. Nos debates, o bispo auxiliar de Natal, Eugênio Sales,8 acena para a necessidade de se atacar a causa do problema da terra, a estrutura agrária, e afirma que “não se pode perder essa oportunidade, que é magnífica porque a opinião pública está favorável a esta solução” (Ibid, p. 231). A resposta de Furtado a Sales é a indicação da lei de irrigação9, seus riscos e do desafio político iminente:
Vamos aproveitar esse grande entusiasmo, dessa opinião firmada de tantas pessoas autorizadas para conseguir passar no Senado, essa lei dando regulamento ao aproveitamento de terras da bacia de irrigação. Se tiver êxito pensaremos no problema da regulamentação de terras e aí daremos um passo adiante, e das terras que podem servir para produzir alimentos na região nordestina e que estão sendo utilizadas, se chegarmos nessa terceira etapa e tivermos êxito, então estaremos donos da casa. Teremos modificado a opinião nacional, teremos encontrado no nosso Legislativo o apoio decisivo e teremos feito um progresso decisivo, como não tínhamos em quatro séculos de ocupação de país
(Ibid, p. 231).O desafio da aprovação da “Lei de Irrigação” estava posto, dependia da opinião nacional para regulamentação das terras, que se mostrava favorável, e necessitava do apoio decisivo do Legislativo, o que fracassou rotundamente.
Furtado foi questionado sobre o delineamento do projeto, ao que contestou: “Quem está elaborando a lei é um grande advogado. O Sr. Aluísio Campos10, poderá esclarecer bem o assunto” (Ibid, p.231). O fato apontado, de ser Campos o elaborador, só se registra nesse momento, já que não há qualquer outra menção nas atas do Condel do envolvimento de Campos nesse debate. Como veremos adiante, o anteprojeto foi apresentado por Furtado ao Condel (CODENO, ATA_E_S2_003_1959) como uma construção de um grupo de técnicos, momento que cita nominalmente a participação de Duque, Berrêdo e Estevam Strauss. Campos foi membro da Comissão Nacional de Política Agrária, quando era Chefe do Departamento Jurídico do BNDE (CAMARGO, 1981, p. 149). Essa comissão propôs um projeto de lei para as áreas irrigáveis do polígono das secas do Nordeste em 1952, no governo Getúlio Vargas (1951-1954), estabelecendo uma linha que seria seguida de perto pelo PL nº 882/1959 (BERCOVICI, 2020, p. 206; CLEOPHAS, 1960, p. 64), como a proposta de desapropriações, a exclusão das obras e o beneficiamento com recursos públicos do valor de transmissão dos lotes, e a criação do Fundo de Irrigação. Cleophas reconhece a colaboração de Berredo e Duque no projeto da Comissão (COMISSÃO NACIONAL DE POLÍTICA AGRÁRIA, 1956, p. 46).
Diante do questionamento de Furtado no Seminário, Campos (CNI, 1959, p. 232) respondeu que a lei era um “primeiro passo experimental no sentido de nós começarmos a ter uma Estrutura Agrária, com o propósito de orientar a produção agrária e aproveitar o uso de terra”. Campos aponta para a lei de desapropriação por interesse social do último governo Vargas, que tramitava na Câmara dos Deputados e foi reativada em 1962 (CAMARGO, 1981, p. 181), afirmando que criaria muita resistência, além de o Poder Público não dispor “de meios” para as indenizações em dinheiro (CNI, 1959, p. 232). O passo experimental era a tentativa de realizar desapropriações em pequenas escalas, somente nas bacias irrigadas do Nordeste, regulando desse modo a extensão das desapropriações, diminuindo seu impacto. No gérmen do PL nº 882/1959, estão a contenção e a moderação nas mudanças da estrutura fundiária. Essa “lei experimental” teria repercussão “como o primeiro passo dado como modificação da estrutura agrária, somente na área de irrigação”, e em seguida conclui, “nós não estamos maduros para pretender elaborar uma lei de sentido mais amplo (Ibid., p. 232).
A disciplina seria do governo, o lote agrícola não poderia ser reduzido a ponto de se tornar antieconômico, principalmente na região semiárida, argumento já defendido por Duque (1980) e Berrêdo (1986), e as obras públicas deveriam estar fora dos valores de desapropriação, sendo todos elementos contidos no PL nº 882/1959. Furtado (CNI, 1959, p. 232) acrescenta dois tópicos à exposição de Campos, de que essa terra “não poderia ser imobilizada com cultura permanente”, para estarem disponíveis no período de seca e submetidos a “uma disciplina”.
Na exposição no Seminário do sociólogo e técnico do Senado Federal, José Arthur Rios, “Modificação da estrutura agrária do Nordeste”, ocorre a antecipação do debate sobre as desapropriações, a fim de se realizar uma política agrária. As recomendações aprovadas pelo Seminário (Ibid., p. 388-391) indicam a necessidade de planejamento e modificação da estrutura agrária através de desapropriações para a produção de alimentos, de áreas férteis, dos açudes, com indicação de instalação de núcleos de colonização. A recomendação 9 aponta que as zonas semiáridas e áreas de irrigação devem ter tratamento à parte, conduzida por um plano de imigração. A recomendação 25 é a descrição do propósito geral do PL nº 882/1959: “Que o poder público, ao organizar planos de melhoria rodoviários, de açudagem ou irrigação desaproprie, previamente, as áreas por eles abrangidos e que o título definitivo seja outorgado somente quando comprovada sua utilização pelo ocupante”. Essa foi a tônica do projeto de lei do Codeno, dois meses depois dessa recomendação.
A Mensagem ao Congresso Nacional nº 365 (BRASIL, Presidência da República, 1959), que apresenta o PL nº 882/1959, aponta a necessidade de criação “de uma agricultura resistente às secas”, e reconhece o “grande esforço” do “sistema de barragens” construído no Nordeste, principalmente nos últimos três anos. A questão estava na realização de “um programa de obras visando a integral utilização dessas águas com critério econômico e social” (Ibid., p. 2). Quatro pontos norteavam o “espírito” da proposta: “I. criação de uma classe de agricultores regantes de nível de vida suficientemente alto para que pudessem desempenhar sua complexa missão de interesse econômico e social” (Ibid., p. 3); “II. garantia de utilização ótima da capacidade de produção criada pelo investimento público” (Ibid., p. 5); “III. garantia dos padrões técnicos requeridos para preservação dos recursos naturais” (Ibid., p. 6); “IV. preservação do caráter social na utilização da capacidade produtiva das terras irrigadas” (Ibid., p. 6).
O elemento de crítica do instrumento proposto pela Sudene em relação à política praticada pelo DNOCS pode ser identificado na descrição dos pontos I e II do anteprojeto, na oposição da Sudene explícita a “uma classe privilegiada de proprietários absenteístas”, que gozam do acesso às águas represadas e do recurso público, havendo experiências de terras irrigadas ociosas ou parcialmente utilizadas. O desejo era a “utilização plena de terra e água” para “harmonizar o interesse de cada um e o objetivo social do investimento público”. Por fim, se trata de “lançar as bases de um novo tipo de agricultura do Nordeste”, em prol da “emergência desse empresário agrícola”.
Para uma visão geral, o PL nº 882/1959 apresenta os seguintes principais pontos:
A irrigação e o aproveitamento das terras (art. 1-4): define somente os estados do Nordeste como objeto da lei (não inclui Minas Gerais); estabelece os “planos de irrigação aprovados pela Sudene” (1) como determinantes das áreas irrigáveis “necessárias ao aproveitamento racional da terra e da água” (2); considera sua “mais alta essencialidade para o desenvolvimento da região” (3) e condiciona as terras irrigadas a serem utilizadas somente “para os fins permitidos no plano de irrigação” (4).
O instrumento da desapropriação (art. 5-8): visando a execução dos “planos de irrigação, poderão ser efetuadas desapropriações por utilidade ou necessidades públicas, assim como por interesse social” (5); essas terras por interesse social são “destinadas à constituição dos lotes agrícolas” e direcionadas ao “bem-estar dos regantes e das suas comunidades rurais” (6); são estabelecidos os preços e os mapas agrológicos (7), e excetuam-se da indenização as “obras hidráulicas ou complementares construídas pelo poder público ou por ele projetadas” (8).
O arrendamento do lote agrícola (art. 9-19): o lote agrícola “não poderá exceder de quinze hectares irrigáveis nas bacias dos açudes ou nas áreas servidas por poços e de cinquenta hectares nas dos rios perenes” (9), sendo essas áreas desapropriadas “mediante arrendamento, distribuídos a agricultores que exerçam diretamente a agricultura como atividade exclusiva”, com “preferência” por “agricultores radicados na região”, no “prazo de três anos”, podendo “optar pela compra do lote” (10); não pode haver “subarrendamento”, os preços serão fixadas pela Sudene, estabelece penalidade, quem poderá explorar, as formas de pagamento, a indivisibilidade do lote e a transferência (10-16).
A rescisão e a extinção do lote agrícola (art. 20-27): estabelece as situações de extinção do arrendamento, como a exploração “em desacordo com as normas” (20-23); estabelece os termos para extinção do arrendamento pelos sistemas de irrigação, assegurando “direito à colheita da lavoura fundada” e “indenização de benfeitorias” (24-25); e o lote só poderia ser dado “em garantia de financiamento concedido para a sua aquisição” (26).
As desapropriações (art. 28-30): apresentado na íntegra o art. 28, pela sua importância:
Art. 28 – As propriedades que, na data desta lei, tiverem terras irrigadas com águas do sistema público de irrigação serão total ou parcialmente desapropriadas, nos seguintes casos:
se pertencerem a proprietários que não exerçam a agricultura como atividade preponderante;
quando maiores do que dois lotes agrícolas do sistema;
quando a área irrigável da propriedade for menor do que aquela considerada econômica no sistema.
§1º – Na hipótese da alínea b, se o proprietário exercer a agricultura como atividade principal, a expropriação incidirá somente sobre a parte que exceder o tamanho dos dois lotes.
§2º – As valorizações decorrentes de obras públicas, construídas, em construção ou projetadas, não serão consideradas para efeito de indenização (art. 8º).
§3º – Cabe ao proprietário atingido pela desapropriação parcial prevista neste artigo obter desapropriação total, se assim preferir (BRASIL, 1959, p. 8).
Estabelece a obrigação dos titulares “ao pagamento das parcelas de instalação e edificações”, e estabelece a transferência da propriedade para o Poder Público ou empresa administradora do sistema de irrigação (29-30).
As obrigações dos regantes (art. 31-32): fixa o pagamento de taxas de utilização (31); estabelece “obrigações”, como “adotar medidas e práticas recomendadas pela administração do sistema, para a conservação da fertilidade do solo”, “permitir a fiscalização” e prestar informações (32).
Administração, fundo e orçamento (art. 33-37): “para administrar os sistemas públicos de irrigação, deverá a Sudene promover a constituição de empresas” e aprová-las “com a cooperação de órgãos ou entidades governamentais” e “pessoas ou empresas privadas especializadas (33); institui o “Fundo de Irrigação do Nordeste” formado por diversas fontes (34); isenta de impostos e taxas (35), e estabelece os bancos responsáveis e o vigor da lei (36-37).
Em termos gerais, podem ser constatada as seguintes características do projeto de lei: confia à Sudene a realização dos planos de irrigação, estabelecendo as áreas das desapropriações, o preço, as condições do uso racional da água e seu interesse social; estabelece os lotes agrícolas, sua dimensão, a forma do arrendamento com pagamento de aluguel, as possibilidades de compra do lote e os termos de desfazimento do contrato; desapropria as áreas já irrigadas até a lei entrar em vigor; por fim, cria os instrumentos de administração do sistema, seu orçamento e a constituição de um fundo, etapas administradas pela Sudene.
A primeira menção à Lei de Irrigação nas reuniões do Condel ocorre na 2ª RO11 de 1959, em 1º de julho, quando Furtado (CODENO, ATA_S1_002_1959, p. 3-4) apresenta os trabalhos realizados no mês de junho pela equipe do Codeno, que tinha o objetivo de elaborar “um plano de emergência para o caso de uma seca no Nordeste”. Nesse momento há o registro: “Comunica, ainda, que o Projeto de Lei de Irrigação já está pronto”. Furtado afirma que cópias seriam distribuídas aos conselheiros do Condel, “acertando-se que, se até o fim do corrente mês de julho não apresentem sugestões acerca da lei de irrigação, será a mesma dada como aprovada e, em seguida, encaminhada ao Sr. Presidente da República”, proposta da qual não houve objeção (Ibid., p. 3-4).
Os artigos que fazem parte do projeto de lei foram aprovados pelo Condel na 3ª RE, em Teresina (PI), no dia 5 de agosto de 1959, 2ª sessão. Nesse mesmo mês, no dia 26, foi apresentado pelo Executivo Federal ao Congresso Nacional. Ao analisar o debate realizado no interior do Condel, a partir das atas (CODENO, ATA_E_S2_003_1959), conseguimos observar o grau de coalização, representando um momento-síntese de expressão das tensões no Condel e antecipando parte dos argumentos oposicionistas que serão duradouros até 1964. Dois movimentos de posição sobre a lei são identificados: a franca oposição do governo do Ceará ao projeto, sob a justificativa da necessidade de alargamento temporal do debate e a contestação latente das desapropriações previstas pelo projeto de lei; e a confluência de forças políticas para sua pactuação, com apoio decisivo do representante das Forças Armadas e da maioria dos governadores nordestinos, mesmo daqueles que foram oposição às políticas da Sudene (e a Furtado) nos anos subsequentes, como o governador de Pernambuco, Cid Sampaio. Em ambos os movimentos, é nítida a consciência sobre a extensão que o PL nº 882/1959 poderia produzir sobre a divisão regional do trabalho e da diversificação do uso da terra, principalmente sobre a economia do semiárido, produzindo alterações sobre a posse e a propriedade da terra, objeto dos planos de irrigação.
Na apresentação da ordem do dia da sessão do Condel, o anteprojeto da “Lei de Irrigação”, Celso Furtado explicita a finalidade desse instrumento.
Esclarece que a única forma de estabilizar a oferta de alimentos dentro da região mais afetada pela seca é criar uma agricultura de irrigação, e um dos objetivos básicos desta lei é, justamente, permitir esta política, que nós vamos estudar neste programa de emergência, isto é, constituir meios dentro do Nordeste para aumentar rapidamente a oferta de alimentos
(Ibid., p. 2).Furtado reafirma a necessidade de rapidez na tramitação dessa lei, pois havia outras tramitando no Congresso Nacional. Desse modo propõe que as emendas sejam apreciadas ainda naquela reunião. A oferta de alimentos em áreas irrigadas estava direcionada para a economia do semiárido, do Polígono das Secas, principalmente para as macrorregiões hidrográficas do Parnaíba, Atlântico Nordeste Oriental e São Francisco, área de atuação histórica do DNOCS em sistemas de barragens e açudes.
O reconhecimento da extensão do projeto de lei sobre a estrutura agrária foi explícito desde o início do debate. As desapropriações e a reorganização da classe de produtores rurais nas áreas de irrigação, com o estabelecimento de limites do tamanho de propriedade e o parcelamento, assim como a alocação de trabalhadores rurais nessas áreas com direito de posse, produziriam um reordenamento dos beneficiados pelo acúmulo de água realizado pelo Poder Público, alterando a finalidade do uso dessas águas, exclusivamente para a produção de alimentos. A extensão imediata desse projeto de lei confrontava duas forças: o grupo político cearense que controlava o DNOCS e os latifundiários que veriam parte de suas terras parceladas e indenizadas, caso fossem beneficiados pela irrigação e açudagem.
O economista baiano Rômulo de Almeida participava nesse momento do Condel como representante do Estado da Bahia, governado pelo udenista Juracy Magalhães (1959-1963). Almeida diz que “este projeto de irrigação, que é fruto de uma experiência de algumas décadas, tem uma importância muito grande, e a despeito de não ser muito audacioso, ainda assim, virá encontrar grandes resistências” (Ibid., p. 2). Defende um maior tempo de debate e convencimento nos estados, e consta o registro:
Diz que um projeto desse precisa colher a contribuição em cada Estado das instituições que tenham alguma coisa a opinar/como também, receber o apoio e a colaboração dessas instituições para que formemos uma opinião pública favorável, que oriente, inclusive, os nossos Congressistas no sentido de uma mais rápida aprovação. Porque, do contrário, os interesses contrariados podem vir a manipular os ciúmes e susceptibilidades de instituições e personalidades que não foram ouvidas
(Ibid., p. 2).Do mesmo modo que Almeida, o representante do Estado do Ceará, Francisco Alves de Andrade e Castro12 (Ibid., p. 2), governado pelo petebista Parsifal Barroso (1959-1963), defende postergar a aprovação, diante de um alegado “retardamento do recebimento da minuta do projeto” por parte daquele governo, momento que expressa a dimensão política da proposta: tal atraso “não permitiu que o mesmo recebesse um estudo como deve ser feito em um projeto que implica em verdadeira reforma agrária” (grifos nossos). O reconhecimento das possibilidades de impacto e de reforma agrária contidos na proposta da Sudene realizado pelo governo do Ceará é muito significativo, pois se trata de uma posição calcada na convergência das oligarquias cearenses que controlaram historicamente o DNOCS (OLIVEIRA, 1977, p. 176-180) do Nordeste algodoeiro-pecuário. Esse projeto de lei de irrigação estava em franca oposição às políticas de represamento e aproveitamento das águas pelo DNOCS.
Duas posições destacam-se nessa reunião e são aqui analisadas: o apoio dos representantes das Forças Armadas e a oposição cearense a partir de Castro.
O representante das Forças Armadas, Cel. Afonso Augusto de Albuquerque Lima13, expõe os motivos do apoio da sua instituição, o que permite constatar o nível da pactuação política e a extensão da proposta realizada. Após apresentar discordância do parecer do Governo do Ceará, Lima afirma que as Forças Armadas têm “a convicção de que esta lei não contribuirá, de qualquer modo, para a intranquilidade social da região”, e, em seguida, solicita a transcrição na ata do seguinte parecer:
Cabe-me, inicialmente, após o estudo detalhado do assunto em apreço, dar todo o apoio no sentido de aprovar essa Lei que procura, de modo justo e humano, estabelecer as bases para o arrendamento da terra, principalmente quando beneficiada por obras públicas de irrigação. Com essa corajosa e oportuna iniciativa, dá-se o primeiro passo para criar verdadeiramente a base agrícola indispensável à expansão industrial que se pretende levar a cabo no Nordeste e, até o presente momento, deixada inexplicavelmente de ser levado em consideração. Esta Lei há de sofrer contestações e talvez mesmo forte oposição, porque virá modificar, em parte, os alicerces econômicos da região nordestina e, sobretudo, porque virá atingir a uma poderosa classe de grandes proprietários de terras. Entretanto, pelo modo correto e equânime como está redigida e pelos nomes dos homens que participaram da sua elaboração, temos a certeza de prova-la, com a convicção de que estamos praticando um ato de grande sofisticação para o interesse do Nordeste, em particular, e da própria Nação
(CODENO, ATA_E_S2_003_1959, p. 4).José Maria Aragão (2020, p. 152), técnico que atuou na Sudene nesse período, relembra em entrevista que o voto de Lima “se revelou decisivo, ainda que possa ser surpreendente”, momento que Aragão menciona explicitamente o mesmo trecho das atas aqui assinalado a respeito da posição das Forças Armadas14. Furtado (2014, p. 258) testemunha em autobiografia que a posição de Lima mudou os rumos da reunião em direção à aprovação do projeto: “A manobra de recuo foi geral”, o que motivou os governadores a apoiarem o projeto.
Na deliberação do Condel sobre o projeto de lei, Lima (CODENO, ATA_E_S2_003_1959, p. 7) realizou uma proposta de alteração que foi aprovada para a versão final encaminhada pelo Codeno, a reformulação do artigo 9º (BRASIL, Câmara dos Deputados, 1959, p. 2-3), a respeito do tamanho dos lotes agrícolas das áreas de irrigação. A primeira versão encaminhada para os representantes do Condel pela secretaria do Codeno, sob responsabilidade de Furtado, Duque, Strauss e Berrêdo, propunha que os lotes das áreas irrigadas, advindas do instrumento da desapropriação, deveriam ter 25 hectares “irrigáveis nas bacias dos açudes ou nas áreas servidas por poços” e 100 hectares nas áreas dos “rios perenes” (CODENO, ATA_E_S2_003_1959, p. 7). Lima propôs então que se reduzisse o tamanho, respectivamente, de 25 para 15 hectares e de 100 para 50 hectares. Essa mudança é muito significativa, considerando o artigo 28 do projeto de lei, que estipula o tamanho máximo de dois lotes agrícolas para os proprietários que fossem atingidos pelas desapropriações. Há uma evidente ação para limitar o tamanho das propriedades por parte de Lima, na tentativa de inviabilizar a existência de latifúndios15 nas áreas de irrigação.
A defesa do PL nº 882/1959 por parte de Lima manteve viva a defesa do projeto de lei nos meses posteriores à sua aprovação nos debates do Condel. O primeiro registro nas atas do Condel da movimentação dos opositores na tentativa de frustrar o PL nº 882/1959 no Legislativo Federal foi realizado por Lima. Na 4ª RE, de outubro de 1959 (CODENO, ATA_E_S1_004_1959), Lima realizou uma denúncia sobre os entraves que se levantaram contra o PL nº 882/1959, expondo a posição daqueles que desejavam o malogro desse projeto de lei. Ressalta-se que se trata de um representante das Forças Armadas, ligado diretamente ao Exército brasileiro, institucionalmente designado pela corporação para atuar no Condel, cujas posições tomadas por esse representante eram remetidas ao comando do Exército, que davam o devido aval. Na ata consta que Lima fez um comunicado através da leitura de um documento que reputa ser de “suma gravidade”:
Trata-se do seguinte: no decurso da semana p.p., um oficial do 1º GPTE esteve conversando com um cidadão cearense que, inicialmente, desejava saber se a “Lei de Irrigação” havia sido apresentada pelo 1º GPTE. Foi-lhe esclarecido que não, que o Representante da Forças Armadas apenas apresentara algumas emendas ao projeto elaborado – pelo Codeno e dera, no final, seu apoio e sua aprovação, pela convicção que tinha da necessidade dessa Lei em benefício do Nordeste. O mesmo cidadão, então, disse-lhe que poderia afirmar quase com certeza que poderosos grupos de interessados já estavam tomando as medidas essenciais para fazer com que o projeto citado tivesse o mesmo triste fim dos demais, isto é, ficasse jazendo nos arquivos do Legislativo Federal ou tivesse desvirtuados seus objetivos
(Ibid., p. 6-7).Atenta-se para a qualificação do “cidadão cearense”, local de origem da maior oposição ao PL nº 882/1959. Lima continua afirmando que para não “cair no descrédito que muitos almejam”, os deputados federais, governadores e as bancadas dos estados nordestinos, “todos, enfim, que tenham uma parcela de responsabilidade, hajam no sentido de evitar a consumação desse ato ignóbil” (Ibid., p. 7).
Com a eleição de Jânio Quadros e seu governo de curta duração, Lima passou a dirigir o DNOCS entre fevereiro e novembro de 1961, fato registrado por Furtado na 12ª RO, de maio de 1961, que qualifica como uma mudança de rumo nas relações entre Sudene e DNOCS. Na tentativa de realizar um trabalho conjunto para a política de açudagem que representasse o plano do Governo Federal, Furtado afirma que “graças à nomeação” de Lima, é possível “rever totalmente o que antes se havia feito, podendo-se tentar, agora, conjuntamente com esse Departamento, a elaboração das diretrizes da política de aproveitamento dos recursos de solo e água no Polígono das Secas”. Furtado aponta também a conjunção de esforços, que se soma também a CHESF, para uma política de aproveitamento dos recursos naturais na região do submédio São Francisco, e que estavam realizando “um grande esforço de estudos sistemáticos das possibilidades de grande irrigação” (SUDENE, ATA_012_1961, p. 3).
A última defesa do PL nº 882/1959 registrada nas atas do Condel foi realizada por Lima, na 2ª RE, de 10 de maio de 1961, que ocorreu no Congresso Nacional junto aos parlamentares, em Brasília, na busca por apoio ao I Plano Diretor da Sudene. Lima faz ampla defesa da “Lei de Irrigação” e aponta as limitações políticas que impunham aqueles que desejavam o impedimento desse projeto de lei. Lima (SUDENE, ATA_E_002_1961, p. 14) solicita “especial atenção” ao PL nº 882/1959 e denuncia uma vez mais o exclusivismo no uso das águas represadas pelos grandes proprietários, condição que exigiria modificações – recorde-se que Lima dirigia o DNOCS nesse momento. Assim afirma:
Com efeito, os vultosos investimentos federais para a construção dos grandes açudes, propiciatórios da irrigação em larga escala, tornam-se inócuos face a impossibilidade de se espargir sobre muitos o benefício da água que se concentra, por injusta e obsoleta legislação, nas mãos de poucos que, muitas vezes, são os que menos precisariam de tão grande dádiva, e que, por outro lado, nem sempre se apercebem por ignorância ou comodismo, das benesses da água canalizada, distribuída na dosagem racional e na ocasião oportuna. É o exemplo típico da obra pública que se torna particular, do investimento de vulto beneficiando a poucos.
(Ibid., p. 14)Lima acena para o essencial da proposta realizada pela Sudene, de distribuição das águas visando a reparação do sistema de desigualdades no acesso, o que constituiria “uma reforma de base na estrutura agrícola regional”. A posição política implicada pela lei, na posição externada por Lima, era vista como uma alternativa segura ao avanço das tensões entorno da reforma agrária, constituindo uma defesa de natureza patriótica e em nome da segurança nacional. Vejamos o registro:
É preciso não esquecer que, somente assim, assumiremos a liderança dos acontecimentos de excepcional gravidade que estão surgindo na área nordestina, e não deixaremos, por omissão, que os aproveitadores demagógicos usem essa bandeira da reestruturação agrária como arautos de uma nova ordem. De fato, precisamos nos anteceder aos fatos e jamais sermos surpreendidos por eles; não percamos a liberdade de ação para, em seguida, agirmos sob a tutela e a clarividência necessária para solucionarem tão graves problemas que, hoje, se apresentam como de natureza político-social, mas que, amanhã, poderão afetar seriamente a própria Segurança Nacional, como provam acontecimentos recentes no âmbito internacional, para não citarmos inúmeros outros já catalogados pela História!
(Ibid., p. 14-15).A posição de Lima, enquanto militar e diretor do DNOCS, configura explícita adesão ao projeto pró-desapropriações e direção exclusiva da política de irrigação para a produção de alimentos. O temor externo evidenciado por Lima era a Revolução Cubana, que, após a primeira lei de reforma agrária, em 1959, inicia a segunda etapa da reforma agrária nos primeiros meses de 1961 (BERUFF, 1970, p. 224). Nessa nova etapa, avançam as chamadas granjas del pueblo em substituição às cooperativas, significando, em 1961, a ampliação de fato do “setor socialista”, uma nova etapa da Revolução Cubana.
O aprofundamento da reforma agrária cubana tem influências diretas sobre a questão agrária nacional, em um contexto nacional de ampliação do movimento do campo no início da década de 1960. A desapropriação do Engenho Galileia pela Assembleia Legislativa de Pernambuco e a efetivação pelo governador Cid Sampaio foram uma ação de distinção em termos da questão agrária e tiveram reflexos na organização dos trabalhadores rurais. A bandeira das Ligas Camponesas pela organização sindical rural se expandiu desde 1959, entrando em crise a partir de 1961, segundo Medeiros (1989, p. 75), o que reforça a atenção indireta para o contexto das Ligas Camponesas feita por Lima em 1961.
Lima apoiou o Golpe de 1964, integrou o governo de Castelo Branco, foi ministro do Interior entre 1967 e 1969, e possui trajetória política desalinhada aos governos Vargas, Kubitschek e João Goulart. Essa posição reforça a unidade em torno da Lei de Irrigação, com a formação de um bloco nacionalista desenvolvimentista de defesa da pequena unidade agrícola privada, reunindo militares, empresários e políticos nordestinos que aceitavam o instrumento das desapropriações nas bacias e nos açudes das terras irrigadas.
Furtado (2019, p. 164), ao relatar em seus diários a conferência dada no Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, para “duas centenas de oficiais do Exército e Aeronáutica”, o que foi publicado em livro A Operação Nordeste (FURTADO, 1959), constata que “a corrente nacionalista parece estar totalmente consolidada na oficialidade jovem”, espaço de influência que Furtado disputava na busca de apoio para a Sudene. Em autobiografia, Furtado (2014, p. 259) aponta “a sorte de encontrar na chefia do Estado-Maior do IV Exército, no Recife, o general Antônio Henrique de Morais, meu primo em segundo grau”, o que corroborou para o apoio do IV Exército e a posição de Lima quanto ao PL nº 882/1959. O IV Exército era a zona militar que compreendia a estrutura administrativa e operacional presente nos estados do Nordeste, denominação que durou de 1956 a 1985, quando passou a se chamar Comando Militar do Nordeste. Furtado (2014, p. 259) afirma ainda que a defesa de Lima na reunião de Teresina para a aprovação no Condel “refletia a opinião que se estava formando no Estado-Maior das Forças Armadas”. A aposta de Furtado nos militares e sua corrente nacionalista tinham sua razão de ser e pôde ser aqui identificada na trajetória do PL nº 882/1959.
A oposição ao PL nº 882/1959 partiu do governador cearense Parsifal Barroso (PTB), do seu representante no Condel, Castro, dos deputados federais desse estado e da direção do DNOCS, o também cearense José Cândido Castro Parente Pessoa e seu grupo político associado ao PSD. Barroso venceu as eleições em outubro de 1958 a partir de uma aliança PSD-PTB, pleito em que se constata profunda imbricação das estruturas do DNOCS para clientelismo eleitoral em favor da chapa de Barroso16.
Montenegro (1958, p. 251) identifica o PTB cearense como uma agremiação que não se distinguia de um partido conservador, em que os trabalhadores não estavam presentes no partido. Na análise sobre as eleições de 1958, Montenegro (1960, p. 41-46) aponta para o uso do DNOCS e do DNER para a corrupção eleitoral. “A seca, incontestavelmente, transformou-se em instrumento político. Negava-se auxílio aos que não militavam nas fileiras partidárias do PSD ou PTB” (Ibid., p. 44).
Kubitschek enviou para o estado o subchefe da Casa Militar da Presidência da República, o Cel. Orlando Ramagem, diante da acusação de desvio de verbas federais. Montenegro se utiliza de reportagem do jornalista Jáder de Carvalho, do Diário do Povo (15/10/1959), e denuncia a ação dos “engenheiros” e da “guarda pretoriana” do DNOCS contra os “eleitores sertanejos”, com a utilização de caminhões do órgão, a compra de votos e a coação de demissão das frentes de trabalho. Essa estrutura garantiu a eleição de Parsifal, firmando a aliança PTB-PSD no estado e se sustentando no apoio do DNOCS à candidatura do governador. Hirschman (1965 [1963], p. 87) afirma que “nenhuma seca se revelou tão devastadora para a confiança pública na agência como a de 1958”, pensando as secas de 1951 e 1953 e a relação com o DNOCS. A oposição à Sudene realizada pela direção do DNOCS e a oposição cearense ao PL nº 882/1959 são fatos imbricados nas eleições de 1958.
Observando a estratégia tomada pelo representante do governo do Ceará, analisamos o parecer de Castro apresentado na reunião de deliberação do projeto no Condel. O centro do questionamento estava nas desapropriações das áreas irrigadas, o que provocaria o desestímulo à formação da média e grande propriedade agrícola. O tema era tão latente para Castro que, em outubro de 1959, passados apenas dois meses da aprovação pelo Condel do projeto de lei, este anuncia na 4ª RE a publicação de um livro com os documentos que envolviam o PL nº 882/1959, posicionando-se em relação ao aprovado pelo Condel. A referência ao livro ocorre na mesma RE em que Lima denuncia os opositores ao projeto (CODENO, ATA_E_S1_004_1959, p. 8-9).
Intitulado A reforma agrária no Polígono das Secas, o livro traz o seguinte subtítulo: Anteprojeto de lei de irrigação do Nordeste aprovado pelo Codeno. Parecer, indicações e estudos do representante do Ceará, publicado pela Imprensa Oficial do Ceará (CASTRO, 1959). Realizado em concomitância à tramitação legislativa do PL nº 882/1959, nesse trabalho há a exposição dos motivos de desagravo com as desapropriações. O livro é dedicado ao governador Barroso e a Furtado, então Diretor Executivo do Codeno. Na epígrafe, Castro recupera um trecho de entrevista com Furtado e se utiliza das próprias palavras de Furtado como um recurso para questioná-lo e, desse modo, se opor ao projeto de lei.
Furtado, em entrevista à revista Visão (em 26 de junho de 1959), quando questionado sobre a reforma agrária, assim respondeu: “Estamos preparando uma reforma na estrutura agrária. A lei de irrigação prevê isto. Uma reforma deste teor exige um plano muito bem coordenado. Caso contrário, poderá ser um desastre” (Ibid., p. 6). Partindo dessa premissa, Castro defende desde o início do livro que a Lei de Irrigação foi improvisada e apressada, não podendo ser bem coordenada, posição também tomada no parecer do governo do Ceará no Condel, recordando o fato da autoria do parecer ser de Castro (Ibid., p. 22-23). Castro foi o único voto contrário ao projeto na reunião de aprovação do Condel17.
Os dois principais eixos da crítica de Castro ao projeto de lei são o questionamento da existência de latifúndios nas áreas irrigadas e as desapropriações por interesse social. Quanto ao primeiro, argumentava que, nas áreas irrigadas afetadas pela lei, quando observadas no caso cearense, não se identificava a existência de latifúndios, mas era constatado o fenômeno da fragmentação de terra. O autor apresenta um estudo que realizou sobre o açude General Sampaio, no Vale do Curu, onde predominava a fragmentação de terra e não a concentração na forma de latifúndios nessa área: “Ao contrário do que muitos insinuam, não há latifúndios nas terras irrigadas no Ceará” (Ibid., p. 33).
A respeito da desapropriação por interesse social, afirma:
Não somos contra as desapropriações de terras que, em certos casos, poderão tornar-se necessárias. Mas, não tememos declarar que a desapropriação é, em princípio, um processo antissocial de aquisição da terra por parte do Estado, quando força e coage o proprietário a despojar-se do que tem, ao invés de preliminarmente tentar integrá-lo economicamente na comunidade rural, proporcionando meios assistenciais para que cultive e explore devidamente o solo que conquistou
(Ibid., p. 10).Castro defende que, se fosse para propor desapropriações, que fossem na Zona da Mata (Ibid., p. 14-17), que se começasse pelos latifúndios açucareiros, o que expõe uma cisão regional, dos dois sistemas regionais, conforme a tese de Oliveira (1977), do sistema algodoeiro pecuário e o açucareiro como o primeiro enfrentamento interno da Sudene. “Não somos reacionário, admitimos a desapropriação por interesse social e ainda uma reforma agrária de largo plano” (CASTRO, 1959, p. 19). A hipótese é a de que aqueles que elaboraram o anteprojeto pressupunham a existência de latifúndios nas áreas irrigadas, e o que prevalece é “uma aberrante fragmentação da propriedade agrária”. Explicita uma defesa da média empresa privada para o “desenvolvimento econômico da agropecuária cearense” e que a limitação do tamanho dos lotes proposta pela lei impossibilitaria a existência dessas médias empresas.
Defende no parecer que o maior obstáculo ao aproveitamento racional das áreas irrigadas não era a estrutura agrária, “mas a falta de mentalidade por parte do agricultor”, que necessitaria da intervenção de um “sistema educativo de caráter popular”, posição aqui explicitada nas defesas de Trindade e Duque. Castro afirma que as desapropriações “poder[ão] provocar a desordem, senão o desajustamento e desconfiança do agricultor nas instituições” (Ibid., p. 24). Aponta que não se conhecia até então a realidade dessas propriedades, já que não há um cadastro que permitisse compreender a situação do Nordeste.
A crítica ao artigo 28, das desapropriações, é a de que esse contrariava “o princípio da liberdade de iniciativa”, da Constituição Federal de 1946. Afirma que “não há razões de justiça social que justifiquem desapropriar estabelecimentos que integrem superfícies maiores do que cinquenta hectares, sobretudo quando estes estão cultivando e o proprietário obedece às normas de irrigação” (Ibid., p. 27). Aqui está demonstrada a importância da modificação proposta por Lima, de diminuição do tamanho do lote agrícola, o que era a pedra de toque da oposição.
Castro critica avidamente o fato de o projeto de lei exigir a agricultura como atividade exclusiva, por ferir a liberdade de realizar outras atividades econômicas.
Os atuais ocupantes ficariam com as suas terras desde que obedecessem às normas do sistema. Caso contrário, sim, proceder-se-ia à desapropriação. A lei limitaria o açambarcamento. O Estado teria o direito de preferência no caso de venda por parte do irrigante. O loteamento seria realizado para efeito do direito sucessório. Limitado o máximo para as empresas existentes e o mínimo do lote agrícola, a distribuição tornar-se-ia espontânea no tempo e no espaço
(Ibid., 1959, p. 148).A estratégia proposta foi a realização de projetos-piloto dessas áreas de irrigação em parcerias com as universidades, defesa que estava associada ao projeto de fazenda experimental em que Castro estava envolvido na Universidade do Ceará, área adquirida em 1961 no açude General Sampaio, a mesma área em que Castro (1959) apresenta estudo no referido livro. Constituiu-se posteriormente na Fazenda Experimental Vale do Curu – Pentecoste, da Escola de Agronomia do Ceará (atual Centro de Ciências Agrárias/UFC).
A posição de Castro (1959, p. 143) estava presente anteriormente no Seminário de Garanhuns. Defendeu uma reforma agrária pelo acionariato, através de um regime jurídico de empresas que se assemelhava ao proposto por Furtado em Garanhuns (CNI, 1959, p. 189) e pelo projeto de lei, através de sociedades anônimas, em que o trabalhador rural seria o acionista, porém desconsiderava a possibilidade de desapropriações.
Em debate com Arthur Rios, critica a proposta de Rios para a “desapropriação generalizada de terras particulares”, que seria feita por quem não conhece a região Nordeste, e que imaginava que as bacias de irrigação fossem quase inabitadas. Castro (1959, p. 99) pede ao leitor escusas pela inclusão da sua proposta entre as recomendações finais do Seminário de Garanhuns, atenuando a ênfase conservadora da sua defesa: “Não tem o autor deste estudo a veleidade de constituir-se em reformador” (Ibid., p. 99).
Em homenagem póstuma do Instituto do Ceará feita a Castro, Martins (2001) relata um fato interessante a respeito da oposição de Castro à Furtado e à “Lei de Irrigação”, o que teria motivado Furtado a intermediar a saída do representante do Ceará no Condel. Ao apontar a “tônica agronômica” de Castro, em tom memorialista, Martins (2001, p. 336) afirma:
Um período, que espelha essa atitude e conduta registrando uma luta intensa, foi, por exemplo, quando representou o governo do Ceará na Sudene. O desenvolvimentismo de Celso Furtado não se coadunou com o de Francisco Alves. Certa feita, veio a Fortaleza o secretário daquela Superintendência, Cláudio Emanuel Correia Lima, amigo particular meu. Pediu-me este para acompanhá-lo à presença do governador Parsifal Barroso, a quem trazia a missão de propor substituição de Francisco Alves na representação do Ceará. O governador não concordou, dizendo: “Cada qual sabe onde o sapato lhe aperta: o professor fica”. O calo era a reforma agrária, pretendida por aquele órgão de planejamento regional nas bacias de irrigação dos grandes açudes públicos do Nordeste.
O apontamento de Martins evidencia a oposição do representante do Ceará e a tentativa aparente de Furtado de modificá-lo. A mudança não ocorreu, e Castro permaneceu no Condel até outubro de 1961, com registro até a 18ª RO.
A outra resposta da oposição ao PL nº 882/1959 foi a retomada, na Câmara dos Deputados, do PL nº 35/1949 (e PL nº 64/1957, no Senado Federal), de autoria do deputado federal Plínio Lemos (UDN/PB). Projeto que tinha sido aprovado em primeira versão na Câmara e no Senado Federal, aguardava apreciação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados18. O projeto da Sudene (nº 882/1959) foi aprovado pelo Condel em 5 de agosto de 1959; a Mensagem ao Congresso Nacional (nº 365/59) assinada em 26 de agosto; e a apresentação e leitura na Câmara dos Deputados em 10 de setembro de 1959. Ainda no mês de setembro, no dia 30, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto nº 35/1949 e encaminhou para sanção presencial.
O Projeto nº 35/1949 teve como relatores, na CCJ e na Comissão do Polígono das Secas, parlamentares do PSD do Ceará, Martins Rodrigues e Euclides Wilcar respectivamente, partido do presidente Kubitschek. Os vínculos com o Ceará e a defesa do DNOCS impulsionaram a aprovação dessa proposta pela Câmara de Deputados, que posicionava o DNOCS como instituição de realização das desapropriações. A ausência de unidade na base parlamentar do governo com a proposta da Operação Nordeste, o PL nº 882/1959, que partia do Executivo Federal, foi a posição dos grupos políticos cearenses, que defendiam o DNOCS em detrimento do novo órgão, a Sudene.
O veto presidencial ocorreu em 10 de outubro de 1959, mantido pelo plenário do Congresso Nacional em 10 de novembro de 195919. Nas razões do veto (BRASIL, Congresso Nacional, 1959, p. 291), Kubistchek acena para a necessidade de aprovação da proposta legislativa do novo órgão, a Sudene, visando um planejamento abrangente, em uma mesma política. Outra razão apresentada para o veto era que o Projeto nº 35/1949 “possibilita a sobrexistência de individualismos contrários àquelas diretrizes” (da Sudene), indicando que “no aproveitamento das bacias de irrigação do nordeste não devem os responsáveis pela coisa pública deter-se ante a barreira dos interesses privados” (Ibid., 291). Desse modo, o presidente defende a centralização em um órgão, a Sudene, da política de irrigação, assim como do projeto de colonização, que não deveria ficar a cargo do DNOCS, como estabelecia o Projeto nº 35/1949.
Plínio Lemos rebate os argumentos do veto na sessão plenária do Congresso Nacional (Ibid., p. 293-294) e defende que o projeto de Furtado/Sudene encaminhado por Kubitschek é “quase toda, com pequenas alterações, mas no espírito mesmo, o projeto que apresentei à consideração da Câmara”. A diferença assinalada por Lemos é que o projeto da Sudene considerava desapropriação por “interesse social”, em que Lemos argumenta: “Mas nem essa desapropriação no momento pode ser aplicada, porque a sua regulamentação inexiste”.
Lemos também critica a criação de sociedades mistas e cooperativas como previsto no projeto da Sudene, o que resultaria em políticas clientelistas de ocupação de cargos (“de afilhadismo, para o empreguismo”). Outras diferenças podemos apontar, pois o projeto de Lemos previa, além da direção dada ao DNOCS, a indenização dos imóveis desapropriados, “admitida a valorização normal dos terrenos, assim compreendida aquela decorrente de obras hidráulicas construídas”. O projeto da Sudene estabelecia a inobservância a esse critério, não indenizando o que fosse resultado de obras hidráulicas realizadas com recursos públicos.
Wanderley Guilherme dos Santos (1973, p. 68) demonstrou que PTB-PSB estavam sempre em oposição às coalizões formadas por PSD (+PR+PDC) e UDN (+PRP+PL), no período 1961-1963, quanto ao tema da reforma agrária. No caso do Projeto de lei nº 35/1949, a aliança PSD-PTB no Ceará prevaleceu sobre a orientação da política da irrigação a ser adotada, vigorando um projeto da UDN. Por parte do PSD, demonstrava a baixa coesão do partido com o projeto do presidente Kubitschek, a aliança conservadora com a UDN que era regular no período, e, principalmente, a prevalência das intenções das elites cearenses pelo favorecimento do DNOCS, já que o partido controlava o Ministério de Viação e Obras Públicas, a que o DNOCS estava submetido. Da parte do PTB, demonstra a posição de desinteresse frente à Sudene, já que desviava do histórico do partido de reinvindicações no campo da legislação trabalhista rural (CAMARGO, 1981), e o predomínio da aliança PSD-PTB no governo do Ceará, o que reforçava a posição em prol do DNOCS.
Os partidos políticos no Nordeste, durante as eleições de 1958, segundo Cohn (1976, p. 93), assumem pouca importância, sendo os candidatos e os compromissos superiores aos partidos. Nas reportagens de Callado (1960), este reforça a hipótese de que na aliança cearense PSD-PTB se perpetuava a oposição à Lei de Irrigação. Desde a primeira reportagem, agrupada na seção intitulada “O Ceará contra a irrigação” (CALLADO, 1960, p. 5), aponta que essas elites buscavam favorecer a indústria da seca. As reportagens foram feitas a convite de Furtado e do Codeno, segundo Queler & Zangelmi (2020, p. 4), para que Callado avaliasse in loco a aceitação da “Lei de Irrigação”.
Na votação do PL nº 32/1959 de criação da Sudene (Lei nº 3.692/1959), quando a Câmara dos Deputados apreciava as emendas do Senado, em dezembro de 1959, a discussão sobre o PL nº 882/1959 reapareceu. O senador Argemiro de Figueiredo (UDN) havia proposto, em retaliação à Sudene, a emenda n. 27, que estabelecia o DNOCS como executor do “plano de defesa contra os efeitos da denominada seca do Nordeste”, emenda rejeitada pelo plenário da Câmara dos Deputados. Plínio Lemos defende enfaticamente o DNOCS e mais uma vez acusa Furtado de plágio, a qual o deputado Fernando Santana responde Lemos e aponta não ver problema no fato do PL nº 882/1959 aproveitar trechos do projeto de Lemos, e conclui: “Uma lei não é um soneto!”. Argemiro perde a batalha da emenda do DNOCS na Sudene. Mas a oposição impede o avanço do PL nº 882/1959. “O que obtivemos em Teresina foi, contudo, uma vitória de Pirro”, afirma Furtado (2014, p. 258) demonstrando a inviabilidade do projeto.
Furtado compreendia a dificuldade de aprovação da “Lei de Irrigação” pela articulação dos grupos latifundiários, já que qualquer experiência de desapropriação poderia representar uma ameaça para o status quo. “Havia de aproveitar a mobilização da opinião pública e o entusiasmo do presidente para medir forças em campo raso com o núcleo duro do latifundismo” (FURTADO, 2014, p. 256). Em atitude testamentária, após 40 anos, Furtado sinaliza para a dimensão da batalha perdida: “Uma das maiores batalhas que tive na Sudene, provavelmente a mais completa derrota que tive, foi no projeto de lei de irrigação” (FURTADO, 1998, p. 19). O apoio dado no Condel à “Lei de Irrigação” contrastou com o impedimento no Congresso Nacional:
Só quando o comandante militar declarou que considerava fundamental para a segurança pública do Nordeste abordar esse problema de frente, com uma lei de irrigação, foi que eles recuaram. Mas recuaram porque sabiam que podiam bloquear o projeto no Congresso. E assim foi: depois de aprovado pela Sudene, o projeto de lei foi rejeitado pelo Congresso. A maior parte dos deputados nordestinos, na época, era contrária à Sudene. Meu maior inimigo era Argemiro de Figueiredo, senador pela Paraíba, o meu estado, e muito influente. Nunca me esqueço de uma coisa curiosa que ele disse em um discurso no Congresso: “Precisamos nos livrar desse astuto bolchevista...”. Esse era o clima: não se deixava passar nada. Se, 40 anos atrás, tivéssemos começado uma transformação da estrutura agrária por esse método – desapropriar antes de irrigar e antes de açudar... Há muita água, muita açudagem feita no Nordeste. Só que ela é subutilizada do ponto de vista da irrigação, só serve para a pecuária (...)
(Ibid., p. 20).Duas conclusões são possíveis sobre a “Lei de Irrigação”. Primeiro, não foi uma criação pioneira do novo órgão, a Sudene, pois tem antecedentes consistentes na sua determinação, mas sim uma defesa histórica de parte dos agentes públicos do IFOCS/DNOCS no Nordeste. Segundo, a regulamentação de áreas irrigadas no semiárido com desapropriação persistiu no horizonte das políticas para a região exatamente por sua moderada extensão sobre o quadro da estrutura agrária, o que favoreceu o consenso entre os setores militar, empresarial e religioso. Em um cenário de adensamento das Ligas Camponesas no Nordeste e da luta pela terra, a “Lei de Irrigação” foi uma amostra da latência do tema para o período (1959-1960), ao ponto de agregar posições historicamente desconfiadas de qualquer política agrária e fundiária, já que poderia ser uma primeira experiência de contenção das forças populares e de absorção de uma parte dos trabalhadores sem-terra em deslocamento nas secas, apoio que considerava o baixo impacto desta regulamentação, restrita ao semiárido. O naufrágio do PL nº 882/1959 foi a vitória da oposição, defensores do DNOCS e, segundo Oliveira (1977), da oligarquia agrária algodoeira-pecuária. Oliveira (1977, p. 45) lembra a crítica do senador Argemiro de Figueiredo às ideias de Furtado, por se tratarem de “uma tentativa de implantação das ideias “socializantes” de Guimarães Duque”.
Nas memórias de Tânia Bacelar de Araújo, nas atividades do Centenário de Celso Furtado (1920-2020), o que circulava na região durante a Operação Nordeste era a ideia de que Celso Furtado é “quem abre cancelas”. A convergência com parte dos militares neste projeto está relacionada com a defesa que Furtado (1959) fez da Operação Nordeste pela unidade nacional, uma defesa do nacionalismo (FURTADO, 2019) ameaçado pelos desequilíbrios regionais. A convergência era com a capitalização de áreas desapropriadas, sendo a Sudene a representação de um modelo de capitalização. Nas relações iniciais da Sudene com o governo americano, em 1961, através da Aliança para o Progresso, a irrigação e a política de colonização foram destaque na atração de investimentos. A “Lei de Irrigação” foi posta como condicionante à reestruturação agrícola proposta no I Plano Diretor da Sudene (Lei nº 3.995/1961), que foi aprovado, mas dependia em parte da aprovação do PL nº 882/1959.
O presidente João Goulart promulgou o Decreto nº 53.700, de 13 de março de 1964, que declarava de “interesse social para fins de desapropriação”, entre outras áreas, “as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem, atualmente inexploradas ou exploradas contrariamente à função social da propriedade”. A diferença do PL nº 882/1959 era que Goulart não limitou a extensão ao semiárido ou ao Polígono das Secas. O desenrolar dos decretos de Goulart com o subsequente Golpe de 1964, demonstra o volume das tensões em torno da questão agrária e das desapropriações. O PL nº 882/1959 foi uma parte da derrocada do projeto político reformista de Furtado e de toda uma geração da Sudene com a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), não conseguindo obter nenhum avanço significativo na concretização de propostas para a modificação da estrutura agrária.
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