ARTIGO
Received: 21 February 2024
Accepted: 21 August 2024
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2024.222339
Resumo: O presente artigo foca na análise de materiais iconográficos veiculados no periódico A Lanterna - Folha anticlerical de combate (São Paulo, 1909-1916), buscando refletir acerca da produção, circulação, recepção, aclimatação e consequente apropriação da figura do educador catalão Francisco Ferrer y Guardia no jornal. As fontes iconográficas foram sistematizadas em três séries temáticas, a partir das quais aprofundou-se o trabalho de análise. Ancorado fundamentalmente nas teorizações de Roger Chartier sobre disputa de representações e de Raoul Girardet sobre mitos políticos, procura-se demonstrar a hipótese da construção da figura de Ferrer na condição de um mito político em prol da expansão do discurso anticlerical do periódico. Ademais, chama-se ainda a atenção para a circulação de parte desse material, destacando, quando possível, sua origem e traçando possibilidades de difusão transnacional.
Palavras-chave: A Lanterna, Francisco Ferrer, Anticlericalismo, Iconografia, Primeira República.
Abstract: This article focuses on the analysis of iconographic materials published in A Lanterna - Folha anticlerical de combate (São Paulo, 1909-1916), seeking to think about the production, circulation, reception, acclimatization and consequent appropriation of the figure of the Catalan educator Francisco Ferrer y Guardia in the newspaper. The iconographic sources were systematized into three thematic series, which were used to deepen the analysis. Anchored fundamentally in Roger Chartier’s theories on disputes over representations and Raoul Girardet’s theories on political myths, the aim is to demonstrate the hypothesis that the figure of Ferrer was constructed as a political myth in order to expand the newspaper’s anticlerical discourse. In addition, attention is drawn to the circulation of some of this material, highlighting, where possible, its origin and outlining possibilities for its transnational diffusion.
Keywords: A Lanterna, Francisco Ferrer, Anti-clericalism, Iconography, Brazil’s First Republic.
Fundado no ano de 1901 na cidade de São Paulo, o periódico A Lanterna circulou até 1904 em sua primeira fase, sob a direção do advogado e militante anarquista Benjamim Mota. Quase cinco anos depois, em muito inspirados pelas agitações dos últimos acontecimentos na Espanha3, um grupo de companheiros de luta de seu antigo diretor passou a organizar a volta das publicações. Assim, o primeiro número da segunda fase de A Lanterna saiu no dia 17 de outubro de 1909 - exatos quatro dias do fuzilamento do educador catalão Francisco Ferrer y Guardia4 pelo Estado espanhol. Nesta fase, o jornal passou a circular com o subtítulo de Folha anticlerical de combate - explicitando sua principal bandeira - e teve como diretor o tipógrafo libertário Edgard Leuenroth, uma das figuras centrais do movimento operário brasileiro de seu tempo.
Sob a égide da bandeira anticlerical o periódico paulistano reuniu colaboradores das mais diversas ideologias políticas, desde liberais republicanos, socialistas e, principalmente, anarquistas, que comungavam dos ideais do anticlericalismo - em um contexto de refundação da Nação em que, sob o recém-instaurado governo republicano, borbulhavam as discussões acerca da laicização do Estado. Defendido pelo historiador Réne Rémond como um conceito essencial para a compreensão da história moderna, o anticlericalismo não se reduz apenas à rejeição ao clericalismo, ele consiste em uma visão particular de verdade, de sociedade e de emancipação humana, de forma que serviu a muitos e diferentes grupos como forma de inspiração para a ação (RÉMOND, 1983). No Brasil, o anticlericalismo de finais do XIX e início do XX esteve intimamente ligado à repulsa ao ultramontanismo e ao jesuitismo, o que deu ao movimento fortes contornos políticos e próximas relações com o positivismo (RUDY, 2017). Neste período, A Lanterna foi o principal propagandeador e difusor das ideias anticlericais do país.
A redação do periódico esteve localizada, na maior parte do tempo, na região central de São Paulo, onde concentravam-se tanto a atividade impressora da capital como os comícios e passeatas do operariado - um dos principais públicos-alvo do semanário, de onde também advinham a maioria de seus membros e colaboradores5. Neste ponto, importa ressaltar que a utilização de imagens pelos periódicos em geral foi muito facilitada no contexto de modernização da imprensa em que vivia a capital paulista durante sua bélle époque. Em A Lanterna o uso destas, mais que um produto da modernidade, serviu de estratégia para um maior alcance de suas mensagens, especialmente em meio a um público não letrado, como a maior parte dos operários - em um momento no qual o analfabetismo era ainda a realidade da maioria da população brasileira.
Compondo o campo do que pode ser chamada de pequena imprensa - apesar de sua expressiva circulação dentro e fora do país6 -, o periódico anticlerical era um hebdomadário publicado em formato tabloide que continha quatro páginas, de forma que a última ordinariamente era destinada a propagandas. Esse tipo de configuração exigia uma particular seleção dos assuntos a serem publicados, desde os principais - que ocupariam a capa da edição, seguindo uma hierarquia de relevância -, até aquilo que ficaria de fora - considerando o parco espaço disponível. Assim, também o material iconográfico era escolhido com muito rigor, não apenas devido à questão de espaço, mas porque esse tipo de material encarecia a impressão - o que não era interessante ao jornal que, ao que tudo indica, não tinha um grande retorno financeiro, contando com subscrições voluntárias, pequenos anúncios publicitários, donativos de militantes e assinaturas (que frequentemente precisavam ser cobradas), como formas de se manter.
Durante os quase sete anos de sua segunda fase, findada em 1916, o periódico anticlerical nunca deixou de rememorar Ferrer y Guardia, de maneira que o educador tenha sido pauta não apenas na proximidade do 13 de outubro - dia de sua morte e que se tornou uma efeméride nos meios libertários e anticlericais -, mas de forma constante, em diferentes defesas e disputas travadas pelo jornal na imprensa. O assunto Ferrer ganhou recorrentemente a capa das edições do periódico anticlerical - fosse em representações textuais ou iconográficas -, tendo inclusive sido tema dos dois únicos números especiais publicados por A Lanterna nesta segunda fase - que, por sua vez, foram recheados de material iconográfico -, tamanha a importância do que se discutia em torno da figura do educador.
Assim, este artigo procura refletir sobre a singular recepção de Ferrer no Brasil em A Lanterna por meio da análise de fontes iconográficas extraídas do periódico que se relacionam ao catalão. A principal hipótese que se visa demonstrar é a de que, a partir dessa disputa de representações em torno da figura de Ferrer y Guardia, o periódico o alça à estatura de um mito político, conforme as teorizações de Raoul Girardet (GIRARDET, 1987). Em A Lanterna este mito parece ter o papel de denunciador do que seria o complô jesuítico no Brasil e de mobilizador da disputa pela organização e, particularmente, pela educação do operariado no início do século XX. Em cada um dos itens subsequentes serão analisadas diferentes simbologias mobilizadas na representação de Ferrer e de seus carrascos, com foco nas categorias dos mitos da Conspiração - muito presente nas representações do Clero -, e o do Salvador - presente nas representações da figura do educador.
O primeiro subitem, “O rol dos culpados”, abarca a temática da responsabilização do Clero pela morte de Ferrer y Guardia ou o apontamento dos culpados pelo crime de seu fuzilamento. O segundo, “O grande mártir da educação popular”, analisa a representação de Ferrer na condição de mártir - aquele que morre pela ideia - da educação popular e do operariado. Já o último, “Dominados pelo terror”, chama a atenção para as mensagens iconográficas de uma ideia, também muito veiculada nos textos do periódico, de que os ideais de Ferrer foram difundidos de tal maneira, depois de seu fuzilamento, que passaram a assustar aqueles que outrora foram responsáveis por lhe tirarem a vida no intuito de silenciá-las.
Ademais, objetivando lançar luz sobre aspectos da trajetória da repercussão midiática do fuzilamento do educador e ancorado em uma abordagem teórica ligada à história transnacional da imprensa, o artigo também busca traçar e apresentar circulações de materiais iconográficos sobre o tema Ferrer que tiveram espaço de publicação tanto no jornal paulistano, como em imprensas periódicas síncronas que eram editadas nas Américas e na Europa.
O rol dos culpados
A decisão do governo espanhol pelo fuzilamento de Ferrer y Guardia teve repercussão negativa em todo o Ocidente, gerando inclusive uma crise política no país europeu, que enfrentou uma onda de protestos após a execução do educador. No Brasil, A Lanterna comemorava já em sua segunda edição, em matéria de capa, a deposição do então primeiro-ministro espanhol, Antônio Maura, descrito no jornal como “jesuíta” e “bandido carola, principal mandatário do covarde assassinato de Ferrer”7. Chama-se atenção para a definição que fizeram de Maura porque, mesmo não se tratando de um membro do Clero, os redatores do jornal evocaram o elemento religioso para atacá-lo, denominando-o de “jesuíta” e “carola”, para explicitar sua ligação e apoio aos membros da Igreja. Nota-se que a mesma estratégia fora utilizada pelo jornal ao se referir, ainda no primeiro número, ao rei Afonso XIII, descrito na ocasião como um espantalho do clero. Assim, a representação dos dois maiores nomes do Estado espanhol têm sua imagem relacionada à Igreja quando atacados, o “espantalho do clero” e o “carola”, ou seja, apesar não serem totalmente eximidos de suas responsabilidades políticas na morte de Ferrer, a grande responsável, que estaria por trás das ações dos estadistas, seria a Igreja.
Na iconografia sobre Ferrer veiculada no jornal essa representação do Clero como um complô maléfico que teria o controle sobre as ações dos governantes também aparece com frequência. Na terceira edição do periódico, ainda comemorando a deposição de Maura, A Lanterna publica na folha de capa uma ilustração que intitula “A eterna comédia”. (Figura 1)
É possível identificar, graças à assinatura no canto superior direito da imagem, que se trata de uma ilustração de Voltolino, reconhecido caricaturista e modernista brasileiro, que teve seus trabalhos publicados em diversos órgãos da imprensa da Primeira República, inclusive naquela satírica e de combate (BELLUZZO, 1992). Na figura, o rei Afonso XIII da Espanha é retratado chutando o agora ex-primeiro-ministro Antônio Maura, que, por sua vez, carrega em uma das mãos um envelope - possivelmente em alusão a uma carta de demissão. Os elementos simbólicos mobilizados por Voltolino para representar a cena fazem parte do imaginário de duas mitologias políticas teorizadas por Girardet: a da Conspiração, quando se trata da representação do Clero, e a do mito Salvador, em se tratando da representação de Ferrer.
Atrás da cena principal é possível identificar a figura de um bispo que, pelo gesto que faz com a mão direita, parece abençoar a atitude do rei. Estratégia utilizada de maneira recorrente por anticlericais, a ilustração evoca símbolos relacionados à religião católica para fazer uma crítica ao Clero, jogando com as ideias de incoerência e hipocrisia. Neste sentido, observa-se a tese de Di Stefano acerca de uma dissidência anticatólica essencialmente religiosa no mundo ibero-americano, na medida em que tanto a lógica que guia essa crítica, como o capital simbólico em jogo são religiosos (DI STEFANO, 2008). A gravura traz alguns elementos como a “trindade opressora” (POLETTO, 2011) - no caso Clero, Estado e polícia - e a figura clerical obesa, representação dos pecados da gula e avareza, no intuito de gerar a sensação de fartura do Clero em contraste com a penúria dos trabalhadores em meio ao contexto de carestia da vida. Na relação Igreja-Estado em um regime monárquico, a imagem reforça ainda uma hierarquia na qual estaria no comando o papa e não o rei, apesar de este aparecer em primeiro plano. Seguindo a lógica do legendário simbólico da conspiração, o clérigo aparece ali estrategicamente fora dos holofotes, sorrateiro, manipulador, controlador, verdadeiro responsável pela situação.
Mais ao fundo, em meio a uma cortina de fumaça, é representada a própria cena do fuzilamento de Ferrer. Nela, o educador aparece com as mãos erguidas em clamor por piedade, na condição de inocente e vitimado. Em contraste à representação dos outros personagens, inclusive do soldado que atira contra Ferrer em uma postura robusta, ereta e certeira, o professor é representado como um mártir. O mártir é aquele que morre pela ideia, de forma que a representação imagética da cena da morte constitui-se em uma mensagem muito forte deste conceito. Compondo o mesmo legendário do “homem providencial”, do “chefe”, do “guia” e do “salvador”, ao ser martirizado Ferrer é concebido como “personagem-símbolo”, através do qual se exprime uma visão coerente e completa do destino coletivo (GIRARDET, 1987, p. 70) - no caso de A Lanterna, um guia para a revolução social.
No mais, importa ressaltar que tanto o título como a legenda adicionados pelos redatores do periódico à ilustração reiteram essas representações. “A eterna comédia” é um jogo de palavras que satiriza a situação: a tragédia da morte de Ferrer, fruto de uma decisão autoritária do rei, sob o controle do Clero - joga com o imaginário da relação entre eterno e divino e atribui a decisão pela morte de Ferrer a uma atitude inquisitorial da Igreja. Já a legenda, disposta de maneira a soar como uma frase do rei a seu subordinado, reforça que a demissão de Maura não passava de uma estratégia da monarquia católica da Espanha para atenuar a pressão da população sobre o governo após os acontecimentos da Semana Trágica.
Na mesma linha de iconografias que mantém o foco na denúncia do complô clerical no caso Ferrer, podem ser citadas outras duas ilustrações brasileiras publicadas nas páginas de A Lanterna. A primeira delas foi veiculada na capa da edição de número 4, ainda no ano de 1909, e também é de autoria de Voltolino. Em uma representação gráfica que mistura caricatura e desenho livre, o artista reproduz a cena do que parecem ser os instantes seguintes ao fuzilamento de Ferrer y Guardia. Na ilustração, quatro dos seis personagens não são meramente fictícios, e, exceto por Ferrer, estes aparecem caricaturados: o rei Afonso XIII na cena principal e, ao fundo, o papa Pio X e, ao que parece, Tomás Costa y Fornaguera, o arcebispo de Tarragora - arcebispado ao qual respondia o bispado de Barcelona. Já os outros dois personagens, criados livremente pelo cartunista, representam as próprias instituições Igreja, na figura do clérigo, e Estado/aparato policial, na figura do soldado.
De novo a denúncia da conspiração clerical se faz presente. Em segundo plano, reforçando o papel manipulador, assistem à cena, de longe e de cima, os membros do mais alto clero católico. O papa faz um gesto de bênção, apesar da feição um tanto colérica, enquanto o arcebispo observa-o com ares de pupilo. Em primeiro plano é possível identificar o corpo de Ferrer - o único representado com dignidade, sem os exageros caricaturais -, estirado sobre o solo e cercado pelos representantes da “trindade opressora” ou da “Santa Aliança”, como satiriza o periódico ao dar título à obra. Estão presentes o rei, principal representante do Estado espanhol, que segura o cadáver do educador; um soldado, representando o aparato policial, que empunha uma espingarda da qual ainda sai a fumaça deixada pelo tiro - o que dá o ar de instantaneidade citado -, e um padre, representante da Igreja na cena principal.
Se apropriando de simbologias do que Ernest Gombrich viria a definir como o bestiário político do cartunista (GOMBRICH, 1999), Voltolino representa esses dois últimos personagens com traços animalescos. O soldado real tem uma feição grotesca, seu nariz é achatado e mais parece um focinho, seus dedos são compridos e pontiagudos, como garras. O padre, por sua vez, se assemelha a um morcego, usa vestes negras - em um contraste de luz e sombras no qual ele é a personagem mais sombria -, possui grandes asas, orelha e nariz pontiagudos e está se alimentando do sangue que extrai, com a boca, do cadáver de Ferrer y Guardia. Segundo Gombrich, os animais são os mais típicos dos símbolos do cartum, cujo significado é universalmente facilitado devido a um sentido fixo vinculado à animália desde as fábulas de Esopo e La Fontaine. Por isso, não é difícil relacionar o soldado-besta e o padre-morcego, somados aos exageros caricaturais nos demais personagens - como o rosto muito fino, quase esquelético e coroa cheia de pequenos crânios de Afonso -, a algo nefasto e asqueroso.
Os estudos de Gombrich demonstram a potencialidade do recurso caricatural na polêmica jornalística. Reduzindo a fisionomia dos personagens a uma fórmula conveniente, a caricatura permite que a equiparação seja ampliada a ponto de tornar-se uma fusão visual. Conforme explica o historiador, “muitos oradores devem ter chamado muitos ministros de ‘parasitas’, mas tornar a identidade visível é outro caso” (GOMBRICH, 1999, p.135). Em A Lanterna, o tempo todo são atribuídos aos clericais adjetivos como malignos, vis, cruéis e manipuladores, o que a obra de Voltolino faz é justamente esse tornar visível por meio da representação gráfica.
A segunda ilustração brasileira publicada no jornal anticlerical que pode ser categorizada na temática de denúncia do complô jesuítico é de autoria de Gigi Damiani, sob o pseudônimo de Cujum. Assíduo colaborador de A Lanterna, o militante anarquista de origem italiana fora membro do jornal operário La Battaglia e do Comitê Organizador da Escola Moderna de São Paulo. Publicada na capa da edição especial em comemoração ao 13 de outubro de 1910, a ilustração tétrica de Damiani tem como personagem principal um clérigo que empunha e estende um crucifixo em um cenário apocalíptico.
Utilizando-se da técnica de luz e sombra, o artista coloca em destaque o bispo cuja mitra pontiaguda quase lhe forma chifres, ele mantém uma das mãos nas costas, na tentativa de esconder uma espécie de punhal ou faca de onde pinga o que possivelmente é sangue, em uma representação quase diabólica de um personagem que, dentre os seus, seria considerado sacro. Novamente, observa-se a utilização do capital simbólico religioso na crítica anticlerical. Conforme aponta Di Stefano, “o anticlericalismo, como questionamento do clero em si ou de sua tendência a monopolizar o capital religioso, atua movido por sua mesma lógica” (DI STEFANO, 2008, p.160). Nesse sentido, o artista se apropria da dialética religiosa do sagrado e do profano quando, para representar o padre de maneira maléfica, dá a ele traços tidos como “diabólicos” no próprio imaginário católico.
Outros símbolos cristãos compõem a imagem reiterando o ar de conspiração eclesiástica, como as pombas, geralmente relacionadas à paz ou ao próprio espírito santo, um cálice, um livro intitulado “St. Affonso”, fazendo referência ao rei espanhol, e ainda a sigla “A.M.G.D.”, lema da Companhia de Jesus - que se traduz como “para a maior glória de Deus”, do latim “ad maiorem dei gloriam”. O cenário se compõe ainda por símbolos que representariam, para os anticlericais, a degradação do operariado, como a igreja, a cadeia, o bordel e a taverna (RAGO, 1997 [1985]). O céu está carregado e há, ademais, outra figura humana - abaixo do clérigo, no que seria uma espécie de subsolo do local. É sobre essa figura no subsolo que todo o sangue advindo da superfície escorre. Considerando o contexto de publicação da ilustração, é plausível inferir que se trate do corpo fuzilado de Ferrer y Guardia.
Por fim, chama-se ainda atenção para a composição gráfica desse número do jornal. As edições especiais de 1910 e 1911, como será visto a seguir (Figura 8), foram extraordinárias também em suas configurações - saíram em dimensões menores que as ordinárias, com o dobro de páginas e imagens, maior quantidade de cópias e colorizadas8. Pensando na recepção do leitor, levanta-se a hipótese de uma escolha racional, por parte da redação, da cor utilizada para compor o projeto gráfico de tais edições, sobretudo considerando as ilustrações selecionadas para integrarem as respectivas capas (Figura 3 e Figura 8, a serem analisadas mais à frente)9.
A ilustração de Damiani (Figura 3), cuja mensagem central é a denúncia do complô e a crítica ao clero, não apenas compôs a capa da edição, tomando duas das quatro colunas da folha, ao centro, como foi impressa na coloração vermelha. Considerando a análise da obra, realizada acima, e destacando a presença de elementos viscerais, como o sangue e fogo, pode-se reflexionar que a cor vermelha ajuda a gerar uma sensação agressiva, de urgência, alarme, perigo e causar ainda mais impacto na recepção da mensagem iconográfica por parte do leitor.
Assim, em consonância ao discurso anticlerical, a imagem chama a atenção para o papel do Clero como principal responsável pela morte do educador, deixando o rei espanhol apenas em segundo plano. Ademais, estão aí presentes vários dos elementos discutidos até agora como componentes da simbologia do complô, transmitindo e difundindo essa mensagem de maneira visual. De forma bem mais simples e direta, esta é a mesma ideia passada pela Figura 4.
Diferente das demais, não foi possível identificar a autoria desta ilustração. Entretanto, é possível afirmar que não se trata de uma obra nacional, pois os redatores de A Lanterna deixaram abaixo da figura a fonte de onde originalmente a retiraram. Também publicada na folha de capa, a ilustração compôs o projeto editorial da edição de número 14 do periódico, no início do ano de 1910. A composição da imagem é bem mais singela que as demais, representando simplesmente um padre - de vestes negras e cujo chapéu tampa os olhos - sentado sobre um caixão de onde jorra sangue e é possível ler o nome de Ferrer. O forte teor anticlerical que caracterizou os protestos pró-Ferrer não foi uma particularidade brasileira. Na Europa, a execução do professor catalão teve eco excepcional na França e na Itália, países latinos que abrigavam movimentos anticlericais de grande envergadura, mas diversos foram os protestos registrados em outras partes do continente, como aqueles que tomaram as ruas, por exemplo, na Bélgica, na Inglaterra, na Alemanha, na Suíça, na Romênia, na Grécia e na Rússia - o mesmo em relação às Américas, que registraram protestos em países como Estados Unidos, Argentina e Paraguai, além do Brasil.
No que diz respeito ao mundo ibero-americano, Di Stefano e Zanca chamam a atenção para um imaginário próprio do anticlericalismo, que teria produzido e consolidado uma verdadeira “cultura anticlerical” compartilhada entre determinados grupos. Segundo os historiadores da religião, “os âmbitos de sociabilidade próprios da modernidade: maçonaria, sociedades de livres-pensadores, organizações vinculadas ao socialismo ou ao anarquismo, serviram para transmitir um ideário e um conjunto de imagens compartilhadas” (DI STEFANO; ZANCA, 2013, p.19-20). Já em relação à Europa, ainda que em cada contexto o anticlericalismo tenha assumido diferentes nuances - como na Espanha monárquica, na França da Terceira República e na Itália papal de fins do século XIX e início do XX -, o movimento teve, segundo Lisa Dittrich, um objetivo comum: o da secularização do Estado e da sociedade (DITTRICH, 2014).
Esta ilustração, por exemplo, foi retirada pelos editores de A Lanterna da Lustige Blatter, uma revista ilustrada e satírica alemã10. Publicada em Berlim desde 1885, a revista circulou por quase sessenta anos, fechando suas portas em 1944. Ao atravessar o Atlântico e ser impressa nas páginas de A Lanterna, entretanto, o teor anticlerical da obra ganha uma leitura particular, pois é aclimata ao contexto da Primeira República. Ademais, nota-se que a apropriação que o jornal brasileiro faz da imagem não pára por aí - os editores grafaram o nome do periódico sobre a mesma (canto inferior esquerdo). Nesse sentido, fica um questionamento sobre a circulação desta ilustração a partir do Brasil - se isso aconteceu, dentro ou mesmo fora do país, fosse na América Latina ou de volta à Europa, será que a autoria passou a ser atribuída ao periódico anticlerical brasileiro? Seja como for, parece uma boa forma de propaganda por parte dos redatores.
Nesta mesma linha de circulação transnacional de material iconográfico, destacam-se as Figuras 5, 6 e 7.
Assim como nas ilustrações anteriores, a simbologia mobilizada pelos artistas na feitura destas obras foi aquela relacionada ao mito da Conspiração. A primeira delas (Figura 5) foi publicada na capa do número 160 de A Lanterna, edição que rememorou o 13 de outubro no ano de 1912. Já a segunda (Figura 6), trata-se de um postal produzido e difundido pela redação do periódico parisiense Le Libertaire. Com uma composição muito parecida, a cena representada nas ilustrações é a de um grupo de pessoas a observar um cadáver ensanguentado e estirado no solo - que representa Ferrer y Guardia fuzilado. Em ambas é possível identificar, ao fundo, uma tropa de soldados e uma fortaleza, que faz referência a Montjuich. Mas, enquanto na versão de A Lanterna o grupo que aparece em primeiro plano é composto por quatro personagens que, a julgar pelas vestimentas, se tratam de um soldado, um rei e dois clérigos - sendo estes um padre e um bispo -, na versão do periódico anarquista de Louise Michel e Sebastian Faure há um elemento a menos. Em Le Libertaire está ausente o rei, que em A Lanterna figura entre os dois personagens do Clero.
Apesar de não ter sido possível identificar a autoria das ilustrações, é plausível pensar que a versão publicada no Brasil fora produzida em território nacional, possivelmente apropriando-se da versão francesa. Antes de ser veiculado no formato de postal, o mesmo desenho compôs a capa da edição de número 3 do periódico Le Libertaire, publicado em 14 de novembro de 1909 (Figura 7). A redação do jornal francês passou a anunciar a venda do postal já na edição seguinte, de 21 de novembro. Considerando, portanto, que a versão de A Lanterna tenha sido produzida no mesmo ano em que foi publicada, trata-se de uma ilustração posterior e, por isso, pode-se inferir que seja fruto de uma apropriação daquela que figurou no periódico Le Libertaire e, em seguida, circulou no formato de postal.
Independente das possíveis trocas entre as Figuras 5 e 6, destaca-se que as representações iconográficas que retratam o cadáver de Ferrer y Guardia têm forte cunho emocional e, no caso daquelas veiculadas no periódico anticlerical paulistano, mantém uma composição muito parecida, trazendo sempre o elemento clerical como principal responsável pelo fuzilamento, apesar de não eximir totalmente o Estado espanhol - como nas ilustrações de Voltolino (Figura 2) e Gigi Damiani (Figura 3) analisadas anteriormente. Assim, é interessante notar como, no contexto brasileiro, importa representar, em meio ao Complô, o elemento estatal - por mais que sob o domínio intelectual do Clero. Desta feita, em A Lanterna, tais ilustrações ganham um significado singular: o de identificar aqueles que compõem o campo inimigo, o que é feito a partir da própria identificação dos responsáveis pela morte de Ferrer. Dar fim à vida do educador significa a tentativa de repressão de ideias representadas pelo mártir, muitas das quais eram bandeiras dos anarquistas que compunham a redação do periódico anticlerical, especialmente no campo da educação popular.
Assim, essa semelhança entre as obras permitiu categorizá-las em uma série de representações imagéticas da denúncia, por meio do caso Ferrer, do complô clérico-estatal que deveria ser combatido. Na condição de mito político, Ferrer y Guardia parece ser utilizado aqui na chave de explicação do real - o que se denuncia através desta iconografia é o poder e a influência da Igreja nos negócios de Estado, a opressão estatal, em consonância com o Clero, sobre os discordantes e combatentes e, sobretudo, o uso do aparato militar dos estados nacionais em prol da repressão dos divergentes e das classes menos abastadas, situação que a classe operária paulistana sentia na pele, com prisões e expulsões compulsórias de militantes11.
O grande mártir da educação popular
Outra linha de representação iconográfica de Ferrer é a que o coloca enquanto um mártir da educação popular e do operariado. Em A Lanterna, muitas das imagens que representaram o professor na condição de mártir foram publicadas nos números que o homenagearam pela ocasião da efeméride de 13 de outubro. Para a presente análise, chama-se a atenção para três ilustrações que foram publicadas em capas de edições que rememoraram Ferrer y Guardia, respectivamente, nos anos de 1911 (Figura 8), 1912 (Figura 9) e 1914 (Figura 10).
Guardadas suas particularidades, nas três ilustrações estão fortemente presentes elementos do imaginário do mito político do herói-salvador caracterizado por Girardet. Em todas elas Francisco Ferrer y Guardia tem para si uma espécie de monumento por meio do qual é admirado ou adorado por um grupo de pessoas. Ademais, há ainda outros elementos em comum entre elas, como a presença das mulheres e das crianças, símbolo da infância - para quem se direcionava seu trabalho -, além das musas - alegorias da Liberdade ou mesmo da República, a fim de enfatizar os ideais laicos sob os quais se erige o ídolo. Uma particularidade interessante na Figura 9, utilizada mais de uma vez pelo periódico paulistano e que pode ter sido produzida por um de seus colaboradores, é a presença de homens adultos. Ali, pela primeira vez, Ferrer está diretamente relacionado ao elemento operário nas iconografias veiculadas sobre ele em A Lanterna. Essa ligação da figura do educador à pauta dos trabalhadores aparenta servir essencialmente à bandeira anarquista do periódico.
A primeira imagem da série (Figura 8) também guarda uma importante particularidade e vem sublinhar a hipótese anteriormente levantada sobre a coloração dos números especiais de 1910 (Figura 3) e 1911 (Figura 8) e o impacto na recepção da mensagem pelo leitor. A ilustração intitulada “Ideal”, como visto, compôs a edição que rememorou Ferrer dois anos após seu fuzilamento. Impresso de maneira extraordinária, o número 108 de A Lanterna, em consonância ao ano anterior, também saiu colorizado. Desta vez, entretanto, a cor eleita foi o azul. A Figura 8 compôs a capa da edição, também em duas das quatro colunas do centro da folha, configurando-se, portanto, como principal material iconográfico do número especial daquele ano. Mas, em contraste com o visceral vermelho da Figura 3, o azul carrega uma mensagem de calma, confiança e estabilidade. Apesar da presença do elemento clerical, o foco da ilustração, como visto, está na figura de Ferrer. Assim, faz-se possível inferir que a escolha do azul tenha sido intencional, no intuito de transmitir a sensação de força e positividade, vinculadas à figura do educador - que nesta imagem é representado honrado e altivo, reforçando o mito político do herói.
No mais, vale ressaltar que as Figuras 8 e 10 são de autoria do mesmo artista: Firmín Sagristà. O pintor espanhol foi também um convicto militante anarquista, colaborou com o jornal de Ferrer na Espanha, La Huelga General, e com o magoniano Regeneración durante a Revolução Mexicana. As ilustrações de Sagristà foram produzidas ainda no ano de 1909 e também circularam em formato de postal, suporte pelo qual possivelmente chegaram à redação de A Lanterna. Nas duas ilustrações do espanhol é possível identificar um elemento que não está presente na Figura 9 - na margem de cada uma delas está um clérigo que observa de forma sorrateira a cena. A presença do elemento clerical nas ilustrações de Sagristà é de extrema importância na medida em que insere a homenagem a Ferrer como pauta anticlerical.
O ilustrador trabalha com o jogo de luz e sombra para passar a mensagem da luz contra as trevas, da denúncia do complô jesuítico e da identificação e responsabilização dos inimigos da luta pela educação racionalista. Reconhecido no meio libertário, o artista chegou a passar um período em cárcere devido a estas e outras ilustrações em homenagem a Ferrer, o que pode inclusive ter impulsionado a difusão das mesmas. Ambas foram localizadas em diferentes veículos da imprensa internacional.
A primeira (Figura 8), circulou também como postal colorizado na Europa (Figura 11), além de figurar na capa de uma edição especial em homenagem ao educador da revista costa-riquenha Renovación, no ano de 1911 (Figura 12) e em um periódico de língua holandesa que não foi possível ser identificado (Figura 13).
Já a segunda (Figura 10), foi localizada também no jornal operário Cultura Proletaria, editado e publicado em língua espanhola na cidade de Nova Iorque, e na Revista Racionalista Francisco Ferrer, editada em Buenos Aires - ambas anteriores à publicação em A Lanterna. A edição de Cultura Proletaria (Figura 14) saiu no ano de 1910 e se tratava de um número extraordinário em homenagem ao educador. Já a edição da Revista Racionalista (Figura 15), saiu em 15 de maio de 1911. Nela, destaca-se uma diferença na inscrição do memorial de Ferrer, que aparece com a primeira frase suprimida. Com a ampliação da imagem, nota-se que a ilustração está dobrada, de forma que os próprios desenhos estão sobrepostos - bastante notável na figura feminina que estende os ramos ao educador, por exemplo, em que a descontinuidade do corpo fica evidente. Isso pode ter se dado por algum descuido ou mesmo precariedade nos recursos para a impressão de material iconográfico, comum no meio operário, e no qual também se inseria a Revista Racionalista Francisco Ferrer.
Nota-se, finalmente, que na série formada pelas três ilustrações analisadas o conjunto de representações iconográficas reforça a ideia de Ferrer como mártir da educação popular. É essencialmente a partir desta categoria de representação que se constrói, no periódico anticlerical, a figura do educador como mito salvador, guia da revolução social. Assim, na condição de mito político, Ferrer y Guardia parece ser utilizado, sob esta ótica, como mobilizador da luta travada pelo periódico em prol da educação popular e do operariado.
Dominados pelo terror
Por fim, a última série de representações iconográficas sistematizada aqui para fins de análise reforça a construção do mito salvador e articula imaginários utilizados nas séries anteriores. Nela, o educador aparece já na condição de mito imortalizado, que antes vítima de um complô maléfico - identificado em iconografias como as analisadas em “Rol dos culpados” -, constitui-se agora como o personagem símbolo que não apenas guia - representação do mártir da educação popular -, mas aterroriza o campo adversário com a difusão de suas ideias. Nesta série iconográfica, portanto, o mote principal é a construção do mito do salvador, que vem frustrar o complô contra o qual lutam os livres-pensadores reunidos em torno do periódico anticlerical.
O primeiro destaque é para outra ilustração de Voltolino (Figura 16), então veiculada na capa da edição de número 52, de 8 de outubro de 1910. Mais simples e com bem menos elementos que as demais, a ilustração retrata a interlocução entre dois personagens: Francisco Ferrer, que aparece caricaturado, e um membro do Clero. Este, que é representado com um corpo avultado, faz um gesto para que o professor fique em silêncio. O catalão, por sua vez, está formalmente vestido e aparentemente sereno, mantém as mãos para trás, o peito aberto e os olhos fixos nos do clérigo - cuja expressão parece agitada, fosse por raiva ou medo. A postura firme de Ferrer diante do religioso passa uma mensagem de não resignação diante do avanço clerical. Na legenda, os redatores de A Lanterna reforçam o mito da conspiração no que seria a fala do padre ao professor: “Muito cuidado, seu ‘derrubador’ de ministérios. Nesta república mandamos nós…”.
Interessante notar que a intervenção dos editores do periódico, ao adicionarem à ilustração de Voltolino a referida legenda, insere o mito Ferrer no contexto da política brasileira - o ministério a que se refere o padre é o de Antônio Maura, mas a república é a do Brasil, em uma evidente crítica do jornal ao poder exercido pela Igreja nas questões estatais. Assim, na véspera da primeira efeméride em comemoração ao educador ele já não aparece apenas como vítima. De postura altiva e tranquila, Ferrer é representado aqui como o personagem-símbolo, guia revolucionário na luta contra o complô clerical.
Segue essa lógica a Figura 17, publicada no segundo número do periódico. De autor desconhecido, identifica-se ao pé da ilustração uma inscrição com o nome do jornal, de forma que é plausível inferir que a obra seja de algum colaborador ou tenha sido produzida sob encomenda para A Lanterna. Ocupando a capa da edição, a movimentação de elementos cristãos para atacar o clericalismo é bastante evidente na imagem. Na figura, o rei aparece de joelhos, assustado e se escondendo aos pés do papa (novamente obeso) que, sentado e furioso, assiste à Ferrer “subindo aos céus”, que remete a um espírito ou um fantasma. O educador mostra com expressão de dor, mas com certo orgulho, o peito perfurado pelas balas do fuzilamento, evocando assim uma imagem quase santificada de sua morte, como o Cristo martirizado que expõe as chagas de sua crucificação - no que pode ser lido como uma espécie de “transferência de sacralidade”, na qual a linguagem e os símbolos da religião se fundem em um molde secular (DI STEFANO, 2008, p.172).
Nesse ponto, chama-se atenção para a Figura 18, publicada na capa da edição de número 183 do periódico anticlerical. Com uma composição muito parecida, o personagem que agora assusta e fere com sua luz os membros do clero, é o próprio Jesus Cristo. Segundo Di Stefano, o anticlericalismo ibero-americano muitas vezes não ataca diretamente a Igreja, a religião ou o clero em si, mas a parcela “fanática” deste, que dentre outras coisas, defenderiam a “monarquia contra a república, o conservadorismo contra o liberalismo, [e] o obscurantismo contra a ciência” (DI STEFANO, 2008, p.168). Para o autor, nessa crítica anticlerical, a religião se reorganizaria: “se transfere à lealdade patriótica, ao culto laico da ciência, à defesa da autonomia individual, à identidade de classe” (DI STEFANO, 2008, p.172). Essa tendência anticlerical de cunho religioso, como defende o autor, pode ser observada em muitas das ilustrações sobre Ferrer veiculadas em A Lanterna, seja na representação santificada do educador, seja na presença de elementos simbólicos do imaginário político próprio de grupos republicanos, socialistas e anarquistas, como as bandeiras e as musas - alegorias da Liberdade, da Justiça ou da própria República -, representados sempre de maneira positiva.
Mas, se nas Américas espanhola e portuguesa os conflitos de jugo colonial - herança recente do imperialismo do século XIX -, moldaram a recepção dos ideais iluministas e do próprio conceito de anticlericalismo no continente, é importante notar que, no caso Ferrer, a ótica dos países hispano-americanos tinha um elemento que, no Brasil, não figurava: para aqueles, Ferrer y Guardia era, antes de tudo, vítima de um dominador e opressor em comum, o Estado espanhol. Guardadas as similaridades em relação à cultura anticlerical ibero-americana, no jornal de tendência anarquista, esse anticlericalismo vincula-se também aos discursos de Ernest Renan e Joseph Proudhon, condenando não a religião, mas a instituição Igreja, e concentrando suas críticas nos prazeres e exageros terrenos dos membros do clero. No caso brasileiro, em A Lanterna, o mito Ferrer parece representar a luta travada pelo jornal frente a influência da Igreja na sociedade, especialmente no campo da disputa pela educação - que, para os anarquistas, entretanto, não bastava que fosse pública e laica, ou seja, entregue ao Estado republicano, mas popular e anticlerical: livre das amarras do Estado e da Igreja, feita por e para os trabalhadores e seus filhos.
Nesse mesmo sentido de representação do educador a Figura 19, apesar de também denunciar o complô monárquico-jesuítico ou clérico-estatal, passa como principal mensagem a força do mito Ferrer na condição de Guia ou Salvador. Em A Lanterna a ilustração foi publicada na capa de 12 de outubro de 1912, em homenagem a Ferrer e, no ano anterior, fez parte do projeto editorial da edição 19-20 - comemorativa do 13 de outubro daquele ano - da já citada revista costa-riquenha Renovación, onde recebeu o título de “Ressurreições da Ideia” (Figura 20). De autoria não identificada, acredita-se não se tratar de uma ilustração brasileira, sendo possível, inclusive, que a versão do jornal anticlerical tenha sido retirada da revista racionalista12.
Nesta obra Ferrer também é representado como monumento e, à esquerda, há um grupo composto por elementos clericais e estatais, além do que parece ser a representação de um membro da burguesia. O bando está assustado e faz um movimento de fuga diante da imagem do educador - que por sua vez, tem uma postura altiva e emite um facho de luz que rasga a escuridão do fundo da cena, trazendo à tona as figuras caricatas. De volta ao bestiário político do cartunista, um dos personagens do complô - que parece ser membro do clero - está envolto por uma serpente, enquanto um caramujo acompanha o bando. Além de serem dois animais rasteiros e pegajosos, relacionados ao asco, ressalta-se que na simbologia religiosa os mesmos aparecem frequentemente associados ao mal. Teria sido a serpente, por exemplo, a responsável por apresentar ao Homem o pecado, o que o expulsou do paraíso - no imaginário cristão o animal simboliza, assim, a perfídia e a traição.
Assim como nas demais ilustrações analisadas, é possível perceber como os personagens do complô aparecem recorrentemente representados de forma estereotipada, muitas vezes desumanizados na medida em que são animalizados ou rebaixados por alguma outra característica tida como negativa. Esse tipo de representação do outro pode ser tida como uma estratégia de grupos anticlericais e anarquistas na recognição de seus adversários. Assim como o mito político serve de explicador do real, a utilização de imagens identificadoras e denunciadoras do campo inimigo também é capaz de oferecer “tipos de representações do mundo que partem do real para combatê-lo e desconstruí-lo com a finalidade de criar algo novo e melhor, uma nova perspectiva em que a presença estatal, policial e clerical não se faria sentir” (POLETTO, 2017, p.134).
Já na construção do mito guia, Ferrer é representado junto a um jardim no qual crescem vigorosas flores, como símbolo para a fecundação de suas ideias. Reforça essa noção o feixe de luz que, ao iluminar o educador e o ambiente, espanta os personagens do complô - metáfora da ideia de luz como símbolo visível do bem, contra as trevas, representação do mal. Noção essa que, como pontua Gombrich, “é importante em filosofia, de Platão ao Iluminismo, como o é também dentro da tradição cristã” (GOMBRICH, 1999, p.138). Dualismo muito utilizado na estratégia de denúncia do complô, conforme Girardet, o que parece estar em jogo na ilustração é justamente a ideia da razão da ciência, da difusão dos ideais iluministas, representados pelo racionalismo de Ferrer, contra as trevas da ignorância, do obscurantismo e da barbárie, relacionados à fé religiosa. Assim, a representação imagética não só identifica seus inimigos, como os combate.
No mais, a presença do elemento burguês também se faz importante. Apesar de não ter sido possível identificar a autoria e contexto de produção da obra, no contexto de publicação do periódico anticlerical paulistano esse personagem vem denunciar a exploração do operariado pelo sistema capitalista. Nesse sentido, o complô se constitui na ilustração através da amálgama entre Clero, Estado e burguesia - tripé de sustentação desse sistema, motivo pelo qual deveriam ser combatidos. Na representação iconográfica a chave dessa luta está na disseminação dos ideais educacionais de Ferrer, cujo racionalismo sustenta um ensino livre não apenas da Igreja, como do Estado e do capital, que sirva, portanto, de instrumento para a desconstrução dessa realidade e formação um mundo livre da influência dessas instituições.
Considerações finais
A partir da prévia seleção de fontes iconográficas sobre Ferrer veiculadas no periódico paulistano A Lanterna - Folha anticlerical de combate, e posterior sistematização de parte do material encontrado, foram organizadas três séries, para fins de análise, que formaram diferentes conjuntos de representações do educador. Em cada um deles, apresentados aqui como subtópicos, procurou-se refletir sobre as principais mensagens transmitidas ao público, bem como sobre referências e imaginários simbólicos mobilizados pelos artistas na produção de cada obra - buscando manter sempre em vista a inserção destas no contexto brasileiro de publicação do jornal estudado e, quando possível, chamando a atenção para circulações e trocas transnacionais das ilustrações selecionadas.
Objetivou-se, sobretudo, demonstrar a hipótese, formulada a partir do estudo de material iconográfico e textual acerca do educador no jornal, de que em A Lanterna a figura de Ferrer é construída e utilizada como mito político, substancialmente em prol da pauta anticlerical de seus editores. Construção essa que se dá muito em torno das mensagens iconográficas veiculadas no periódico, cujo mapeamento da circulação material, traçado ao longo do texto, demonstra e reitera a tese de uma inserção do periódico em um verdadeiro circuito internacional de difusão do imaginário anticlerical. Seja como mobilizador para a ação ou no papel didático de difusor dos ideais racionalistas e libertários, o educador parece ser utilizado na denúncia do complô “jesuítico” pelos anticlericais, de forma a fornecer uma chave para a explicação do contexto em que era evocado, explicitando a necessidade e a urgência das pautas reunidas em torno de si.
Referências Bibliográficas - Fontes
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Bibliografia
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