Artigo Original

DIÁLOGOS DE LACAN NA REINVENÇÃO DO INCONSCIENTE

LOS DIÁLOGOS DE LACAN EN LA REINVENCIÓN DE LO INCONSCIENTE

Francisco Rafael Barbosa Caselli
Universidade Federal de Alagoas, Brazil
Charles Elias Lang
Universidade Federal de Alagoas, Brazil

DIÁLOGOS DE LACAN NA REINVENÇÃO DO INCONSCIENTE

Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 1, pp. 139-150, 2015

Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 24 Novembro 2014

Aprovação: 25 Fevereiro 2015

RESUMO.: Este artigo tem como objetivo apresentar e explicitar três momentos da interlocução de Jacques Lacan com o estruturalismo em seu percurso de reinvenção do inconsciente. Como metodologia, foram analisados três textos dos teóricos estruturalistas referidos por Lacan: o antropólogo Claude Lévi-Strauss e os linguistas Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson. Com o intuito de dimensionar a asserção lacaniana de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, este trabalho propõe um percurso de leitura que busca evidenciar em profundidade o diálogo que Lacan manteve com estes autores. Tal proposta é desenvolvida a partir da leitura rigorosa e elaboração de comentários sobre os textos dos autores estruturalistas, com foco na formulação original de seus conceitos e apropriações efetuadas por Lacan. Desse modo, busca-se demonstrar como alguns conceitos propostos pela antropologia estrutural de Lévi-Strauss e pela linguística estrutural de Saussure e Jakobson, uma vez reformulados, constituem os pilares sobre os quais repousam a estrutura do inconsciente lacaniano formalizada no escrito “A instância da letra no inconsciente”.

Palavras-chave: inconsciente, estruturalismo, Lacan, Jacques-Marie Émile, 1901-1981.

RESUMEN.: Este artículo tiene como finalidad presentar y explicar tres momentos de la interlocución de Jacques Lacan con el Estructuralismo en su recorrido de reinvención del inconsciente. La metodología empleada se basa en un análisis de tres textos de los teóricos estructuralistas mencionados por Lacan: el antropólogo Claude Lévi-Strauss y los lingüistas Ferdinand de Saussure y Roman Jakobson. Con el objetivo de dimensionar la aserción lacaniana de que “el inconsciente es estructurado como un lenguaje”, este trabajo propone un recorrido de lectura que busca evidenciar en profundidad el diálogo que Lacan mantuvo con estos autores. Dicha propuesta es desarrollada a partir de la lectura minuciosa y elaboración de comentarios sobre los textos de los autores estructuralistas, con enfoque en la formulación original de sus conceptos y apropiaciones efectuadas por Lacan. Así, se busca demostrar cómo algunos conceptos propuestos por la Antropología Estructural de Lévi-Strauss y por la Lingüística Estructural de Saussure y Jakobson, una vez reformulados, constituyen los bastiones sobre los cuales está asentada la estructura del inconsciente lacaniano formalizado en su escrito “La instancia de la letra en el inconsciente”.

Palabras clave: Inconsciente, estructuralismo, Lacan, Jacques-Marie Émile, 1901-1981.

Neste trabalho, pretendemos tornar explícitos três diálogos de Lacan no caminho de reinvenção do inconsciente freudiano. Para tanto, a interlocução de Lacan com o estruturalismo é apresentada em três momentos lógicos, distintos e complementares. A cada etapa deste percurso - que compreende o período de 1953-1957 -, o psicanalista francês extrai noções e conceitos fundamentais, os quais, reformulados, constituem os pilares de sua proposta de um inconsciente estruturado como uma linguagem.

O primeiro diálogo de Lacan, em sua interlocução com o estruturalismo, se efetiva a partir da leitura do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), da qual foi recolhida a noção de eficácia simbólica e a proposição de um inconsciente esvaziado. O segundo diálogo, aqui mais extenso, refere-se à apropriação do conceito de significante formulado pelo suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), fundador da linguística moderna. Sua obra estabelece as condições para uma leitura estrutural da linguagem, da qual busca depreender os princípios gerais do seu funcionamento. Por fim, o terceiro diálogo é proposto a partir das contribuições do linguista russo Roman Jakobson (1896-1982), herdeiro do pensamento de Saussure. Trata-se de um diálogo ainda pouco explorado, mas cuja leitura demonstra que as contribuições de Jakobson foram decisivas para a estruturação do inconsciente lacaniano, e em especial daquilo que Lacan irá denominar de leis do inconsciente, isoladas nas fórmulas da metáfora e da metonímia.

Lacan e Lévi-Strauss: a eficácia simbólica de um inconsciente vazio

De acordo com Roudinesco (2008), o encontro de Lacan com os princípios da linguística estrutural, de Ferdinand de Saussure, se deu por meio da obra do fundador da antropologia moderna, Claude Lévi-Strauss. Em especial, pela leitura de “Estruturas Elementares do Parentesco” (1949/1975) e de artigos publicados no fim da década de 1940.

Em “A eficácia simbólica” (1949/1975), Lévi-Strauss analisa um relato sobre uma tribo panamenha no qual o xamã da tribo é convocado para curar uma mulher adoentada, com sérias dificuldades em seu parto. Lévi-Strauss observa que, nesse caso, a intervenção do xamã se dá exclusivamente por meio de palavras: o xamã fala, por meio de cantos, à doente que o escuta, utilizando um mito comum aos membros daquele grupo para metaforizar o drama vivido fisicamente pela parturiente. Ao final do processo, ela consegue dar à luz ao bebê. Todavia, assinala Lévi-Strauss, a eficácia do canto do xamã “seria comprometida se, antes mesmo que se pudessem esperar seus resultados, ele não apresentasse à doente um desfecho, isto é, uma situação onde todos os protagonistas [do mito] reencontram seu lugar.” (Lévi-Strauss, 1949/1975, p. 227). Desta forma, Lévi-Strauss assevera que o sucesso da cura é efetivado graças a um reordenamento no campo simbólico daquele mito ao qual o sujeito pôde se identificar. Ao apresentar um desfecho para os personagens do mito, um desfecho análogo se produziu para a sua doente. Não importa se a mitologia xamã corresponde a uma realidade objetiva, o que importa é que a doente acredita nele, e é membro de uma comunidade que também acredita.

A partir disso, o antropólogo traça uma aproximação entre a cura xamânica e a cura psicanalítica, sublinhando que ambas procedem, em sua estrutura, de maneira análoga. Embora os nomes dos personagens (paciente e analista, de um lado, xamã e parturiente, do outro) não sejam os mesmos, isso em nada altera a estrutura do que está em jogo em ambas as curas: a eficácia simbólica. Dessa noção, depreende a capacidade que a palavra tem - seja ela proferida pelo paciente ou pelo xamã - de reorganizar o lugar do sujeito em um mito, seja ele ordenado individualmente (em uma neurose familiar e edipiana, no caso da análise), ou um mito compartilhado coletivamente (no caso dos membros da tribo panamenha). É ao símbolo - logo, à palavra -, que o sujeito ab-reage, pois se trata de

uma relação de símbolo à coisa simbolizada, ou, para empregar o vocabulário dos linguistas, de significante a significado. O xamã fornece à sua doente uma linguagem na qual se podem exprimir imediatamente estados não-formulados, de outro modo informuláveis. É essa passagem (que permite, ao mesmo tempo, viver sob uma forma ordenada e inteligível uma experiência real, mas, sem isto, anárquica e inefável) que provoca o desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num sentido favorável, da sequência cujo desenvolvimento a doente sofreu. (Lévi-Strauss, 1949/1975, p 229, itálicos do autor).

Esses elementos permitem dimensionar as repercussões dos trabalhos de Lévi-Strauss no ensino de Lacan e, em especial, para a construção de sua noção de ordem simbólica. Lévi-Strauss desmontou a crença em uma realidade objetiva, supostamente localizada para além daquilo que a palavra poderia ordenar e apontou um inconsciente, cujas leis são as mesmas que regem os ordenamentos simbólicos. Como nos lembra Werneck (2012), “o mito existe para resolver uma contradição que a sociedade não sabe resolver. Por isso, assim como o sonho, ele não pode jamais ser apreendido em sua literalidade” (p. 45).

Por essa via, o inconsciente antevisto por Lévi-Strauss não comporta noções de profundidade, de conteúdos internos, ou o campo do inefável. Pelo contrário, coube a ele apontar que “o inconsciente está sempre vazio” (Lévi-Strauss, 1949/1975, p. 234) e por isso “se reduz a um termo pelo qual nós designamos uma função: a função simbólica, especificamente humana, que em todos os homens se exerce segundo as mesmas leis; que se reduz, de fato, ao conjunto destas leis.” (Lévi-Strauss, 1949/1975, p. 234). A partir dessa referência, abriu-se o caminho para Lacan encontrar em Saussure os elementos necessários à formalização da teoria do significante e de um inconsciente estruturado como uma linguagem.

Lacan leitor de Saussure: bases para compreender a estrutura da linguagem

Publicado em 1916, o célebre “Curso de Linguística Geral” (CLG) de Ferdinand de Saussure (1916/2006) foi escrito e organizado por seus discípulos Charles Bally e Albert Sechehaye. Estes, após sua morte, reuniram o material de três anos de seus cursos sobre a teoria do signo na universidade de Genebra. Em seu CLG, Saussure postulava a existência de uma ciência geral do signo (semion), a semiologia, e uma perspectiva que formaliza a linguagem por meio de uma série de dicotomias, assentadas na noção de que “a linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro.” (Saussure, 1916/2006, p. 16). O social da linguagem corresponde ao que o linguista designou por língua, enquanto a fala seria a realização individual do código disponibilizado pela língua. A partir desta divisão, Saussure defende que a linguística seria a parte da semiologia que tem por objeto apenas a fala, tomada como norma de todas as manifestações da linguagem.

Destarte, Saussure erige uma noção de signo linguístico e da língua como um sistema organizado cujo estudo possibilita estabelecer os princípios gerais que regem o funcionamento simbólico da linguagem. Suas considerações sobre a natureza e o funcionamento do signo linguístico, aliado ao que denominou de princípios essenciais da língua, são fundamentais para as formulações de Lacan, pois comportam a lógica que rege o funcionamento da linguagem e os elementos invariantes de sua estrutura.

a) A divisão da linguagem: língua x fala

Para Saussure (1916/2006), a fala é a parte individual da linguagem, e envolve a fonação (produção dos sons das palavras), a realização das regras da língua e a combinação contingente dos signos disponibilizados pelo código. Esses são os três aspectos presentes em todo ato de fala. Logo, falar implica em submeter-se às regras da língua. Ao falar não podemos dizer duas palavras ao mesmo tempo, pois é preciso selecionar uma palavra de cada vez. Complementarmente, cada elemento selecionado no ato da fala precisa ser combinado com outros elementos. Neste processo de seleção e combinação, de palavra em palavra, a fala dispõe uma cadeia de signos em linha, um após o outro.

A língua, a parte social da linguagem, equivale ao código, o qual abriga todos os signos possíveis de serem combinados e ordenados na fala. Saussure (1916/2006) a define como “um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade” (p. 21). Desse modo, a língua é a linguagem excluída a dimensão da fala. A língua é simultaneamente uma instituição social e um sistema de valores. Nenhum indivíduo pode, sozinho, criar ou modificar a língua. Nenhum indivíduo poderia decretar a partir de si que, doravante, carros não serão mais denominados de carros, mas de vassouras. Tal demonstra a dialética existente entre a língua e a fala, pois a fala só pode ser manejada quando a destacamos da língua, ao passo que a língua só se realiza a partir da fala ou da escrita. Desse modo, são as regras impostas pela língua no uso do signo que determinam como um indivíduo pode ordenar sua fala. Para se fazer entender por outro indivíduo, é preciso que os falantes de uma língua compartilhem o mesmo código, no qual o signo mesa designa sempre uma peça de mobília e não uma estação do ano.

b) O signo linguístico segundo Saussure: junção entre significante e significado

Para alguns estudiosos, argumenta Saussure (1916/2006), o princípio essencial da língua seria o fato de que ela funciona como uma nomenclatura; uma lista em que, para cada termo da língua haveria um objeto correspondente na realidade. Entretanto, a perspectiva saussuriana do signo linguístico é radical e inovadora em dois sentidos: a) por entender que a linguagem é um fato social e não uma continuidade da ordem biológica (logo, os genes não garantem que haja fala) e b) por apontar que o signo não nomeia uma coisa pré-existente à palavra, um objeto da realidade objetiva. A língua não é uma nomenclatura.

O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegarmos a chama-la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato. (Saussure, 1916/2006, p. 80).

Trata-se de uma distinção fundamental, que sobrepõe o signo à própria noção de realidade, e indica, assim como fez Lévi-Strauss, que o mundo humano é fundamentalmente o mundo da linguagem. A linguagem, por sua vez, é sustentada por um código (conjunto de signos) socialmente compartilhado, e realizada de maneira ordenada pela fala. Estes elementos ajudam-nos a situar o modo como Lacan pôde se servir desse “corte epistemológico” (Manso de Barros, 2012, p. 27) promovido pelo estruturalismo para fundar o conceito de inconsciente a partir de um novo referencial de leitura, fora do escopo de uma interioridade psíquica, que se oporia a uma exterioridade real, uma vez que o signo não une a palavra a uma coisa, mas a um conceito, uma representação psíquica.

Se o signo é algo duplo, o próximo passo de Saussure (Saussure, 1916/2006) consiste em “propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante” (p. 81, itálicos do autor). É nessa página do curso que nasce o significante, conceito basilar que será tomado e subvertido por Lacan. Saussure o apresenta, a princípio, como uma das faces da moeda que é o signo, como a imagem acústica que veicula um significado. Em ambas as representações do signo, o significado é proposto como algo que antecede o significante ou se sobrepõe a ele. Em Saussure, a primazia é do significado e a ele corresponde um significante que o designa, o que implica em afirmar que, para o linguista, o significante tem como função ser o veículo de expressão de um conceito ou ideia. A partir disso, ele propõe a seguinte continuidade de representações do signo linguístico (Figura 1):

A estrutura do significante segundo Saussure:
Figura 1
A estrutura do significante segundo Saussure:
Fonte: Saussure (1916/2006, pp. 80-81), CLG

Neste sentido, para Saussure, a língua é de natureza homogênea: para cada significado há um significante que o representa. Esse é o sentido das setas, que enfatizam a relação recíproca, biunívoca, entres seus elementos; um sempre remete ao outro em uma relação fixa de significação. A elipse que encerra os elementos ilustra a noção de junção que há entre seus termos. Nesta perspectiva, o significante manga, por exemplo, só poderia ter dois significados: o de fruta que é comida, ou a parte da peça do vestuário, a manga de uma camisa. A significação, segundo Saussure, se produz quando significado e significante se juntam, formando uma unidade - o signo.

c) Dois princípios que regem o signo: arbitrariedade e linearidade do significante

Ao propor o signo como uma entidade de duas faces (o conceito e seu significante), Saussure estabelece dois princípios ou leis gerais que regem o signo, duas características primordiais: a arbitrariedade do signo e o caráter linear do significante. Tais princípios dominam toda a linguística. Ao situar o primeiro, argumenta que “o laço que une o significante ao significado é arbitrário” (Saussure, 1916/2006, p. 81). Tendo em vista “que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer simplesmente: o signo linguístico é arbitrário” (Saussure, 1916/2006, p. 81, itálicos do autor).

Tal definição é fundamental, pois indica que não há nada na imagem do animal boi, por exemplo, que esteja ligado ao som das três letras do significante b-o-i. Não se escreve boi com o desenho de uma pegada, mas com três letras que não guardam nenhuma vinculação com o conceito ou a ideia do animal em si. Em outras línguas, os significantes que servem para expressar a ideia do animal boi podem não ter nenhum radical em comum. É justamente para dimensionar esse caráter imotivado e arbitrário do significante que Saussure despreza o termo símbolo para definir o que prefere denominar de signo. Se o conceito de boi fosse escrito com o desenho de uma pegada no chão ou se, para nos referirmos a um boi, fosse necessário imitar o som do animal, então estaríamos no campo dos símbolos, e não do significante.

Em seguida, o princípio da linearidade é reconhecido por Saussure no fato de que o significante “desenvolve-se no tempo, unicamente, e tem características que toma do tempo: a) representa uma extensão e b) essa extensão é mensurável numa só dimensão: uma linha.” (Saussure, 1916/2006, p. 84). Trata-se de algo evidente, argumenta o autor, mas cujas consequências são incalculáveis, pois todo o mecanismo da língua depende de sua linearidade. Os significantes dispõem apenas da linha do tempo, e “seu elementos se apresentam um após outro: formam uma cadeia” (Saussure, 1916/2006, p. 84). Ilustramos isso quando apontamos que é impossível falar duas palavras diferentes ao mesmo tempo; é necessário que elas sejam dispostas em uma cadeia linear, uma após a outra. Além disso, para combiná-las em uma linha é necessário escolher qual significante virá em seguida. Ao dizer a menina, outros significantes possíveis foram abandonados, operou-se uma seleção: a menina foi escolhida em vez de a mulher ou o menino. Desse modo, uma simples alteração na posição dos elementos na linha do tempo modifica por completo o valor dos seus signos.

d) O tempo na linguística saussuriana: sincronia e diacronia

A introdução do fator tempo como elemento organizador da cadeia significante constitui um dos aspectos mais notáveis da teoria saussuriana. Saussure amplia suas implicações e destaca dois eixos temporais segundo os quais língua e fala se articulam. São eles: o eixo do tempo em sua simultaneidade no ato de fala (sincronia), e o eixo do tempo ao longo da história (diacronia). Os estudos diacrônicos levam em conta o eixo histórico da língua. O que interessa é investigar, por exemplo, como o uso do pronome pessoal vossa mercê evoluiu e se modificou, passando por vosmecê, até chegar a sua forma atual você. O eixo sincrônico, por outro lado, privilegia as relações dos signos uns com os outros no momento da fala, apenas. Assim, a sincronia refere-se ao recorte do momento da fala, no qual os elementos da cadeia significante se relacionam simultaneamente, isto é, de maneira sincrônica. Para Saussure, o elemento diacrônico da língua inclui o tempo; são estudos evolutivos da língua. Já a parte sincrônica é estática e exclui o fator temporal: o que interessa é a relação entre os signos em uma frase, e não a maneira como eles evoluíram até serem empregados naquela cadeia.

e) Sintagma e paradigma: os dois eixos da linguagem e o mecanismo dos chistes

A partir da distinção entre sincronia e diacronia, Saussure postula que as relações e as diferenças entre todos os termos linguísticos se desenvolvem em dois planos distintos, em que cada um desses planos é gerador de certa ordem de valores (Saussure, 1916/2006). No primeiro plano, os signos estabelecem relações entre si por meio de seu encadeamento linear numa frase. Essas combinações apoiadas em uma extensão são denominadas de sintagmas. Como esclarece Roland Barthes (1964/2007), o plano sintagmático é o da linguagem articulada, da fala, sendo assim, irreversível. Uma vez que se diga eu não amo mais você, por exemplo, não se pode desdizê-lo. Nesse eixo, o das combinações, os significantes encontram-se articulados em presença, por estarem materializados na cadeia da fala. Segundo Saussure, o sintagma se compõe a partir de um mínimo de duas unidades. Por exemplo, a frase ‘Deus é’ não gera valor de significação, pois é necessária outra unidade sintagmática para que alguma ordem de valor seja gerada: ‘Deus é bom’, ou ‘Deus é justo’ compõem o mínimo necessário. Como ressalta Saussure (1916/2006), “colocado num sintagma, um termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos.” (p. 142).

O segundo plano destacado por Saussure é o das relações por associação entre os termos linguísticos. Trata-se do que mais tarde veio a ser conhecido como plano paradigmático (Barthes, 1964/2007). O paradigma linguístico funciona como um grande modelo virtual da língua, no qual se encontram armazenadas todas as relações possíveis de serem estabelecidas entre os signos. Nesta lógica, o plano paradigmático incide de maneira virtual, disponibilizando todas as associações possíveis de um signo com outros signos no ato da fala.

É fundamental ler como Saussure define o eixo dessas relações associativas:

Por outro lado, fora do discurso, as palavras que oferecem algo de comum se associam na memória e assim se formam grupos dentro dos quais imperam relações muito diversas. Assim, a palavra francesa enseignement ou a portuguesa ensino fará surgir inconscientemente no espirito uma porção de outras palavras (enseigner, renseigner, etc. ou então armement, changement ou ainda éducation, apprentissage); por um lado ou por outro, todas têm algo de comum entre si. (Saussure, 1916/2006, p. 143, itálicos do autor).

Uma leitura atenta desta passagem no texto de Saussure surpreende os leitores familiarizados com o texto de Freud. Ao apresentar uma hipótese sobre a lógica associativa dos significantes, ainda que tomada como fora do discurso, seu texto se aproxima do trabalho de Freud com os chistes, os atos falhos e os sonhos. No texto de Freud, tais fenômenos são solucionados a partir da elucidação dos caminhos associativos pelos quais um significante encontra seu caminho em direção à consciência graças a uma vinculação associativa inconsciente.

Sem incorrer em uma asserção ingênua, sabemos que a noção de sistema da língua, postulada por Saussure, exclui por completo o inconsciente e o sujeito, sendo este um dos pontos de divergência que Lacan manteve com a linguística e que não o torna um estruturalista no sentido estrito do termo (Coutinho Jorge, 2005). Entretanto, se levarmos em consideração o comentário de Saussure de que uma palavra pode fazer “surgir inconscientemente no espírito uma porção de outras palavras” (1916/2006, p. 143), nada impede que um desses significantes deslize do eixo paradigmático da língua em direção ao eixo sintagmático da fala por meio da formação de um ato falho, isto é, de um dizer que escape ao eu no ato da fala. Saussure ilustra sua proposição de um infinito campo de associações paradigmáticas por meio do seguinte modelo (Figura 2):

O eixo paradigmático da linguagem imaginado por Saussure
Figura 2
O eixo paradigmático da linguagem imaginado por Saussure
Fonte: Saussure (1916/2006, p. 146), CLG

Tendo em vista este esquema de Saussure, podemos nos reportar ao texto de Freud sobre a técnica empregada pelo chiste famillionär [famillionariamente], elucidada em “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905/1996). Freud toma de empréstimo um relato do poeta alemão Heinrich Heine no qual um simplório agente de loteria, o Sr. Hirsch-Hayacinth se rejubila de suas relações com o rico barão Rothschild. Em uma conversa com o poeta, ele diz: “E tão certo como Deus há de me prover todas as coisas boas, doutor, sentei-me ao lado de Salomon Rothschild e ele me tratou como um seu igual - bastante familionariamente.” (Freud, 1905/1996, p. 25). Freud sublinha que “nesse exemplo, o caráter do chiste não reside no pensamento” (p. 26), e complementa seu argumento assinalando que “se o que faz de nosso exemplo um chiste não é nada que resida no pensamento, devemos procurá-lo na forma, na verbalização que o exprime.” (p. 26). Vê-se aí o quanto Freud antecipa uma noção de relações de signos em rede, que se associam na cadeia de significantes em função da contiguidade de suas posições. Para dizê-lo em termos saussurianos, eles se vinculam no sistema de signos por causa das respectivas posições dos significantes familiär e millionär no eixo paradigmático, isto é, no eixo virtual da língua tal como é representado pelo modelo saussuriano.

É importante lembrar que a palavra sintagma tem sua origem no vocabulário militar, sendo utilizada para designar a distribuição dos soldados, a posição de cada um no enfileiramento, o que, estruturalmente acontece com as palavras, distribuídas em linha. Freud (1905/1996) destaca que a condensação ocorrida entre os termos familiär [familiarmente] e millionär indicam uma tentativa de substituição do termo millionär, o qual escorregou do plano paradigmático das associações para o plano sintagmático da fala. Logo, o enunciado que deveria assinalar a maneira familiar pela qual o agente da loteria fora tratado pelo rico barão deu lugar ao chiste “ele me tratou como um seu igual - bastante familionariamente” (Freud, 1905/1996, p. 25), pois, de acordo com Freud,

a palavra ora construída coincide, em sua posição anterior, com o “familiar” da primeira sentença, e nas sílabas finais com o “Millionär” [milionariamente] da segunda. A palavra representa, portanto, a posição “Millionär” da segunda sentença e, mesmo, toda a segunda sentença, o que nos põe em condições de inferir que a segunda sentença tenha sido omitida do texto do chiste. (1905/1996, p. 27).

A partir disso, Freud delineia um quadro diagramático para demonstrar a forma pela qual a condensação dos significantes familiär e millionär produzem um terceiro significante, familionär [familionariamente]. Essa leitura do chiste forneceu a Freud os subsídios para seu postulado de que a técnica dos chistes é análoga aos mecanismos de deslocamento, substituição e condensação que agem na formação dos sonhos (Freud, 1905/1996).

Até este ponto, pode-se supor certa equivalência entre as leituras de Freud e Saussure no que concerne às relações entre o sistema de associação (paradigma) e o eixo de combinação da fala (sintagma). Fica claro, também, que Saussure se aproxima fortemente de uma leitura da primazia do significante. No entanto, ele atravessa tal noção por não dispor de uma concepção de sujeito ou de inconsciente para com isso articular quaisquer outras implicações.

Deste modo, a pergunta que o texto de Freud coloca ao texto saussuriano é a seguinte: se o significante é o veículo do significado, isto é, se eles estão unidos de maneira tão harmoniosa e biunívoca - na qual um sempre remete ao outro de maneira recíproca -, qual seria o significado que corresponde ao significante famillionariamente? Quanto a isso, o texto de Saussure não pode responder. De modo contrário à posição do linguista, a teoria de Lacan demarca que

no inconsciente, cada um dos elementos significativos é significativo do que pôde ser uma intenção ou um desejo, e enquanto recalcado; no inconsciente, os elementos que fazem sua textura não tomam, em absoluto, valor nem por sua relação, nem pela diferença que eles podem ter uns em relação aos outros. (Melman, 2011, p. 281).

Jakobson e os polos metafórico e metonímico da linguagem

De acordo com Altoé e Marinho (2012), deve-se ao linguista russo da Escola de Praga, Roman Jakobson (1896-1982), a introdução do termo estruturalismo para descrever a língua como um sistema. Jakobson utilizou o termo em um trabalho apresentado no I Congresso Internacional de Linguística, em Haia, 1928. Saussure privilegia o termo sistema e apenas por três vezes utiliza o termo estrutura em seu CLG. A partir do ensino de Saussure, Jakobson e Trubzkoy difundem o uso dos termos estrutura e estruturalismo, os quais foram exportados ao pensamento francês graças ao prolífico encontro entre Jakobson e Lévi-Strauss na cidade de Nova York, em 1942 (Altoé & Marinho, 2012).

Os trabalhos de Jakobson, juntamente com Saussure e Lévi-Strauss, constituem a terceira referência fundamental de Lacan ao estruturalismo. Por meio da releitura dos trabalhos de Saussure, coube ao linguista russo a formalização de uma perspectiva estrutural da língua que contribuiu de maneira decisiva à construção lacaniana de uma estrutura da linguagem. Em seu trabalho “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia” (1954/2010), Jakobson identifica e destaca dois polos da linguagem: o polo metafórico e o polo metonímico. Trata-se de uma releitura dos eixos paradigmático e sintagmático assinalados por Saussure.

Em seu texto, o linguista russo parte de uma série de estudos sobre o problema da afasia para assinalar que, apesar de ter como causa uma lesão no órgão cerebral, “a afasia é uma perturbação da linguagem” (Jakobson, 1954/2010, p. 42). Portanto, sem a participação de um linguista familiarizado com a estrutura e o funcionamento da linguagem não seria possível identificar quais aspectos da linguagem seriam prejudicados nas diferentes espécies de afasias. Desse modo, o estudo das desordens da linguagem observadas em pacientes afásicos possibilitou a Jakobson estabelecer as leis gerais da linguagem em seu funcionamento normal.

Partindo de uma referência ao ensino de Saussure, Jakobson (1954/2010) reafirma o duplo caráter da linguagem e assinala que “todo signo linguístico implica dois modos de arranjo” (p. 49). Neles, os signos linguísticos (significantes) se arranjam por seleção ou combinação. No primeiro polo da linguagem identificado por Jakobson, os significantes se arranjam por meio de uma seleção entre termos alternativos. Por exemplo, pode-se dizer casa ou residência, o que implica a substituição de um termo por outro. O caráter substitutivo implícito nesse modo de arranjo caracteriza o que Jakobson denomina de polo metafórico da linguagem. Nele, um significante pode ser substituído na cadeia selecionando-se outro termo. Já o segundo polo da linguagem é identificado por Jakobson como polo metonímico, pois funciona pela combinação e contextualização, em que qualquer significante serve de contexto para outro significante, ou encontra seu próprio contexto em outra unidade linguística.

a) O polo metafórico e o distúrbio da similaridade

A partir dessa dicotomização das leis que regem o funcionamento do significante, a metáfora seria aquilo que produz sentido pelo efeito de substituição de um significante por outro. Pode-se dizer que Pedro é forte ou Pedro é um leão. Desse modo, o significante leão abole metaforicamente - para utilizar a expressão de Lacan - o significante Pedro, advindo desse processo a centelha poética da metáfora, pois há uma transferência de sentido na substituição de um significante por outro. “Uma palavra por outra palavra” é a fórmula que Lacan (1966/1998a, p. 510) emprega para a metáfora.

Nos casos dos pacientes afásicos, Jakobson percebeu que a afasia atinge sempre um dos polos da linguagem: o polo metafórico ou o polo metonímico. Quando a afasia atinge o polo metafórico, o paciente faz suplência da sua incapacidade de substituir um significante por outro - que mantinha com ele alguma similaridade -, valendo-se de um deslocamento, buscando o significante que lhe é próximo, que está em contiguidade ou no contexto. Em um dos casos relatados por Goldstein (1948, citado por Jakobson, 1954/2010), o paciente não conseguia dizer a palavra faca. Se o objeto lhe fosse apontado com o dedo, ele não conseguia substituir o gesto pelo significante faca. Em vez de faca, ele dizia apontador, talher, cortador de maçã, fazendo suplência pelo polo metonímico. Desse modo, a capacidade de seleção e substituição foi afetada e o polo metafórico comprometido pela afasia.

b) O polo metonímico e o distúrbio da contiguidade

A metonímia como figura de estilo se baseia inteiramente na contiguidade entre os significantes, nas relações de vizinhança, privilegiando todo o eixo das conexões, ou seja, do contexto que é formado pela proximidade entre os significantes. Na notícia de um portal da internet pode-se ler: “Fluminense marca com camisas diferentes e vence Flamengo por 3 x 0”. O significante camisas, portanto, é selecionado por sua proximidade, pela contiguidade que mantém no contexto com o significante jogadores do Fluminense. Afinal, camisas não marcam gols, o que demonstra, assim, todo o trabalho metonímico de deslocamento de um significante a outro. “De palavra em palavra”, dirá Lacan (1966/1998a, p. 509) sobre a estrutura metonímica, isto é, por uma conexão que se estabelece de um significante a outro.

Em um segundo grupo de pacientes afásicos, no caso dos distúrbios de contiguidade, Jakobson assinala que a afasia comprometeu o polo metonímico da linguagem. Dessa forma, todo o sequenciamento e a ordem das palavras são afetados, as vizinhanças, as relações de coordenação e subordinação gramatical, tornando caótico o discurso do sujeito. O que lhe resta é fazer a suplência do polo metonímico pela via da metáfora, respondendo por similitudes, nas quais todas as identificações aproximadas têm características metafóricas. Jakobson cita como exemplo os casos de pacientes capazes de enunciar Cascadura ou Ilhabela, mas que não conseguiam entender ou dizer casca e dura ou ilha e bela, pois toda a combinação da raiz com um sufixo foi afetada.

A partir disso, Jakobson conclui que todo o discurso normal, seja ele individual, jurídico ou social, se organiza em consonância com essa estrutura bipolar da linguagem. A afasia, neste sentido, corresponde a uma fixação em um desses polos. É desse modo que “manipulando esses dois tipos de conexão (similaridade e contiguidade) em seus dois aspectos (posicional e semântico) - por seleção, combinação e hierarquização -, um indivíduo revela seu estilo pessoal, seus gostos e preferências verbais.” (Jakobson, 1954/2010, p. 71).

Efeitos do diálogo: o inconsciente é estruturado como uma linguagem

No início de seu ensino, ao propor que “o inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado”, (Lacan, 1966/1998b, p. 260), Lacan argumenta que a verdade do sujeito, apesar do capítulo censurado, pode ser recuperada por já estar escrita em outro lugar. E um desses lugares é justamente o da evolução semântica do discurso, “o estoque e as acepções do vocabulário que me é particular, bem como o estilo de minha vida e meu caráter” (Lacan, 1966/1998b, p. 261). Tal indicação será reafirmada quatro anos mais tarde, em sua conferência “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (Lacan, 1966/1998a), ao destacar que

a perífrase, o hipérbato, a elipse, a suspensão, a antecipação, a retratação, a denegação, a digressão e a ironia são as figuras de estilo (as figurae sententiarum de Quintiliano), e a catacrese, a litotes, a antonomásia e a hipotipose são os tropos cujos termos se impõem à pena como os mais adequados para rotular esses mecanismos. Será possível ver nisso apenas um simples modo de dizer, quando são exatamente essas as figuras que estão em ato na retórica do discurso efetivamente proferido pelo analisado? (Lacan, 1966/1998a, p. 525).

É deste modo, portanto, que a questão do estilo e as figuras de estilo, entre elas a metáfora e a metonímia, são acolhidas no campo da clínica lacaniana. Desde Lacan, a linguagem não é mais tomada como simples instrumento de comunicação, mas como o próprio campo de constituição do sujeito. Lacan assinala isso continuamente, ressaltando que “quando digo emprego da linguagem, não quero dizer que a empreguemos. Nós é que somos seus empregados. A linguagem nos emprega, e é por aí que aquilo goza.” (Lacan, 1992, p. 69, itálicos do autor).

Na clínica lacaniana, o estilo pode ser decisivo, e nele reside a baliza da escuta do sujeito, cujo discurso pode ser capaz de produzir metáforas ou não. Se há metáfora, estamos no campo do como se no discurso do analisante. Se algo incomoda o sujeito e se manifesta como se fosse uma voz que o perturba, pode-se decidir por uma estrutura neurótica, mas, ao afirmar sem dúvida de que se trata de uma voz dentro da sua cabeça que lhe fala e ordena ações, pode-se decidir por uma estrutura psicótica. Da mesma forma, a elaboração do luto incide na possibilidade de inscrição da perda e metaforização do objeto perdido, substituindo-o por outro. Como nos indica o ditado popular, “um amor perdido só se cura com outro amor”, ou seja, a operação metafórica é o que permite que o significante Paula seja substituído pelo significante Júlia, ou o significante André por Bruno, e assim sucessivamente.

O texto de Jakobson (1954/2010) destaca essas duas formas de organização dos significantes na estrutura da linguagem: a ordem metafórica e a ordem metonímica. No texto de Lacan (1966/1998a), elas são apresentadas como as leis da linguagem. É neste sentido que Lacan se refere às “leis do inconsciente” (1966/1998a, p. 518), para mostrar que o inconsciente e a linguagem possuem uma estrutura análoga, obedecem às mesmas regras e princípios. Logo, as leis do significante organizam a estrutura da linguagem em causa no inconsciente. É por essa via que o texto de Jakobson entrega a Lacan as figuras de estilo que concorrem na formação dos sonhos:

A competição entre os dois procedimentos, metonímico e metafórico, se torna manifesta em todo processo simbólico, quer seja subjetivo, quer social. Eis por que numa investigação da estrutura dos sonhos, a questão decisiva é saber se os símbolos e as sequências temporais usadas se baseiam na contiguidade (“transferência” metonímica e “condensação” sinedóquica de Freud) ou na similaridade (“identificação” e “simbolismo” freudianos). (Jakobson, 1954/2010, p. 76).

A referência de Jakobson à investigação da estrutura dos sonhos faz referência direta à proposta freudiana apresentada em “A Interpretação dos sonhos” (1900/2013) e aos processos de condensação e deslocamento que se alternam no trabalho de formação do sonho. Baseado nas contribuições de Jakobson, Lacan, em “A instância da Letra no inconsciente” (1966/1998a), formalizou duas questões fundamentais para a estrutura do inconsciente. Em um primeiro momento, estabelece as fórmulas algorítmicas da metáfora e da metonímia. Em seguida, retoma o trabalho de deformação do sonho para identificar a condensação à metáfora, e o deslocamento à metonímia. Em seguida, lança a questão:

O que distingue esses dois mecanismos, que desempenham no trabalho do sonho, Traumarbeit, um papel privilegiado, de sua função homóloga no discurso? - Nada, a não ser uma condição imposta ao material significante, chamada Rücksicht auf Darstellbarkeit, que convém traduzir por “consideração para com os meios da encenação” (sendo por demais aproximativa, aqui, a tradução por “papel da figurabilidade”). (Lacan, 1966/1998a, p. 515).

Dessa maneira, Lacan argumenta que os meios de encenação do sonho - tudo o que se passa na outra cena - é ordenado simbolicamente por meio da metáfora e da metonímia, de modo que o inconsciente seja estruturado em consonância com os arranjos e princípios que regem o funcionamento da linguagem. Essa é a condição imposta ao material significante; que ele seja estruturado, articulado em conformidade com suas leis. Por isso, Lacan (1966/1998a) assevera que “as imagens do sonho só devem ser retidas por seu valor de significante” (p. 514), e que “o trabalho do sonho segue as leis do significante” (p. 515).

A partir disso, coube a Lacan demonstrar que se o trabalho do sonho segue as leis do significante, todas as demais formações do inconsciente também o fazem: chistes, sintomas e atos falhos. É neste contexto que se deve ler a célebre asserção de Lacan, proferida no seminário “As psicoses”:

O inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem. E não somente o significante desempenha ali um papel tão grande quanto o significado, mas ele desempenha ali o papel fundamental. O que com efeito caracteriza a linguagem é o sistema do significante como tal. (Lacan, 1981/2008, p. 142).

Para Concluir

As constatações aqui apresentadas não devem ser confundidas com uma suposta onipotência da eficácia do campo simbólico no ensino de Lacan. Tampouco se pode supor uma equivalência entre a proposta lacaniana e a perspectiva estruturalista. A apropriação lacaniana dos conceitos estruturalistas guarda algumas diferenças radicais em relação aos mesmos, as quais trazem as marcas das reformulações e torções conceituais efetuadas por Lacan em sua interlocução com o estruturalismo. Como destacam Couto e Souza (2013, p. 186), “apesar de utilizar os conceitos provenientes da linguística estrutural, por um movimento retroativo, ele [Lacan] os faz retornar de modo diferente para o campo de onde nasceram”. Tal lógica se aplica tanto à apropriação feita por Lacan do significante saussuriano quanto dos polos metafóricos e metonímicos da linguagem destacados por Jakobson, encontrando-se detalhadas e comentadas em textos como “A instância da Letra no inconsciente” (1966/1998a) e “Radiofonia” (1970/2003).

Além disso, para dar conta do que não pode ser reduzido ao significante, à letra como seu suporte material, Lacan introduz em seu ensino o conceito de real. Tal leitura se sustenta na própria estrutura da verdade do sujeito como um semidizer, indicada por Lacan no seminário “O avesso da psicanálise” (1992). Seguindo essa trilha, Lacan ressalta em “Televisão” (1973/1993, p. 11): “digo sempre a verdade: não toda, por que dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real.”

Deste modo, a proposição de que o inconsciente é tecido com o mesmo material e de maneira análoga à estrutura da linguagem não elimina a hiância, o irredutível do sintoma e o real da estrutura. Outrossim, a noção de um real como limite da palavra e da imagem não implica em ineficácia destas últimas, apenas dimensiona seu alcance na clínica e nos desenvolvimentos teóricos ulteriores a esta etapa do ensino de Lacan.

Apoio e financiamento:

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

Referências

1. Altoé, S., & Martinho, M. H. (2012, junho). A noção de estrutura em psicanálise. Estilos da Clínica, 17(1), 14-25. Recuperado em 15 de Junho, 2013, de Recuperado em 15 de Junho, 2013, de http://www.revistas.usp.br/estic/article/viewFile/46131/49756.

2. Barthes, R. (2007). Elementos de Semiologia (14a ed.). São Paulo: Cultrix. (Original publicado em 1964).

3. Coutinho Jorge, M. A. (2005). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan (Vol. 1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

4. Couto, L. F. S., & Souza, M. F. G. (2013). O estruturalismo em Jacques Lacan: da apropriação à subversão da corrente estruturalista no estabelecimento de uma teoria do sujeito do inconsciente. Ágora, 16(2), 185-200. Recuperado em 30 de Setembro de 2014, de Recuperado em 30 de Setembro de 2014, de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982013000200001&nrm=iso&tlng=pt.

5. Freud, S. (1996). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In J. Strachey (Ed. e J. Salomão, Trad.), Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 8). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1905).

6. Freud, S. (2013). A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM. (Original publicado em 1900).

7. Jakobson, R. (2010). Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In R. Jakobson, Linguística e comunicação (pp. 34-62). São Paulo: Cultrix , 2010. (Original publicado em 1954).

8. Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar . (Original publicado em 1991).

9. Lacan, J. (1993). Televisão. (A. Quinet, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar . (Original publicado em 1973).

10. Lacan, J. (1998a). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In J. Lacan, Escritos. (pp. 496-533). Rio de Janeiro: Zahar. (Original publicado em 1966).

11. Lacan, J. (1998b). Função e campo da fala e da linguagem. In J. Lacan, Escritos. (pp. 238-324). Rio de Janeiro: Zahar . (Original publicado em 1966).

12. Lacan, J. (2003). Radiofonia. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp. 400-447). Rio de Janeiro: Jorge Zahar . (Original publicado em 1970).

13. Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 3: As psicoses (1955-1956) (2a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar . (Original publicado em 1981).

14. Lévi-Strauss, C. (1975). A eficácia simbólica. Rio de Janeiro: tempo brasileiro. (Original publicado em 1949).

15. Manso de Barros, R. M. (2012). Por que estrutura e psicanálise? In L. Elia, & R. Manso de Barros. (Orgs.) Estrutura e psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud.

16. Melman, C. (2011). A neurose obsessiva no divã de Lacan: um estudo psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago .

17. Roudinesco, E. (2008). Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das letras.

18. Saussure, F. (2006). Curso de Linguística Geral (2a ed.). São Paulo: Cultrix . (Original publicado em 1916).

19. Werneck, M. M. F. (2012). O trabalho do mito: diálogos entre Freud e Lévi-Strauss. Ciência e Cultura, 64 (1), 45-47. Recuperado em 05 de Agosto, 2014, de Recuperado em 05 de Agosto, 2014, de http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252012000100017&script=sci_arttext.

Autor notes

Francisco Rafael Barbosa Caselli: psicólogo; mestre em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas, Brasil.
Charles Elias Lang: psicanalista, mestre em filosofia contemporânea pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutor em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professor associado e professor permanente no Programa de Mestrado em psicologia da Universidade Federal de Alagoas.
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por