Artigo Original

Aids, Infância(s) e Políticas Públicas: A Construção de Sujeitos Através do Discurso

Sida, Infancia(s) y Políticas Publicas: La Construcción del Sujeto a Través del Discurso

Lara Brum de Calais
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brazil
Juliana Perucchi
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brazil

Aids, Infância(s) e Políticas Públicas: A Construção de Sujeitos Através do Discurso

Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 2, pp. 165-176, 2015

Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 10 Julho 2014

Aprovação: 19 Maio 2015

Resumo: No panorama nacional da Aids, há uma preocupação com sua incidência em mulheres, apontando a transmissão vertical do HIV como uma prioridade nas políticas de prevenção. Contudo, quando se trata de políticas públicas voltadas especificamente para a infância que vive com HIV/Aids, há uma invisibilidade e um silenciamento, que vão designar diferentes posições de sujeito no âmbito da Aids. Neste sentido, o presente estudo teve como objetivo investigar os discursos que constituem as políticas públicas em saúde no Brasil voltadas à questão da Aids na infância e seus d ispositivos de saber/poder que constroem posições de sujeito. Foi realizada uma pesquisa documental, que contou com a análise de 19 documentos oficiais selecionados de acordo com os núcleos de sentido relacionados ao objetivo da pesquisa (criança/infância; transmissão vertical e gravidez/gestação) e encontrados em uma base de dados do Ministério da Saúde. Observou-se a existência de posições diferenciadas de infância no âmbito da Aids, sendo, uma infância que é, ao mesmo tempo, enunciada como alvo de políti cas públicas, antes mesmo de se conhecer seu status sorológico e, por outro lado, uma infância que vive com HIV/Aids, que deixa de ser alvo de políticas públicas. Tais posições de invisibilidade da criança produzem efeitos no âmbito das práticas sociais em saúde pública voltadas a esse segmento populacional, sendo válido, portanto, estudos que se destinem à análise de tais políticas, considerando que os discursos que enunciam as infâncias e a aids também fabricam as políticas públicas na área da saúde e reverberam práticas e saberes.

Palavras-chave: HIV/Aids, infância, políticas públicas.

Resumen: Existe en la escena nacional del SIDA una preocupación con la incidencia del VIH en las mujeres, señalando la Transmisión Vertical del VIH como una prioridad en las políticas de prevención. Sin embargo, cuando se trata de políticas públicas específicamente para los niños que viven con el VIH/SIDA, hay una invisibilidad y un silenciamiento, que designarán diferentes posiciones de sujeto en el contexto del SIDA. En este sentido, el presente estudio tuvo como objetivo investigar los discursos que constituyen las políticas públicas en salud en Brasil dirigidas al tema del SIDA en la infancia y sus características de saber/poder que construyen posiciones de sujeto. Fue realizada una investigación documental, con el análisis de 19 documentos oficiales seleccionados de acuerdo con las unidades de significado en relación con el objetivo de la encuesta (el niño/la infancia; la transmisión vertical, el embarazo/la gestación) que se encuentran en una base de datos del Ministerio de la Salud de Brasil. El análisis observó las diferentes posiciones de infancia con relación al SIDA, de un lado existe una infancia que es, al mismo tiempo, enunciada como un objetivo de las políticas públicas, incluso antes de conocerse su estado serológico y, de otro existe una infancia que vive con el VIH/SIDA que, sin embargo, deja de ser el objetivo de las políticas públicas. Tales posiciones de invisibilidad del niño producen efectos dentro de las prácticas sociales de salud pública dirigidas a este segmento poblacional, siendo válidos, por lo tanto, los estudios destinados para el análisis de tales políticas, teniendo en cuenta que los discursos que enuncian la infancia y el SIDA también fabrican las políticas públicas en el área de la salud, resultando en prácticas y conocimientos.

Palabras-clave: VIH/SIDA, infancia, políticas públicas.

Abordar a temática da Aids e das políticas públicas que tentam responder às suas demandas certamente implica em uma reflexão acerca da própria história recente da saúde pública brasileira. No Brasil, o cenário da epidemia da Aids se constrói de maneira particular, pois se confunde ao momento de redemocratização e pressão social por mudanças políticas que predominava no país. Importantes transformações estruturais estavam por acontecer, como, por exemplo, a crise política do regime militar, o movimento pela reforma sanitária e a importante posição de poder de alguns de seus representantes, tendo como consequência um redesenho na assistência pública em saúde no país, pautado nos princípios de equidade, universalidade e a saúde como um dever do Estado (Marques, 2002).

A descoberta da denominada Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), configurou-se, portanto, não somente como uma doença de relevante impacto fisiológico, mas também como um fenômeno social complexo, colocando-a no patamar de uma problemática de saúde pública e objeto de intervenções sociais, governamentais e acadêmicas (Brito, Castilho & Szwarcwald, 2000, Brasil 2011). No entanto, vários desafios ainda se fazem presentes e alguns elementos tornam-se imprescindíveis ao processo de construção da trajetória da epidemia no país, visto que, atualmente, segundo o Ministério da Saúde, observa-se uma epidemia estabilizada, porém, em alto nível e com concentração em públicos em situação de vulnerabilidade (Brasil, 2011).

Neste contexto, as enunciações acerca da Aids acontecem em arenas marcadas pela discriminação e pela violação dos direitos humanos, prevalecendo, muitas vezes, as iniquidades de classe social, orientação sexual, relações de gênero, entre outros. Ao longo da história, o quadro da epidemia sofreu transformações significativas, principalmente relacionadas ao aumento dos casos entre pessoas heterossexuais, fazendo com que as atenções se voltassem de maneira incisiva para a transmissão sexual e o crescimento substancial do número de casos da infecção em mulheres, acarretando, como consequência direta, a transmissão para os bebês, nascidos de mães soropositivas (Batista & Gomes, 2000, UNAIDS, 2012). Sobre o progresso do Brasil com relação à resposta à Aids no período de 2010/2011 (Brasil, 2012), a análise de casos de Aids por sexo mostra uma significativa diminuição na razão de sexo (M:F) desde o início da epidemia até os dias atuais. A diferença, que em 1983 era de 40 homens para cada mulher, a partir de 2010 chega a 1,7 casos em homens para cada caso em mulheres, sendo que na faixa etária de 13 a 19 anos, o número de casos de Aids é maior entre o sexo feminino. Atualmente, foram registrados 35,0% de casos de Aids em mulheres (Brasil, 2014). As mudanças ocorridas no quadro histórico da doença apontaram para a necessidade de elaboração de novas formas de enfrentamento à epidemia e o planejamento de estratégias de prevenção mais próximas da realidade social encontrada.

Nesta perspectiva, o presente artigo tem como objetivo principal investigar os discursos que atravessam as políticas públicas em saúde no Brasil voltadas à questão da Aids na infância, analisando os dispositivos de saber/poder que constituem os enunciados e as posições de sujeito da infância com Aids, assim como desenhar a trajetória do processo de feminização da epidemia, com intuito de chegar às crianças vivendo com HIV/Aids e as políticas públicas voltadas para este público.

Feminização da Epidemia

No início da década de 1990, o aumento do número de casos de Aids em mulheres e, consequentemente, o crescimento dos casos de transmissão vertical (passagem do vírus da mãe para o bebê), trouxe maior visibilidade para este público e, juntamente a isso, a necessidade de discussão desta temática como pauta de saúde pública.

Pensando na especificidade do aumento de casos de Aids em mulheres, foi criado o Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da Epidemia de Aids e outras DST (2009), no intuito de combater as diversas vulnerabilidades que abrangem as experiências de ser mulher em nossa sociedade e que contribuem para que estas sejam mais suscetíveis à infecção pelo HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis. Tais considerações apontam que posições sociais diferenciadas são desempenhadas por homens e mulheres na construção da sociedade e que, portanto, é preciso atentar para o fato de que relações desiguais de poder designam diferentes posições ocupadas pelas mulheres, podendo transformar-se em desigualdades de acesso à saúde e de possibilidades de autonomia.

A consideração dos índices epidemiológicos que pautam estratégias governamentais e, por outro lado, a atenção a determinadas vulnerabilidades que constituem a posição da mulher em nossa sociedade traduz a reflexão de Louro (1996) acerca das significações de sexo e gênero e suas implicações práticas. De acordo com a autora, os conceitos se diferenciam na medida em que sexo guarda relação com a identidade biológica de um indivíduo e gênero se refere à construção social do sujeito feminino e masculino. Nesta perspectiva, existe a necessidade de uma transformação prática após o entendimento dos dados epidemiológicos que dizem sobre a infecção em termos de razão de sexo. Neste sentido, torna-se relevante a elaboração de ações que se disponham a entender os processos de formação da feminilidade e da masculinidade (Louro, 1996), executando, assim, políticas públicas mais próximas e eficazes diante da diversidade de posições existentes.

O sujeito feminino, especificamente no panorama da Aids, além de ocupar posições com concepções significativamente tradicionais e enraizadas, como a falta de autonomia com relação às escolhas sexuais, a vivência da sexualidade, na maioria das vezes velada e normatizada e, as construções que legitimam as concepções acerca do casamento, também está sujeito às vulnerabilidades específicas relacionadas a seus corpos, como maior sensibilidade de seus órgãos para a infecção, as vivências de violência sexual, a especificidade da transmissão vertical, que envolve processos particulares da mulher como a gestação, entre outras.

Considerando tais aspectos particularmente relacionados à feminização da epidemia, torna-se relevante atentar para a direção dada às políticas públicas que se voltam para a saúde da mulher e da criança no âmbito da Aids. A prioridade destinada à transmissão vertical, por um lado, remete a um contexto específico da epidemia no qual a mulher/mãe assume posição central no tocante à prevenção e transmissão do HIV. Por outro lado, a criança começa a aparecer neste cenário, prioritariamente relacionada à soropositividade da mãe. A partir desta ótica, diversos fatores começam a ganhar espaço, problematizando questões como a responsabilização/culpabilização referente à Aids, os aspectos subjetivos relacionados à transmissão vertical, a posição ocupada pela criança e a perspectiva das políticas públicas, quando estas são diretamente direcionadas às crianças vivendo com HIV/Aids.

Infâncias e Aids: que Posições de Sujeito são Construídas?

A posição estabelecida para a infância e os discursos sobre o que significa ser criança em nossa sociedade remetem à construção de uma ideia de infância idealizada, que carrega a responsabilidade de conquistar o que ainda não foi alcançado e de ser guardiã de um futuro produtivo e próspero.

Entremeadas nessa prática discursiva, as crianças nascidas de mães soropositivas, em 1985, são incorporadas a este contexto, desmistificando e trazendo à luz uma infância que trai os moldes da infância idealizada. Uma infância que ora é falada a partir da ótica de “salvação da nação” (Rizzini, 2008, p. 108), ora é dita pelos discursos, discriminatórios, acerca da Aids.

Essa produção de sujeitos e subjetividades é um aspecto crucial quando se trata da fabricação de uma infância vivendo com Aids, ao passo que é preciso atentar às armadilhas do discurso, que tendem a nos capturar para a simples reprodução de lugares já estabelecidos. Dito de outro modo, é necessário considerar que a posição de sujeito da infância vivendo com Aids se diferencia das posições designadas à infância no senso comum. Porém, também é imprescindível que se compreenda os jogos que designam estas diferentes posições e que, ao contemplar as especificidades das experiências de crianças que vivem com HIV/Aids, não se faça funcionar discursividades que reproduzem hierarquias de alguma infância diferenciada que precisaria ocupar lugares pré-definidos.

Neste sentido, existem certas singularidades que contemplam aspectos morais, médicos e psicológicos, no cotidiano de crianças vivendo e convivendo com HIV/Aids, que devem ser respeitadas, como a revelação do diagnóstico, as questões referentes à sexualidade, ao luto, à orfandade, aos relacionamentos na escola, à adesão ao tratamento, à necessidade de frequentes consultas e exames médicos, às vulnerabilidades, às instituições frequentadas, ao preconceito e à discriminação, entre outros aspectos. Tais argumentações acerca de questões específicas relacionadas ao viver com Aids, tornam-se relevantes à medida em que, faz-se necessário pensar estratégias que resistam a esse poder de designar lugares de exclusão, mas ao mesmo tempo, elaborar políticas públicas mais próximas da realidade vivenciada.

Particularmente no caso de crianças, essas políticas públicas têm tomado direções diferenciadas quando se trata de infância e de uma infância vivendo com Aids. Com a publicação da lei 8.069 de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a infância torna-se um sujeito empoderado no âmbito das políticas públicas, preconizada como prioridade na agenda governamental. Segundo Heleno (2010), o ECA traz inovações no âmbito das políticas públicas de atenção à infância e adolescência, compreendendo-os como sujeitos de direitos e amparado em uma política de proteção integral a estes. Porém, a autora pondera que muitas das mudanças ocorreram, primordialmente, no plano legal, não alcançando a realidade tão diversa em que vivemos.

Esse avanço no âmbito da legislação não impede, contudo, que em muitas situações cotidianas no contexto brasileiro, direitos essenciais ainda sejam desrespeitados, nem têm conseguido fazer com que a infância deixe de ser falada por outros, sobretudo, adultos autorizados a falar por ela. No entanto, com relação especificamente às políticas públicas de HIV/Aids, pode-se ponderar que há marcada invisibilidade das crianças que vivem com Aids, estando estas, na grande maioria das vezes, inseridas nas estratégias de atenção direcionadas às mães/gestantes.

De acordo com o relatório internacional da JLICA (Iniciativa Conjunta de Estudo sobre a Criança e o HIV/Aids) (2009), intitulado “Verdades que perturbam: enfrentando os fatos sobre a criança, Aids e a pobreza”, houve uma negligência histórica com relação à criança na luta contra a epidemia da Aids, sendo que, “por mais de um quarto de século, crianças afetadas permaneceram na periferia da resposta à aids pelos governos e seus parceiros internacionais” (p. 4). A publicação se destina especialmente aos países da África Sub-sahariana, onde as vulnerabilidades atingem níveis alarmantes, mas deixa claro que as recomendações e resultados do relatório são relevantes para vários contextos, incluindo países de baixa prevalência. Nos debates globais direcionados à Aids, as crianças afetadas ocupam posição marginalizada, havendo uma falha no tocante à atenção dispensada a essa população e às suas necessidades. Muitas vezes, a criança é vista neste âmbito, restritamente relacionada à condição de órfã, porém, “são as necessidades das crianças, e não sua condição de órfãs, o que deveria ser o foco primário quando do desenho e da implementação das políticas” (JLICA, 2009, p. 12).

Há, portanto, segundo Cruz (2005), uma preocupação que se volta prioritariamente para o tratamento da infecção, para a perspectiva de tempo de vida, a influência do vírus no organismo da criança, as políticas de prevenção à transmissão materno-infantil, as taxas de incidência, entre outros. Tais preocupações incitaram discussões e renderam a elaboração de planos que objetivassem as ações voltadas para esta temática, como a do “Plano Operacional para Redução da Transmissão Vertical do HIV e da Sífilis”, do Ministério da Saúde (2007) e o recém-lançado “Plano Global para eliminar novas infecções por HIV/VIH em crianças até 2015 e manter suas mães vivas”, formulado pela Unaids e Onusida (2011).

O conhecimento acerca de tais aspectos foi e continua sendo de vital importância para que as crianças pudessem viver mais e melhor, como vemos atualmente. Porém, também se faz necessário pensar nas necessidades não somente físicas destas crianças, mas nas dúvidas, medos e conceitos que elas vão construindo a respeito de si e de sua condição, por meio do que lhes é passado implícita ou explicitamente (Abadia- Barrero & Cruz, 2005).

Enredadas nesta perspectiva, as políticas públicas direcionadas ao HIV/Aids, particularmente no caso da infância, utilizam dispositivos que fazem ver e fazem falar (Deleuze, 1996) sobre uma concepção de infância que é marcada por estratégias de visibilidade e invisibilidade, variando de acordo com os discursos autorizados em nossa sociedade.

Neste contexto, a sexualidade se destaca como um aspecto relevante e, na maioria das vezes, ocultado, pois, segundo Foucault (1988), em torno do sexo, há uma censura dos discursos que devem/podem ser disseminados. Não dizer, não problematizar, pode, portanto, estar refletindo a representação que o adulto/sociedade tem sobre a sexualidade infantil, ou seja, a percepção de uma infância pura, para a qual não são necessárias intervenções que tematizem a sexualidade.

No entanto, quando esta visão se une aos enunciados acerca da Aids, território no qual os dicursos sobre sexo e sexualidade são proeminentes, a lógica nos levaria a pensar que, neste contexto, não teríamos como contornar o tema da sexuliadade. Porém, a lógica não acompanha a história e a sexualidade de crianças vivendo com Aids também continua sendo velada, incluindo as políticas públicas direcionadas a elas.

Não se trata, portanto, de ter que colocar a sexualidade em discussão por se tratarem de crianças inseridas no contexto da epidemia da Aids - apesar de certos temas específicos serem mais enfaticamente abordados como, as formas de transmissão, a revelação do diagnóstico, as estratégias de prevenção, a necessidade de uma frequência no tratamento - mas de se desconstruir essa ideia de uma infância assexuada, para que de fato as ações destinadas a este público atendam a demandas invisíveis ao olhar da sociedade.

Tais apontamentos, de acordo com Cruz (2005), nos levam a pensar que em nossa sociedade existe um lugar culturalmente estabelecido para a sexualidade infantil que, muitas vezes, inviabiliza trabalhos com perspectivas de relações de gênero, promoção da saúde, estratégias de prevenção, entre outros. Nem mesmo a inserção no debate amplamente divulgado acerca da Aids provocou relevantes alterações na posição produzida para a infância pelos discursos que dela se ocupam.

Pode-se perceber, de acordo com o caminho investigativo, que duas posições atravessam a designação de infância no contexto da Aids. Uma, que a coloca na posição de criança assexuada e reproduz o imaginário da pureza e ideal e, outra, que a designa como criança filha de mãe soropositiva, a inscreve no âmbito da transmissão vertical do HIV e estebelece estreita relação com as políticas e ações voltadas para a mulher/mãe.

Método

Tomando como norte o objetivo da presente pesquisa que se desdobra neste artigo, ou seja, a análise das políticas públicas voltadas à infância que vive com Aids no Brasil e os discursos que as constituem, o delineamento da pesquisa documental se caracteriza como um valioso recurso. Por meio deste delineamento metodológico, torna-se possível averiguar que dispositivos sustentam determinadas formações discursivas acerca da infância e da Aids, problematizando a produção de certas verdades e posicionamentos. Neste sentido, também se faz presente a reflexão sobre a posição da psicologia e o poder delegado a esta, de legitimação de determinadas realidades sociais.

Tendo o discurso como foco de análise do método proposto, a prática da pesquisa documental pressupõe a organização e tratamento dos dados recolhidos em diversos tipos de documentos (Perucchi, 2008), neste caso, documentos de diferentes modalidades, que compõem a legislação sobre HIV e Aids no Brasil. De acordo com o contexto da pesquisa, foram coletados, principalmente, fontes documentais referentes às políticas públicas de saúde, suas diretrizes e regulamentações no âmbito da saúde pública brasileira e destinadas à temática da Aids, mais especificamente, da Aids na infância.

Compartilhando do conceito abordado por Araújo e Sampaio (2006) de que as políticas públicas são “... respostas a determinados problemas sociais, formadas a partir das demandas e tensões geradas na sociedade” (p. 01), entendemos como tal conceituação ganha relevante significação quando adentramos no cenário da Aids, tendo em vista o grande impacto causado pela epidemia na saúde pública mundial.

Guareschi, Lara e Adegas (2010) também enfatizam a posição do Estado no campo das políticas públicas destacando que “o Estado, em conjunto com outras instituições, é produtor de políticas públicas que, depois de desenhadas e formuladas, tomam forma de planos, programas, projetos, bases de dados ou sistemas de informação e pesquisas” (p. 333). Assim, os autores apontam as políticas públicas como ações que se direcionam à vida dos indivíduos, ou seja, um investimento do Estado na vida da população.

Esta perspectiva sobre as políticas públicas vai ao encontro da discussão foucaultiana sobre a inscrição dos conceitos de biopolítica e biopoder na medida em que o primeiro destaca os mecanismos de regulação da vida que incidem sobre as populações (tais como controle de natalidade, morbidade, mortalidade, longevidade e controle populacional) e o segundo, marca a incidência do poder sobre a individualidade dos corpos, a gestão sobre a vida e, consequentemente, sobre a sexualidade (Foucault, 1998). Desta forma, os textos das políticas públicas na perspectiva deste estudo se caracterizam como documentos públicos, que trazem em sua existência, relevantes dados de construção de uma realidade e, de acordo com Bernardes e Menegon (2007), práticas discursivas importantes para a formulação e manutenção das estratégias de governo.

Neste sentido, os documentos compilados consistiram em políticas públicas que fizessem referência aos descritores da pesquisa (sendo estes Aids, infância/criança e políticas públicas), considerando que estes têm relevante influência nos ordenamentos sociais e produção de subjetividades. A partir da definição das fontes a serem utilizadas, fez-se necessária uma busca minuciosa por documentos que atendessem aos objetivos da pesquisa, construindo um corpus documental de produção de dados composto por uma compilação de documentos disponibilizados em uma base de dados do Ministério da Saúde (http://www.aids.gov.br/sites/default/files/legislacao_cd/index.htm), voltada especificamente para a temática de DST/Aids. Foram encontrados 430 documentos referentes à legislação federal, estadual e municipal, assim como regulamentações e normas que constituem programas e políticas públicas em HIV/Aids. Na etapa de construção do arquivo foram selecionados 42 documentos, tendo como critério de inclusão a exigência de se tratarem de documentos de políticas públicas e fazerem referência às categorias de análise da pesquisa.

Estruturado o arquivo, um segundo momento foi iniciado na intenção de selecionar os documentos a serem efetivamente analisados. Para tanto, foi necessária uma leitura mais aprofundada dos 42 documentos, destacando, por meio de uma análise lexical da frequência de aparecimento dos descritores Aids, infância/criança, políticas públicas, os núcleos de sentido que mais se aproximassem do objetivo da pesquisa, ou seja, as unidades dos discursos que agregam conjuntos de enunciados da infância no contexto das políticas públicas de HIV/Aids.

Assim, foram descritos três núcleos de sentido que compõem a teia discursiva acerca da infância no contexto da Aids nos documentos pesquisados, sendo estes: criança/infância, transmissão vertical e gravidez/gestação. Foram elencados para análise, portanto, 19 documentos de políticas públicas que formaram o corpus documental e o campo da presente pesquisa (os documentos selecionados fazem parte de um arcabouço geral de documentos oficiais, sendo eles de âmbito nacional, estadual e municipal, considerando a escassez de documentos que abordam a infância que vive com HIV). Feito isto, uma análise descritiva do material selecionado foi iniciada, priorizando o aparecimento de enunciados relacionados à posição da criança no contexto da Aids.

Utilizando como recurso metodológico fundamental a análise do discurso, amparada na teoria de Michel Foucault, foi realizado um trabalho de descrição dos enunciados que compõem as formações discursivas e suas condições de existência, de citação e de repetição no âmbito das relações de saber/poder que atravessam as políticas públicas em saúde no Brasil. De acordo com o autor, a análise do discurso como recurso metodológico busca compreender a singularidade do que foi dito e suas correlações com outros enunciados.

A partir deste formato metodológico, buscou-se conhecer as formas de interpretação que relacionam sujeitos e sentidos, considerando que o discurso não está separado do sujeito e que o próprio sujeito está inserido em uma ideologia. Desta forma, o tratamento de documentos como sendo produtos da sociedade, torna-se um método relevante, tendo em vista os jogos de saber/poder que perpassam os discursos de políticas públicas e que, ao mesmo tempo, são produtores de determinadas posições de sujeito.

Resultados e Discussão

Partindo dos núcleos de sentido levantados de acordo com o objetivo da pesquisa - criança/infância; transmissão vertical e gravidez/gestação - foram analisadas categorias que emergiram a partir de tais núcleos. Dentre estas, três se destacaram: a discussão sobre a posição de crianças filhas de mães soropositivas e crianças que vivem com HIV/Aids; a posição da mãe/mulher frente à transmissão vertical e as normatizações advindas das políticas que se destinam a estes públicos. No entanto, para o presente artigo, serão apresentadas as análises realizadas prioritariamente sobre as categorias relacionadas à posição da infância e da mulher nas políticas públicas de enfrentamento ao HIV/Aids.

No percurso de análise, um ponto que chamou a atenção foi o fato de existir uma determinada infância que recebe cuidados profiláticos e que está inserida no discurso sobre prevenção e tratamento da Aids, enquanto coexiste uma outra infância, que é silenciada a partir do momento em que é reconhecida como soropositiva. Dois enunciados passam então a orientar um jogo de visibilidade/invisibilidade neste contexto. São eles: as crianças filhas de mães soropositivas e as crianças que vivem com HIV/Aids.

Tais posições de sujeitos começam a aparecer no corpo documental na medida em que determinadas ações são pensadas e destinadas às crianças, filhas de mães soropositivas, que acabam de nascer e que devem receber os cuidados para a não transmissão do vírus da mãe para o bebê, como é o caso da portaria nº 2104 de 2002, que aponta ações específicas para os recém-natos e demarca, portanto, que existe um conjunto de ações que se concentram do princípio da vida da criança, até os seis meses de idade. Este apontamento acaba por designar uma infância inserida na temática da Aids - mais especificamente de prevenção e tratamento - que é alvo de intervenções, ou seja, a infância do recém-nascido que precisa receber intervenções técnicas/médicas para não ser infectado pelo vírus HIV.

Ainda nesta portaria, vemos que após a confirmação do diagnóstico positivo para o HIV na mulher no momento do pós-parto, a orientação é de que seja realizada a inibição definitiva da lactação (manutenção do enfaixamento e/ou inibidor de lactação), o encaminhamento da mulher para acompanhamento clínico/laboratorial e terapêutico em serviço especializado para HIV (SAE) e o encaminhamento do recém-nascido para acompanhamento clínico e laboratorial em serviço especializado para crianças expostas ao HIV. Ou seja, a criança, exposta ao HIV, segue para acompanhamento clínico e realização dos procedimentos médicos adequados, mas até este momento, sua soropositividade para o HIV ainda é desconhecida.

Ponto semelhante também pode ser observado na resolução do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), nº 95 de 2000, na qual se destaca a eficácia comprovada do tratamento antirretroviral durante a gravidez, parto e primeiras semanas de vida, reduzindo o risco de um recém- nascido contrair o HIV de uma gestante soropositiva. Novamente, a marca “primeiras semanas de vida” (p. 20) nos remete à problematização de que existem infâncias alvo de políticas públicas, ou seja, há uma concentração de ações para crianças recém-nascidas, que fazem parte do contexto de ações de prevenção da transmissão vertical (TV) do vírus. Ao final, o documento ressalta a necessidade de que os serviços de saúde proporcionem condições de trabalho (disponibilizando insumos) “bem como assistência ao pré-natal, parto e puerpério e atendimento ao recém-nascido” (p. 20). Já no “Manual normativo para profissionais de saúde de maternidades - referência para mulheres HIV positivas e outras que não podem amamentar”, de 2005, são sugeridas como medidas de proteção ao recém-nascido o uso do AZT em solução oral, alimentação e inibição da lactação.

A demarcação de ações que se destinem à prevenção da transmissão do vírus HIV da mulher para o seu filho - que se inicia no período gestacional, mas que com os fatores de vulnerabilidade que afetam o acesso da mulher aos serviços especializados, acabam sendo executadas no momento do pós-parto - é ressaltada em documentos públicos e suas atribuições designadas ao poder público. São em tais considerações, portanto, que a política brasileira para redução da transmissão vertical do HIV encontra sustentação e que estão compiladas no documento “Recomendações para Profilaxia da TV do HIV e Terapia Antirretroviral em Gestantes” (2003). Tal documento aponta as principais diretrizes a serem seguidas, como o oferecimento do teste para diagnóstico em todos os momentos de contato com a gestante (teste voluntário e confidencial), a terapia antirretroviral e a profilaxia com AZT no trabalho de parto, parto e para o recém-nascido, a informação para a mulher quanto aos riscos da transmissão pelo aleitamento e início da inibição da lactação e alimentação da criança com fórmula infantil. Para mães que tiveram o diagnóstico no momento do parto, o documento sugere uma atenção especial ao vínculo mãe/bebê, o suporte familiar e o apoio psicológico e social, o que é relevante tratando-se de um documento de recomendações técnicas.

No centro das discussões e intervenções estão as crianças filhas de mães soropositivas. Crianças que se destacam como alvo de políticas não por serem crianças que podem ou não ter Aids, mas por terem mães portadoras do vírus. E como a trajetória da Aids tem como tema primordial a prevenção, a infância que entra na teia discursiva é a infância que ainda pode ser salva, a infância que, se todos os artifícios de controle do corpo da mãe forem aplicados, poderá fazer parte do imaginário de infância ideal, pura e guardiã do futuro.

O lugar de uma determinada infância que é alvo de cuidados no cenário da Aids, fica consolidado, portanto, como pode ser observado na medida provisória nº 2.206 de 2001, que diz: “Crianças filhas de mães soropositivas para o HIV/aids poderão receber o benefício desde o seu nascimento” (p. 1). Dentro desta lógica, podemos entender que a criança será portadora do benefício desde o nascimento. No entanto, não necessariamente ela será HIV+, pois o que o documento nos diz é que crianças filhas de mães soropositivas receberão o benefício, ou seja, a criança não precisa ter sido infectada pela via da transmissão vertical para receber o benefício, basta ela ser filha de mãe soropositiva.

Duas podem ser as questões sobre este ponto: basta a mãe ser soropositiva para a criança receber o benefício? Ou, crianças filhas de mães soropositivas são consideradas crianças que vivem com Aids? Resta-nos então questionar e, em um esforço de resistência à hierarquização de lugares, dizer que o fato de uma criança ser filha de uma mulher que tem o vírus HIV não a torna, consequentemente, uma criança soropositiva. Mas do outro lado da moeda, o fato de ela ser filha de uma mulher soropositiva a insere na arena de políticas públicas em HIV/Aids, enquanto que o fato de ela própria ser portadora do vírus a invisibiliza neste contexto.

Parece existir, portanto, certa confusão ao se abordar as diferentes posições da criança no contexto da Aids, sendo esta atravessada de diferentes formas pelas designações criança filha de mãe soropositiva para o HIV e criança que vive com HIV/Aids. A criança filha de mãe soropositiva torna-se alvo das políticas públicas pela ênfase dada à transmissão vertical, no entanto, ela pode ou não ter sido infectada pelo vírus, o que não se sabe até a confirmação do diagnóstico. Já a criança que vive com HIV/Aids, ou seja, aquela criança que recebe atenção antes mesmo de se saber soropositiva, deixa de ser alvo das políticas após seu diagnóstico, sendo raramente enunciada nos documentos públicos que tratam sobre a Aids.

De acordo com Louro (2000), as identidades sociais, que se ancoram nos corpos, se definem no âmbito da cultura e da história e são, sobretudo, políticas, como a presente pesquisa vem elucidar em sua análise de documentos. Neste caso, existem posições identitárias que se tornam dispositivo de visibilidade no contexto de políticas públicas, como é o caso das crianças filhas de mães soropositivas e outras que permanecem silenciadas. Nesta construção social de identidades, algumas posições identitárias ganham visibilidade, outras são silenciadas por meio dos jogos de poder que constituem os discursos.

Esta lógica nos leva a questionar que jogos de saber/poder estão envolvidos nesta teia de visibilidade/invisibilidade com relação à criança, que tornam visíveis as crianças filhas de mães soropositivas e invisibilizam a infância que vive com a Aids? É valido pensar, portanto, que dispositivos fazem ver e fazem falar nesta lógica? Se não é a Aids que ocupa esta posição, será a mãe/mulher, o dispositivo que subsidia políticas públicas voltadas para a infância no contexto da Aids?

No entanto, ainda hoje existem crianças que vivem com o HIV/Aids que têm necessidades singulares e que estão imersas em um contexto onde os discursos sobre sexo, prevenção, moralidade e preconceito são constantes e atravessam sua constituição enquanto sujeitos. Neste sentido, o próprio governo admite limitações no alcance de ações que se destinem às crianças, como constatado em um documento da Ungass (Brasil, 2010), no qual o governo responde ao questionamento sobre se existe no país uma política ou estratégia dirigida às crianças vulneráveis, com a seguinte descrição: “Casas de apoio para crianças afetadas pelo HIV/Aids; disponibilidade de fórmulas lácteas para crianças expostas à transmissão vertical do HIV; projetos de intervenção específicos para crianças vivendo nas ruas e adolescentes encarcerados” (p. 60).

Com relação à literatura, o tema se torna ainda mais escasso quando relacionado ao campo dos direitos humanos, havendo uma marginalização das crianças nos debates globais com relação à resposta à Aids e uma prevalência de documentos técnicos e com um discurso majoritariamente biomédico (Doring, França-Junior & Stella, 2006; JLICA, 2009).

No documento analisado, “Manual normativo para profissionais de saúde de maternidades - referência para mulheres HIV positivas e outras que não podem amamentar”, de 2005, ao tratar da inibição da lactação, o texto traz uma perspectiva interessante com relação à amamentação como um elemento do cuidar, mas logo em seguida, assinala que “... o objetivo maior é o de prevenir a instalação de doenças incuráveis, promotoras de uma existência limitada, sofrida e/ou a morte prematura da criança” (p. 2). No interior deste pensamento é possível perceber que, novamente, a prevenção se destaca como pano de fundo das ações em DST/HIV/Aids, porém, o que chama a atenção é a posição de vítima da criança que vive com HIV, que, de acordo com o documento, está fadada ao sofrimento e a uma vida repleta de limitações. Contudo, resistindo a esses jogos de poder que atravessam o cenário da Aids, Cruz (2005) ressalta que hoje estas crianças não mais morrem prematuramente (quando recebem o devido tratamento) e nem tampouco vivem em um sofrimento sem cura por conta de sua condição sorológica, mesmo com limitações que podem estar agregadas ao viver com Aids. Estas crianças são submetidas a frequentes consultas médicas e devem aderir à terapia antirretroviral e aprender a conviver e enfrentar a discriminação advinda da sociedade, mas também vão à escola, brincam, namoram e, quando crescem, muitas delas tornam-se ativistas na luta contra a Aids, querem exercer cargos públicos e fazer valer seus direitos enquanto cidadãs.

Porém, o lugar de criança/vítima no panorama da Aids vem legitimar uma posição que não justifica a elaboração de políticas públicas de prevenção para este público. Para quê, afinal, elaborar e implementar políticas públicas para crianças vitimadas e que ocupam uma posição tão passiva no cenário da Aids? Para quê direcionar uma política para indivíduos que ainda não praticam sexo? É importante, neste sentido, analisar como fica a relação quando são articulados dois universos tão distintos, ou seja, o universo da Aids, relacionada a um discurso moral sobre o sexo (ou sobre o mal sexo) e a um discurso de culpabilização amparado em conceitos heterossexistas e em hierarquias de gênero (Pelúcio & Miskolci, 2009), e o universo da infância, que é construída em um discurso tão ideal e imbuído de pureza. Tal articulação, portanto, não coaduna com as estratégias de prevenção direcionadas às pessoas que vivem com HIV/Aids.

A prevenção que, segundo Pelúcio & Miskolci (2009), caracteriza-se por um conjunto de normas, parâmetros e diretrizes que pauta condutas a serem seguidas, é tomada como estratégia fundamental e primordial no âmbito da Aids internacionalmente. Porém, neste jogo discursivo, a criança que vive com HIV fica de fora, pois assume posição indiscutivelmente maior de vítima, do que de agente de transformação e/ou potencial alvo para a prevenção. É válido ressaltar, novamente, que o mesmo não acontece com a transmissão vertical do HIV, ou seja, a mulher/mãe soropositiva e seu filho/a estão inseridos na discussão e são alvo de ações preventivas.

Ora, se as crianças que têm o vírus HIV hoje se tornam adolescentes e chegam mesmo a terem seus filhos, porque não inseri-las nas políticas públicas que falam de prevenção? Porque somente quando se tornam adolescentes, muitas vezes recém-saídos de casas de apoio, estes passam a integrar os discursos sobre transmissão, Aids e sexualidade?

Uma hipótese levantada por esta pesquisa e confirmada por meio da análise dos documentos selecionados é a de que a percepção de que as crianças não têm uma vida sexual e, por este fato, são vistas como um ser assexuado, as invisibiliza no campo das políticas públicas em HIV/Aids que, consequentemente, estão inseridas em um discurso moral sobre o sexo.

Neste sentido, uma falha comumente cometida é a abordagem de sexo e sexualidade como se representassem a mesma coisa ou um mesmo conceito, ou seja, a criança de até 13 anos de idade, que no âmbito da Aids está marcada pela transmissão vertical e não pela transmissão sexual, ocupa a posição de sujeito assexuado e, portanto, um sujeito que não coaduna com os enunciados que dizem sobre prevenção ao HIV.

Abordada desta forma, a sexualidade de crianças fica submersa a interdições e não ditos, principalmente se falar sobre esta sexualidade significa, também, falar de cuidados, vírus, transmissão sexual, formas de proteção, entre outros. Para Foucault (1985), constatar o fato de a criança não ter sexo configura-se em uma “boa razão para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele, razão para fechar os olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e aplicado” (p. 10).

No entanto, este silenciamento não extingue a curiosidade e desejo de descoberta existente na infância. No mínimo funciona como mais uma técnica de governabilidade e disciplina sobre os corpos, na intenção de não abalar uma pseudo segurança adulta de que não falando, também não seja preciso problematizar a sexualidade infantil. Gayle Rubin (2003) assinala que como o gênero, a sexualidade é política e nesta perspectiva, o percurso de análise nos leva a entender que, a sexualidade, sendo política, também atua como dispositivo de visibilidade e invisibilidade, principalmente em se tratando da epidemia da Aids, que tem o sexo com algoz e, ao mesmo tempo, chave para prevenção.

Contudo, se nesse jogo discursivo que fala de infância, crianças estão posicionadas numa situação de invisibilidade política, imaginemos quando começamos a falar de crianças e Aids, quando as enunciações que se cruzam são de uma realidade quimérica de infância, como aponta Bujes (2000), e de crianças que no início da epidemia morreriam prematuramente. A invisibilidade ganha novas e maiores proporções, pois está atrelada à sexualidade, prevenção, culpabilização/vitimização, como fora abordado anteriormente. Neste sentido, Estado, família e organizações da sociedade civil também ocupam posições relevantes neste cenário.

Assim, pretende-se deixar claro que a análise das políticas governamentais em HIV/Aids na infância permite entender em que medida as matrizes discursivas de diferentes campos de saber/poder contribuem para definir a intervenção estatal, o conteúdo dessas políticas no setor de saúde, tendo em vista que elas são, sobretudo, projetos políticos forjados por conjunturas sociais determinadas.

Considerações Finais

Considerando as designações acima abordadas, que trazem em si os jogos de saber/poder que constróem posições e constituem os discursos de políticas públicas no contexto da Aids, podemos apontar que, culturalmente, existe um determinado modo de se perceber a infância e especialmente a infância que vive com Aids. Pode-se argumentar que os discursos que atravessam as políticas públicas de atenção a essas infâncias, também são produtores de certas realidades e modos de subjetivação de crianças.

Nesta perspectiva, a análise de documentos de políticas públicas torna-se tarefa valiosa quando atentamos para uma possibilidade de se (re)pensar estratégias e lugares a partir do entendimento dos dispositivos e enunciados que compõem tais formações. De acordo com Foucault (1988), indo de encontro ao que pensamos esconder por meio da linguagem, a todo o momento estamos submetidos ao discurso da sexualidade e este fato não é diferente com relação às estratégias governamentais, especialmente no que concerne ao campo das DST/HIV/Aids.

É preciso atentar para o fato de que, considerando as argumentações sobre a (in)visibilidade da infância vivendo com HIV/Aids em meio às políticas públicas, a hipótese de que a fabricação de uma criança assexuada e de uma criança filha de mãe soropositiva, inviabiliza ações que atendam às necessidades mais específicas deste público, torna-se pertinente. Este fato se une também à perspectiva anteriormente abordada, de que as ações devem ser voltadas prioritariamente, portanto, às mães, ou seja, a criança aparece atrelada a dois campos discursivos que obedecem a certos jogos de visibilidade/invisibilidade.

Entendendo que as políticas públicas podem assumir a posição de produtoras de realidade por meio da reprodução de discursos, que muitas vezes não são questionados ou problematizados, a ampla variedade de temas no âmbito da Aids, as construções acerca das infâncias e a abordagem das políticas públicas como objeto de análise, tornam-se campos a serem explorados e questionados. Assim, a partir do momento em que a sexualidade for abordada como um elemento constituinte e social, a criança pode ser percebida como um indivíduo que deve ser alvo de atenção no âmbito da Aids, pois, atualmente, estas crianças crescem, tornam-se adolescentes, vivem sua sexualidade e têm grande potencial de transformação social e resistência a discursos discriminatórios, (re)produzindo uma realidade atravessada por discursos preventivos mais democráticos.

Apoio e financiamento:

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Autor notes

Lara Brum de Calais: doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil.
Juliana Perucchi: professora doutora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil.

E-mail: laracalais@hotmail.com

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