Artigo Original
Recepção: 28 Agosto 2014
Aprovação: 14 Abril 2015
DOI: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i2.24808
Resumo: Retomamos a análise filosófica e metodológica de autores da primeira metade do século XX sobre o conhecimento psicológico e estabelecemos um diálogo com aqueles do primeiro decênio do século XXI que, historicamente, epistemológica e filosoficamente, discutem o caminho tomado pela psicologia para se estabelecer como ciência, em consonância com as discussões sobre a história da criação da noção de objetividade científica e sobre os elementos subjetivos dessa construção. Evidenciamos que o foco particular está na definição do método de pesquisa, na consideração da subjetividade e na discussão sobre a consciência. Apontamos um consenso ao longo do tempo: a demanda de uma análise crítica e reflexiva da produção do conhecimento psicológico e a afinidade dessa produção com a prática de pesquisa e a prática profissional. Dial ogando com diferentes autores, concluímos que a análise histórica, epistemológica e filosófica sobre o conhecimento psicológico tem permitido a elaboração de um modo inovador de se conceber a prática da pesquisa e a prática profissional que, ao contrário de negar os viéses culturais e políticos, passou à busca metodológica que permita considerá-los.
Palavras-chave: Conhecimento, subjetividade, objetividade.
Resumen: Retomamos el análisis filosófico y metodológico de autores de la primera mitad del siglo XX sobre el conocimiento psicológico y entablamos un diálogo con aquellos del primer decenio del siglo XXI que, histórica, epistemológica y filosóficamente discuten el camino seguido por la psicología para establecerse como ciencia, en consonancia con las discusiones sobre la historia de la creación de la noción de objetividad científica y sobre los elementos subjetivos de esa construcción. Destacamos que el enfoque particular está en la definición del método de la investigación, en la consideración de la subjetividad y en la discusión sobre la conciencia. Señalamos un consenso a lo largo del tiempo: la demanda de un análisis crítico y reflexivo de la producción del conocimiento psicológico y la afinidad de tal producción con la práctica de investigación y la práctica profesional. Dialogando con diferentes autores, concluimos que el análisis histórico, epistemológico y filosófico sobre el conocimiento psicológico ha permitido la elaboración de un modo innovador de concebirse la práctica de la investigación y la práctica profesional que, en vez de negar los aspectos culturales y políticos, pasó a una búsqueda metodológica que posibilita considerarlos.
Palabras clave: Conocimiento, subjetividad, objetividad.
As publicações sobre a epistemologia, filosofia e história da psicologia destes dois primeiros decênios do século XXI apresentam um consenso particular: a análise crítica da produção de conhecimento em psicologia e sua relação com a prática de pesquisa e a prática profissional. Podemos dizer que essa análise vem sendo elaborada em consonância com as discussões sobre o conhecimento científico em geral, tal como aquelas desenvolvidas por Daston e Galiston (2007), entre outros, e que têm focado a história da criação da noção de objetividade e, paradoxalmente, os elementos subjetivos dessa construção como, por exemplo, a evidência da convergência entre a história do gênero e a história da ciência e da medicina.
Na psicologia, o aspecto central dessa discussão tem sido a análise do percurso tomado por essa área para ser reconhecida como ciência, com foco particular nos seguintes temas: a definição do método experimental, a questão da subjetividade e o estudo da consciência (Richards, 2002; Morawski, 2005; Smedslund, 2009; Gergen, 2010; Robinson, 2010, entre outros), as dimensões históricas do discurso psicológico (Haaken, 1988; Danziger, 2013; Graumann & Gergen, 2006) e, relacionado às dimensões históricas, os denominados territórios da psicologia (Asch & Sturn, 2007).
Os referidos temas têm pautado a discussão de natureza histórica, epistemológica e filosófica sobre o desenvolvimento do conhecimento psicológico com o intuito de fundamentar e defender uma postura de reflexão e avaliação crítica sobre tal conhecimento, por meio da discussão do significado da concepção de objetividade e do contraponto trazido pela consideração da relação entre consciência e subjetividade. Para isso, os autores têm retomado a discussão de autores clássicos, situados no final do século XIX e início do século XX, sobre a constituição da psicologia enquanto ciência e sobre a relação entre teoria e método, evidenciando tratar-se de uma questão que permanece em pauta, explicitamente, desde então, como é o caso das discussões de William James (1890), de Horace Mann Bond (1927) e de Saul Rosenzweig (1933), assim como também é o caso do fundamento das teses desenvolvidas na primeira metade do século XX por Lev Seyonovitch Vygotsky, Jean Piaget e Henri Wallon.
No presente trabalho, nós recuperamos os principais argumentos desses mesmos autores, circunscrevendo a nossa referência à consciência e à subjetividade por meio deles, de modo a explicitar a convergência epistemológica entre suas reflexões e aquelas das publicações atuais. Longe de pretender exaurir o assunto ou os conceitos complexos envolvidos nessa convergência, nosso objetivo é evidenciar que existe um diálogo entre os séculos XX e XXI, mantido por meio do foco na relação entre consciência e subjetividade em contraponto à concepção da objetividade e neutralidade científica e dos argumentos a favor da defesa de uma psicologia que tenha como meta a busca contínua da reflexão e a crítica sobre sua própria produção e prática.
Vygotsky, Piaget e Wallon: um Uníssono em Defesa da Psicologia
Em 1979, a então Soviet Psychology publicou a versão escrita de uma conferência proferida por Vygotsky, em 1924, no Second All-Union Congress of Psychoneurologist, na qual ele analisa a questão da consciência na psicologia: Consciousness as a Problem in the Psychology of Behavior. Trata-se de uma contribuição brilhante de Vygotsky para a psicologia em uma época em que imperava tanto na Europa, como nos Estados Unidos e na então União Soviética, a preocupação em fundamentar uma abordagem baseada em dados que fossem intersubjetivamente replicáveis, definindo, assim, um modelo para o estudo dos processos psicológicos que banisse o termo consciência da psicologia.
A conferência de Vygotsky (1979) defendia o contrário: a consciência humana não podia ser ignorada, uma vez que, ao ignorá-la, toda e qualquer distinção entre o comportamento humano e o comportamento animal seria obliterado. Mais que isso, dizia o autor, ao ignorar a consciência humana, “a sociologia é ‘biologizada’ e a psicologia é ‘fisiologizada’” (Vygotsky, 1979, p. 7, itálico do autor).
Dois argumentos são fundamentais para o autor sustentar sua tese. O primeiro diz respeito às implicações de se banir a consciência da psicologia. Se a opção fosse banir a consciência da psicologia, restariam, segundo ele, apenas duas escolhas possíveis: a primeira seria argumentar a favor da tese sobre a impossibilidade de se estudar as formas complexas de atividade mental humana. A segunda seria optar por considerar a mente como um fenômeno secundário, de modo que tudo poderia ser explicado sem que ela, de fato, fosse considerada. Ora, como diz esse autor, tal opção fatalmente levaria a um reducionismo biológico absoluto. O segundo argumento relaciona-se ao primeiro: se a opção fosse banir a consciência da psicologia e abraçar uma abordagem biológica reducionista, se impediria o acesso ao estudo da estrutura e análise do comportamento humano e se criaria, necessariamente, a falsa noção de que o comportamento humano é uma soma de reflexos.
Argumentando contra essas duas opções, Vygotsky (1979) defende a tese segundo a qual a consciência é uma propriedade essencial do homem, mediada pela sua experiência com o mundo, de modo que as funções psíquicas superiores não podem ser explicadas por meio do reducionismo aos processos elementares, uma vez que há diferentes níveis de funcionamento psicológico, cada um com características específicas e irredutíveis. Seguindo tal raciocínio, o autor propõe que a unidade de análise da psicologia é a atividade que integra as características sociais interativas e individuais cognitivas das condutas. Segundo sua tese, é pela interiorização progressiva dos instrumentos mediadores, entre os quais os signos verbais, cujo papel é primordial, que o pensamento consciente se constrói no ser humano e regula as outras funções psíquicas. Desse modo, a consciência torna-se um contato social do ser humano consigo mesmo. Portanto, podemos afirmar que o principal marco teórico-conceitual da abordagem de Vygotsky é a mediação semiótica.
Muitos autores analisaram a obra de Vygotsky em seus vários aspectos, sobretudo nos anos 1980, e podemos apontar um consenso entre eles: a obra de Vygotsky espelha o psicólogo preocupado com as questões da prática psicológica e o pesquisador preocupado com as questões do método. A esse respeito, salientamos, por exemplo, Brown, Metz e Campione (1996) e os autores dos diferentes capítulos que compõem o clássico livro organizado por Wertsch (1985).
É em resposta a essa preocupação que Vygotsky propõe, em uma conferência proferida em 1930 e publicada no Brasil em 1996, o método instrumental, visando o estudo das funções psicológicas superiores, ou comportamento superior, em referência à vinculação entre instrumento e signo na atividade psicológica. Ele o conceitua como “um método histórico-genético que proporciona à investigação do comportamento um ponto de vista histórico” (Vygotsky, 1996, p. 98) e defendendo sua utilização, afirma:
a) no âmbito da psicologia histórico-social e étnica, que estuda o desenvolvimento histórico do comportamento e seus distintos graus e formas; b) no âmbito da investigação das funções psíquicas superiores, isto é, as formas superiores da memória, a atenção, o pensamento verbal ou matemático e assim por diante; e c) a psicologia infantil e pedagógica. ... O método instrumental procura oferecer uma interpretação acerca de como a criança realiza em seu processo educacional o que a humanidade realizou no transcurso da longa história do trabalho (Vygotsky, 1996, p. 98-99).
Pouco tempo antes, em 1925, em um texto intitulado “Psicologia e crítica do conhecimento”, Piaget defendera uma posição convergente, evidenciando uma tese que, como vários autores defendem, tem muito mais em comum com a de Vygotsky do que se costuma entender (ver, por exemplo, Brown, Metz & Campione, 1996):
O verdadeiro método filosófico é hoje o método histórico-crítico. Considerando assim, quais podem ser as relações entre a psicologia e a teoria do conhecimento? Devemos ou não solicitar à psicologia que precise o significado crítico das noções e dos princípios racionais? ... Entre a psicologia genética e a análise histórica crítica há cada vez mais parentesco. (Piaget, 1925, p. 197- 198).
Piaget retoma essa tese, em 1929, em uma conferência proferida no âmbito dos estudos sobre história do pensamento científico, da Faculdade de Ciências da Universidade de Genebra, e publicada no mesmo ano pelo Archives de Sciences Physiques et Naturelles. Ele afirma, logo no início do texto, que uma das exigências mais claras do espírito científico contemporâneo é, de fato, a exigência de reflexão, defendendo que a história do pensamento científico é necessária à ciência para que se tenha conhecimento de como ela se elabora.
Para Piaget (1967), a exigência de reflexão na ciência e a consideração da sua história implicariam na adoção de uma visão interdisciplinar para o conhecimento científico, na qual a psicologia seria entendida como o ponto de junção entre as diferentes áreas de conhecimento, cabendo a ela, psicologia, explicar como tais áreas se constroem e como mantê-las em uma relação dialética. A defesa da interdisciplinaridade fundamenta a sua definição para a psicologia como “a ciência do sujeito e de suas ações” (Piaget, 1967, p. 16) e justifica sua posição contrária ao positivismo, uma vez que este “limita o campo das ciências à análise dos observáveis e, portanto, à descrição, à mensuração e às relações entre fenômenos” (Piaget, 1972, p. 154, tradução nossa), permitindo apenas a “descoberta de um conjunto de leis funcionais mais ou menos gerais ou especiais” (p. 154).
Assim, a principal crítica de Piaget à visão positivista é a divisão do real em certo número de territórios, fazendo-os corresponder aos domínios delimitados de disciplinas científicas diversas: “o modelo mais claro de tal concepção é fornecido pela classificação das ciências proposta por Auguste Comte que repartia suas disciplinas segundo uma dupla ordem de complexidade crescente e de generalidade decrescente” (Piaget, 1972, p. 154, tradução nossa). Portanto, podemos afirmar que a reflexão epistemológica desempenha, na obra psicológica de Piaget, o papel de condição necessária à investigação empírica e se fundamenta em uma postura crítica à tese pré-formista e à tese do inatismo, tal como na teoria de Vygotsky e na de Wallon. Foi para defender as questões relativas ao papel e às atividades do sujeito no conhecimento, objeto de sua epistemologia genética, que ele desenvolveu o método clínico, em oposição ao método dos testes, considerados, na época, como o método objetivo, por excelência, para o estudo da inteligência.
É assim que, já entre 1920 e 1930, as primeiras publicações dos seus estudos sobre a gênese do pensamento transbordam de transcrições de conversações e de protocolos de observações, seguidos de suas análises e novas hipóteses de estudo. Segundo o próprio autor, o método clínico consiste em “conversar livremente com o sujeito, em lugar de se restringir a questões fixas e padronizadas” (Piaget, 1947, p. 7; tradução nossa), de modo que esse método conserva “as vantagens de uma entrevista adaptada a cada criança” (p. 7) e, ao mesmo tempo, engendra “a tomada de consciência e de formulação de suas próprias atitudes mentais” (p. 7).
Para Piaget (1977), a tomada de consciência “aparece em todos os aspectos como um processo de conceituação reconstruindo e depois ultrapassando, no plano da semiotização e da representação, o que foi adquirido no plano dos esquemas de ações” (p. 271). Por isso mesmo, Piaget (1977) estuda desde a tomada de consciência dos atos motores até a tomada de consciência dos próprios pensamentos e sua representação, para defender o que ainda hoje é um desafio: a tomada de consciência, do ponto de vista psicológico, “constitui um processo bem mais complexo do que uma simples percepção interior e ainda precisam ser analisadas as leis da conceituação que ele supõe em todos os casos” (p. 11). Não se trata, portanto, de uma iluminação súbita, mas de um processo de desenvolvimento psicológico.
Desenvolvendo uma reflexão epistemológica muito próxima das de Piaget e de Vygotsky, Wallon expõe sua posição filosófica, partindo de um questionamento do que seja ciência e o lugar da psicologia nela. Em 1963, a revista francesa Enfance publicou um número especial intitulado “Henri Wallon. Objetivos e métodos da psicologia”, no qual foram publicados 16 artigos que esse autor escreveu entre 1929 e 1958. Retomaremos, de 1963, o artigo “Psicologia e Materialismo Dialético”, escrito em 1951, e no qual sua posição é particularmente clara.
Wallon (1963) inicia seu texto com a provocadora questão sobre a cientificidade da psicologia que, em seu entender, “tem dois significados possíveis. A psicologia tem um objeto que lhe seja próprio? O objeto da psicologia pode se acomodar ao determinismo científico?” (Wallon, 1963, p. 31, tradução nossa). À primeira pergunta, diz Wallon, o positivismo, na voz de Auguste Comte, respondia pela negativa defendendo que no indivíduo haveria um ser biológico, cujo estudo seria da alçada da fisiologia e um ser social, coletivamente explicável pela sociologia. Wallon reage considerando essa posição como “dois determinismos entre os quais a pessoa humana é reduzida a nada” (Wallon, 1963, p. 31).
À segunda questão, os existencialistas respondiam que a ciência era uma coleção de artifícios que poderia ter certa utilidade prática, mas que deformaria, alteraria e perverteria a realidade e, assim, alienaria nossa liberdade. No entender do existencialismo, diz Wallon (1963), só seria verdade aquilo que traduziria a essência do nosso ser, isto é, a renovação perpétua, imprevisível, única e incomparável de impressões, sentimentos ou imagens que surgem, a cada instante do tempo, em nossa consciência. Wallon contra-argumenta (1963) e defende que subsistia, na posição existencialista, com a denominação de liberdade absoluta, uma concepção de submissão ao destino e à ideia de fatalidade.
A defesa que ele elabora para a psicologia compactua com a posição de Vygotsky e de Piaget: nem “um apêndice da biologia” (Wallon, 1963, p. 63, tradução nossa), nem “uma antecâmara das ciências humanas” (p. 63), mas uma conexão entre “a biologia e as ciências humanas” (p. 63), de modo a se constituir em uma análise dialética de primeiro plano. Assim, Wallon, com uma postura muito semelhante à de Gergen (2010), como veremos mais adiante, defende que a atividade nervosa “constitui para o organismo os sistemas de signos que o levam a reagir de maneira apropriada às circunstâncias, no sentido mais amplo do termo” (Wallon, 1963, p. 33). Segundo ele, tais trocas são selecionadas a todo instante pela atividade nervosa superior entre o organismo e o meio, de modo que não se trata mais do biológico inteiramente distinto do social: “trata-se do processo do qual eles são os dois constituintes complementares. E essa substituição do processo à propriedade, do ato à substância, é, precisamente, a revolução que a dialética operou em nossa maneira de conhecer” (Wallon, 1963, p. 33, tradução nossa).
Desse modo, a tese de Wallon - assim como ocorre com a tese de Vygotsky e de Piaget - é em defesa de um processo de interação recíproca entre o ser humano e o meio: “... transformando suas condições de vida o homem se transforma a si mesmo. Suas técnicas de hoje exigem, para que sejam compreendidas, desenvolvidas e aplicadas, a inteligência de fórmulas abstratas, de sistemas feitos de símbolos” (Wallon, 1963, p. 34, tradução nossa). Desse modo, o valor atribuído à consciência, tal como para Vygotsky e Piaget, é central para esse autor: “A consciência, objeto único ou pelo menos essencial e central da psicologia, une, portanto, sem distinção possível, a realidade e sua imagem inteligível” (Wallon, 1959, p. 207, tradução nossa).
Há, portanto, um diálogo entre esses três autores, a despeito de muitos insistirem em opô-los. A análise sobre os processos de internalização e de externalização nas teorias de Piaget e de Vygotsky, por exemplo, expõe um conjunto importante de princípios epistemológicos e metodológicos comum: para ambos a relação entre interno (ações internalizadas para Piaget, funções intrapsicológicas para Vygotsky) e externo (ação manifesta para Piaget e funções interpsicológicas para Vygotsky) está em constante mutação por meio do desenvolvimento. Para eles, a realidade interna e externa não são duas entidades diferentes, estáticas, definidas de uma vez por todas: elas são construídas e suas fronteiras são instáveis (ver Martí, 1996, por exemplo).
Assim, no contexto das teorias de Piaget, Vygotsly e Wallon, a subjetividade está preservada: não há em nenhum deles nem a ideia de um determinismo biológico e nem a ideia de um determinismo sociocultural. Da mesma forma, não há um reducionismo às explicações neurológicas. É essa a voz comum do diálogo entre eles e os autores destas duas primeiras décadas do século XXI.
O Diálogo Entre Dois Séculos: Discurso Psicológico, Consciência e Reflexividade
As publicações de cunho epistemológico e filosófico, destas primeiras décadas do século XXI, retomam e atualizam as reflexões referidas no tópico anterior. Elas discutem as implicações entre método de pesquisa e prática psicológica e criticam a naturalização do comportamento, tal como focado, em especial, nas pesquisas com aporte neurocerebral.
Fica claro, nessas publicações, que essa discussão tem sido viabilizada, sobretudo, a partir da mudança de perspectiva do próprio estudo da história da psicologia, seja tanto como área de conhecimento quanto como área de atuação profissional. Em nosso entender, vale a pena retomar o percurso dessa mudança de perspectiva na história da psicologia porque ela fundamenta, direta ou indiretamente, nossas ações como pesquisadores e profissionais brasileiros.
Como sabemos, embora isso ainda seja pouco discutido, várias gerações de professores universitários e, portanto, formadores de profissionais brasileiros foram, por sua vez, formados em universidades europeias e norte-americanas, em diferentes décadas, trazendo diferentes influências para sua prática docente e de pesquisa. Desse modo, ao retomar essa discussão e salientar aspectos do percurso de uma psicologia centrada no empreendimento de produzir paradigmas para se equiparar às ciências ditas estabelecidas - e que dava pouca atenção à sua história como foi o caso da Völkerpsychologie, a clássica obra de Wundt) -, para uma psicologia que passou a enfatizar o significado da intencionalidade da atividade humana na construção do conhecimento focando a historicidade e o contexto social dos processos psicológicos, estamos retomando, também, certos aspectos da história da psicologia brasileira.
A referência à obra de Wundt não é aleatória no presente texto. De fato, esse autor continua sendo, na visão da grande maioria dos estudantes de psicologia, o fundador da psicologia experimental. Trata-se de uma visão bastante limitada do que representa sua vasta obra e que inclui sua visão inter e multidisciplinar e que sustentou as atividades de um laboratório no qual grandes pensadores eram recebidos, como o filósofo e antropólogo Geoge Mead, por exemplo.
Nessa visão limitada de Wundt, o caso da Völkerpsychologie é emblemático. Embora se trate de uma obra de dez volumes, a Völkerpsychologie ficou relegada durante muito tempo a um segundo plano nos próprios livros sobre a história da psicologia. Mueller (1979) salienta, por exemplo, que Boring (1929, citado por Muller, 1979), dedicou 700 páginas à obra de Wundt, se limitando a dez linhas ao comentário da Völkerpsychologie, obra que o próprio Wundt definia como “a história natural do homem” (Mueller, 1979, p. 13) e que, segundo ele próprio, “poderia dar a resposta científica ao problema dos processos mentais superiores” (p. 13).
Wundt acreditava, portanto, e é esse o dado que acabou por ser esquecido nas análises sobre sua obra, que os processos superiores, tais como o raciocínio, as crenças, os mitos, o pensamento e a linguagem, pertenciam a uma esfera não redutível aos processos intraindividuais passíveis de serem estudados em laboratório. Foi graças às mudanças nas concepções de conhecimento, de conhecimento científico e, por implicação, na mudança de concepção sobre o conhecimento histórico que os psicólogos historiadores passaram a transformar a visão de sua própria atividade como historiadores da área. Foi também graças a essas novas concepções que a Völkerpsychologie de Wundt passou a ocupar o lugar que ocupa hoje (ver, por exemplo, Ferrari, Robinson & Yasnitsky, 2010).
Por isso, Grauman e Gergen (2006) afirmam que essa nova visão da análise histórica teve e têm implicações dramáticas para a concepção da ciência psicológica e para o seu futuro. Dramática, sim, porque como dizem esses autores, no seu extremo, os argumentos contemporâneos têm invertido as posições de senhor e servo: em vez da pesquisa científica ser vista como a origem do conhecimento, para a qual a história necessariamente deveria ser uma serva, passou-se a ter a visão de que a análise histórica fornece o pré-requisito necessário para a demanda sofisticada que é exigida da pesquisa psicológica pela sociedade contemporânea (Grauman & Gergen, 2006). Em outros termos, a teoria científica não pode se excluir da história; pelo contrário, a compreensão psicológica é ela própria um instrumento dos processos históricos e culturais. Ou seja, isso equivale a admitir que, sem uma compreensão do contexto histórico, o campo de conhecimento se move sem um objetivo com vistas ao futuro.
Assim, nosso intuito ao refletir sobre o diálogo entre o século XX e o século XXI é o de salientar a articulação entre o entendimento das consequências do comprometimento científico e a crítica convergente presente nesse diálogo visando evidenciar a pertinência das análises histórica, epistemológica e filosófica que permitem levar em consideração a tradição cultural, a evolução de suas instituições e as condições humanas. Outros autores têm se proposto a mesma tarefa e nós vamos salientar alguns deles.
A análise de Jill Morawski (2005), por exemplo, é compatível com o exposto acima por três razões principais. Primeiro, porque ela nos remete à psicologia norte-americana entre o século XIX e o XX e seus pressupostos sobre a objetividade absoluta e o discurso da psicologia experimental, do início do século XX, em defesa de uma suposta ordem moral e ética de desinteresse e distanciamento, por meio de uma ideologia científica na qual, como diz a autora, apenas ocasionalmente alguns psicólogos faziam referência, entre parênteses, à posição subjetiva do experimentador. Em segundo lugar, porque Morawski (2005) discute a reflexividade por meio da análise da demanda de erradicação total da consciência do self em favor da objetividade, declarada como o cerne do método científico. Ela evidencia as disputas e, portanto, a subjetividade e a não neutralidade no interior da própria comunidade científica, trazendo o que ainda é pouco divulgado: as análises críticas e reflexivas de autores como William James (1890), Horace Mann Bond (1927) e Saul Rosenzweig (1933). Trata-se de autores que, em uma época na qual se associava a reflexão a elementos ditos perigosos da subjetividade - porque podiam contaminar os procedimentos experimentais - criaram e analisaram estratégias de resistência, demandando e propondo uma ciência alternativa.
Em terceiro lugar, porque o período escolhido por Morawiski (2005) se situa entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX, tal como na análise que fizemos antes retomando Vygotsky, Piaget e Wallon. Ela trata de três exemplos de reflexão crítica situados entre 1890 e 1934, período nos Estados Unidos das publicações dos primeiros manuais experimentais, do estabelecimento dos laboratórios universitários e da organização formal dos psicólogos como uma Sociedade Profissional (APA). Portanto, esse era o período da hegemonia de um modelo consensual de experimentação que consolidava um conjunto padronizado de técnicas experimentais, conjunto esse entendido como condição sine qua non da verdadeira psicologia científica. Assim como os autores abordados antes - Piaget, Wallon e Vygotsky - James, Bond e Rosenzweig apontam as limitações desse modelo dominante de ciência natural de experimentação: a desconsideração da reflexividade, da complexidade e da plasticidade humana e a desconsideração da cognição, do status social e dos processos inconscientes dos próprios cientistas em sua prática de pesquisa.
Morawski (2005) inicia com William James (1890), que reconhecia a subjetividade do pesquisador e se referia à falsidade da objetividade científica, embora esse reconhecimento tivesse sido ignorado com raras exceções. O segundo autor analisado por Morawski (2005) é Horace Mann Bond (1927), que questionou o que então era inquestionável: a neutralidade científica. A questão central desse autor eram os vieses dos resultados na avaliação de crianças negras por meio de testes padronizados. Cunhando a expressão o jogo do experimentador, ele apresentou dois argumentos centrais: o viés da influência da discriminação étnica nos resultados dos testes sobre a inteligência e a consequente desconsideração da influência do meio social no processo do desenvolvimento psicológico. Bond tornou visível a cognição do experimentador como parte da prática científica: as regras do que ele denominou de jogo do experimentador não eram vistas por ele como dificuldades técnicas, e sim como uma descrição de como a ciência era praticada e a ideologia que a fundamentava.
Segundo Morawski (2005), o problema levantado por Bond nunca foi de fato enfrentado devidamente; ele apenas foi resolvido “de um modo gentil e cavalheiro, fundado no conceito de ‘rapport’, tido como um relacionamento positivo entre pesquisador e sujeito que supostamente transcenderia as diversidades étnicas” (p. 88; tradução nossa), de modo que ainda persiste o entendimento dessa questão “como um viés cognitivo do sujeito e não do experimentador” (p. 88).
Enquanto James situava a condição reflexiva no experimentador e Bond localizava os vieses das regras impostas pela experimentação, Saul Rosenzweig (1933) apontava os processos reflexivos da situação experimental, implicando em sua análise todos os participantes: o experimentador, o participante e a dinâmica social dessa situação. Ele defendia que “a situação experimental em psicologia é ela própria uma questão psicológica” (Rosenzweig, 1933, p. 337, citado por Morawski, 2005, p. 89, tradução nossa). O cerne da reflexão desse autor, que se fundamentava na psicanálise, é o argumento de que a condição humana do psicólogo experimentador se reflete nas situações experimentais, de modo que a experimentação humana é intersubjetiva. Para Morawski (2005), as reflexões de James, Bond e Rosenzweig promoveram uma compreensão muito mais apurada sobre a experimentação do que a desenvolvida pelos próprios experimentadores.
Robinson (2010) é outro autor interessado no tipo de análise que estamos propondo e, como Morawski (2005), também cita William James (1904) para defender uma psicologia ética e moral, para a qual o ponto de partida seria a consciência. Seu raciocínio parte do argumento de que há algo incontestável: “um ser consciente é aquele que conclui que há outras mentes além da sua própria” (Robinson, 2010, p. 790, tradução nossa). Essa consciência, além de promover a partilha de conhecimento, engendraria a responsabilidade, de modo que a contribuição de Robinson (2010) para a psicologia crítica e reflexiva é a relação que ele estabelece entre essa psicologia, a consciência e a vida humana, entendida não apenas como social, no sentido de padrões mútuos de influência, mas cívica, no sentido de preceitos reguladores, regras de leis e de ética. Desse modo, a manutenção da concepção de neutralidade científica não tem mais nenhum sentido nesse contexto. As discussões filosóficas e epistemológicas de Richards (2002), de Smedslund (2009, 2012a, 2012b) e de Gergen (2010) evidenciam isso claramente.
De modo incontestavelmente apropriado e corajoso, Richards (2002), no início do século XXI, tece um texto a partir dos discursos proferidos na virada do milênio pela Sociedade Psicológica Britânica e pela Associação Psicológica Americana, ambos focados no reconhecimento da contribuição central da psicologia para a sociedade e, portanto, no engrandecimento da área. Para avaliar a credibilidade dessa retórica, diz o autor, é preciso uma avaliação reflexiva e crítica do funcionamento atual da psicologia nas sociedades modernas: uma psicologia da psicologia. Segundo o autor, um dos meios de proceder a essa avaliação seria a história da psicologia e o caráter psicológico da própria psicologia, assim como seu lugar cultural. Dessa forma, ele se propõe a evidenciar o caráter reflexivo e múltiplo da psicologia a partir de um circuito que interconecta os seguintes aspectos: 1. as psicologias pessoais dos psicólogos e a compreensão do seu papel profissional; 2. a natureza da psicologia que eles produzem; 3. o contexto social no qual eles a produzem, o que inclui as condições psicológicas e 4. o estado atual da própria psicologia e seu objeto de estudo.
Richards (2002) defende, assim, uma abordagem que enfatiza a natureza socioeconômica dos aspectos citados acima, propondo o estudo da gênese das ideias psicológicas, por meio de quatro questões principais: 1. O que é um psicólogo? De onde e como os psicólogos obtêm suas ideias? O que fazem com elas? 2. Em quais formas de psicologia eles a convertem? 3. Para quem trabalham? Quais são suas metas? Que tipo de poder ou de autoridade exercem? 4. Como sua mediação da psicologia afeta a própria psicologia?
Em suma, Richards (2002) propõe que se considere a subjetividade do psicólogo e que se considere o psicólogo como uma pessoa, individualmente consciente e capaz de conhecer e se realizar a si mesmo como qualquer outra, por meio das transações com os outros. Isso significa, em suma, considerá-lo como um membro da coletividade que existe e se reproduz a si mesmo, em um incessante processamento e reprocessamento de suas próprias experiências, coletivamente acessíveis e significativas por meio dos diferentes modos de armazenamento e de comunicação que se expandem, por meio da linguagem e de seus múltiplos usos. Explorar como isso se dá - isto é, a produção, a divulgação e a utilização da linguagem psicológica, ideias e conceitos - é, para o autor, o que de fato pode responder às questões referidas acima, posição que converge com a pesquisa histórica de Danziger (2013).
Os textos que compõem a trilogia de Smedslund (2009, 2012a, 2012b) dialogam de perto com os autores já citados e em especial com Richards (2002). No primeiro, Smeslund (2009) discute a relação entre os dados de pesquisa e sua utilização na prática psicológica, enfatizando as dificuldades na generalização de dados psicológicos empíricos e defendendo que a prática psicológica tem características particulares, uma vez que deve levar em conta quatro características dos processos psicológicos: 1. eles são influenciados por um número infinitamente alto de fatores; 2. eles são sensíveis e instáveis; 3. as regularidades se devem à partilha de sistemas de significados implicitamente familiares e 4. os indivíduos são particularmente únicos e imprevisíveis porque são influenciados por eventos randômicos.
No segundo texto, Smedslund (2012a) analisa as implicações das questões levantadas no primeiro. Ele tem em conta a prática profissional psicológica e propõe um modelo que considera três fontes de conhecimento: o que sabemos sobre os seres humanos, uma vez que somos todos seres humanos; o que sabemos sobre o outro, uma vez que participamos de sistemas de significados partilhados (linguagem e cultura); o que sabemos sobre cada pessoa (única) em situação.
Para o autor, a sistematização do conhecimento psicológico está implícita nessas três fontes, uma vez que sua elaboração se dá no mundo de seres humanos que interagem nesses sistemas de significados partilhados. Segundo ele, para dar conta da infinidade de variações nas situações concretas, a prática psicológica implica no uso desse conhecimento de um modo que seja inovador e criativo e na consideração da compreensão dessa prática como uma colaboração de inspiração mútua. Trata-se da defesa, portanto, de que a relação entre o profissional psicólogo e o outro é muito mais complexa do que uma mera influência de direção única, isto é, do psicólogo ao outro.
O terceiro texto de Smedslund (2012b) lida com a questão teórica sobre o que sabemos sobre seres humanos, considerando que, em última análise, somos todos seres humanos. Ele propõe, então, a discussão de nove axiomas referentes a amplas proposições - sobre a mente, a intencionalidade, a reflexividade, a verbalização, a aprendizagem, a responsabilidade, a moralidade, os sentimentos e a vulnerabilidade - considerados como aqueles que organizam e resumem como as pessoas veem as pessoas, isto é, sobre como entendemos o fenômeno subjetivo.
Nessa trilogia, o referido autor retoma a questão dos autores do início do século XX, sobre a relação entre o geral e o particular e sobre a relação entre os aspectos singulares das pessoas em contraposição às classificações gerais e técnicas, dentro das quais as singularidades podem perder o sentido. É em referência a essa questão - e, em última análise, à subjetividade - que se fundamenta a demanda de avaliação crítica e reflexiva da psicologia como área de conhecimento e da sua prática profissional e de pesquisa.
Gergen (2010) faz coro a essa demanda ao desenvolver uma análise crítica sobre o denominado movimento cérebro e comportamento, abordagem cuja tese central é de que a explicação de todo funcionamento psicológico está nas causas neurocerebrais. Ele situa esse movimento nas últimas décadas, mas recupera seu caminho desde o final do século XIX e início do XX, evidenciando, mais uma vez, a importância da análise da construção do conhecimento psicológico nesse período e, em particular, a importância da análise do significado e implicações dos esforços para inserir o conhecimento psicológico nas ciências ditas naturais.
A análise de Gergen (2010) converge com aquela de Fávero (2010), no que diz respeito à relação entre a história da ciência e à utilização da ideologia da naturalização como um modo de tratar as convenções sociais, culturais, políticas e econômicas como fazendo parte da ordem natural, isto é, como se fossem ditadas pela natureza e, portanto, imutáveis e inevitáveis. Gergen (2010) defende que as explicações para a ação humana não pode ser reduzida à atividade neural e que as funções primárias do cérebro agem em função de processos culturais: nosso cérebro é aculturado, como diz ele. Juntando aos já citados, Gergen (2010) defende, assim, a importância da avaliação crítica tanto no que se refere às decisões sobre os rumos das pesquisas em psicologia, como para as implicações desta no que se refere às políticas e práticas sociais.
Conclusão
Nossa pretensão foi evidenciar que as publicações sobre a história, a epistemologia e a filosofia da psicologia deste início do século XXI revisitam as questões já presentes no início do século XX. Dialogando com diferentes autores, procuramos demonstrar que a análise histórica, epiestemológica e filosófica sobre o conhecimento psicológico têm permitido uma mudança particularmente inovadora no modo de se conceber a prática da pesquisa e a prática profissional. Desse modo, tal mudança tem traçado um caminho entre a concepção de uma atividade científica tida como ideal e na qual as análises dos viéses culturais e políticos deviam ser controlados e evitados, e a busca metodológica que, ao contrário, permita considerar e estudar esses mesmos aspectos. Assim, se elaborou um longo caminho entre as análises críticas dos anos 1970 (Janice Haaken, 1979, por exemplo), preocupadas com o significado e a implicação da adoção de procedimentos metodológicos que visavam à superação das denominadas fontes de viéses - incluindo os dados culturais, ideológicos e políticos - superação, como se sabe, considerada imprescindível para se chegar a uma representação imparcial e neutra da realidade, e o desafio contemporâneo que, ao contrário, coloca o conhecimento psicológico em relação e interação com os interesses sociais, ideológicos e históricos.
Com a demanda contemporânea de uma psicologia que atue cada vez mais em diferentes campos - do contexto da saúde ao contexto jurídico, por exemplo - a descontextualização da construção do conhecimento psicológico perdeu seu sentido, uma vez que o foco é justamente o de considerar a interação e influência mútua entre a experiência social do cotidiano - isto é, as experiências coletivas do ponto de vista histórico, ideológico, político e econômico - e as experiências individuais.
O esforço comum é, portanto, a defesa da necesidade de se construir uma psicologia que seja reflexiva e que crítica que considere, como diz Morawski (2005), que o psicólogo e o pesquisador em psicologia são seres humanos que lidam com uma psicologia e uma história do mundo material e cultural. Ora, manter essa consideração implica levar em conta duas questões relacionadas: a concepção de ser humano e a concepção de conhecimento científico. Ou seja, o pensamento psicológico, incluindo as concepções da natureza humana e a subjetividade, tem tido um papel fundamental tanto na formação e história da psicologia (Asch & Sturn, 2007) como na fundamentação do pensamento reflexivo e crítico sobre o conhecimento psicológico.
Desse modo, podemos dizer que as três linhas de pesquisa da história da psicologia, todas de interesse para a história da ciência - a história do discurso psicológico; a história da disciplina e da profissão nos seus contextos social e cultural e a história da subjetividade - não apenas se encontram presentes nas discussões atuais sobre filosofia, epistemologia e história da psicologia: mais do que isso, elas se constituem no seu próprio cerne. O trabalho de Jacó-Vilela (2012), com uma rica referência bibliográfica sobre a inserção da prática psicológica no Brasil no início do século XX, é um belo exemplo disso.
Dito em outros termos: a defesa de uma psicologia que reflete sobre si mesma - seja do ponto de vista da prática da pesquisa psicológica, seja do ponto de vista da prática profissional - não se dissocia da análise das categorias de linguagem na formação e na história da psicologia. Danziger (2013), por exemplo, tem insistido na pertinência de se tomar a atual diversidade de objetos psicológicos como ponto de partida para explorar o contexto social de sua própria emergência, de modo a se produzir uma análise histórica do uso da linguagem que define, descreve, categoriza e modifica estes mesmos objetos psicológicos. Essa ênfase na relação entre história e linguagem se sustenta por meio de proposições básicas implicadas umas às outras e que se articulam com a epistemologia e a filosofia: a linguagem é um fator absolutamente necessário para uma área de conhecimento existir e continuar existindo; a linguagem é constitutiva de seus objetos de referência e as linguagens das disciplinas não são exceções; a linguagem é histórica.
Por isso mesmo uma análise histórica do uso da linguagem permite, segundo Danziger (2013), evidenciar os aspectos sociopolíticos da área, tais como a interação dos vários interesses profissionais, a natureza das rivalidades e alianças, o marketing dos produtos da área etc. Desse modo, esse autor defende que os termos que identificam as categorias mais gerais da psicologia, tais como inteligência, emoção, motivação, cognição, consciência, memória, entre outros, têm uma história, havendo persistência e recorrência de metáforas similares que não cessam de mediar significados, apontando continuidades históricas muitas vezes eclipsadas por descontinuidades no uso e compreensão de categorias particulares. Podemos considerar, assim, que as duas proposições- chaves da análise desse autor se relacionam estreitamente com a defesa da psicologia que se avalia crítica e reflexivamente: 1. as categorias que, eventualmente, se tornam de interesse psicológico sempre operam dentro de um contexto de práticas sociais particulares e demandas sociais e 2. as mudanças históricas que geram tais demandas levam, por sua vez, a mudanças nas práticas e na concepção dos objetos.
A ideia comum que procuramos evidenciar aqui é, portanto, a de uma postura que se propõe não ignorar as implicações políticas e ideológicas das atividades profissionais e científicas e nem as subjetividades nelas envolvidas. Trata-se, em última análise, de uma postura otimista: é por meio das subjetividades no plural que é vislumbrado o efetivo florescimento de transformações sociais tal como está posto no discurso psicológico contemporâneo, se consideramos, como Robinson (2010), que a vida mental é uma vida de significados e que considerar a consciência humana significa, em última instância, considerar a maneira pela qual o conhecimento, o desejo, a crença e o julgamento se integram, humanamente, nos planos de ação das atividades profissionais e científicas.
Em suma, a discussão que trouxemos aqui se constitui no grande desafio atual, uma vez que implica o entendimento de que a vida cívica requer empatia, entendida como uma forma de consciência partilhada: o produto do desenvolvimento de uma consciência que permite enxergar a totalidade da diversidade do comportamento humano. Resta-nos, portanto, a tarefa de refletir sobre o quanto a compreensão sobre a relação entre concepção teórica e prática está permeando o fazer psicologia, seja na pesquisa, seja na prática psicológica e o quanto e como tal discussão tem adentrado efetivamente à formação dos psicólogos.
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