Artigo Original

Implicações Psíquicas no Desvio Fonológico Analisadas por Meio dos Contos de Fadas

Implicaciones Psicológicas en el Trastorno Fonológico Analizadas Mediante los Cuentos de Hadas

Taís Cervi1
Universidade Federal de Santa Maria, Brazil
Marcia Keske-Soares1
Universidade Federal de Santa Maria, Brazil
Angela Maria Schneider Drügg
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Brazil

Implicações Psíquicas no Desvio Fonológico Analisadas por Meio dos Contos de Fadas

Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 2, pp. 213-224, 2015

Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 17 Setembro 2014

Aprovação: 17 Julho 2015

Resumo.: Nesta pesquisa analisou-se a relação entre o desvio fonológico e as questões psíquicas envolvidas nessa patologia e a forma como as crianças se posicionaram diante de tal sintoma. O desvio fonológico é uma alteração da fala, com uso inadequado de fonemas e ausência de fatores orgânicos identificáveis. Sua maior ocorrência é constatada entre quatro e oito anos de idade. O objetivo deste estudo foi analisar a posição refratária e outros aspectos psicológicos em crianças com desvio fonológico por meio dos contos de fadas. Empregou-se uma metodologia qualitativa, a partir da análise de conteúdo. Participaram da pesquisa dez crianças, de ambos os sexos, na faixa etária de quatro anos a sete anos e 11 meses, diagnosticadas com desvio fonológico e encaminhadas ao serviço de atendimento fonoaudiológico de uma instituição de ensino superior. Para a coleta de dados, o instrumento utilizado foi os contos de fadas. Os dados foram generalizados e agrupados em categorias temáticas e apontaram que todas as crianças da pesquisa eram refratárias à convenção linguística em virtude de uma dificuldade de sair do período de dependência relativa para a independência, desenvolvendo assim um sintoma de linguagem.

Palavras-chave: Distúrbios da fala, sintomas psíquicos, narração.

Resumen.: En esta investigación se examinó la relación entre el trastorno fonológico y las cuestiones psíquicas implicadas en esta patología y la forma cómo los niños se posicionaron frente el síntoma. El trastorno fonológico es una alteración del habla, con el uso inadecuado de los fonemas y la ausencia de factores orgánicos identificables. Se observa su mayor ocurrencia entre los 4 y 8 años de edad. El objetivo de este estudio fue analizar la posición refractaria y otros aspectos psicológicos en niños con trastornos fonológicos mediante los cuentos de hadas. Se aplicó una metodología cualitativa a partir del análisis de contenido. Participaron en el estudio diez niños, de ambos sexos, en la franja de edad de 4 años a 7 años y 11 meses, diagnosticados con trastornos fonológicos y encaminados al servicio de atención fonoaudiológico de una institución de educación superior. El instrumento utilizado para la recolección de los datos fue el cuento de hadas. Los datos fueron generalizados y agrupados en categorías temáticas y mostraron que todos los niños del estudio eran refractarios a la convención lingüística debido a una dificultad para salir del período de la dependencia relativa para el de la independencia, desarrollando de este modo un síntoma de lenguaje.

Palabras clave: Trastornos del habla, síntomas psíquicos, narración.

O presente artigo é fruto de reflexões acerca de quais questões psíquicas um sintoma de linguagem poderia estar ocultando e a forma como a criança se posiciona diante de tal sintoma. Disso advém o objetivo deste estudo: analisar a posição refratária e outros aspectos psicológicos envolvidos em crianças com desvio fonológico por meio dos contos de fadas.

Diferentemente do que acontece nas ciências biológicas, nas quais o sintoma do paciente é considerado apenas pela via do patológico (em oposição ao normal) e investiga-se sua história, buscando somente circunscrever a origem do não funcionamento (ou do mau funcionamento) da linguagem; na psicanálise o sintoma é endereçado para o analista e não se estabelece por normalidades ou convenções. Um sintoma somente passa a ter sentido a partir do momento em que ele produz um mal-estar no sujeito, fazendo com que este realize um movimento de questionamento.

É somente a partir dessa concepção psicanalítica de sintoma que se pode escutar para além do puro erro. Assumir uma concepção de sintoma circunscrita pela psicanálise é fundamental para contextualizar a escuta que se faz do paciente que tropeça na fala e situar desde que lugar se considera aquele que chega ao clínico com um sofrimento no campo da linguagem (Bender & Surreaux, 2011). É por meio do uso do referencial teórico-clínico da psicanálise que o terapeuta pode dar conta do quanto a criança está ou não implicada em seu sintoma e se ela faz ou não movimentos para que ele tome outro caminho.

A patologia de linguagem a ser considerada nesta pesquisa é o desvio fonológico, também conhecido na literatura como transtorno fonológico ou desvio fonológico evolutivo (Santana, Machado, Bianchi, Freitas & Marques, 2010), definido como um tipo de alteração na linguagem que se caracteriza como uma dificuldade de fala pelo uso inadequado de fonemas, ocorrendo sua maior incidência em crianças entre quatro e oito anos de idade (Wertzner, 2004). Tais crianças não apresentam fatores orgânicos identificáveis (deficiência auditiva ou anormalidades anatômicas e funcionais) que possam interferir na sua fala. Além disso, o diagnóstico somente poderá ser feito quando a criança apresentar idade superior a quatro anos de idade (Grunwell, 1990), posto que antes disso a desorganização fonológica é esperada, pois ela está em fase de aquisição da linguagem. Sua etiologia ainda é desconhecida, embora alguns estudos façam referência ao núcleo familiar como um possível fator influente (Pereira, Keske-Soares, 2008; Pagliarin, Keske-Soares & Mota, 2009).

Em termos de reações no que se refere à proposição de mudança nos padrões de fala pela criança, há variações que se apresentam entre crianças que assumem uma postura de mudança e outras que resistem a ela, sendo essas últimas, ditas refratárias às mudanças (Benine, 2001).

A pesquisa considerou a hipótese de que crianças diagnosticadas com desvio fonológico estariam apresentando uma posição refratária às mudanças nos padrões de fala. Essa posição estaria sendo assumida pela criança como uma resposta a uma dificuldade de sair do período de dependência relativa em relação à função materna e caminhar rumo à independência (Winnicott, 1983/2007) e dessa maneira tentar satisfazer o desejo materno de manter a criança numa posição infantilizada. Isso faz com que a criança produza uma manifestação sintomática - o desvio fonológico - e não se preocupe em ser ou não compreendida pelos demais.

Dado o grau de precocidade das funções orgânicas de uma criança ao nascer, ela necessita de outro semelhante que faça a dupla função no início da vida: os cuidados em relação à sobrevivência orgânica e os cuidados simbólicos por meio de atribuições de sentidos e significações em relação as suas manifestações (gestos e choros, por exemplo), sendo inserida no campo do Outro (inicialmente representado pela função materna). A criança vai sendo então antecipada, falada no discurso dos pais mesmo antes de nascer, pois estes imaginam como ela vai ser, com quem vai se parecer etc., colocando-a numa condição de dependência em relação ao Outro (Gurski, 2010).

Essa dependência faz com que, num primeiro momento de constituição psíquica, a criança assuma o lugar de ser o objeto de desejo de sua mãe. O problema que se coloca para a criança, a partir de então, é o de responder ou não a esse desejo materno. Para que essa questão se coloque num segundo momento, é preciso que a função do pai seja reconhecida tanto pela mãe quanto pela criança, de modo que ele possa intervir nessa relação dual, o que possibilitará que a mãe, aos poucos, enderece seu desejo para outras tarefas e também para outras pessoas que não somente o seu filho. Quando esse primeiro registro da função paterna existe, mas não desempenha o seu papel de forma satisfatória, algo precisa surgir nessa lacuna: por vezes um sintoma (Laznik, 2013). E por que não um sintoma de linguagem?

As manifestações sintomáticas da infância são produzidas como resposta à demanda parental, cumprindo uma função de laço entre o corpo da criança e os que a cercam (família, escola...). Nessa perspectiva, o sintoma da criança tem uma dupla vertente, pois emerge como real no seu próprio corpo e ao mesmo tempo como pertencente ao campo das funções parentais. Dessa forma, o sintoma clínico parece ter a propriedade de se fazer ouvir ao mesmo tempo em que se apresenta como uma mensagem cifrada que tem os pais como endereço certo (Ferrari, 2012).

Para observar estes aspectos no discurso da criança elegeu-se como instrumento os contos de fadas clássicos. Contar estórias às crianças é uma atividade bastante corriqueira, nas mais diversas culturas do mundo e em várias situações. Como se sabe, essa prática vem se reproduzindo através dos tempos de maneira quase intuitiva. A maior parte delas, na realidade, estava em circulação oral por centenas de anos. Apelando para o despertar de sentimentos de identificação, amor, ódio, inveja, medo etc., os contos são portadores do ideal do Outro - aquele que representa a lei, as regras, a moral e, portanto, demanda algo da criança. Por esse motivo, ainda despertam o seu interesse (Jerusalinsky, 2011).

Os contos de fadas podem propiciar à criança mais clareza em seu universo afetivo, auxiliando-a a reconhecer, mesmo de forma inconsciente, alguns de seus problemas e oferecendo-lhe perspectivas de soluções, mesmo que provisórias. As narrativas são meios de poder agir diante dos impasses da constituição psíquica (Bettelheim, 1980). Assim sendo, os contos de fadas são uma forma valiosa e prazerosa que permite acessar questões psíquicas relacionadas ao desvio fonológico.

Método

Desenho do estudo

A pesquisa é de caráter exploratório e abordagem qualitativa, a partir da análise de conteúdo proposta por Minayo (2010), em que foram observados núcleos de sentido das comunicações para fins analíticos.

Participantes

Participaram da pesquisa dez crianças e quatro juízes. Em relação às crianças, para participar da pesquisa elas deveriam ter idade entre quatro anos e sete anos e 11 meses, serem diagnosticadas e encaminhadas ao serviço de atendimento fonoaudiológico de uma instituição de ensino superior com desvio fonológico e estarem inscritas na lista de espera do serviço. Ainda, precisavam consentir com a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

Quanto aos juízes, todos eram mestres, dois com formação em fonoaudiologia (1 fazendo o uso do referencial teórico-clínico da psicanálise e outro não) e dois com formação em psicologia (1 fazendo o uso do referencial teórico-clínico da psicanálise e outro não). Tinham como objetivo identificar se a criança estava ou não assumindo uma posição refratária. Estes receberam orientações quanto aos objetivos e procedimentos da pesquisa por intermédio do TCLE. Além disso, foram informados de sua tarefa na análise dos dados. Após esclarecimentos e assinatura do TCLE, foi realizada a entrega do material.

Instrumentos

Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram livros de estórias clássicas infantis. Foram eles: Chapeuzinho Vermelho, Os Três Porquinhos, João e o Pé de Feijão, Branca de Neve (da Editora Todo Livro) e Pinóquio, Bela Adormecida, Aladim e a Lâmpada Maravilhosa (da Editora Libris). Os dados foram coletados mediante uma situação de avaliação na qual os contos escolhidos pelas crianças eram lidos a elas, ou no caso de a criança ser alfabetizada e ter o desejo de ler, ela mesma o fazia. A partir de então se desenvolvia um diálogo com ela com duração de aproximadamente 1 h, de encontros únicos, individuais e filmados com uma câmera digital para posterior transcrição e análise.

Procedimentos

A análise do material foi orientada pelo método da análise do conteúdo, segundo Minayo (2010), que consiste em descobrir os núcleos de sentido de uma comunicação. Após o material ser transcrito na íntegra pela pesquisadora, a primeira etapa da análise (pré-análise) consistiu na leitura das transcrições para avaliação geral. Os dados obtidos foram dispostos em tabelas distribuídas da seguinte forma: referência à parte que os sujeitos mais gostaram e menos gostaram de cada conto; reações dos sujeitos quando questionados sobre alguma palavra que não foi compreendida pela pesquisadora e análise dos juízes. Posteriormente, iniciou-se a exploração do material por meio da análise dos dados, estabelecendo-se as categorias e verificando as questões subjetivas que pudessem estar relacionadas à posição refratária. Para fins de análise, cada livro tornou-se uma categoria, totalizando sete e em cada categoria foram analisados três pontos: (1) parte do conto que a criança mais gostou; (2) parte do conto que a criança menos gostou e (3) reações da criança quando questionada em alguma palavra que não foi compreendida. A análise foi realizada pela pesquisadora e, além disso, foi considerada a posição dos juízes diante da identificação ou não da posição refratária nas crianças. Como última etapa da análise foi realizada a interpretação dos dados a partir da fundamentação teórica e dos pressupostos norteadores da investigação.

Considerações éticas

Este estudo baseou-se nos pressupostos éticos de pesquisas com seres humanos, sendo, por este motivo, encaminhada ao Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de ensino superior, da qual recebeu parecer favorável em 2/3/2013, sob o número 12636713.6.0000.5346.

Resultados e Discussão

Conforme a proposta da análise de conteúdo, os dados serão em seguida apontados por meio de categorias temáticas que foram obtidas pelo processo de categorização. Nas categorias, os dados serão apresentados e ilustrados, principalmente por meio das questões que os contos fizeram emergir e também, quando possível, por algumas falas das crianças. Eles serão discutidos e embasados teoricamente, segundo pressupostos psicanalíticos.

Categoria 1 - Chapeuzinho Vermelho

A ameaça de ser devorada é o tema central do conto “Chapeuzinho Vermelho”. O conto foi utilizado por todas as dez crianças envolvidas na pesquisa. Os elementos para pensar na posição refratária assumida pelas crianças nesse conto originaram-se das perguntas: “Qual a parte que você menos gostou da estória Chapeuzinho Vermelho?” e “Qual a parte que você mais gostou da estória Chapeuzinho Vermelho?”.

Das nove crianças que responderam ao questionamento, cinco delas responderam que não gostaram do momento em que o lobo mau queria devorar a Chapeuzinho Vermelho e três crianças disseram que não gostaram do momento em que a Chapeuzinho Vermelho despediu-se da sua mãe. Quando questionadas em relação à parte da estória que elas mais haviam gostado, verificou-se que a maioria destacou o momento da morte do lobo mau pelo lenhador, que corresponde à parte final do conto. Todas as passagens referidas nas respostas das crianças ao questionamento referente à parte que mais e menos gostou do conto Chapeuzinho Vermelho sugerem que elas serviram como metáforas que simbolizaram a dificuldade de quebra de vínculo com a função materna.

Esse momento de dependência, de simbiose com a função materna, diz de um primeiro momento de constituição subjetiva da criança - alienação -, estando ela presa ao discurso materno e, por isso, objeto de desejo da mãe. É preciso, porém, que haja um corte nessa relação para que a criança não satisfaça totalmente o desejo da mãe (Kamers & Baratto, 2004). Isso vai fazer a criança mover-se em direção aos seus desejos, inclusive ao desejo de falar, dando entrada ao segundo momento de constituição: a separação. O agente causador dessa interdição é a função paterna, a qual lembrará à mãe que a criança é um sujeito diferente dela e da qual ela não tem posse absoluta (Bernardino, 2008).

É justamente para esse fim que surge um lobo no caminho da criança, pois ele é, em definitivo, a versão selvagem do perigo doméstico, uma prova de que o papai bonzinho que se tem em casa pode tornar-se uma figura ameaçadora e temível e, portanto, interditor de desejos (Corso & Corso, 2006). Afinal, “o lobo tava dento da casinha” e, portanto, mora em nossas casas.

A função paterna emerge como o terceiro imprescindível para que a criança elabore a perda da relação inicial com a mãe, passando a representar um princípio de realidade e de ordem na família, fazendo com que a criança perceba que ela não é mais a única a compartilhar a atenção da mãe.

Ser pai é uma tarefa que introduz um terceiro que desestabiliza um idílio dual, fazendo surgir a falta, o desejo e um sujeito onde antes havia a completude total e um objeto. O pai precisa agir como facilitador de separações, impulsionando o filho a seguir seu caminho, oferecendo-se como um elemento importante e fundamental para a identificação, que, antes, era um papel restrito à mãe (Saraiva, Reinhardt & Souza, 2012). Quanto mais profundamente a criança se entregar a viver o papel de objeto de desejo materno, menos saberá onde são seus limites, as fronteiras que assinalam onde termina o outro e começa o eu.

Categoria 2 - Os Três Porquinhos

A estória “Os Três Porquinhos”, embora seja uma trama simples, toca profundamente as crianças, pois um dos seus temas relevantes é a separação. Afinal, um dia terão de se separar da mãe, sair de casa e se protegerem sozinhas. O trio de porquinhos daria espaço para a evolução da criança, representando sucessivos momentos de constituição. Inicialmente desprotegidos, a mercê de serem devorados, o porquinho e a criança aprendem a criar empecilhos que os separem da mãe e que os constituam enquanto sujeitos que possuem seus próprios desejos (Corso & Corso, 2006).

Esse processo de separação da criança é um trabalho progressivo e bastante marcado por estratégias que dão suporte a esse momento. É preciso que a função materna também suporte esses planos estratégicos da criança. Percebeu-se na pesquisa, no entanto, por meio de algumas falas das crianças durante esse conto, que aquela que exerce a função materna apresenta dificuldades de dar suporte a essa separação, o que faz com que a criança assuma uma posição refratária quanto ao falar de acordo com as regras linguísticas. Em geral, as crianças demonstraram uma preocupação em relação ao estado emocional da mãe dos porquinhos: “ela ficou tiste poque eles vão saí pá fazê uma casa pa eles”; “ela ficô soando”; “ela tava sentindo saudade dos filhos”; “ela ficô tiste poque eles iam moá sozinhos”.

Além disso, das oito crianças que utilizaram o conto, seis delas declararam que a parte que menos gostaram da estória foi o momento em que os porquinhos saíram de casa. Pensa-se que sair de casa é uma metáfora de representação efetiva da separação entre mãe e criança, sendo que sucessivas paredes, cada vez mais sólidas, precisam ser construídas para demarcar os territórios entre criança e adulto. Desse modo, é possível identificar a posição refratária, uma vez que essa, entre outras questões, refere-se à dificuldade de sair da dependência materna.

Os dados da pesquisa identificaram que o momento em que o lobo caiu na panela de água fervente foi referido por seis crianças como a parte favorita do conto. Esse aspecto também revela aspectos da posição refratária assumida pelas crianças, pois o lobo representa o interditor na relação mãe/criança, colocando em pauta uma proibição, uma castração. Nesse sentido, tanto o fato de sair de casa como o episódio do lobo caindo na panela de água fervente fazem menção ao posicionamento refratário da criança e a uma dificuldade de se haver com a falta, com a castração.

Dolto (1992) define a castração como uma proibição que se opõe a uma satisfação antes conhecida, mas que deve ser ultrapassada, deslocada. Dessa forma, a criança passa por diferentes proibições ao longo do seu desenvolvimento, que a levarão à condição de acesso a uma autonomia do sujeito. É preciso, contudo, que essa castração também seja entendida pela mãe. Ser mãe é assumir que se está em um terreno faltoso, de incompletude.

Sair de casa é o primeiro movimento de independência da criança e uma das importantes castrações (castração oral, de acordo com Dolto) que a criança sofre, pois sair de casa equivale à frustração do desmame, quando a criança assume duas formas de representação importantes para o crescimento: a troca da passividade pela atividade e a separação entre o desejo da mãe e o da criança.

É por meio dessa privação oral que há a possibilidade de surgir a comunicação verbal, em que a função materna guia os fonemas da criança até que estes se apresentem perfeitos segundo a linguagem materna. Talvez o que ocorra com esses sujeitos que fazem sintoma na fala é que a fala que a mãe deseja é aquela que as coloca numa posição de assujeitamento, numa posição infantil. Não resta alternativa à criança, todavia, a não ser defender-se disso produzindo um sintoma e assumindo uma posição refratária.

Categoria 3 - João e o Pé de Feijão

O conto “João e o Pé de Feijão” foi escolhido por seis crianças. Seu início remete a uma operação de distanciamento da mãe e da sua condição de alimentadora, pois movida pela raiva ao descobrir que João trocou a vaca por Feijões Mágicos, ela o manda para a cama com fome.

Cabem aqui algumas palavras sobre o negócio que João faz - a troca de algo certo (a vaca Branca-de-Leite) por algo duvidoso (os Feijões Mágicos). O que salta aos olhos nessa troca é a representação perfeita para aludir ao desmame, ou seja, um negócio, a princípio nada proveitoso, de trocar o leite certo de cada dia por algo impalpável e incerto. O fato é que para crescer é preciso sair de casa e também perder as vantagens de ser pequeno, inclusive o leite do seio materno (Corso & Corso, 2006). Dessa forma, a troca resultante seria a seguinte: João entrega aquela que lhe dava o leite, mas secou, e recebe algumas sementes cuja magia seria o crescimento. Pode-se pensar que essa metáfora estaria representando a dificuldade de separação da díade mãe/criança, a qual foi referida por três das seis crianças que utilizaram o conto como sendo a parte que menos gostaram.

Em termos psíquicos, considera-se que se para uma mulher o homem representasse tudo para ela, não haveria um desejo pela maternidade, e se a criança fosse tudo para uma mãe ela não teria motivos para interessar-se por um homem. No caso do conto, por que motivo a senhora Gigante se manteria com seu gigante, providenciando-lhe todos os seus favores se não surgisse, em algum momento, uma criança que despertasse seu desejo maternal?

Aliás, sob sua aparência de servilismo, a senhora Gigante revelou-se bem pouco fiel ao seu marido, pois alerta João para o perigo que corre e ainda o esconde no armário (Corso & Corso, 2006), aspecto este que se refere à proteção materna. Dando-se conta disso, uma criança respondeu que a parte que mais gostou da estória foi quando “ela (Senhora Gigante) escondeu João no armário” e outra criança enfatiza que gostou “quando a mulher do gigante dá dinheiro pro João e ele sai correndo”, podendo, assim, com o dinheiro, suprir sua necessidade de nutrir-se. Pode-se pensar que o monstro, nesse caso a senhora Gigante, constitui também uma possibilidade de substituição metafórica do perigo de ser engolido pela mãe, ou seja, de ser incorporado pelo desejo da mãe, o que faz com que a criança se mantenha refratária, pois ser engolfado por essa figura pode ser, até um determinado momento, prazeroso, pois satisfaz o desejo materno.

É no final do Pé de Feijão que se encontra o gigante, a representação do pai tirânico, que possui muitos bens, mas não reparte com ninguém e ainda tem uma mulher que lhe serve. Esse é o pai “dono do pedaço”, inclusive da mãe (Corso & Corso, 2006) e que por esse motivo, faz com que duas crianças nomeiem esse momento como a parte da estória que menos gostaram.

Essa relação do gigante (homem) com João (filho) é a raiz que revela à criança que na sua relação com a mãe, em um determinado momento, há a entrada de um interditor - representado no conto pelo gigante -, que por meio do seu desejo de devoração mostra que há lugar apenas para um nessa relação, o outro deve ser devorado, eliminado. Dessa forma, o momento em que o Pé de Feijão é cortado por João torna-se uma maneira representativa de fugir disso, segundo opinião de três crianças da pesquisa.

Categoria 4 - Branca de Neve

“Branca de Neve” é uma das narrativas de que os pequenos mais gostam. Na pesquisa, o conto foi utilizado por metade (5) das crianças. Ele traz em seu enredo a questão da passagem para a sexualidade: morrer criança e acordar adulto. Essa transição que se apresenta para a criança reporta um conflito dos pequenos em relação às respostas evasivas dos pais. Isso permite que a criança vá se tornando autônoma diante da fala e do pensamento dos pais, colocando seu desejo em evidência.

Morder a maçã é morrer criança e acordar um homem ou uma mulher, quando o veneno é a sexualidade. É isso que a bruxa foi fazer na casa dos anões. Na estória vai para matá-la, na prática trata-se de despertar a criança para desejos e tentações. Tanto é assim que é sob o efeito da maçã envenenada que a beleza da Branca de Neve se expõe, tornando-se disponível para o olhar do príncipe, ou seja, abre-se espaço para ir à busca de outros desejos que não somente o desejo materno (Corso & Corso, 2006).

Se morder a maçã representa a passagem para tornar-se adulto, entende-se o motivo pelo qual 30% das crianças que leram o conto “Branca de Neve” referiram-se ao episódio de envenenamento da princesa pela bruxa como a parte que menos gostaram da estória. A bruxa dessa e de tantas outras estórias presta-se para encarnar a figura da mãe, que às vezes é bela e outras vezes é horrível: “é uma bela holível buxa”. A personagem demonstra exatamente o lado da mãe que tenta manter a criança como seu objeto de desejo constante. E as crianças, inconscientemente, sabem disso. A bruxa malvada sabe do poder da criança, percebe nela o adulto em que irá se tornar e tenta impedir a transformação, retendo-a na infância, num tempo em que esta se sujeita a seu poder. A bruxa tanto sabe do poder da criança que “... a Banca de Neve moleu... daí a buxa pegou o poder da pincesa. Daí a buxa colocou o poder da pincesa junto com o dela que era holível”.

Envenenar-se seria crescer e crescer remete a uma frustração de um desejo materno. Logo, crescer também significa comunicar-se de acordo com as regras pré-estabelecidas. Dessa maneira, a criança mostra-se resistente em falar conforme as convenções linguísticas, produzindo assim um sintoma. Falar corretamente é impor uma falta para a mãe e recusar as expectativas dela, saindo de um plano de sujeição.

A pesquisa apontou que das cinco crianças que utilizaram a estória, uma demonstrou que a parte que ela mais gostou do conto foi quando os anões surgem. Livrada da morte, Branca de Neve se vê sozinha e abandonada na floresta sem ter para onde ir até que o acaso a conduz para a casa dos anões, que lhe oferecem um lar, onde ela se ocupa de tarefas domésticas, mas não é cobiçada por nenhum deles. Os anões são criaturas interessadas em riqueza e não cobiçam princesas. São criaturas que desejam outras coisas, não sexo. Essa ausência de interesse por ela faz a existência deles ser comparável com a criança pré-púbere. Dessa maneira, a criança não necessita responder a uma posição de adulto, não precisando impor seus desejos, permanecendo sob os cuidados e desejos da mãe. Permanecer nessa posição é satisfazer o desejo da mãe; é sempre permanecer sendo o seu bebê sem ter de habitar o território do exercício sexual e, portanto, permanecer infantilizada, sem precisar falar corretamente.

Categoria 5 - Bela Adormecida

O projeto de um filho se concretiza quando alguma coisa falta ao casal. Assim, a aposta narcísica nesse projeto evidencia o renascimento da busca de uma completude e da reconstituição de questões infantis dos pais. Bela Adormecida teve o privilégio de corresponder em número e gênero ao desejo parental. A princesa era uma filha muito desejada por seus pais e teve sua chegada ao mundo celebrada num luxuoso batizado, em que as fadas dotaram-na de todos os encantos que uma mulher pode ter (Corso & Corso, 2006).

Sabe-se que o filho idealizado não nasce nunca, restando ao filho real a batalha de tentar se parecer com o que ele supõe que esse ideal possa ser. Para a criança se constituir como sujeito diferenciado, a aposta narcísica precisa minimamente fracassar para que as características da criança possam aparecer (Ferrari & Piccinini, 2010). Isto ocorre em grande parte porque a criança não acata tudo o que lhe é reservado, esboçando pontos de resistência àquilo que lhe foi destinado.

Os dados da pesquisa sugerem que as crianças com essa patologia da fala possuem dificuldade de se desvincular do desejo materno e, portanto, temem decepcionar narcisicamente a mãe e por isso respondem a ele, visto que se percebeu que a forma errada de falar é supervalorizada, principalmente pela função materna. Isso faz com que a criança se mantenha refratária aos modos convencionais de falar da sociedade em que vive.

Prova disso é o seguinte dado: das quatro crianças que utilizaram essa narrativa, a maioria delas (3) apontou o fragmento do nascimento do bebê como a parte da estória que mais gostaram, ou seja, metaforizaram, por meio da figura do bebê, o seu desejo de se manter nessa posição de completude com a mãe. Além disso, mostraram-se assustadas com a maldição da fada malvada: “Quando a princesa completar 15 anos, ela espetará o dedo na roca e morrerá”.

Talvez o motivo do desagrado com esse fragmento esteja no sentido oculto, dado que a maldição simboliza a passagem de uma posição de bebê diante da família rumo ao exercício da sexualidade e a fada malvada, com seu humor invejoso e nocivo, exemplifica o lado obscuro da mãe, em que está em jogo o lugar da criança como possessão materna, revelando a versão terrífica desse idílio amoroso no qual a entrega tem seu preço e que por isso “... um dia a buxa veio pegá o bebê pá colocá ele na panela”.

Entende-se que os sujeitos da pesquisa conseguiram não obturar totalmente os desejos parentais, caso contrário, estariam todos no campo estruturante da psicose. Ao satisfazerem narcisicamente suas mães pela maneira como falam, no entanto, as crianças fazem um sintoma de linguagem, assumindo uma posição infantil, ou seja, a criança faz sintoma para os pais uma vez que ela funciona como círculo suplementar que repara uma falha de um dos pais, inclusive de ambos.

A reviravolta da estória acontece por uma transgressão: Bela Adormecida pica o dedo em uma roca por que não devia tocá-la. Trata-se de uma ordem que não foi obedecida, por mais que a proibição tenha tido o objetivo de protegê-la. Ela faz o que não deve e a maldição anterior lançada pela fada malvada é a origem da interdição. Dessa forma, a maldição prescreve algo que o futuro não poderá evitar: crescer, amar e partir (Corso & Corso, 2006). Assim, a criança que referiu a morte da princesa como o momento que menos gostou sabia, inconscientemente, que depois da morte há um renascer que aponta para um destino: crescer.

Categoria 6 - Aladim e a Lâmpada Maravilhosa

O conto “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa” foi utilizado por uma criança, a qual se recusou a nomear a parte que mais gostou e a que menos gostou da estória. Podem-se levantar duas hipóteses para a negação da criança. A primeira é de que a estória pode ter tocado em alguma questão dolorosa ou então um conflito que fez com que a ela não demonstrasse desejo em falar, pois poderia lhe causar muito sofrimento. Pensando nessa perspectiva, algo no qual a criança não desejasse mexer nesse momento por questões subjetivas. A segunda hipótese é de que o conto pode não ter conseguido acessar nenhuma questão para essa criança naquele momento. Como a criança resistiu em falar sobre essa estória, não se pode tirar conclusão alguma, pois se corre o risco de trazer um dado inválido para a pesquisa.

Categoria 7 - Pinóquio

Embora a estória “Pinóquio” tenha sido utilizada por apenas uma criança, ela levanta algumas questões que podem ser pensadas em relação à posição refratária. A criança que utilizou o conto, quando foi questionada em relação à parte da estória que menos havia gostado, respondeu que foi quando a baleia engoliu Pinóquio e Gepeto.

Depois de ter se perdido de Gepeto e ter cometido todos os erros possíveis, o menino retorna ao pai e vai encontrá-lo dentro da barriga de uma baleia. Pinóquio e Gepeto precisam sair desse corpo imenso e escapar dali significa um segundo nascimento (Corso & Corso, 2006). Percebe-se na estória que quando eles conseguem sair da barriga da baleia os dois já não são mais os mesmos: Gepeto está velho e Pinóquio finalmente sábio. Graças à coragem de Pinóquio, os dois saem juntos do gigantesco ventre que os aprisionava. Depois disso, o filho trabalha duro para manter o pai fraco e doente e então o boneco se humaniza e passa a estudar muito e cuidar de seu pai.

A metáfora do renascimento é largamente utilizada para simbolizar um recomeço. Para renascer, também é necessário ter morrido antes e recomeçar significa que algo acabou. Nesse caso, o que terminou foi a infância de Pinóquio e junto com ela a ilusão de que a vida poderia transcorrer sem esforços e responsabilidades. Crescer significa para a criança que ela tem de se ocupar de tarefas e desafios que ninguém pode executar ou vencer por ela (Corso & Corso, 2006). Talvez este seja um dos principais motivos pelo qual a estória do Pinóquio não esteve entre as preferidas dos sujeitos da pesquisa. É certo que nos tempos de alienação a criança é no Outro, quer dizer, é um tempo especular necessário para que se geste um vir a ser, no entanto são necessários os tempos de separação que possibilitam o surgimento do sujeito (Dias, 2012).

As separações são necessárias para que a criança saia do lugar de objeto de desejo da mãe, para que ela possa deixar de ser criança, para que ela possa crescer. É preciso que o pai interfira na relação da mãe com sua criança interrompendo essa relação, interditando-a de certa forma ao ocupar o lugar de objeto de desejo desta mãe e colocá-la também nesse lugar em relação ao seu próprio desejo. O pai o faz como homem, mas também como representante da lei cultural, fazendo da criança seu filho, dando-lhe esse lugar. Isso é estruturante para a criança (Brauer, 1998). Por essa razão, sair das entranhas de uma baleia pode ser uma significação difícil para as crianças, dado que outrora habitaram as entranhas da mãe. Ser expulso desamparado desse ventre, à mercê de perigos e ameaças, não é tarefa fácil para quem, até então, estava totalmente protegido pela mãe.

Comportamentos observados quando a fala da criança não foi compreendida

Durante a contação de estórias foi possível observar algumas reações que as crianças esboçaram quando foram questionadas sobre alguma palavra que a pesquisadora não havia compreendido. Dessa maneira, os seguintes pontos foram passíveis de observação: percepção do erro; erros durante a fala espontânea (conto); disposição/tentativas de modificação; desconversa; agressividade; comunicação com gestos indicativos; inibição (ausência de fala ou entonação muito baixa) e ignorar o olhar e/ou a ação de correção da pesquisadora. Todos estes pontos possibilitaram identificar a posição refratária nos sujeitos envolvidos na pesquisa, haja vista que se referem ao não interesse da criança em se fazer compreendida nas suas interações e também porque a posição apresentada num conto manteve-se em todos os outros contos escolhidos pelos participantes. Isso possibilitou a análise a seguir.

Com relação à percepção de erros, das dez crianças, oito não tiveram a percepção do erro, sendo que a totalidade delas teve erros na fala espontânea. A investigação da percepção do erro pela criança foi feita por meio de questionamentos realizados pela pesquisadora quando a criança se expressava verbalmente de maneira incorreta. Isso ocorrendo, ela era instigada a repetir a palavra de maneira correta. Embora se saiba que por questões fonológicas a criança dificilmente conseguiria repetir uma palavra errada de forma correta, foram feitas algumas tentativas pela pesquisadora na intenção de verificar se as crianças ao menos manifestavam interesse e/ou disponibilidade para modificar/corrigir a palavra. Diante disso, notou-se que embora nenhuma delas tenha apresentado atos ou palavras de agressividade, foi possível verificar que apenas quatro delas mostraram disponibilidade para tentativas de modificação. Das seis crianças que não se dispuseram a realizar as modificações, observou-se que elas tiveram as seguintes atitudes: desconversa e tentativas de ignorar o olhar e a ação de correção da pesquisadora.

Também foi possível constatar que a metade das crianças fez tentativas de comunicação por meio de gestos indicativos e que oito das dez crianças demonstraram-se inibidas quando questionadas em alguma palavra ou frase não compreendida pela pesquisadora. A análise dos pontos permite concluir que todas as crianças posicionaram-se refratárias ao modo de falar conforme as convenções linguísticas de seu grupo social. Destaca-se isso, pois mesmo aquelas crianças que tiveram a percepção dos seus erros em alguns momentos, quando foram questionadas em relação a ele, durante a fala espontânea e durante o conto, nenhuma delas os percebeu.

Análise dos juízes

Em relação à análise dos juízes, verificou-se que tanto o profissional da fonoaudiologia quanto o profissional da psicologia que possuíam o uso do referencial teórico-clínico da psicanálise conseguiram identificar a posição refratária em todas as crianças participantes da pesquisa. Comportamentos como inibição, tentativas de ignorar o olhar e/ou ação de correção da pesquisadora, gestualidade frequente, ausência de questionamento sobre sua dificuldade de produção/fala, necessidade de sustentação da pesquisadora para viabilizar e/ou desencadear sua criação, verbalização e, também, para exploração do material, foram identificados por esses juízes. Não houve indicação desses pontos por parte da pesquisadora aos juízes. Dessa maneira, verifica-se que eles foram identificados em decorrência do olhar que estes profissionais possuem sobre o sujeito, entendendo que o seu sintoma é algo que está para além do erro e, portanto, uma formação subjetiva.

A visão dos outros dois juízes, um da área da fonoaudiologia e outro da psicologia, porém com outras abordagens teóricas, proporcionou uma visão diferenciada dos outros dois anteriormente citados. Nestes casos ocorreu o seguinte: o juíz da área da psicologia não identificou a posição refratária em nenhuma das crianças, justificando que todas elas voltaram a atenção para a pesquisadora. Quanto ao juíz da área da fonoaudiologia, verificou-se que este identificou a posição refratária em seis crianças. Sua justificativa para a constatação desse dado de que essas crianças não atenderam à ação de reparo da pesquisadora e, portanto, ignoraram a tentativa de correção da fala. Em relação às crianças que este juíz entendeu não estarem assumindo uma posição refratária, justificou dizendo que elas atenderam aos pedidos da pesquisadora de tentar corrigir sua fala, embora não obtendo êxito.

Diante dos posicionamentos dos juízes é possível perceber dois modos de pensar as patologias da fala e a maneira de conduzir uma clínica. Em um deles faz-se referência ao erro como uma manifestação sintomática que oculta enigmas e carrega uma singularidade. Essa forma de compreender a criança, portanto, coloca-a num lugar de sujeito que demanda por uma mudança na linguagem e também na condição de falante dirigida ao terapeuta. Essa visão difere da segunda, na qual a fala fica reduzida à periferia do corpo, reduzida ao par emissão-recepção e o falante à boca- orelha. Assim, perdidas ficam as afetações que o sintoma produz e são anulados os efeitos do sujeito que não é considerado no seu sintoma, o que leva à visão de erro na produção da fala.

O fato é que, assim, a clínica das especificidades daqueles que trabalham com crianças e as patologias da fala não enfrenta o mistério do porquê um sujeito produz uma fala problemática, posto que a tentativa de apreensão positiva do que ocorre nesta fala é insistentemente recoberta por um manual e a suposição de que a linguagem pode ser ensinada, havendo a redução do sujeito/paciente ao organismo (Faria & Trigo, 2004).

Considerações Finais

Os dados sugeriram que todas as dez crianças estavam assumindo uma posição refratária, pois elas se apresentaram indiferentes diante da patologia. Conclui-se, por ora, que o desvio fonológico ainda não esteja lhes causando um mal-estar, e por isso os sujeitos não se apresentam implicados em movimentar seu sintoma. Vale salientar que, embora refratárias em relação às regras linguísticas, todas as crianças apresentaram momentos em que produziram defesas ao desejo materno, o que faz com que elas sejam neuroticamente estruturadas, caso contrário, teríamos sujeitos organizados psiquicamente, em uma estrutura psicótica.

O que se apresentou nos sujeitos dessa pesquisa não foi o fato de que o lugar terceiro, a função paterna não existia. As mães de certo modo indicaram isso aos seus filhos. O que ocorreu é que os pais provavelmente encontraram dificuldades no exercício de sua função, dando um espaço maior do que o necessário para as mães na relação com a criança. Em decorrência disso, as crianças produziram uma fala sintomática na tentativa de satisfazer de alguma forma as expectativas narcísicas parentais, um ideal impossível de se alcançar já que é preciso crescer.

A criança é para os pais o círculo suplementar que repara uma falha de um deles ou mesmo de ambos. Assim, constatou-se que as crianças organizaram um sintoma de linguagem na tentativa de suprir uma falha paterna de suprir o desejo materno. Além disso, pode-se pensar que os sujeitos elaboraram um sintoma como uma tentativa de cura, pois ele revela que a criança ainda se encontra numa posição de assujeitamento ao desejo materno. Diante disso, entende-se que o sintoma é um apelo ao pai no momento em que este começa a dar sinal de sua exaustão (Lacan, 1956/1995). Nesse caso, parece que abandonar o sintoma, que diz de uma produção singular da criança e falar conforme a convenção linguística pode gerar angústia porque seria atender à demanda do Outro, atender à demanda materna e ficar preso nela.

É por essa condição que os terapeutas que se ocupam do campo da infância precisam escutar de modo atento as questões que levam uma criança a manifestar tal sintoma e entendê-lo como uma linguagem a ser decifrada, pois o que pode estar envolvido nesse sintoma é a construção de algo mal alicerçado e uma resposta a uma demanda parental.

As falas sintomáticas são acontecimentos singulares e enigmáticos que perdem importância quando o terapeuta as coloca unicamente no terreno do erro. Tomadas assim, as patologias de linguagem acabam por refletir um apagamento do sujeito e da dimensão de sofrimento. Assiste-se ao desconhecimento sobre o porquê de uma fala acontecer assim, sintomaticamente desarranjada, e se fica na impossibilidade de proporcionar à criança outra forma de fazê-lo.

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Autor notes

Taís Cervi: graduada em Psicologia, pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul; especialista em atendimento clínico infantil, pelo Centro Universitário Franciscano; especialista em transtornos do desenvolvimento, pelo Centro Lydia Coriat; mestre em Distúrbios da Comunicação Humana, pela Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Marcia Keske-Soares: fonoaudióloga; doutora em Linguística Aplicada, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; professora do curso de Fonoaudiologia e do Programa de Pós-graduação em Distúrbios da Comunicação Humana da Universidade Federal de Santa Maria, Brasil.
Angela Maria Schneider Drügg: doutora em educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil; professora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

E-mail: taiscervi@hotmail.com

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