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Pode um Pai Ser Cuidadoso? Crítica à Teoria da Paternidade em Winnicott
Un Padre Puede Ser Cuidadoso? Crítica a la Teoría de la Paternidad en Winnicott
Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 2, pp. 153-164, 2015
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Artigo Original


Recepção: 28 Junho 2014

Aprovação: 23 Abril 2015

DOI: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i2.24274

Resumo: Neste trabalho, fizemos um percurso nos principais textos teóricos nos quais Winnicott aborda a função do pai. Recorremos também aos casos clínicos para localizar como essa função paterna é analisada na prática clínica. Na obra de Winnicott, a figura paterna aparece como coadjuvan te ao trabalho de cuidado materno, muitas vezes atrelado a condições do ambiente e em diversas outras como um substituto que mimetiza características rigorosamente maternais. Percebemos em Winnicott uma clara aproximação entre os termos pai e homem, que contribuem para uma imagem normativa da família. A própria teoria winnicottiana pode ser utilizada para desconstruir o que consideramos uma dobra ideológica na obra do autor, por meio do confronto de seus próprios textos, como sugere a metodologia proposta por Laplanche, utilizada neste artigo. Tal desconstrução permite pensar, a partir dessa perspectiva, novos formatos familiares (homoafetivos e monoparentais, por exemplo) que aumentem o potencial criativo no relacionamento de um adulto com o bebê.

Palavras-chave: Winnicott, pai, comportamento de cuidado da criança.

Resumen: En este trabajo hicimos un recorrido por los principales textos teóricos en los cuales Winnicott enfoca la función paterna. Recorremos también a los casos clínicos para localizar cómo la función paterna es analizada en la práctica clínica. En la obra de Winnicott, la figura del padre aparece como coadyuvante al trabajo del cuidado materno, éste muchas veces relacionado a las condiciones del ambiente y en otras como un substituto que mimetiza características rigurosamente maternales. Percibimos en Winnicott una clara aproximación entre los términos padre y hombre, contribuyendo a una imagen normativa de la familia. La propia teoría winnicottiana puede ser utilizada para deconstruir lo que consideramos una deficiencia ideológica en la obra del autor, a través de la confrontación de sus propios textos, como sugiere la metodología propuesta por Laplanche, utilizada en este artículo. Tal desconstrucción permite pensar, a partir de esta perspectiva, nuevos formatos familiares (homoafectivo y monoparental, por ejemplo), que aumenten el potencial creativo en la relación de un adulto con el bebé.

Palabras clave: Winnicott, padre, conducta de cuidado del niño.

O pai é amplamente abordado na teoria psicanalítica e à sua função é atribuída grande importância na constituição e no desenvolvimento psíquico infantil. No Complexo de Édipo, o pai aparece como a figura que impede a consumação do amor da criança pela mãe, introduz a castração e, assim, a criança ingressa na sociedade - o pai impede o incesto e introduz a cultura, a lei. Esse resumido exemplo aponta para o valor que a figura do pai ganha na teoria psicanalítica.

Na teoria winnicottiana, a mãe é exaustivamente abordada e ao pai é atribuída uma função coadjuvante. Este estudo objetiva, em contraponto, à ênfase dedicada unicamente à função da mãe, analisar o papel do pai na teoria de Winnicott, contrastando como este é abordado nos textos teóricos e nos casos clínicos. Propõe-se delinear uma dialogia entre a teoria winnicottiana, os atendimentos realizados pelo psicanalista e as posições atribuídas ao pai nessas duas condições. Escolhemos textos de vários momentos da obra do autor de forma a mostrar as tensões e as permanências dos pontos de vista sobre o pai. Não há, portanto, uma seleção cronológica dos textos analisados, mas de conteúdo. Seguimos a pista de Dethiville (2014) que aponta para a presença do pai nos textos teóricos e nos casos clínicos, ainda que de forma acessória, atravessando toda a produção do psicanalista inglês. Além disso, procura-se desconstruir o que parece ser uma dobra ideológica presente na teoria psicanalítica no que tange aos discursos sobre a relação dos pais e seus bebês, demonstradas na própria ideia naturalizada de função do pai.

O trabalho de transpor o conceito de dobra abordado por Deleuze (1992) para a leitura da obra de Winnicott é de ler seus textos atentos às suas singularidades, nos conceitos e no que parecem teses gerais do autor. Buscar o que se diferencia, o que varia, bifurca, o que não é inflexível, em especial no que diz respeito à função do pai. Para continuar a metáfora de Deleuze (1992): conceitos - e esse parece ser o caso da noção de paternidade em Winnicott - sugerem ter a solidez permanente de uma montanha, mas são “tempo em estado puro” (p. 195), isto é, frutos de jogos de poder históricos e contingentes.

Denominamos de dobra ideológica toda teoria que reforça o caráter ideológico de concepções de subjetividade. Ao invés de desconstruir ideologias que organizam e legitimam determinados jogos de poder, teorias podem reforçar os efeitos de dominação que tais discursos produzem. Partimos do pressuposto que “as práticas e os discursos ideológicos dominantes influenciam nossa visão da realidade” (Kincheloe e McLaren, 2006, p. 285). E, por isso, teorias críticas como a psicanálise devem “ajudar a mobilizar o desejo para projetos progressivos e emancipatórios” (Kincheloe & McLaren, 2006, p. 284), na medida em que desconstroem tais práticas e discursos sustentados pela ideologia dominante. Quando, ao contrário, agem para reforçar tal ideologia, funcionam como uma dobra: reforçam e escondem ainda mais o caráter de dominação dos dispositivos conceituais.

Na teoria winnicottiana, a dobra ideológica caracteriza-se por algumas linhas de força. Por vezes, o pai parece ser uma condição do ambiente ou sua função se limita a apoiar a mãe da criança; em alguns dos textos utilizados, o pai explicitamente não possui importância para a criança a não ser que a mãe tenha que ser substituída e, nesse contexto, o pai deve ser bastante maternal, ou seja, a relação do pai com a criança parece sempre secundária ou reduzida à relação com a mãe. Corre-se o risco, desta forma, de legitimarmos a relação entre a mãe (biológica) e o bebê como uma relação mais saudável ou mais apropriada. O risco é deixar de perceber que a própria teoria winnicottiana nos fornece material para pensarmos em outras configurações familiares - homoafetivas, adotivas, por exemplo - cujos papéis de pai e mãe não sejam tão fortemente atrelados aos papéis sociais típicos ou aos gêneros, aos quais, geralmente, pai e mãe se referem.

Ao contrapor essas contradições na obra do autor, estamos seguindo a metodologia proposta por Jean Laplanche (1992) ao ler Freud, qual seja, a de usar o próprio método analítico para ler uma teoria psicanalítica. Apontar contradições, realçar detalhes, denunciar excessos defensivos, iluminar elementos menos reconhecidos. Valorizar, por exemplo, mais o Winnicott que nos traz o holding do que outro Winnicott que reproduz a ideologia patriarcal e heteronormativa, é valorizar o movimento mais comprometido com o inconsciente calcado na sexualidade infantil, portanto, menos subjugado à ideologia que pressupõe papéis sociais pré-fixados para cada sujeito diante do outro. Apontar para a existência de muitos Winnicotts é também uma forma de reconhecer a complexidade do pensamento desse autor, mais uma vez nos aproximando do método analítico naquilo que ele recomenda: pensar na sobredeterminação e nas múltiplas interpretações que um evento psíquico ou da cultura merece.

Exemplos Clínicos

Destacamos três casos em que aparições ou menções ao pai se tornam determinantes para a descrição do relato e para as conclusões feitas por Winnicott (1984) em “Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil” e o texto “A criatividade e suas origens” (1975), em que o autor relata um trecho de caso clínico que lhe permite esclarecer sua teoria sobre elementos masculinos e femininos na constituição do eu.

Em consulta, Bob, paciente de seis anos, tido como esquizofrênico por Winnicott, desenha um labirinto e nomeia como caminho, por desconhecer a palavra correta. Nessa situação, o paciente sai da sala e vai ao pai, contando a história de sua visita a um labirinto, despertando muita ansiedade na criança enquanto lembrava. Winnicott refere-se ao pai como uma falha ambiental, por não oferecer condições suficientes para ancoragem dessas ansiedades da criança. “Neste caso, a ideia era de falha por parte do pai que parece não ter percebido que um labirinto tocaria em ansiedades arcaicas de Bob” (Winnicott, 1984, p. 81).

Noutro desses desenhos, Bob faz uma escada, remetendo a um acidente real em que ele caiu das escadas e o pai, estando na parte de baixo, o segurou e levou para a mãe, que o acalmou enquanto Bob chorava. Nesse ponto, Winnicott faz menção a uma falha da mãe na função de pegar a criança no colo; o pai apareceria nessa situação como uma ajuda, uma correção da falha da mãe, recuperando assim, o trauma sofrido por Bob. Esse é um dos poucos momentos em que Winnicott descreve uma situação em que o pai exerce uma ação real. Segundo Rosa (2011), o pai precisa “ser o homem real [itálicos da autora] que exerce ações concretas de proteção, intervenção e sustentação das relações familiares e também ter, efetivamente, presença nas brincadeiras e jogos das crianças” (p. 289), função pouco evidenciada nos textos winnicottianos.

O pai aparece, nesse caso, como uma saída, ainda que vagarosa e dispendiosa de uma dependência extrema à mãe. Não se observa nenhuma função específica aos atributos paternos, mas uma substituição da mãe em momentos em que esta não se mostra capaz de prover condições suficientes para o desenvolvimento da criança.

Para Rosa (2011), nessas relações de substituição, geralmente na fase de dependência absoluta, o pai deve ser “uma mãe substituta e nesse papel, ele deve permanecer, tal como a mãe, objeto subjetivo. Para exercer essa função, o importante não é o seu lado masculino, mas o seu lado materno.” (pp. 264-265).

Faria (2014) também atribui ao pai papel importante na fase inicial de vida do bebê, mas como um substituto materno. O autor chega a afirmar que, para o pai, essa função pode ser custosa: “... o pai deverá ter a capacidade de fazer uso de seu elemento feminino puro, o que lhe poderá ser bastante custoso em termos pessoais e de sua masculinidade.” (p. 302). Ali onde poderíamos enfatizar uma capacidade de holding que independe do gênero, encontramos tal capacidade sempre atrelada à figura da mãe ou a um atributo materno.

Em outro caso, Winnicott (1984) descreve a consulta de Robert, paciente de nove anos, cujo pai se queixa de uma recusa do filho à escola e também da semelhança de Robert com ele (pai), semelhança essa observada por Winnicott: as atitudes de Robert, com certo tom de morosidade, e sua inteligência superior ligavam a criança diretamente ao pai. Robert, além de gostar muito do pai, o imita em suas ações, apesar de se incomodar com a inteligência acima da média do pai e dizer que gostaria de ter um “pai comum” (p. 102), como o das outras crianças.

Enquanto se identifica com o pai e tem sentimentos de amor por esse, ao mesmo tempo, o filho sente ódio graças ao desejo inconsciente dirigido à mãe, que pode se mostrar de forma mais clara também em situações em que a superioridade intelectual suposta ao pai é destaque junto aos pais de outras crianças. O determinante na saída desse conflito psíquico aponta para o posicionamento de Robert diante da diferença anatômica dos sexos e também dos gêneros. A ultrapassagem desse conflito parece se dar pela maneira como a criança lida com essas diferenças em termos identificatórios, no caso, ligada ao pai, lembrando que a resolução desse conflito exige elaborar a ambivalência desse laço, como adverte Silvia Bleichmar (2008): “seria impossível a produção de uma identificação a um puro rival, a um mero obstáculo, sem laços de amor com ele.” (p. 31, tradução nossa).

Assim como Bleichmar (2008) percebe a forte ambivalência da criança com o pai, Galván (2014), ao abordar o conflito edípico com o pai e a função deste na integração do verdadeiro si mesmo com o falso si mesmo, realça a importância do pai em aceitar o amor dirigido a ele, “sem temer tendências homossexuais do filho ou dele mesmo” (p. 272). A autora demarca o empréstimo de uma potência masculina que a criança pode introjetar do pai, se identificando com o mesmo.

O terceiro caso é o de Cecil, que tinha 21 meses na data da primeira consulta. Com o que Winnicott (1984) nomeia como tendência antissocial, Cecil, com o passar dos anos, começa a subtrair coisas da mãe, que relata que o pai era muito paciente com Cecil e a dificuldade do pai em ser enérgico com a criança a irritava. Ainda de acordo com a mãe, os problemas se davam na ausência do pai, já que, na presença desse, Cecil sempre recorria a ele e rejeitava a mãe.

Fazendo observações anos depois do contato com Cecil, Winnicott (1984) descreve a importância do pai para o controle da situação, “O pai tem sido um fator estabilizador absolutamente essencial em toda a situação”. (p. 285). A tendência antissocial foi afastada e os furtos não mais aconteceram. É preciso evitar aqui a dobra ideológica que atrela o controle e a lei ao pai. No caso, fica claro que é o próprio Winnicott, enquanto analista da criança, que tem sido usado pela mãe “para ajudar com os efeitos de sua depressão nesse menino” (p. 285). Ou seja, não é preciso ser o próprio pai, mas possuir essa capacidade de contenção e de apoio à tarefa do cuidar.

Percebemos essa dobra ainda em autores contemporâneos, que atrelam exclusivamente ao papel exercido pelo pai, a socialização e inserção na cultura, e a mãe a características psíquicas. Segundo Martins (2014):

A dedicação e devoção da mãe contribuem para uma autoestima interna, como valor que a criança guarda internamente, enquanto a admiração vinda de um pai presente colabora fortemente para o valor e a autoestima na relação com o outro, com o social, com o mundo. (pp. 161-162).

Já em “Hallucination and dehallucination”, Winnicott (1957/1989), por meio do sonho de uma paciente, revela que todos os membros da família sofreram pela anormalidade do pai, e que a paciente em análise precisou primeiro resolver suas dificuldades com a mãe para só posteriormente ocupar-se da problemática que envolvia o pai. Nesse texto, é atribuído um papel decisivo ao pai, pois o psicanalista aponta que o pai por ele entendido como anormal reflete no adoecimento de todos os membros da família. Esse tipo de texto é fundamental para mostrar como o gênero não determina necessariamente o cuidado que o adulto vai dedicar ao bebê: seja uma mãe deprimida ou um pai anormal, causarão impedimentos no desenvolvimento emocional do bebê. Mais uma vez, não se trata de uma questão de gênero. O que parece ser fundamental é, antes, o tipo de ambiente facilitador e tranquilo para o desenvolvimento inicial.

Serralha (2014) aponta em dois casos expostos, de crianças de seis e sete anos, atendidos em um projeto de extensão universitária, para a importância do pai em criar um ambiente estável e indestrutível para a criança, apoiando a mãe. A autora atribui importância dessa função paterna ao relacionar o comportamento agressivo e sintomático das crianças a esta falha do pai. No texto “Apetite e perturbação emocional”, Winnicott (1936/1982a) atribui não só à mãe, mas ao par parental, a responsabilidade do primeiro momento em que a criança é alimentada como um momento em que, caso a experiência seja ruim, pode causar transtornos alimentares, mudanças de apetite. Ao relatar casos que exemplificam tais transtornos, o psicanalista aponta novamente para a importância do pai, nesse trecho, nas fantasias sobre o interior do corpo da criança. O menino levado ao hospital acreditava que dentro de si havia um menino, a mãe havia engravidado há pouco tempo e Winnicott afirma que “Tinha algo a ver com o amor do papai” (p. 115). Reeves (2013) aponta para uma identificação com o pai, que possibilitará ao garoto uma potência do seu eu, que será recuperada na puberdade.

Observem que os casos relatados possibilitam a desconstrução do par pai/homem heterossexual. Nos exemplos, fica claro que o importante é a capacidade de um adulto - homem ou mulher - brincar com a criança, ser capaz de holding e ainda estar disponível para ser um ambiente seguro para que o bebê possa se sentir criativo e disposto a endereçar seu gesto espontâneo.

Gostaríamos agora de retomar os conceitos de elementos masculino e feminino puros. Tais conceitos parecem perpassar muitas das análises apresentadas anteriormente (Faria, 2014; Rosa, 2011; Duparc, 2004). Em “A criatividade e suas origens” (1975), Winnicott relata um trecho de caso clínico atendido por ele. Um homem que já havia passado por muitos anos de psicoterapia, mas não sentia que podia abandonar o tratamento, até a interpretação de Winnicott a respeito do que denominou neste paciente de inveja do pênis. O analista afirma que estava falando com uma moça, ao que o paciente assente intelectualmente:

Como ele disse, subsequentemente: 'Eu mesmo nunca poderia dizer (sabendo-me um homem): sou uma moça. Não sou louco assim. Mas você disse e falou para ambas as partes de mim.

Aquela loucura, que era minha, capacitou-o a ver-se como uma moça, a partir de minha posição. Sabia-se homem e nunca duvidara de que o fosse. (p. 121).

A interpretação é justificada pelo fato de que a mãe deste homem o via como uma menina quando bebê. Winnicott tenta integrar o que denomina de lado feminino e masculino em seu paciente, marcando a tentativa de coexistência dos gêneros na formação do indivíduo. Esses lados são mantidos como opostos e separados, como uma parte dissociada do eu, por isso a denominação feminino puro.

O paciente relata alívio e parece estar mais integrado e pronto para sair do tratamento. Parece que Winnicott faz uma intervenção bem sucedida, mas ao teorizar cai, mais uma vez, no que denominamos de dobra ideológica. O inatismo fica claro: nascemos com uma porção masculina e uma feminina, e em estados de adoecimento essa dissociação aparece, a parte feminina do paciente em questão, não integrada ao seu eu, causava sofrimento.

Ao separar elementos puros masculinos e femininos, baseando-se na noção da bissexualidade e da atividade/passividade, Winnicott não parece permitir a ideia de que homens e mulheres podem, por exemplo, exercer de forma satisfatória as mesmas funções de cuidado de um bebê e que estas não dependem do gênero do cuidador. É de se surpreender ainda que Winnicott não trate da identificação do paciente em questão com o desejo de sua mãe de ter uma menina, mas ao contrário, afirma que o lado feminino já estava na constituição do eu.

Finalmente, ao atrelar o feminino ao ser e o masculino ao fazer, mais uma vez, Winnicott contribui para uma visão que constantemente atrela o feminino à passividade e o masculino à atividade. Por mais que haja sempre a ressalva de apresentar tais elementos presentes em homens e mulheres, a associação desses termos contribui para a naturalização dos gêneros e a atribuição de papéis sociais correspondentes. Mesmo que tenha o caráter didático, o adjetivo puro nos parece ideologicamente problemático na medida em que reforça a ideia de uma objetividade possível no que tange à definição de papéis sociais determinados por gênero.

Destacamos uma tensão contraditória no texto que estamos examinando: no início, há uma crítica à objetividade, no sentido de fazer entender que perceber o mundo fundamenta-se no impulso criativo e esse, por sua vez, sustenta-se nos fenômenos transicionais. A ideia de purificação parece ir à direção contrária à de transicionalidade.

O Pai Materno e Pouco Viril

Em seu artigo “E o pai?”, Winnicott (1957/1982c) coloca em evidência como o pai se tornou uma questão marginal em sua teoria, enquanto a mãe seria o centro de todas as relações com o bebê. Nesse texto, o autor estabelece três principais situações nas quais o pai é valioso. A primeira delas seria uma função de suporte à mãe, sexualmente e afetivamente, para auxiliar a mesma “a sentir-se realmente bem em seu corpo e feliz em seu espírito” (p. 129). A segunda função do pai seria dar apoio moral à mãe e sustentar a autoridade que ela introduz na vida da criança. Dividir a rigidez da educação e da lei com o pai seria importante para a mãe exercer com menos peso o amor e ternura atribuídos unicamente a ela. A terceira e última função do pai é que, a partir de sua simples existência e presença, a internalização da figura masculina, as características exclusivas que o distancia dos demais homens seria assimilada pela criança. Observemos, portanto, que num texto dedicado exclusivamente à função paterna, Winnicott retira do homem qualquer possibilidade de cuidado. A função é da mulher e há uma clara contraposição entre virilidade e maternidade na obra do autor, como veremos nos exemplos a seguir. Resumindo essas três principais funções e atribuindo certa anterioridade à importância do pai ao nascimento do filho, Rosa (2014) afirma que a presença paterna é benéfica até mesmo antes da capacidade da criança de reconhecê-lo como pai, dissociado do ambiente. Mesmo reconhecendo que a presença do pai é benéfica, persiste o problema na sua abordagem, já que mais uma vez, o pai encontra-se indiferenciado do ambiente, a mãe é importante e exerce a função do cuidado.

Em “Consequências da Psicose Parental para o Desenvolvimento Emocional da Criança” (1959/2001a), texto particularmente importante para explicitar o que estamos denominando de dobra ideológica provocada pela teoria sobre o pai em Winnicott, temos o caso de Esther, cujo pai adotivo “parece ter-se tornado a mãe dessa criança” (p. 103), assumindo “o papel da mãe boa e idealizada na vida de Esther” (p. 105). Em seguida, ele generaliza o que encontra nos seguintes termos:

... podemos separar os pacientes psicóticos em pais e mães, pois há alguns efeitos que só podem advir da relação entre mãe e filho, que é a primeira em que a criança se envolve; se o pai tem aí alguma participação, é apenas enquanto desempenha o papel de mãe-substituta. ... Os pais têm seus próprios distúrbios, cujos efeitos sobre a criança podem ser estudados; mas tais distúrbios só atingem a criança que tem idade suficiente para perceber o pai como homem. (pp. 106-7).

A passagem acima diz muito: logo após falar do pai de Esther “sempre sensível às necessidades da filha” (p. 103), Winnicott simplesmente reduz essa capacidade psíquica a um tipo de mimetismo do homem em relação à mãe-mulher, isto é, trata os cuidados suficientemente bons do pai como produto substituto. Após afirmar a presença concreta do pai, o autor a recusa novamente, colocando-a como uma função secundária, já que o pai, apenas quando percebido como homem, terá efeitos sobre a criança.

Em “Distorção do Ego em Termos de Falso e Verdadeiro Self”, Winnicott (1960/1983) aborda o conceito de falso self. Ao utilizar um exemplo de paciente atendido por ele quando criança e que atualmente estava em tratamento psiquiátrico, faz um parêntese ao dizer somente da relação mãe- filha, não admitindo em estágios precoces a presença de um cuidador outro que não a mãe/mulher, desta forma determinando a existência do pai como simples avatar da mãe:

Deixo relacionamento mãe-lactente nesse contexto porque estou me referindo a fenômenos precoces, àqueles relativos ao relacionamento do lactente com a mãe, ou com o pai como se fosse outra mãe. O pai neste estágio tão precoce ainda não se tornou significativo como uma pessoa do sexo masculino. (p. 130).

No mesmo texto, Winnicott nos fornece alguma explicação sobre o papel do pai durante a gravidez. Ele afirma que a mãe, favoravelmente, identifica-se com seu bebê e entra em um estado peculiar de narcisismo secundário, hipocondria, alumbramento, e que para esse estado ser mantido são necessárias certas condições ambientais - dentre elas o pai da criança:

No caso mais simples o homem, apoiado pela atitude social que é, em si, um desenvolvimento da função natural do mesmo, lida com a realidade externa para a mulher, de modo a tornar seguro e razoável para ela se tornar temporariamente introvertida, egocêntrica (p. 135).

Aqui, o pai aparece como a condição ambiental que auxilia a mãe e permite que ela continue quase totalmente voltada para seu bebê. Winnicott afirma ainda que esse papel não é natural ao homem, mas uma evolução. Percebe-se uma tendência a atribuir o papel de cuidado à mãe e não ao pai.

No texto “Autism” (1966/1996), o psicanalista relata o caso de Sally, e afirma que a menininha de 17 meses estava bem apesar de a mãe ser, segundo ele próprio, “inadequada, apesar de seu forte desejo em fazer bem” (p. 207). Quem desempenhava o papel maternal era o pai: “ele havia dado ao bebê muito do que a mãe fora incapaz de dar” (p. 207). Parece que para Winnicott um pai maternal é um bom pai, um pai que se assemelha à mãe, porém, o fato coloca a figura do pai mais uma vez como secundária: ele aparece quando a mãe não é boa, e é bom que ele se pareça com uma mãe. O psicanalista chega a se perguntar como este pai manejaria a situação quando se tornasse requisitado como homem (“a male man”) e um pai verdadeiro (“a true father”) (Winnicott, 1966/1996, p. 208). É importante observar como fica bastante clara nesse texto a dobra ideológica que estamos criticando na obra de Winnicott. Gênero e função de cuidado estão fortemente atrelados. Como se um homem, um pai de verdade, não pudesse ser também carinhoso, preocupado e investido no cuidado dirigido ao seu bebê. Ao nomear esses cuidados amorosos de maternos ou femininos, corremos o risco de falsear o gesto espontâneo do pai que cria e encontra seu bebê.

O Pai Vem Depois

De acordo com Winnicott, é somente a partir da mãe que o relacionamento da criança com o pai é possibilitado. Para o autor, cabe à mãe fazer a mediação dessa relação, e fora do alcance desse intermédio, dificilmente essa ligação afetiva pode acontecer. Winnicott (1957/1982c) diz que a proficuidade das relações entre o pai e as crianças não depende da mãe, mas o impedimento ou o desvirtuamento delas está em seu campo de ação. “Como eu disse acima, tudo depende bastante daquilo que a mãe decidir”. (p. 128).

O texto “A Posição Depressiva no Desenvolvimento Emocional Normal” (1936/1982b) é permeado pela relação mãe-bebê e em como a mãe deve ser capaz de sustentar esse período com a criança. Ao abordar como o mundo interior da criança é construído, Winnicott estabelece três fatores: a experiência instintiva, o material incorporado, retido ou eliminado, e as relações completas introjetadas magicamente. O pai aparecerá apenas na terceira situação, como aquele que participa indiretamente como marido ou como substituto, se necessário, à mãe.

A importância do pai na posição depressiva seria, então, a de auxiliar a criança a introjeção de material satisfatório, que seja capaz de propiciar enriquecimento e estabilização ao bebê. Vale lembrar que, para que a criança se torne capaz de introjetar esse material, ela teria passado por outros fatores, dependentes principalmente da relação mãe-bebê. Para Winnicott (1957/1982b), é depois de ter passado de modo saudável pela posição depressiva que a criança pode avançar para enfrentar o problema triangular das relações interpessoais, o complexo de Édipo, que é onde o pai teria maior influência.

A relação da criança com o pai aparece, então, como posterior ao primeiro relacionamento mãe- bebê. Winnicott (1957/2005), em “Fatores de Integração e Desintegração na Vida Familiar”, quando aborda a relação da família, afirma que após o bebê conseguir se distinguir da mãe, ele poderá ser capaz de se relacionar com a mãe e o pai como conjunto (pp. 59-60).

Como já salientamos, o pai aparecerá e terá influência direta na vida da criança. Futuramente, a criança que já se relaciona com a mãe e o pai aumentará seu círculo social, vão aparecendo outras pessoas, ainda da família. Quando inicia a vida escolar é que a criança vai relacionar-se com o mundo exterior, a família, mas, novamente, é a mãe a grande responsável por introduzir a criança a essa nova realidade de modo seguro.

O texto “A Criança no Grupo Familiar” (1966/2011) reitera que o pai aparece primeiro como um substituto materno e que sua segunda função - o psicanalista deixa claro que se refere à sociedade britânica da época - é entrar na vida da criança como um aspecto da mãe, um aspecto duro e implacável, que penaliza. Percebe-se uma tendência a atribuir ao pai tudo que é relativo à lei, à rigidez e à moral.

Favoravelmente, esse pai deixará de ser só um aspecto da mãe e se transformará em pessoa distinta da mãe, pessoa a quem a criança irá temer, odiar, amar e respeitar. Esse breve relato do psicanalista sobre a função do pai deixa evidente que a concepção paterna winnicottiana, assim como a grande ênfase dada à mãe deve-se também ao contexto em que o autor vivia, e não somente uma escolha teórica que valorizaria a mãe e o relacionamento muito primário do par mãe-bebê.

Ainda no mesmo texto, Winnicott condiciona ao pai o papel de afastar a criança da unidade que formava com a mãe para que ela consiga ver objetivamente a mãe, a ame e a odeie, e depois consiga voltar-se para ela com o ego mais fortalecido e maduro, para que possa fazer o mesmo com o pai. Porém, nesse aspecto, o pai pode ser qualquer outra pessoa, inclusive da própria família, que conviva com a criança e faça esse papel de afastar um pouco a mãe. Ou seja: quando se trata do papel do pai, qualquer um pode fazer. Já para o papel da mãe, a impressão é que apenas uma mulher e, preferencialmente, a mãe biológica pode desempenhar.

Observe-se o claro posicionamento ideológico do autor ao condicionar as características estruturais da família à presença de uma mãe e de um pai. O modelo é claramente heteronormativo, a começar pelos termos mãe e pai, importantes marcadores de gênero. Esses marcadores são frutos de uma cultura e de uma época, como o próprio Winnicott admite.

Do ponto de vista analítico e também para acompanhar a crítica política que estamos fazendo ao modo como na teoria winnicottiana a família heteronormativa é tomada como regra, não seria interessante repensarmos no uso desses termos teóricos? Por que não adultos cuidadores, adultos de holding ou outro termo que aponte efetivamente para o que interessa do ponto de vista das condições de possibilidade do desenvolvimento emocional? O desenvolvimento da teoria pode se beneficiar das mudanças nas configurações de família, inserindo essas alterações conceituais e dando novas condições para a atualização constante necessária na clínica psicanalítica. Se, no contexto da produção teórica de Winnicott, o modelo familiar era bastante rígido, atualmente, lidamos com múltiplas configurações familiares, que devem ser acolhidas pela teoria.

Detendo-nos claramente com preponderância na análise do papel do pai na infância e principalmente nos primeiros anos de vida, não ignoramos a importância desse em outras fases. Autoras como Fonseca (2014) e Hammoud (2014) apontam para influência do pai no atravessamento da adolescência em direção à assunção de conflitos adultos, visando o amadurecimento, além da capacidade de emprestar sua pessoa para a identificação do filho com uma figura masculina adulta. De toda forma, observamos ainda nessa abordagem a consistência atribuída de modo privilegiado ao homem como essa figura identificatória e de apoio para o adolescente, desvalorizando qualquer outro que assuma essa função simbólica.

Em termos gerais, acreditamos que situar o pai num momento sempre posterior no desenvolvimento emocional do bebê contribui imensamente para recalcar o que vimos ser a figura de um pai maternal. São dois movimentos claros na obra de Winnicott e que se auxiliam mutuamente: desvirilizar o pai que cuida e virilizar ao máximo a figura do homem/pai, sempre o colocando como auxiliar a mãe e sempre deixando-o para um momento secundário. Esses dois movimentos teóricos estão fortemente comprometidos com o que pensamos ser a ideologia que fundamenta a família heteronormativa.

Considerações Finais

A concepção winnicottiana sobre o pai e sua influência na vida psíquica da criança não se manteve a mesma ao longo da sua obra. Além de considerarmos o contexto no qual essas asserções foram elaboradas, devemos relativizar também a totalidade da relação atribuída à mãe, como mediadora da relação do bebê com o pai.

Nossa crítica à presença da ideologia patriarcal e heteronormativa na obra de Winnicott (e na psicanálise como um todo) pode ser interpretada, winnicottianamente, como uma tentativa de transformar a prática e a teoria do autor como um espaço potencial, a partir do qual novas formas criativas de acolhimento do bebê humano possam ser possíveis. A questão que levantamos é, em resumo: por que chamar de materna uma função que pode ser aproximada do que o próprio Winnicott denominou de preocupação (concern), manejo (handling) e também do holding? Do ponto de vista teórico, o gesto espontâneo do pai é recusado pela teoria. De maneira geral, a teoria age ao contrário de uma mãe suficientemente boa: é apenas como falso self, no caso, como mãe, que o pai pode aparecer. A teoria, ao contrário dessa posição, deve acolher esses adultos deflacionando esses rótulos (pai, mãe, masculino, feminino, homem, mulher), principalmente naquilo que produzem de engessamento afetivo, o oposto de qualquer espontaneidade.

Ao que nos parece, não há questionamento por parte da teoria psicanalítica de forma geral, quanto à convergência do sexo biológico com o gênero, do masculino para o homem e o feminino para a mulher. Ao contrário: parece fazer parte da história da teoria psicanalítica esse atrelamento. No entanto, essa mesma teoria já demonstrou que não apenas pai e mãe biológicos, mas outros adultos podem assumir as funções de cuidado e constituição subjetiva de um bebê. É possível problematizar essa convergência entre gênero e sexo biológico lembrando que, qualquer adulto, independente do sexo biológico ou do gênero, pode exercer um cuidado suficientemente bom, possibilitar o holding e criar um ambiente saudável para a criança, de “macieza, ternura” (Winnicott, 1957/1982c, p. 128). Esse mesmo adulto pode também representar a lei e a ordem da interdição e da castração. Não há razões para que essas funções estejam presas ao gênero ou ao sexo biológico do adulto que se encarrega da tarefa do cuidado. E também não há razão para acreditar que essas funções não se movam na mesma pessoa e entre as pessoas que cuidam da criança.

Loparic (2014) também aponta para a possibilidade do pai tomar essas características ternas com o seu filho e afirma, ao analisar a concepção do pai em Freud e em Melanie Klein, que ao contrário desses interlocutores privilegiados, o pai, na obra de Winnicott, não só pune, podendo também compreender e perdoar.

Percebemos uma relativização nessa questão na própria obra de Winnicott, o que não configura uma mudança de direção, mas o autor considera, em alguns momentos, que o pai pode assumir o papel de mãe e vice-versa. Essa relativização, porém, ocorre principalmente sobre termos excepcionais, onde a ausência desses pais é imposta pela morte ou outras situações indesejáveis. Embora raro, Winnicott afirma, com clareza, que as características maternais podem estar presentes no pai - vide o caso Sally (1966/1997), em que ele toma essa atribuição maternal e por isso é considerado um bom pai. Embora esse intercâmbio das características seja pensado pelo autor como uma possibilidade, Winnicott não deixa de se questionar sobre o momento em que esse pai materno teria que ser um varão, uma das funções atribuídas ao pai na obra winnicottiana. Depois da aproximação da criança com o pai, há uma tendência de não trânsito ou interlocução entre as características austeras, da lei e as ternas, atribuídas à mãe, características masculinas e características femininas, posição que deve ser criticada e relativizada nessas relações.

Dias (2014), em seu texto “Pai, Identificação Parental e Homossexualidade Masculina”, trabalha o papel do pai na constituição da identidade sexual da criança e faz um amplo percurso na obra de Winnicott, avançando nas lacunas deixadas pelo autor acerca do tema. De toda maneira, atentamo-nos aqui a citação do percurso do pensamento winnicottiano sobre o amadurecimento a partir de dois principais vetores, o instintual e o identitário, observando-se, entretanto, que a raiz instintual nessa obra tem forte conotação biológica. Segundo a autora, Winnicott atribui maior importância às necessidades da vida instintual no desenvolvimento da sexualidade infantil, por acreditar na importância de um si mesmo com uma identidade pessoal fortemente erigida, em oposição a uma situação em que a raiz identitária constituiria papel mais amplo no desenvolvimento da sexualidade, trazendo assim aspectos daqueles que cuidam para a constituição de seu amadurecimento.

Em consonância com pesquisas anteriores, reafirmamos o papel da alteridade na constituição da subjetividade e dos conteúdos do outro para inserção na cultura e para o desenvolvimento psíquico de qualquer sujeito. A naturalização presente, em certa medida, nas formulações winnicottianas não nos permite ultrapassar a concretude moral contida na consonância da função paterna com um pai biologicamente homem e engessa as relações da criança com quem quer que dela efetivamente cuide.

Reeves (2013) considera que o direcionamento teórico de Winnicott era mais uma “questão de escolha de um foco do que expressar uma convicção sobre a importância relativa que o levou a se concentrar principalmente sobre o papel e a função da mãe na educação da criança” (p. 359, tradução nossa).

Com aporte de André (1996) e Bleichmar (2008), sustentamos que não se trata propriamente de uma escolha teórica. Percebemos em Winnicott a influência de uma herança psicanalítica, que tende a atribuir ao pai a parte racional, afirmando que a criança deve aprender a temer, amar e respeitar seu pai. Essas características se devem também ao contexto da sociedade inglesa em que o autor formula suas teses, mas, coexistente em sua escrita, podemos apontar um recalque da teoria, que segundo André (1996):

... não seria muito difícil de encontrar, salvo pequenas diferenças, na pena deste ou daquele de nossos contemporâneos. Mas os tempos mudaram bastante,.... Se persiste o “preconceito”, é porque ele bebe em uma outra fonte que não o “clima da época: na angústia de castração (e seu correlato, o horror feminae), que, por sua vez, ultrapassou amplamente o “fin de siècle”. (nota de rodapé 57, pp. 52-53).

Se Jacques André faz essa crítica à posição freudiana da debilidade do supereu feminino, podemos transpor essa análise aos textos winnicottianos, a partir da hipótese, calcada no inconsciente, do recalcamento da passividade e outros atributos de cuidado na figura paterna e da naturalização do instinto materno. A tendência ao recalque destas funções leva a um engessamento das posições: pai como figura masculina e mãe como figura materna. Frases como “o pai é a encarnação da lei e da ordem que a mãe introduz no mundo da criança” (Duparc, 2004, p. 91) são repetidas à exaustão.

As pesquisas de André (1996) apontam para um recalcamento da passividade em boa parte da teoria psicanalítica. Esse recalcamento tem seu retorno sob a forma de duas grandes construções teóricas em Winnicott: a ausência da capacidade de cuidado no pai e uma naturalização dessa capacidade atrelando-a à maternagem, sob a forma de um instinto materno, na mulher. Justamente pela preponderância dada aos cuidados maternos e o lugar subalterno reservado ao papel do pai nos cuidados de bebês e crianças, o recorte teórico na teoria winnicottiana se justifica. Como vimos ao longo desse artigo, o pai é, em grande medida, colocado para fora da cena mãe-bebê e, quando se apresenta no lugar reservado ideologicamente ao feminino ou ao materno é, por assim dizer, repreendido pelo autor. Por outro lado, a mulher que se torna mãe é convocada a ocupar um estado psíquico tal que muitas vezes tem-se a impressão de que ela só consegue desempenhar seu papel graças a um tipo de esquema instintivo tipicamente feminino, muitas vezes tendo sua origem já na gravidez.

No caso da função paterna em Winnicott, não poderíamos sequer apontá-la como recalcante, já que, na verdade, é uma função recalcada. Fazer trabalhar o lugar do pai na teoria winnicottiana é fundamental. Acreditamos haver elementos nessa mesma teoria para mostrar que ser pai também depende de fatores de desenvolvimento e trabalho psíquico. Defendemos a tese de que a paternidade possa ser uma função potencial, assim como é a maternidade. Talvez seja importante apontar para o caráter transicional da relação que um adulto (homem ou mulher) estabelece com um bebê. Se, por um lado, estamos conscientes do forte peso da ideologia dos gêneros marcando esses papéis, também apostamos em arranjos particulares, potencial e singularmente criativos, que cada adulto estabelecerá com seu bebê.

Os novos arranjos familiares menos heteronormativos, nesse sentido, formam espetacular campo de pesquisa por meio do qual poderemos evitar o que nos parece uma dobra ideológica na teoria winnicottiana sobre o pai. O objetivo dessas pesquisas futuras é deflacionar a importância de termos como materno e paterno, e apontar para conceitos que nos parecem clínica e teoricamente mais relevantes de um ponto de vista psicanalítico: cuidado, holding, preocupação. Para cumprir essa tarefa, é fundamental desarticular termos como pai, dureza, lei, racionalidade e homem; e, por outro, desatrelar termos como mãe, preocupação, afeto, mulher, cuidado. Entendemos que intervenções clínicas baseadas nessa premissa irão permitir maior criatividade e transicionalidade na relação que homens e mulheres podem estabelecer com um bebê.

Referências

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Autor notes

Fábio Roberto Rodrigues Belo: doutor em Estudos Literários, professor adjunto do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.
Marcela Rêda Guimarães: mestranda PPG, bolsista Capes, Departamento de Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.
Kaio Adriano Batista Fidelis: graduado em Psicologia, Departamento de Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.

E-mail: fabiobelo76@gmail.com



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