Artigo Original

USUÁRIOS POLIQUEIXOSOS: REPRESENTAÇÕES SOCIAISCONSTRUÍDAS POR MÉDICOS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

USUARIOS POLISINTOMÁTICOS: REPRESENTACIONES SOCIALES CONSTRUIDAS POR MÉDICOS DE ATENCIÓN PRIMARIA A LA SALUD

Renata Goltara Liboni Vescovi
Universidade Federal do Espírito Santo, Brazil
Luiz Gustavo Silva Souza
Universidade Federal do Espírito Santo, Brazil
Universidade Federal Fluminense, Brazil
Luziane Zacché Avellar
Universidade Federal do Espírito Santo, Brazil

USUÁRIOS POLIQUEIXOSOS: REPRESENTAÇÕES SOCIAISCONSTRUÍDAS POR MÉDICOS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 1, pp. 71-82, 2015

Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 29 Outubro 2014

Aprovação: 16 Março 2015

RESUMO.: O fenômeno dos sintomas vagos e difusos (SVD) diz respeito a dores inespecíficas que não encontram associação direta com causa orgânica. Destaca-se a relevância da consideração desses sintomas para o contexto da atenção primária à saúde (APS), uma vez que as queixas com tais características aparecem em grande número como demanda de usuários ao chegarem para o atendimento nesse contexto, em muitos países. A pesquisa desenvolvida teve o objetivo de compreender representações sociais construídas por médicos da APS sobre o fenômeno dos sintomas vagos e difusos. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com uma vinheta, das quais participaram os cinco médicos atuantes na unidade de saúde da família pesquisada. Os dados obtidos foram tratados a partir de análise de conteúdo temática. As entrevistas revelaram aspectos do campo representacional relacionado aos usuários SVD, que incluíram ideias e imagens associadas a outros objetos de comunicação na USF: usuário chato, pessoa doente e população de classe social menos abastada. Destacaram-se como elementos de objetivação figuras construídas sobre usuários SVD relativas à ideia de que esses usuários frequentavam o serviço como poliqueixosos, sem precisarem dele. Destacou-se a hegemonia da clínica tradicional calcada em relações mais médico-centradas do que usuário-centradas. Sugere-se a revisão de relações normativas entre trabalhadores de saúde e usuários SVD e de abertura para a cogestão destes na decisão sobre a condução de seu tratamento.

Palavras-chave: somatização, representação social, prática clínica.

RESUMEN.: El fenómeno de los síntomas vagos y difusos (SVD) está relacionado a los dolores inespecíficos que no tienen ninguna asociación directa con causa orgánica. Se destaca la importancia en considerar estos síntomas en el contexto de la Atención Primaria a la Salud (APS), una vez que las quejas con tales características surgen, en muchos países, en gran número como demanda de usuarios al llegar para la atención en este contexto. La encuesta desarrollada tuvo el objetivo de comprender las representaciones sociales construidas por médicos de APS sobre el fenómeno de los síntomas vagos y difusos. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con una viñeta, de las que participaron los cinco médicos que actúan en la Unidad de Salud de la Familia (USF) investigada. Los datos obtenidos fueron tratados a partir del análisis de contenido temático. Las entrevistas revelaron aspectos en el campo de la representación relacionada a los usuarios SVD que incluyó ideas e imágenes asociadas a otros objetos de comunicación en la USF: usuario aburrido, persona enferma y población de clase social más baja. Se destacaron como elementos de objetivación figuras construidas sobre usuarios SVD relacionadas con la idea de que esos usuarios frecuentaban el servicio como polisintomáticos sin tener necesidad del mismo. Se destacó la hegemonía de la clínica tradicional enfocada más en las relaciones médico-centradas que en usuario-centradas. Se sugiere la revisión de las relaciones normativas entre trabajadores de la salud y usuarios SVD y abrir la posibilidad de una gestión compartida entre ellos en la decisión sobre la conducción de su tratamiento.

Palabras clave: Somatización, representación social, práctica clínica.

Fenômenos como saúde e doença encontram no paradigma biomédico definições que amparam os profissionais de saúde em suas práticas, teorias que se afirmam como verdade e como superiores ao conhecimento do senso comum. Como esse paradigma, que se sobrepõe a outros, explica fenômenos que escapam aos seus domínios, como a dor sem lesão ou sem correspondência com uma disfunção orgânica? De que forma esses fenômenos são entendidos em contexto de saúde pública? Um exemplo de fenômeno que se enquadra em tais especificações são os sintomas vagos e difusos.

Silveira (2000) analisa os sintomas vagos e difusos sob a perspectiva do fenômeno dos nervos, resgatando um termo utilizado popularmente para tais manifestações. Outros autores (Lazzaro & Ávila, 2004; Fonseca, Guimarães, & Vasconcelos, 2008; Maragno, Goldbaum, Gianini, Novaes, & César, 2006) utilizaram denominações propostas em manuais diagnósticos como transtornos mentais comuns, somatização, transtornos somatoformes ou mesmo em outras categorias que encontram correlações com as primeiras como distonia neurovegetativa, conversão, hipocondria e psicossomática.

Os sintomas a que se referem essas diversas denominações dizem respeito a dores difusas que não encontram associação direta com causa orgânica. São queixas como dores de cabeça, dores abdominais, dores no corpo, insônia, entre outras, que aparecem em grande número como demanda de usuários de serviços de saúde (Lazzaro & Ávila, 2004). Frequentemente, o diagnóstico não é estabelecido de maneira precisa, o que influencia diretamente as condutas terapêuticas, muitas vezes equivocadas e limitadas a prescrições de psicofármacos, pedidos de exames laboratoriais desnecessários, hospitalizações e, até mesmo, intervenções cirúrgicas (Guedes, Nogueira, & Camargo Jr., 2008).

Muitas vezes, por se caracterizarem como quadros refratários às terapêuticas médicas e às medidas paliativas realizadas, a tendência é de intensificação da condição de abandono dessas pessoas por parte dos profissionais e a impressão de que elas superutilizam os serviços médicos (Bombana, 2006). Àqueles que manifestam tais quadros cabe uma empreitada rumo à legitimidade de seus sintomas (Zorzanelli, 2011). Na APS de muitos países, a prevalência de somatizações (sintomas físicos sem causa orgânica) pode chegar a grandes percentuais, variando de 16% a 52% do total de atendimentos realizados. Pesquisas (Fonseca et al., 2008; Maragno et al., 2006) apontam para a ocorrência substancial de casos de usuários com os denominados transtornos mentais comuns, cujas manifestações se relacionam aos sintomas vagos e difusos em consultas de APS.

As manifestações somáticas inespecíficas são mais frequentes na população feminina, de baixa renda e escolaridade, que sejam donas de casa ou que apresentem dificuldades nas atividades de trabalho exercidas fora de casa (Fortes, Villano, & Lopes, 2008; Tófoli, Andrade, & Fortes, 2011). Àqueles que geralmente procuram uma Unidade de Saúde, principal serviço da APS brasileira, uma das portas de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS), visando à minimização de sua dor, manifestando-a por meio de sintomas vagos e difusos, são conferidos rótulos como poliqueixosos ou pitiáticos (Fonseca et al., 2008). A atribuição do termo poliqueixoso recai com mais frequência sobre pessoas do sexo feminino, aspecto que vai ao encontro dos estudos de prevalência apontados (Machin et al., 2011). Guedes (2007) afirma que a relação de causalidade estabelecida entre causa-lesão, norteadora da conduta ligada à biomedicina, é rompida diante dos sofredores somáticos. Outros recursos devem ser desenvolvidos na tentativa de lidar de forma mais eficaz com esses casos.

Tendo como norte a concepção psicossocial, recomenda-se a adoção de uma atitude psicoterapêutica e do envolvimento da equipe tanto na vida social, como na relação do usuário (Saraceno, Asioli, & Tognoni, 2001). Compõe essa orientação o encontro entre profissionais de saúde e usuários que constitui o território das denominadas “tecnologias leves” (Franco, Bueno, & Merhy, 2003, p. 38), por envolver tecnologias das relações em oposição ao modelo “procedimento-centrado” (Franco & Merhy, 2003, p. 71), calcado em procedimentos e exames.

Se não acontece o processo de abertura do saber médico a outros saberes, o profissional corre o risco de exercer uma prática ritualizada, por sua repetição, e pouco resolutiva (Fernandes, 1993). Aponta-se a necessidade de considerar além da enfermidade, o sujeito e seu contexto, abrindo caminho à construção de dispositivos clínicos que ultrapassem os procedimentos técnicos padronizados que se configurem como expressão de resistência à hegemonia do paradigma biomédico, como é o caso da Clínica Ampliada (Campos, 2003, 2011). O efeito das relações de poder assimétricas muitas vezes é o de excluir o usuário, destituindo-o de voz sobre seu próprio sofrimento, postura que o faz não se sentir acolhido e que reafirma seu lugar de destituído de saber (Sampaio, 2010).

O paradigma biomédico e o paradigma psicossocial (Costa-Rosa, 2012) são conjuntos de ideias pregnantes no contexto da saúde pública, mas estão longe de esgotar o emaranhado sociocognitivo que caracteriza o cotidiano do campo. A análise das teorias de senso comum construídas por médicos da APS sobre os sintomas vagos e difusos deverá permitir uma compreensão ampliada das condições de estigmatização de usuários com esse tipo de sintoma.

As consultas são o lugar de emergência desses elementos do senso comum que permeiam o manejo dos casos de SVD pelo médico de APS. Nesse espaço, em que se desenvolve uma relação entre médico e usuário, considerada como dinâmica interpessoal complexa, há o encontro de culturas diversas, grupos sociais diferentes, o que requer a contribuição de outras áreas do saber para sua discussão, como a psicologia social. A análise desses processos psicossociais pode ser feita sob a perspectiva da teoria das representações sociais, desenvolvida por Moscovici (1961/2012).

Representações sociais constituem um conjunto de teorias e explicações sobre a realidade que nos cerca, formando o conhecimento do senso comum. O senso comum se produz no universo consensual entendido como sistema de pensamento e práticas, formado por meio da apropriação de elementos do universo reificado (universo dos saberes oficiais, científicos), em conjunto com outros elementos, outras racionalidades e teorias, que servem à gestão da vida cotidiana que propicia a elaboração de realidades sociais e interpretação dos fenômenos (Moscovici, 2003).

Na relação de influência recíproca indivíduo-ambiente, a realidade social é construída (Sá, 1993). As representações sociais são enraizadas historicamente e permitem tornar o estranho, o inusitado, em algo familiar e factível, orientam e justificam comportamentos, práticas (Moscovici, 2003). As representações operam na vida cotidiana por meio de processos de caráter cognitivo e social: a objetivação e a ancoragem. Por objetivação entende-se um processo de simplificação, organização e generalização que naturaliza ideias e imagens com a finalidade de construir uma figura tangível de um fenômeno insólito ou abstrato. A ancoragem, por sua vez, é a busca de elementos, em um campo semântico já existente, que possam aportar o novo objeto a ser classificado e reapresentado (Moscovici, 1961/2012).

A pesquisa relatada aqui objetivou compreender as representações sociais construídas por médicos de unidade de saúde da família acerca de usuários que manifestam sintomas vagos e difusos (SVD). A relevância do recorte teórico está no fato da maior parte dos trabalhos encontrados sobre usuários com sintomas vagos e difusos (doravante, usuários SVD) no contexto da APS se referir a pesquisas de prevalência. Um dos estudos que embasam essa afirmação é o de Souza, Menandro, Couto, Schimith, & Lima (2012) que, ao desenvolverem uma revisão da literatura brasileira a respeito da saúde mental na saúde da família, não encontraram qualquer produção que tivesse como foco as representações sociais de médicos em relação a usuárias SVD. Esse dado aumenta o interesse de empreender uma investigação sobre esse objeto, com foco psicossocial.

Método

Participantes

A pesquisa foi realizada em uma unidade de saúde da família (USF) localizada no município de Vitória-ES, com cinco médicos de saúde da família, que atendiam, em consultas, usuários com manifestação de sintomas vagos e difusos. Foram entrevistados todos aqueles em atividade no período, respeitando a disponibilidade dos mesmos e o bom funcionamento do serviço. O perfil dos médicos participantes foi relativamente homogêneo por não variar no quesito categoria social. Todos pertenciam à classe média alta, considerados os critérios de renda acima de 11 salários mínimos e bairro de moradia. Quatro eram do sexo feminino e apenas um do sexo masculino. Quanto à idade, houve uma variação entre 32 e 50 anos. O tempo de experiência profissional variou de oito a 24 anos. Dois deles atuavam na unidade por um tempo considerável, nove e 13 anos, e os demais estavam no serviço há, aproximadamente, três anos.

Instrumentos e procedimentos de coleta de dados

Foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas com os cinco médicos atuantes no serviço, em local e horário previamente acordados. Cada uma delas durou cerca de 45 min. As questões do roteiro giraram em torno dos seguintes aspectos: a relação médico-usuário(a) em geral e médico-usuário(a) SVD; percepções sobre os(as) usuários(as) chatos(as); representações sobre usuários em geral e o usuário(a) SVD; condutas em relação ao usuário(a) SVD; explicações construídas a respeito do comportamento e dos sintomas apresentados pelo(a) usuário(a) SVD. O roteiro continha uma vinheta que descrevia o caso de uma mulher, possível usuária SVD. O foco das entrevistas e deste artigo nas usuárias SVD se justifica pelos estudos de prevalência citados acima, que indicam maior incidência de SVD em mulheres. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra para análise. As participações foram voluntárias e autorizadas mediante a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, com garantia de anonimato. Com esse intuito, nomes fictícios foram adotados para os profissionais: Amanda (40 anos, 13 anos de USF), Bruna (32 anos, 8 anos de USF), Clemir (39 anos, 10 anos de USF), Daniela (50 anos, 11 anos de USF) e Elvira (49 anos, 12 anos de USF). Foram ocultadas quaisquer referências que remetessem diretamente ao local do estudo.

Procedimento de análise dos dados

As entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo temática proposta por Bardin (1977/2011). O procedimento foi constituído pela leitura exaustiva dos relatos para a identificação de núcleos de sentido (temas) construídos pelos profissionais acerca do fenômeno investigado. Os temas foram agrupados nas seguintes categorias, construídas a priori: percepções sobre os usuários chatos e os usuários SVD; percepções sobre o comportamento dos usuários SVD e condutas que os profissionais destinavam aos usuários SVD.

Resultados e Discussão

Os usuários chatos e os usuários SVD eram percebidos pelos profissionais de maneira semelhante?

Em relação aos usuários considerados chatos pelos profissionais e os usuários SVD, identificaram-se os seguintes temas: os usuários chatos eram cansativos, intransigentes, difíceis de lidar e negligentes quanto ao cuidado com a saúde; os usuários SVD eram cansativos, chatos, intransigentes e insistentes; os usuários SVD se comportavam de forma indesejada no consultório médico; os usuários SVD sempre estavam na unidade; o grupo de usuários SVD foi objetivado como poliqueixoso, “Meu posto, minha vida”, “goiabinha”, “crônicos da unidade”, “sócio da unidade” (esses termos serão explicados mais adiante); Os médicos se viam diante de uma limitação quando atendiam usuários SVD.

Ao relatarem as características dos usuários considerados chatos, os profissionais disseram: “São pessoas que querem naquela hora. São pessoas que me cansam. Querem na hora delas né” (Amanda, 40 anos). Ou então, relataram: “Ele fala aquilo e ele é intransigente naquilo então, é o paciente que é difícil de lidar.... A pessoa fica fechada e aí passa a ser chato porque você tá propondo, nada dá certo” (Bruna, 32 anos).

Observa-se que, na percepção dos profissionais, os usuários considerados chatos eram cansativos quando não seguiam as orientações médicas; intransigentes, por buscarem o médico com um objetivo específico e não aceitarem as intervenções e os diagnósticos enunciados; difíceis de lidar porque resistiam em aceitar o que o médico dizia e ainda insistiam em determinado sintoma e negligentes quanto ao cuidado com a saúde. Tal insistência em determinado sintoma era entendida como rigidez e podia levar a embates com o médico.

Os usuários SVD, por sua vez, “apareciam muito” no serviço; essa afirmação referiu-se à vinheta que descreveu uma usuária SVD prototípica. A partir deste recurso foram emitidas percepções dos profissionais sobre o fenômeno. A médica Amanda (40 anos) afirmou: “Aparece. Muito. Principalmente em demanda [sem agendamento prévio] né.”, enquanto a médica Elvira (49 anos) concordava ao dizer “é exatamente o perfil do paciente que procura a Unidade como você perguntou inicialmente”.

Ao descrever esse tipo de usuário, a médica Amanda (40 anos) dizia: “Essa é a cansativa” (Amanda, 40 anos). O médico Clemir (39 anos) enunciava: “Sim, é ‘a chata’, é ‘a chata’ que sempre tá aqui.” Daniela (50 anos) dizia: “Bom, são pacientes é ... crônicos da Unidade.” Ao surgirem os termos como os relacionados acima, pode-se inferir que os usuários SVD reuniam atributos similares àqueles dos usuários considerados chatos. Os usuários SVD eram cansativos, chatos, intransigentes e insistentes. Manifestavam intransigência ao resistirem às recomendações médicas. Recusavam-se a tomar medicação, com a justificativa de que não se adaptavam a ela. Eles também eram apontados como aqueles que se comportavam de forma indesejada no consultório médico, exigindo que o médico fizesse tudo por eles no momento em que entendiam conveniente. Sobre esse grupo de usuários, Clemir (39 anos) dizia: “fica querendo que o médico faça tudo por ele, faça tudo para ele, quando ele quer. Isso pra mim é chato”.

Os usuários SVD sempre estavam na unidade e a assiduidade destes no serviço, conciliada à maneira como manifestavam sua queixa, também corroborava para o fortalecimento da designação acima (chato). Segundo os profissionais, acontecia de o usuário SVD transitar pelos espaços da unidade sem se queixar de um problema de ordem biológica: “Muitas vezes, tem pessoas aqui que vêm pra sentar na, ali no, na frente, às vezes ficar cantando” (Bruna, 32 anos). Tal comportamento provocava comentários irônicos por parte dos profissionais: “Eles vêm ao shopping, entendeu. Independente de chuva ou qualquer momento. É como se fosse a única coisa que tem pra fazer”, relatou Amanda (40 anos).

As duas descrições chatos e cansativos podem se aliar a outras de bastante saliência nos discursos dos médicos, relacionadas ao fato de os usuários SVD estarem com frequência na unidade. O grupo de usuários SVD foi objetivado como poliqueixoso, “Meu posto, minha vida”, “goiabinha”, “crônicos da unidade”, “sócio da unidade”. As enunciações seguiram nesse sentido. A médica Amanda (40 anos) disse: “Tem até uma paciente da área da [nome de uma agente comunitária de saúde] que é assim ‘poliqueixosa’” (Amanda, 40 anos). A profissional Bruna (32 anos) enunciou: “Tem gente que é ‘goiabinha’ tem tudo!” Já a médica Daniela (50 anos) declarou: “Bom, são pacientes é... crônicos da unidade, entendeu.... Não tem o Minha Casa Minha Vida. Eu falo: - Meu posto minha vida tá” (Daniela, 50 anos). Enquanto a profissional Elvira (49 anos) relatou: “Geralmente já vira ‘sócio’ da unidade essa pessoa. [risos]”.

Observa-se que os profissionais utilizam termos e imagens de senso comum para objetivar (Moscovici, 1961/2012) os usuários SVD, tais como “goiabinha”. Para a profissional, diz respeito a uma expressão popular atribuída àquela pessoa que sempre tem problema, tal como a goiaba frequentemente apresenta bichos (larvas). O termo poliqueixoso apresenta uma peculiaridade, embora seja considerado pejorativo na literatura da área (Fonseca et al., 2008), é bastante partilhado entre o grupo de médicos, como se fosse uma expressão técnica para designar os sofredores somáticos.

A denominação “Meu posto, minha vida” trata de um tipo de associação burlesca ao programa habitacional do governo federal intitulado “Minha Casa Minha Vida” cujo foco é atender pessoas de baixa renda. Supõe-se que objetivar os usuários SVD como aqueles que fazem da unidade a sua razão de viver é localizá-las no campo representacional (Moscovici, 1961/2012) produzido acerca dos usuários de classe popular, neste sentido, houve uma generalização. Isso porque eles, assim como todos os outros usuários, pertencem à categoria de pessoas de baixa renda, consideradas carentes e dependentes de assistência externa para obter algo substancial na vida. Tais ideias reforçam a imagem de que são pessoas que se aproveitam do sistema para tirar vantagem indevidamente, não tendo iniciativa e se acomodando à sua condição. Evidencia-se a ancoragem (Moscovici, 1961/2012) dos usuários SVD nas imagens conferidas às pessoas de classe popular.

Os médicos buscaram em imagens do senso comum (Moscovici, 2003) a definição para um fenômeno que atravessava sua prática cotidiana como profissionais. Isso pode indicar que eles não encontravam embasamento suficiente no universo científico, constituído por elementos de sua formação acadêmica, recursos discursivos para delegação de sentido sobre um fenômeno ainda de difícil compreensão - sintomas vagos e difusos.

Essa ideia foi reforçada pelo tema de os médicos se virem diante de uma limitação quando atendiam usuários SVD. O usuário SVD, por não viabilizar a construção de um diagnóstico, ou seja, por manter o médico na insegurança do não saber, levava-o ao contato com uma limitação. Elvira (49 anos) enunciou: “A ‘poliqueixosa’ é complicada pra daná né.... Não finaliza nunca.” Pode-se aventar que a presença desse tipo de usuário causava desconforto e abalava as referências dos profissionais para o exercício da clínica médica. Fernandes (1993) e Zorzanelli (2011) argumentam que os médicos lançam um olhar negativo a esse atendimento por se sentirem incapazes de lidar com as mais diversas queixas apresentadas, uma vez que boa parte delas não pode ser resolvida a partir dos instrumentos teóricos e técnicos dos quais eles lançam mão em sua prática cotidiana.

Diante do usuário SVD, cabia ao médico redefinir suas práticas e acessar recursos diversos para lidar com a situação. Como visto, a ressonância nos conteúdos de sua formação para isso não se fazia presente, assim outras referências relativas à experiência pessoal do médico eram recrutadas no processo. Essa busca talvez seja a explicação para o uso de tantos termos do universo consensual (Moscovici, 2003) para a definição de tais usuários.

Explicações desenvolvidas pelos médicos sobre o comportamento dos usuários SVD

As explicações adotadas pelos profissionais referentes aos comportamentos apresentados pelos usuários SVD puderam ser organizadas de acordo com os seguintes temas: a queixa manifestada era percebida como diferente do problema real; presença de transtornos psicológicos; demanda de origem emocional; demanda de origem relacional; a presença de afetos negativos como o enfado e a inquietação e dúvida quanto à veracidade dos sintomas relatados.

Os profissionais percebiam o problema do usuário SVD como algo que não era imediatamente claro. Parecia que a queixa manifestada era diferente do problema real: “O ‘poliqueixoso’ a gente já sabe que tem alguma coisa por trás que ele não tá falando.... Que não tá sendo visto o que realmente é o problema né”, enunciou Amanda (40 anos). Outra médica emite sua percepção indicando não ter formulado ainda uma denominação específica: “Tem alguma coisa aí por trás, tem um troço”, concluiu Bruna (32 anos). A demanda apresentada pelo usuário SVD foi considerada de difícil apreensão. Era como se ele ocultasse o que realmente o incomodava. Ao dizer que a origem real dos sintomas apresentados é oculta, há ratificação do quanto esse usuário representa um elemento de difícil apreensão para os profissionais.

Como forma de ancoragem (Moscovici, 1961/2012), muitos recorreram a conceitos científicos que facilitavam uma classificação do usuário. Estes lhe davam certo contorno. Em muitos discursos a presença de transtornos psicológicos foi considerada. Seguem alguns relatos: “Ela tá somatizando um problema que ela tem e não conseguiu expor, não conseguiu falar sobre ele”, relatou Daniela (50 anos); e “Eles vão somatizando tudo né.... A pessoa sente insônia, a dor de cabeça que pode levar à insônia, depois dá, leva à depressão, a pessoa fica mal humorada, pode dar dor no corpo né”, enunciou Elvira (49 anos).

Vê-se que ora o termo somatização foi utilizado para designar um efeito cuja causa provocava dúvida, nesse caso com aparente oscilação entre uma origem orgânica e psíquica, ora para designar um processo relativo a uma origem psicológica e relacional. Conforme estudos (Guedes et al., 2008), o profissional médico, ao se deparar com pacientes apresentando as manifestações somáticas difusas, tende a enquadrá-los em uma demanda de âmbito psíquico.

Quando surgiu a suposição de que estes usuários poderiam ter uma desordem de origem psicológica, as verbalizações correspondentes foram as seguintes: “Dá a impressão de que ela tem algum outro distúrbio que precisava de uma atenção” (Bruna, 32 anos); “Não só da doença orgânica.... Devido ao psiquismo mesmo. Eu acho que tem uma desordem, uma coisa que, que não deixa ela viver bem por causa de tudo isso aí” (Clemir, 39 anos); “Na verdade eles estão precisando de um apoio mais psicológico né” (Elvira, 49 anos).

Evidencia-se a evocação de elementos diversos que foram mesclados na tentativa de explicar o fenômeno. O médico podia elaborar diferentes explicações para os comportamentos em uma mesma construção discursiva como: a presença de transtorno psicológico (remete à psicogênese), questões de ordem orgânica como desencadeantes de sintomas (remete a uma etiologia orgânica) e inserção em um contexto social desfavorável (associação com o contexto social). Designar uma causa a um fenômeno em que aspectos subjetivos (relato de sintomas) predominam sobre os objetivos (sinais de enfermidade) resulta em certa insegurança. Relacionar o fenômeno à desordem, isto é, a alguma coisa que se apresenta fora de um padrão, e a distúrbio, caracteriza a tentativa de seu enquadre a uma nosografia reconhecida pela racionalidade médica, elementos em que a prática médica estava ancorada (Moscovici, 1961/2012). Assim, o objeto pode ser considerado foco de tratamento aos moldes tradicionais, leia-se medicação apropriada à disfunção, exames e orientações diretivas.

Outras maneiras de compreender o fenômeno também foram levantadas. A consideração da demanda dessas usuárias como de origem emocional foi bastante relevante. O aspecto emocional, de difícil mensuração e detecção, apareceu ora como causa ora como efeito de uma demanda de origem relacional. Seguem os relatos: “Muitas vezes a gente vê ... conflitos familiares em decorrência de falta de conversa, falta de estrutura familiar” (Clemir, 39 anos); “Eu imagino que é uma paciente que tenha muitos problemas em casa” (Daniela, 50 anos).

Os usuários SVD eram vistos como aqueles que experimentavam conflitos com familiares e vivenciavam a violência em seu cotidiano. Por essas razões, apresentavam os sintomas difusos. Embora tenha surgido nos relatos a origem dos sintomas como de ordem emocional, a explicação para os comportamentos se relacionava a problemas vivenciados pelos usuários em seu contexto. A abordagem do problema a partir do contexto de vida se aproxima mais ao modelo psicossocial (Costa-Rosa, 2012). Os usuários eram descritos como pessoas integradas ao ambiente que as cercava e, por isso, influenciadas pelas múltiplas relações que nele estabeleciam.

Ainda que os médicos partilhassem, em grande medida, a explicação e a origem dos sintomas que alçavam os usuários SVD ao status de usuário a ser atendido como qualquer outro, o discurso em relação a eles carregava ambiguidades e uma lacuna. Lacuna esta que talvez seja a responsável por lançá-los na dimensão marginal daquele que “não precisa de atendimento médico.” Isso surge quando o tema “Dúvida quanto à veracidade dos sintomas relatados” é analisado.

Os profissionais explicitaram que os usuários SVD elaboravam estratégias para conseguir entrar nos consultórios. Dentre essas estratégias, estaria a invenção ou simulação de sintomas. De acordo com eles, ao procurar atendimento sem prévia marcação, era frequente a menção de queixas e “as queixas nem batem com o que chega aqui, porque ela inventa lá pra conseguir entrar”, disse Amanda (40 anos). Outros questionavam ainda a diversidade de sintomas manifestos: “E a gente acha que as pessoas podem não ter tudo”, enunciou Bruna (32 anos).

As questões emocionais e relacionais apontadas como explicação para os sintomas poderiam ser tomadas como ilegítimas. No estudo de Guedes (2007), os médicos em contato com sofredores somáticos sugeriam com ênfase que os sintomas manifestos não deveriam ser levados em consideração, uma vez que não eram “sérios” ou “verdadeiros”. Com essas verbalizações, conclui a autora, os médicos delimitavam ainda mais o escopo de sua atuação. O sofrimento dos usuários é, então, destinado a uma dimensão marginal, assumido como desculpas, como um artifício para fugir dos problemas ou mesmo como exagero (Zorzanelli, 2011). Se é assim, que crédito atribuir ao sofrimento deles? Embora os profissionais parecessem perceber a necessidade que os usuários tinham de acolhimento e de cuidado, não atribuíam real importância ao seu estado amplo de mal-estar.

O que disseram os profissionais sobre as condutas que destinavam às usuárias SVD?

Quando se fala de acolhimento e cuidado, entra-se nos meandros das práticas sociais. É necessário entender que elas foram apreendidas por meio do relato, produto de um empenho cognitivo que sofre interferências do contexto, do interlocutor, do discurso politicamente correto, entre outras. De qualquer forma, vocábulos e contradições podem ajudar na apreensão do que os profissionais pensavam sobre as condutas que destinavam aos usuários SVD. Na relação com eles os médicos disseram que: investiam na formação de vínculo; adotavam procedimentos técnicos de investigação; avançavam na investigação de aspectos vivenciais dos usuários; adotavam atitudes como a escuta e o acolhimento e prescreviam psicofármacos.

Por considerarem os usuários SVD difíceis de lidar, principalmente em um primeiro atendimento, disseram que a estratégia utilizada para conseguir entender o problema relatado era o investimento na formação de vínculo. Era a relação construída com o tempo entre médico e usuário que definiria a penetração da intervenção médica: “Com a criação do vínculo, elas acabam em algum momento, chegando à queixa principal mesmo” (Amanda, 40 anos). Parece que o vínculo tinha como objetivo de fazer com que os usuários SVD falassem sobre a causa real de sua procura pelo serviço. Tendo esse objetivo, o vínculo se caracteriza não por uma implicação do médico com a pessoa atendida, mas com a ideia de que esta última omitia intencionalmente a causa de seu mal-estar.

Mencionaram também que adotavam procedimentos técnico-científicos de investigação traduzidos por identificação dos sintomas e tentativa de desvendá-los e agrupá-los na formação de um diagnóstico. A médica Amanda (40 anos) dizia: “a gente vai tentando solucionar por partes as queixas”. Nessa investigação de cada sintoma, os profissionais prescreviam exames variados. Privilegiavam, nesse caso, o paradigma “procedimento-centrado” (Franco & Merhy, 2003, p. 71) relativo ao aparato de instrumentos para exames que revelassem uma disfunção orgânica. Parecia ser o papel correspondente e esperado de um membro dessa categoria profissional.

Daniela (50 anos) destacou os fundamentos principais da clínica médica na identificação dos problemas relativos aos usuários SVD, aproximando-se ao universo reificado, como conjunto de conceitos próprios ao conhecimento científico (Moscovici, 2003). De acordo com ela: “O diagnóstico na conversa, na anamnese, você faz na hora. Até porque a gente examina, faz o exame clínico.” Ressaltou ainda a potência da prática clínica quando se valeu do recurso complementar do diálogo com a pessoa atendida, isto é, de uma entrevista humanizada característica de uma prática compartilhada na qual o usuário tem a possibilidade de gerenciar em conjunto com o médico o diagnóstico, as opções de intervenção e de tratamento (Campos 2011).

Os médicos afirmaram a importância da investigação de aspectos vivenciais dos usuários. Elvira (49 anos) enunciou: “Você vai ver a vida daquela pessoa, né ... você não vê um cérebro parado na sua frente né, uma mama, você tá vendo o paciente como um todo e a família”.

Participantes apontaram a importância de conhecer a família e a situação de vida das usuárias, de modo a obter mais informações a respeito do que podia influenciar no desencadeamento dos sintomas apresentados. Indicaram que partiam para a exploração dos aspectos vivenciais apenas depois de terem a comprovação científica de que os sintomas não se relacionavam a uma enfermidade. Isso quer dizer que a abordagem iniciada era mais restrita, calcada na valorização de procedimentos (Franco & Merhy, 2003) e em um segundo momento, passava-se a escutar o usuário com o intuito de relacionar os sintomas a elementos de seu contexto.

Essa última ideia aponta para o fato de que a segurança do médico o levaria a privilegiar os elementos tangíveis de comprovação da presença de uma enfermidade em detrimento de aspectos possíveis de emergirem no encontro com a pessoa atendida. A adoção do modelo psicossocial na condução dos atendimentos poderia auxiliar o médico nas conclusões feitas sobre a saúde da pessoa atendida e no desempenho de uma clínica mais resolutiva, como a clínica ampliada conforme propõe Campos (2003).

Ao seguir essa perspectiva, alguns profissionais disseram adotar atitudes como a escuta e o acolhimento durante os atendimentos: “Essa pessoa merece ser escutada, ser acarinhada, ser tranqüilizada” (Elvira, 49 anos); “Eu valorizo demais, a parte que não é estrategicamente medicamentosa.... Ela vai falar e ela vai se sentir melhor” (Daniela, 50 anos). No entanto, como alguns concebiam o fenômeno SVD como fruto de algum distúrbio de ordem psicológica ou emocional, associaram tais práticas à prescrição de psicofármacos: “Eu primeiro conversando bastante, ouvindo bastante o paciente de todas as formas e tentando, se for o caso, passar um remédio. Um antidepressivo que a maioria, não é nem, a ansiedade advém por causa da depressão, né.” (Clemir, 39 anos).

Ainda sobre a prescrição de psicofármacos, como observamos com a análise dos relatos sobre as práticas destinadas aos usuários SVD, os médicos pouco mencionaram o uso de medicação; apontaram que a abordagem voltava-se à prescrição de exames, ao cuidado, ao acolhimento e à escuta. Contudo, quando indagados especificamente sobre o uso de medicação outros elementos vieram à tona. Para os médicos, a medicação era eficaz em parte.

Os participantes afirmaram recorrer a medicamentos, fosse sob a forma de sintomáticos ou de psicofármacos, com a finalidade de aplacar os sintomas direta ou indiretamente. De acordo com os relatos: “Eu já encaminho direto tanto pro atendimento ou psicológico junto com a homeopatia que tá tendo um retorno bom da queixa de insônia¸ até da ansiedade, e procuro fazer, entrar com a própria Prometazina e Amitriptilina se for o caso” (Amanda, 40 anos); “Eu gosto do ansiolítico se é questão da pessoa, não é um transtorno mental, é uma ansiedade” (Bruna, 32 anos); “Que eu inicio é o Fluoxetina e o Citalopran” (Clemir, 39 anos); “Às vezes um sintomático” (Elvira, 49 anos). Os participantes concordaram que a medicação era eficaz em parte por auxiliar no tratamento, dizendo: “Sozinha não. Porque como a gente tem visto que a parte emocional pesa muito em todos os sentidos” (Amanda, 40 anos); “Em casos mais extremos assim, ela resolve. Agora, os que pra dormir, Prometazina, tal alguns não resolvem totalmente não.” (Clemir, 39 anos).

Era necessário que outros recursos fossem agregados à prescrição medicamentosa para a obtenção de um bom resultado. Aponta-se que existem dois posicionamentos a respeito da eficácia da medicação. Um que se aproxima ao destaque da eficácia terapêutica sintomática, porque seu uso é realizado com o objetivo de controlar ou aplacar a manifestação do problema do usuário que é demasiado incômodo ou impeditivo para ele. O outro se relaciona à eficácia terapêutica curativa em que se acredita no potencial da medicação de eliminar os agentes causadores de um problema e assim saná-lo (Saraceno et al., 2001).

Esse segundo posicionamento levanta duas hipóteses: a de que os médicos atribuíam a si e à sua tecnologia o poder de resolver quase tudo, assim apenas quando havia persistência de dado sintoma encaminhavam a outros profissionais, em que a competência estaria em identificar um distúrbio instalado de origem específica e tratá-lo; e a de que os médicos colocavam a medicação em primeiro plano (em relação ao encaminhamento) para tentar uma resolutividade no atendimento primário e para não sobrecarregar os especialistas - incluindo a psicóloga. Sobre a utilização de psicofármacos, Saraceno et al. (2001) ensinam-nos o quanto é útil ponderar sobre as intervenções farmacológicas. Há de se atribuir a elas um lugar de recurso auxiliar de atuação limitada.

Considerações Finais

Foi possível verificar uma série de sentidos partilhados pelos profissionais a respeito de como concebiam os usuários SVD e de como percebiam as práticas elaboradas em relação a eles. Observou-se que o campo representacional (Moscovici, 1961/2012) relacionado aos usuários SVD incluiu ideias e imagens relacionadas a outros objetos de grande saliência na USF: usuários chatos, pessoa doente e população de classe social menos abastada. Notou-se que, para os médicos, a unidade era reafirmada como um espaço no qual a presença deste tipo de usuário persistia. Os usuários SVD foram reafirmados como cansativos, casos difíceis, chatos (elementos de objetivação), sendo assim, poderiam ser identificados pelas figuras (termos que trazem elementos de objetivação): “meu posto, minha vida”; “sócio da unidade”; “crônicos da unidade” e “goiabinha”.

A partir do momento em que a nomeação do objeto a ser conhecido ocorre é possível a atribuição de qualidades e a elaboração de expectativas quanto à expressão de seu comportamento. Quando esse processo foi desencadeado pelo contato com os usuários SVD houve um destacamento deles em relação às outras pessoas que frequentavam a unidade e por fim, eles se tornaram objeto de uma convenção partilhada entre os profissionais. Resultados esses obtidos, conforme Moscovici (2003), por meio da nomeação de um objeto ainda não familiar.

As práticas afirmadas pelos profissionais em relação aos usuários SVD relacionaram-se a maneiras distintas de lidar com o fenômeno. Contudo, observou-se que não apresentaram diferenças importantes daquelas práticas apontadas na revisão de literatura: prescrição medicamentosa e privilégio de procedimentos na clínica médica. O padrão habitual foi a adoção de uma racionalidade biologicista que consistiu em aplicar procedimentos técnico-científicos de investigação sob a lógica sintoma-diagnóstico.

Fonseca et al. (2008) localizam a dificuldade dos profissionais em lidar com este tipo de usuário na não compreensão dos códigos utilizados na expressão do sofrimento, na falta de capacitação adequada, no fato de os serviços e de os profissionais terem arraigado um modelo de atendimento que privilegia a abordagem das queixas somáticas imediatas, o direcionamento das políticas de saúde mental para casos considerados graves, bem como a ausência de procedimentos de cuidado e de acolhimento para usuárias SVD. Foram identificados muitos desses aspectos nos discursos. Pelos motivos elencados, apropriar-se dos conceitos de humanização que definem a prática de uma clínica ampliada (Campos, 2003), nem sempre é garantia de sua tradução no cotidiano.

Os aspectos levantados ao longo da exposição dos resultados deste trabalho mostraram que o fenômeno estudado - sintomas vagos e difusos - é percebido como elemento de difícil apreensão e manejo para os profissionais da APS. As queixas levadas pelos usuários SVD foram muitas vezes relacionadas a uma dimensão subjetiva que tendia a interferir na formulação do quadro clínico pelos profissionais. A imprecisão na delimitação de diagnóstico levava o profissional à insegurança e a se firmar em sistemas conceituais familiares relativos ao paradigma biomédico.

Condutas como aquelas apontadas propiciaram a intensificação da condição de abandono dos usuários SVD, uma vez que não eram acolhidos em seu sofrimento. Por não apresentarem comportamento convencional, próprio de um usuário doente, eram rotulados e estigmatizados no serviço ao qual recorriam. Considera-se que esse tipo de usuário requer recursos terapêuticos mais próximos àqueles contemplados pelo paradigma psicossocial, por extrapolar o objetivismo de um paradigma que ainda é predominante no campo da saúde.

Os serviços públicos de saúde, embora sejam de base comunitária e regidos pelo paradigma psicossocial, por diferentes motivos, não se mostram capazes de tornar tais diretrizes efetivas para a população que deles demanda. Desta forma, prevalece a prática da clínica tradicional em que o acolhimento, a escuta e o fomento a autonomia dos usuários são colocados em segundo plano. Os usuários SVD são os que mais sofrem os efeitos desta estrutura operacional porque são fortemente conduzidos a um enquadramento passível de medicalização que não facilita a construção de maneiras de lidar com seu mal-estar. Retornam sempre e continuarão retornando até que consigam direcionar a alguém sua dor e que recebam o cuidado de que necessitam.

A guisa de conclusão, espera-se ter contribuído para o debate e para a valorização deste fenômeno como foco de investigação no campo das representações sociais. Ao identificar as percepções, imagens e concepções dos profissionais de saúde acerca dos sofredores somáticos visou-se possibilitar a problematização da dificuldade encontrada pelos profissionais em lidar com esse público, bem como ampliar a compreensão sobre o sofrimento associado ao desenvolvimento dos sintomas vagos e difusos para aquelas que os manifestam. Cabe indicar que o estudo tem algumas limitações que se trabalhadas podem gerar desdobramentos interessantes sobre o tema e propiciar a construção de formas mais resolutivas de cuidado dos usuários SVD. Sugere-se pesquisa junto às sofredoras somáticas para investigar quais as representações sociais que constroem acerca de seu adoecer, do cuidado médico dirigido a elas e investigações em torno do mapeamento sobre a diferença de manifestações relativa ao gênero.

Apoio e financiamento:

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Referências

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Autor notes

Renata Goltara Liboni Vescovi: psicóloga; mestre em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil.
Luiz Gustavo Silva Souza: doutor em psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, com estágio de doutorado na Université de Provence (França); professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, polo de Campos dos Goytacazes; professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil.
Luziane Zacché Avellar: doutora em psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professora adjunta da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil.

E-mail: renatagliboni@hotmail.com

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