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Antecedentes da Associação Livre: As Experiências Precursoras na Década de 1890
Fabiano Chagas Rabêlo; Reginaldo Rodrigues Dias; Gustavo Freitas Pereira;
Fabiano Chagas Rabêlo; Reginaldo Rodrigues Dias; Gustavo Freitas Pereira; Maria Helena Figueiredo de Oliveira; Nathalia Lorenne de Oliveira
Antecedentes da Associação Livre: As Experiências Precursoras na Década de 1890
Antecedentes de la Asociación Libre: Los Experimentos Precursores en la Década de 1890
Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 2, pp. 235-246, 2015
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá
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Resumo.: Neste trabalho discutimos as experiências que antecederam e influenciaram a formulação da associação livre. Respaldado no argumento de que a adoção da regra fundamental ocorreu juntamente com o desenvolvimento da técnica de interpretação dos sonhos pela interferência de uma intuição obscura, perguntamo-nos então pelos elementos que propiciaram tal intuição. Nosso argumento principal é que a formulação da associação livre é o corolário de uma abordagem analítica do psiquismo. Localizamos na problematização do aparelho de linguagem por Freud e na concepção de resoluções espontâneas de Breuer dois pontos estratégicos para o entendimento dessas experiências precursoras. Seguimos daí o percurso freudiano em direção à defesa de uma causalidade psíquica na etiologia das neuroses e ao aprofundamento da experiência do inconsciente. Dividimos essas experiências precursoras em cinco fases que refletem diferentes momentos de construção da técnica na década de 1890. São elas: 1) a aplicação do método catártico por Breuer e Freud; 2) a análise psíquica com hipnose; 3) a análise psíquica sem hipnose; 4) a hipnose analítica e a investigação profunda e 5) a intensificação da experiência do Inconsciente.

Palavras-chave: Associação livreAssociação livre,Freud-BreuerFreud-Breuer,técnica analíticatécnica analítica.

Resumen.: En este trabajo nosotros discutimos los experimentos que antecedieron e influyeron la formulación de la asociación libre. Apoyado en el argumento de que la adopción de la regla fundamental se produjo junto con el desarrollo de la técnica de la interpretación de los sueños a través de la interferencia de una intuición incierta, nos preguntamos por los factores que llevaron a tal intuición. Nuestro principal argumento es que la formulación de la asociación libre es el corolario de un enfoque analítico del psiquismo. Hemos identificado en la discusión del aparato de lenguaje de Freud y en la concepción de resoluciones espontáneas de Breuer dos puntos estratégicos para la comprensión de estos experimentos precursores. Seguimos, por lo tanto, el recorrido freudiano en dirección a la defensa de una casualidad psíquica en la etiología de las neurosis y a la profundización del experimento del inconsciente. Dividimos estos experimentos precursores en cinco fases que reflejan diferentes momentos de la construcción de la técnica en la década de 1890, a saber: 1) La aplicación del método catártico por Breuer y Freud; 2) El análisis psíquico con hipnosis; 3) El análisis psíquico sin hipnosis; 4) La hipnosis analítica y la investigación profunda; y 5) La intensificación del experimento del Inconsciente.

Palabras-clave: Asociación libre, Freud-Breuer, técnica analítica.

Carátula del artículo

Artigo Original

Antecedentes da Associação Livre: As Experiências Precursoras na Década de 1890

Antecedentes de la Asociación Libre: Los Experimentos Precursores en la Década de 1890

Fabiano Chagas Rabêlo
Universidade Federal do Piauí, Brazil
Reginaldo Rodrigues Dias
Universidade Federal do Piauí, Brazil
Gustavo Freitas Pereira
Universidade Federal do Piauí, Brazil
Maria Helena Figueiredo de Oliveira
Universidade Federal do Piauí, Brazil
Nathalia Lorenne de Oliveira
Universidade Federal do Piauí, Brazil
Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 2, pp. 235-246, 2015
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 27 Setembro 2014

Aprovação: 10 Abril 2015

A obra de Freud está repleta de indicações que atribuem à associação livre a condição de pilar da técnica psicanalítica. Como consequência disso, podemos afirmar que, de uma perspectiva histórica, a instauração do dispositivo psicanalítico se confunde com o advento da associação livre.

No entanto, ao invés de se instituir como uma virada súbita, a adoção da associação livre resulta de um longo e tortuoso percurso de experimentação. Desta forma, bem antes da regra fundamental, já é possível acompanhar Freud em um esforço de investigação na busca de uma outra lógica de operar com a fala na clínica que produzisse efeitos mais duradouros e confiáveis.

Após essa breve contextualização, apresentamos nossa proposta de trabalho: resgatar e discutir o percurso freudiano que leva à construção da técnica da associação livre. Destacaremos as implicações metodológicas da abordagem que Freud faz da linguagem, de onde deriva uma abordagem analítica da técnica. Posteriormente, situaremos a sua apropriação do método catártico e as transformações que implementa a partir dele. Enfatizaremos a proximidade que há entre as modificações no âmbito da técnica e a leitura que Freud faz da divisão psíquica e dos processos de memória.

Distinguiremos cinco etapas do desenvolvimento da técnica freudiana que precedem e preparam a formulação do procedimento da associação livre: 1) a aplicação do método catártico por Breuer e Freud; 2) a análise psíquica com hipnose; 3) a análise psíquica sem hipnose; 4) a hipnose analítica e a investigação profunda e 5) a intensificação da experiência do inconsciente. Na conclusão, traremos a primeira descrição da técnica que a partir de 1910 será denominada associação livre. Por fim, elencaremos algumas linhas de investigação que esperamos desenvolver no futuro.

Método

Trata-se de um estudo bibliográfico. Privilegiaremos em nosso comentário os textos freudianos da década de 1890. Contudo, reportaremo-nos a escritos mais tardios, especialmente aqueles que explicitam aspectos relevantes dos fundamentos da técnica ou que oferecem um olhar crítico retroativo do percurso trilhado por Freud. Também faremos referência a autores da atualidade que problematizam esse período do trabalho freudiano.

As referências ao texto freudiano se darão pelo Gesammelte Werke (GW). As exceções estão nas “Cartas a Fliess”, no texto sobre as afasias e no caso clínico de Breuer publicado nos “Estudos sobre Histeria” (Anna O.), que não constam nessa coleção. Já em relação ao texto “Tratamento Psíquico (Anímico)”, optamos pelo Studienausgabe por apresentar a data correta de publicação original.

Contextualização e Justificativa

O interesse pela associação livre surgiu do trabalho de supervisão acadêmica com alunos de psicologia no contexto do estágio profissional em clínica. Constatamos a dificuldade de muitos em fazer uso dessa técnica. Alguns relatam a irrupção de estados de angústia diante de pacientes que põem em dúvida a regra fundamental, solicitando informações adicionais de como proceder. O embaraço frente ao silêncio dos pacientes também é apontado por muitos estagiários como uma situação crítica nos atendimentos.

Somos da opinião que a insegurança quanto aos fundamentos da associação livre está na base de todas essas queixas. Depreendemos dessas dificuldades que a associação livre, em sua elegante e complexa simplicidade, mostra-se de difícil apreensão para aqueles que esperam uma demonstração por meio de um passo a passo.

Estando advertido das especificidades da formação do analista (que extrapola o âmbito da formação universitária), decidimos então abordar essa dificuldade que se apresenta na prática dos alunos por meio de uma pesquisa teórica. Propomos para alguns estagiários investigar o caminho que levou Freud à formulação da associação livre. Partimos, portanto, da premissa de que muitas das dificuldades e obstáculos encontrados no percurso freudiano em direção à associação livre ressurgem na prática daqueles que se iniciam no desafio de conduzir novos tratamentos a partir da referência ao inconsciente.

Não podemos deixar de destacar que as investigações freudianas em torno da técnica constituem uma alternativa ao que acontecia na psicologia e na psiquiatria no final do século XIX. Daí, para introduzir nossa questão, contextualizaremos de modo breve o cenário desse período no que tange ao tratamento das doenças nervosas e à metodologia de pesquisa na psicologia.

Sobre esse último ponto, destacamos o trabalho de Wundt, que buscava dar conta dos processos psíquicos por meio de um método analítico e experimental. Sua investigação partia do relato da percepção interna dos fenômenos senso-perceptivos mais elementares com o intuito de delinear as vias de síntese psíquica em direção aos fenômenos mais complexos da consciência (Figueiredo & Santi, 2010). Segundo Araújo (2009):

Wundt estabeleceu uma diferença entre a introspecção tradicional ou auto-observação (Selbsbeobachtung) de um lado, e a percepção interna (innere Wahrnehmung), de outro (Wundt, 1888a). Somente essa última poderia ser utilizada como recurso metodológico, devido ao fato de poder ser reforçada pelo controle experimental das condições externas da experiência, o que, segundo Wundt, eliminaria os riscos da introspecção tradicional e livraria a psicologia das duras críticas feitas por diversos autores ao introspeccionismo (pp. 214-215).

Com Beauchesne (1989), destacamos que o método de investigação wundtiano elimina da verdade do sujeito sua produção discursiva espontânea, apenas dignificando-a quando se torna material de observação induzido experimentalmente. Freud, por sua vez, ao invés de partir do registro controlado de fenômenos psíquicos elementares, toma como material de trabalho as manifestações concretas de sofrimento psíquico dos seus pacientes.

Na medicina e na psiquiatria, por sua vez, destacavam-se as ideias de Janet sobre a histeria. De acordo com Roudinesco e Plon (1998), para Janet, a histeria era o resultado de um déficit da capacidade de síntese em decorrência de uma fraqueza psíquica, levando a um estreitamento do campo da consciência. Um conceito central para Janet na explicação dos fenômenos histéricos é o de automatismo mental. Diferentemente do uso que Clérambault faz desse termo, Janet o descrevia como um processo psíquico consciente, rudimentar e enfraquecido.

Breuer (Breuer & Freud, 1895/1998), por sua vez, adotava uma opinião partilhada por muito de seus pares. Para ele, a histeria decorria de um estado fisiológico anormal difuso, um déficit maturacional do sistema nervoso ocasionado por uma predisposição inata. Salientamos também que muitos médicos e psiquiatras simplesmente ignoravam os sintomas histéricos, afirmando que se tratavam de mentiras, embustes e simulações.

Demarcando uma nítida oposição às ideias de Janet, Freud, em seus casos clínicos, vai recorrentemente ressaltar a riqueza e a complexidade dos processos psíquicos envolvidos na formação dos sintomas histéricos. Seu trabalho se fundamenta na convicção de que, além de representar um sofrimento genuíno, os sintomas neuróticos constituem uma produção psíquica complexa e sobredeterminada. Além disso, o destaque para uma causalidade psíquica e a crítica ao reducionismo fisicalista colocam sua pesquisa em um lugar de exceção no contexto da medicina de sua época.

O Primeiro Momento das Experiências Precursoras: o Método Catártico

Na introdução, indicamos que Freud (1910/1999 e 1940/1999) reiteradas vezes apresenta a associação livre como fundamento da técnica psicanalítica. Destacamos em seguida que, de uma perspectiva histórica, a instauração do dispositivo analítico se confunde com a adoção da associação livre.

No primeiro capítulo da “História do Movimento Psicanalítico”, Freud (1914/1999) descreve como criou o seu método de interpretação dos sonhos. Diz ter chegado a ele como o resultado de inovações técnicas após se decidir, em consequência de uma “intuição obscura” (Dunkel Ahnung) (p. 57; tradução nossa), trocar a hipnose pela associação livre. Essas transformações, por sua vez, são atravessadas por um amplo movimento de questionamento e verificação dos fundamentos de sua prática clínica, que encontra no desafio de interpretar os sonhos de neuróticos a sua culminância.

Tal projeto consistiu em um amplo esforço de dominar simultaneamente “técnica, clínica e terapia da neurose” (Freud, 1914/1999, p. 58); A concatenação desses três elementos constituiu para Freud a prova de seus pressupostos. Essa prova só é satisfatoriamente superada por intermédio da interpretação dos sonhos, cujo alicerce remonta à analogia entre sonho e sintoma.

Destacamos que não há referências precisas quanto ao momento em que Freud abandona definitivamente a hipnose e adota o procedimento da associação livre. Sabemos que no momento da publicação do livro dos sonhos, Freud já havia abandonado definitivamente o procedimento da hipnose e restringido até onde lhe foi possível o uso da sugestão (Freud, 1905/1999). Dessa forma, em 1900, na condição de esteio de sua técnica de interpretação, Freud apresenta, ainda que não a tenha nomeado como tal, uma descrição sintética do procedimento da associação livre (Freud, 1900/1999).

Diante do exposto, defendemos que durante um período significativo de experimentações, antes da formulação dos fundamentos do método psicanalítico, Freud operou com um tratamento pela fala com fins analíticos. Daí nosso argumento principal: que a associação livre resulta de um longo movimento de experimentação técnica sob uma orientação analítica.

Entendemos o termo análise tal como é apresentado no texto “Caminhos da Terapia Psicanalítica” (Freud, 1919/1999). Ou seja, partindo do pressuposto que o sintoma, os sonhos e outras manifestações do psiquismo são produções complexas, resultados de um elaborado esforço de síntese, o tratamento consiste em decompor esses produtos já cristalizados em suas partes elementares com o intuito de possibilitar novas vias de resolução do conflito.

Feito esse preâmbulo, esclarecemos o que entendemos por experiências precursoras: aquelas que precederam e influenciaram a construção do procedimento da associação livre. Tais experiências englobam as inovações técnicas que embasaram a intuição obscura supracitada. Para lançar luz sobre essa intuição, consideramos imprescindível avaliarmos as experimentações desenvolvidas no âmbito dos “Estudos sobre Histeria” (Freud, 1895/1999), onde os avanços da técnica são apresentados e discutidos de forma sistemática.

Aqui nos alinhamos com Darriba e Bosse (2013) no que toca à distinção entre objetivos terapêuticos e analíticos na clínica psicanalítica. No entanto, nos distinguimos dos autores citados por acentuarmos a influência de um projeto analítico já bem cedo no percurso freudiano. Dito isso, adentramos no comentário do primeiro tempo das experiências precursoras, caracterizada pelo uso do método catártico por Freud. Aqui, seguiremos algumas indicações da leitura que Rabêlo (2011) faz do livro de Breuer e Freud.

Inicialmente, remetemos o leitor aos motivos que levaram Freud (1914/1999) a se interessar pelo método catártico. Segundo ele, a adoção desse procedimento pressupõe uma reserva quanto ao uso da sugestão. Ao invés de suprimir o sintoma por meio de proibições ou ordens, a terapêutica de Breuer busca esvaziá-lo de sua carga afetiva através da fala sob hipnose. Nesse caso, a sugestão sob hipnose é reduzida a um instrumento para superar a amnésia resultante da divisão psíquica.

Freud (1904/1999) explica os efeitos terapêuticos do método catártico a partir do procedimento que denomina “expansão da consciência” (p. 03). Para entender essa expressão, é necessário referir- nos ao modelo de divisão psíquica tal qual é apresentada por Breuer e Freud (Freud, 1895/1999) na comunicação preliminar. Esse modelo pauta-se em duas consciências: uma patológica e outra normal. A expansão consiste em fazer com que a área da consciência normal seja ampliada para abranger alguns conteúdos da consciência patológica.

Breuer e Freud explicam o aparecimento da consciência patológica a partir da influência de um estado alterado da consciência - o estado hipnoide -, cuja origem, para Breuer, remonta a um distúrbio neurológico, hereditário e congênito. Essa anomalia predispõe o psiquismo à retenção de afetos, que são impedidos de serem descarregados pelas vias mais favoráveis à regulação da economia psíquica (a ação, a verbalização e o pensamento).

Salientamos o caminho inusitado pelo qual Breuer chega ao método catártico. Segundo ele (Breuer & Freud, 1895/1996), o método catártico não é, no sentido científico tradicional, uma invenção a quem lhe cabe os méritos da descoberta. Diz que sua participação no processo que culminou na formulação do método catártico limitou-se a acompanhar com sua escuta a fala de Anna O. Com o desenrolar dos acontecimentos, ele chega à descrição de uma técnica terapêutica. Nesse momento de conclusão, Breuer se diz surpreso com o produto do que denomina de uma “sequência de resoluções espontâneas” (Breuer & Freud, 1895/1996, p. 66; tradução nossa).

Destacamos a expressão sequência de resoluções espontâneas assim como o espanto que ela desencadeou em Breuer. Há nessa afirmação o reconhecimento de um movimento de atualização do psiquismo, ainda que o modo como tal atualização se processa permaneça sem explicação.

Caberá a Freud investigar como essas resoluções são agenciadas. A restrição dos objetivos terapêuticos à catarse e a prevalência de uma explicação pautada numa causalidade fisicalista constituem impedimentos para que Breuer avance nessa questão. Por isso, ainda que incite sua paciente à produção de uma série de associações verbais, a terapêutica de Breuer permanece confinada aos seus efeitos paliativos, abdicando de intervir nos fatores etiológicos determinantes do sofrimento.

No final do caso de Anna O., Breuer (Breuer & Freud, 1895/1996) propõe a analogia entre os processos que regem a formação dos sonhos e aqueles envolvidos no funcionamento da consciência patológica. É instigante pensar que esse comentário não passou desapercebido para Freud.

A Análise Psíquica

Embora o método catártico seja o ponto de partida da clínica de Freud, seu percurso nos “Estudos” é atravessado pela tensão entre uma intenção analítica e a manutenção das bases terapêuticas de Breuer. O caso Emmy caracteriza-se pela coexistência dessas duas tendências e pelo início da transição desta para aquela.

No entanto, para entendermos essa tensão, consideramos necessário retornar ao momento em que Freud se aproxima de uma perspectiva analítica. Além disso, também acreditamos ser pertinente situar as razões que levaram Freud a se interessar pelo estudo da linguagem. A referência à linguagem e ao método analítico estão intimamente relacionados.

Em “Tratamento Anímico (ou Psíquico)”, Freud (1890/1997) questiona o modo dominante em sua época de se pensar a relação entre o psíquico e o somático. Nele, os processos psíquicos e seus distúrbios são tomados como produtos de alterações fisiológicas. Com isso, os tratamentos médicos disponíveis, em sua grande maioria, fundamentavam-se em intervenções fisicalistas. Os métodos que destoavam dessa tendência não obtinham reconhecimento científico.

Freud propõe uma linha de investigação que vai na contramão do pensamento da maioria de seus colegas médicos. Ressalta a complexidade dos fatores envolvidos na determinação dos processos psíquicos e, sem excluir a legitimidade das teorias fisicalistas, defende a existência de uma causalidade inversa: a influência do psíquico na determinação de processos corporais. Para fundamentar esse argumento, propõe uma avaliação cuidadosa das denominadas doenças nervosas, em que uma causalidade psíquica intervém de modo mais manifesto. Argumenta que os métodos fisicalistas tradicionais tem se mostrado inadequados para tratar tais doenças.

O projeto freudiano explicitado nesse texto é o de constituir um tratamento psíquico cientificamente orientado para as doenças nervosas. Com esse intuito, aponta a palavra como o principal instrumento de intervenção nessa modalidade de tratamento a ser construída. Concluímos daí que a formulação de uma explicação do funcionamento da linguagem que não se reduza ao modelo neurológico torna-se fundamental para Freud. Por isso, logo após à publicação desses argumentos, ele volta sua atenção às afasias.

Na década de 1920, Freud (1925/1999) refere-se ao texto sobre as afasias publicado em 1891 como um livro crítico e especulativo. Entendemos crítico no sentido de subversivo, uma vez que a leitura das afasias possibilita um reordenamento de elementos, lugares e relações já demarcados dentro de um campo já constituído (a clínica médica). O termo especulativo, por sua vez, refere-se ao fato de que as ideias apresentadas ainda careciam de fundamentação. Freud resgata algumas ideias gestadas no contexto de um referencial fisicalista e anatômico para reformulá-las a partir de uma matriz explicativa de cunho psicológico e analítico.

Inicialmente, Freud (1891/2001) promove uma retrospectiva das contribuições de dois neurologistas, cujos trabalhos constituíam referência nessa área: Wernicke e Lichtheim. O pano de fundo do debate entre os dois está na determinação da relação entre as funções da linguagem e sua localização neurológica. Enquanto Lichtheim se apoia em estudos clínicos para construir um modelo de “aparelho linguístico” (Sprachapparat) (Freud, 1891/2001, p. 44), as pesquisas de Wernicke se desenvolvem principalmente a partir da dissecação post-mortem, estabelecendo relações demonstráveis entre transtornos de linguagem e lesões cerebrais.

Freud destaca que Lichtheim reconhece um tipo específico de afasia, na qual não há lesão. Os transtornos de linguagem nesse caso são explicados como o resultado de alterações funcionais nas vias de comunicação entre áreas do cérebro. Lichtheim denomina esse tipo específico de afasia como de condução. Temos então que Freud interessa-se sobremaneira por essa possibilidade, extraindo dela consequências mais amplas para se pensar os fenômenos de linguagem.

Com isso, antes mesmo de constituir seu primeiro esboço de aparelho psíquico, Freud se engaja na construção de um modelo de aparelho de linguagem. Esse modelo é apresentado a partir da conjunção de duas constelações psíquicas heterogêneas e interdependentes. Temos, portanto, dois grupos: o primeiro formado pelas associações dos elementos da palavra; o segundo, pelas associações dos elementos do objeto. Cada grupo é decomposto em partes mais elementares. O grupo das associações dos elementos da palavra é formado pelas imagens escrita, sonora, da leitura e da movimentação dos lábios. O grupo das associações dos elementos do objeto, por sua vez, é constituído pelas imagens visual, táctil e acústica (Freud, 1891/2001).

Essa decomposição da linguagem em componentes materiais mais elementares incita, por sua vez, um novo entendimento do processo de escrita da memória, que passa a ser abordada como um constructo complexo que une, por associação, modalidades diferentes de registros.

Comentaremos agora algumas passagens do caso Emmy para demonstrar a inserção na técnica freudiana de uma perspectiva analítica a partir do uso inicial do método catártico. Fica evidente nas passagens que destacaremos uma orientação analítica na abordagem dos fenômenos de memória e linguagem.

Ao aplicar a hipnose e solicitar que Emmy fale sobre seus sintomas, Freud (1895/1999) produz um discurso que resgata cenas traumáticas de momentos diferentes da vida de sua paciente. Conclui que a sequência de episódios traumáticos relatados estava de alguma maneira em estado de prontidão como uma modalidade organizada de registro psíquico (1895/1999). Em outro trecho, sugere que esses elementos aparentemente heterogêneos do discurso sejam interpretados como partes integrantes de um mesmo acontecimento, tal qual os diversos atos de um espetáculo teatral (1895/1999).

Percebemos nesses dois comentários acerca do material proveniente da aplicação do método catártico uma inovação. Para Freud, diferentemente de Breuer, a consciência patológica é ela mesma geradora de uma sintaxe de pensamento. Lembramos que, segundo Breuer, a catarse sob hipnose se justificava no pressuposto de uma insuficiência na capacidade de elaboração dos afetos pela consciência patológica. Um outro passo significativo em direção à associação livre ocorre quando Freud se distancia de outra premissa defendida por Breuer: a de que não existe comunicação entre as duas modalidades de consciência. A partir daí, abre-se o caminho para uma intervenção em vigília, sem o uso da hipnose, o que Freud (1895/1999) denomina “análise psíquica” (p. 158). Originalmente, esse procedimento serve de apoio ao método catártico, que se mantém como técnica principal.

Essas inovações culminam nas primeiras descrições do inconsciente como uma instância psíquica detentora de uma intencionalidade própria. Não se trata mais de conceber a divisão psíquica restrita ao âmbito da consciência como Breuer propunha.

A partir daí, Freud aplica esse modelo explicativo na avaliação de alguns fenômenos de memória evidenciados no tratamento de Emmy. Chama-lhe a atenção o fato dela ser capaz de recordar sob hipnose eventos ocorridos na sessão anterior, lembranças essas que permaneciam inacessíveis na vigília. Ele também se surpreende ao ver ressurgir no contexto de uma fala espontânea em vigília fragmentos de diálogos ocorridos com a paciente sob hipnose. Além disso, identifica a persistência da resistência mesmo quando a paciente se encontra em sonambulismo profundo.

À medida que avança no tratamento de Emmy, Freud chega à conclusão de que os efeitos da cisão psíquica não se limitam aos hiatos de memória. Percebe que falsas conexões são formadas para preencher o vazio deixado pelas lembranças suprimidas. Segundo ele, essas novas conexões continuam a manter um nexo associativo com as representações suprimidas.

A Análise Psíquica Sem Hipnose

Comentaremos agora os avanços na técnica no tratamento de Lucy. De acordo com Freud (1895/1999), Lucy, ao contrário de Emmy, não se mostra suscetível à hipnose. Essa contingência resulta em uma modificação momentânea e experimental da técnica. Freud abdica da hipnose e a análise psíquica, que até então desempenhava um papel auxiliar, torna-se o procedimento principal. Essa circunstância incita a necessidade de fundamentar mais detalhadamente os pressupostos da análise psíquica. Desse esforço surgem esclarecimentos importantes sobre o mecanismo de comunicação entre as instâncias psíquicas (consciência e inconsciente) e a procedência do material trazido pelas associações dos pacientes.

Sobre esse último ponto, Freud faz uma rápida digressão e retoma o debate sobre as afasias. Destaca a reduzida margem de escolha de pacientes afásicos quando lhes é solicitado que digam um número ou data aleatoriamente. A insistência de determinados significantes dentro de uma cadeia associativa é o ponto em comum entre os estudos das afasias e a clínica da histeria. Na convergência desses campos de pesquisa, Freud busca uma explicação para o fato de algumas cifras possuírem um acento psíquico diferenciado, canalizando as associações espontâneas para um determinado sentido.

Além disso, Freud retoma seus trabalhos sobre a sugestão com o intuito de fazer uso dessa técnica para promover a superação das resistências. Freud lembra que Bernheim e os adeptos da escola de Nancy situam a sugestão como o fenômeno de base por trás da hipnose. Segundo eles, a sugestão pode inclusive operar em vigília, sem a necessidade do estado de sonambulismo. A sugestão aparece, portanto, como uma alternativa à hipnose.

Freud, em diversos momentos, demonstra sua reserva frente à hipnose. Para ele, ao mesmo tempo em que favorece a produção de efeitos terapêuticos, a hipnose mascara os fatores envolvidos nesse processo, o que afasta o pesquisador de uma explicação mais fundamentada dos instrumentos com os quais opera. O abandono da hipnose torna-se uma tarefa estratégica para a constituição de uma técnica compatível com os objetivos do tratamento analítico.

Encontramos nesse momento o desenvolvimento das primeiras concepções sobre o “recalque (Verdrängung)” (Freud, 1895/1999, 171). A formulação da ideia de recalque tem como objetivo explicar os fenômenos ligados à divisão psíquica na histeria a partir de uma causalidade psicogênica. Por meio do recalque, Freud busca entender a comunicação entre as instâncias psíquicas, colocando em relevo o jogo de forças envolvido nesse processo. Com isso, intensifica a investigação em torno da resistência, cuja existência já havia sido constatada anos antes (Freud, 1890/1997), quando a descreve como uma força psíquica que se opõe ao esforço de supressão do sintoma pela hipnose.

Freud então retorna ao problema do manejo da linguagem no contexto da análise psíquica. Segundo ele, os vínculos associativos que orientam a fala sob hipnose também estão presentes na vigília. Apesar disso, essas vias potenciais de acesso às lembranças recalcadas são parcialmente obliteradas em função da modificação da dinâmica das forças vigentes no psiquismo na passagem do sonambulismo para a vigília. Dessa forma, o desafio está em encontrar uma estratégia que possibilite fazer passar pela palavra as lembranças que estão indisponíveis à rememoração voluntária durante a vigília (Freud, 1895/1999).

Como consequência dessa formulação, temos que as lembranças patogênicas podem não estar disponíveis à rememoração e ainda assim constituírem um registro no psiquismo. Outra possibilidade é o da recordação em função da perda dos nexos associativos encontrar-se fragmentada ou despida de sua carga afetiva original.

Freud é levado a reconhecer a fidelidade das lembranças no que diz respeito ao registro das experiências afetivamente mais significativas. Confere a esse achado o estatuto de paradigma e pressuposto de sua prática (Freud, 1895/1999). Com isso, conclui que seus pacientes, a rigor, sabem tudo que possui uma significação patogênica e que compete ao médico/terapeuta criar condições para que eles falem.

Todavia, Freud nos alerta que, para essas lembranças mais significativas se manifestarem, é necessário que o paciente aprenda a suspender o seu julgamento e se ponha a falar sistematicamente de todos os seus pensamentos, mesmo aqueles tomados por inúteis e estorvantes. Do lado do terapeuta, é requerido que não faça nenhuma concessão às objeções do paciente que o desresponsabilize dos efeitos de sua própria fala. Acrescenta que, para não ceder a essas objeções, é fundamental a firme convicção no pressuposto da análise psíquica. Ressalta que de sua parte essa confiança só foi obtida a muito custo.

Ao final do caso de Lucy, Freud enuncia a direção na qual o tratamento deve caminhar: “A terapia consistiu aqui em constranger o grupo psíquico cindido a se reunir com o Eu-consciência” (Freud, 1895/1999, p. 185, tradução nossa). Temos, portanto, o reconhecimento de duas forças: uma impulsionada pelo inconsciente - aqui denominado de grupo psíquico cindido -, que tende à atualização; outra de resistência, localizada no sistema Eu-consciência.

A Hipnose Analítica e a Investigação Profunda

Faremos um recorte de alguns argumentos presentes no caso Elisabeth e no capítulo final dos “Estudos sobre Histeria”. Freud inicia o tratamento de Elisabeth aplicando uma variante da análise psíquica que denomina “hipnose analítica” (Freud, 1895/1999, p. 237). Nela, o uso da hipnose é localizado e pontual. Não se trata mais de um pré-requisito para o tratamento, como acontece no método catártico. A hipnose só é utilizada quando a resistência se apresenta de modo mais intenso. O foco da hipnose analítica está, portanto, na localização de pontos de resistência e na sua superação pela hipnose.

Essa técnica é apresentada no comentário de uma vinheta clínica da paciente Sophie. O método aplicado em Elisabeth, a rigor, não se enquadra na descrição da hipnose analítica. Freud até tenta usar essa técnica, mas não obtém o efeito esperado. Ao utilizar-se da hipnose, só consegue ensejar um leve sonambulismo, que se mostra insuficiente para desencadear o estado de “consciência expandida” (Freud, 1895/1999, p. 208).

É interessante destacar o modo como Freud justifica o uso da hipnose. Ela constitui um atalho que pode levar de uma forma mais direta às reminiscências patológicas. Daí que, ao prescindir da hipnose, o tratamento prossegue por um desvio mais longo. A opção por esse desvio é justificada a partir dos avanços na explicação da dinâmica da resistência.

Freud afirma que com Elisabeth pela primeira vez chegou a uma análise completa de um caso de histeria. Para isso acontecer, relata que foi necessário desenvolver intuitivamente um procedimento, que posteriormente seria elevado à condição de método e aplicado de forma intencional. Trata-se aqui da “investigação profunda” (Freud, 1895/1999, p. 201), que consiste na extração ou remoção por camadas, de forma linear e cronológica, do material patológico. Surge daí a comparação entre a técnica de escavação na arqueologia e a investigação analítica.

Nesse ponto, Freud ainda alimenta a expectativa de encontrar a matriz do sintoma nas reminiscências de um fato traumático. No entanto, faz a ressalva de que há várias camadas de memória que devem ser removidas até que se chegue à experiência patológica original, que ele defende ser de natureza infantil - por remontar a um passado remoto - e sexual. Essas camadas intermediárias constituem, portanto, substitutos e atualizações dessa primeira experiência traumática.

Freud destaca que o tratamento de Elisabeth se revelou um dos mais árduos que ele conduziu até então e que a construção do relato clínico se deparou com as mesmas dificuldades encontradas no tratamento. A dificuldade à qual se refere é a de identificar o nexo entre o relato do sofrimento pela paciente e a sua causa determinante.

Uma contingência influencia Freud a abdicar da hipnose analítica. Ele constata que, ao invés das experiências traumáticas sucumbirem à amnésia - como ocorre mais frequentemente nos casos de histeria -, o relato de Elisabeth demonstra que as lembranças traumáticas estavam desde o início acessíveis à consciência. Nas palavras de Freud, é como se ela tivesse um segredo ao invés de um corpo estranho na consciência.

Lembramos que, de acordo com a explicação de Breuer, a retenção do afeto na consciência patológica tem necessariamente como correlato a amnésia das experiências traumáticas. De acordo com essa leitura, seria supérfluo no caso específico de Elisabeth qualquer esforço terapêutico que operasse no sentido de expandir a consciência, uma vez que o conteúdo supostamente patológico já se encontra de saída acessível à consciência.

Diante desse impasse, Freud aposta na possibilidade de encontrar outros elos até então ocultos que oferecessem uma explicação mais satisfatória dos fatores determinantes do adoecimento. Ou seja, ele admite o caráter inacabado da teoria que tinha em mãos e a submete ao confronto com o fato clínico. Com isso, Freud deposita todos os esforços no trabalho de historicização do sintoma e da vida de Elisabeth.

Para diminuir a influência de estímulos externos e assim engendrar um estado mais próximo ao sonambulismo hipnótico, Freud solicita que Elisabeth feche os olhos e relaxe. Em seguida, pede para que ela reproduza aquilo que surgir da camada mais superficial de suas memórias (Freud, 1895/1999). Com Elisabeth deitada no divã, dirige-se a ela dizendo: “No momento que eu tocar a sua testa, você me contará sem omissão o que surgir no seu olho interno ou o que for evocado por sua memória” (Freud, 1895/1999, p. 208, tradução nossa).

Destacamos o caráter visual dessas recomendações. Outra metáfora utilizada para instruir a produção de associações segue essa mesma tendência: proceda como você “lesse um grande livro de imagens, cujas páginas fossem folheadas diante de seus olhos” (Freud, 1895/1999, p. 218; tradução nossa). Freud coloca em destaque a tarefa de transpor em palavras as vivências afetivas relacionadas a essas imagens evocadas pela associação sob a condição da sugestão.

À medida que avança nesse trabalho de historicização, Freud tem a oportunidade de acompanhar as oscilações do estado da paciente. Constata que muitas variações nos sintomas, no humor e nos estados afetivos são desencadeadas por vivências atuais que mobilizam retroativamente lembranças de outros períodos. O trabalho da análise consiste em acompanhar as associações que permeiam essa atualização psíquica do passado para daí favorecer outras vias de elaboração do conflito.

Sobre a dinâmica de forças psíquicas mobilizadas no tratamento, vale a pena nos determos numa frase: “A resistência que repetidas vezes se opõe à reprodução eficaz da cena traumática corresponde na realidade à energia com que a representação irreconciliável (com o Eu) foi expulsa” (Freud, 1895/1999, pp. 222-223; tradução nossa). Essa frase apresenta uma equação: para que os efeitos analíticos sejam produzidos, a força exercida pelas representações inconscientes recalcadas somada à pressão da sugestão deve se sobrepor à intensidade da resistência. Decorre desse argumento, como salienta Baratto (2009), que a análise por sugestão exige do médico o investimento de uma carga de energia para desestabilizar o equilíbrio de forças mantido pela resistência. Nesse processo, de acordo com Freud (1895/1999), o médico utiliza-se do seu prestígio pessoal para modular a atenção do paciente, criando as condições favoráveis para a verbalização dos sucedâneos da experiência recalcada.

A sugestão acontece na certificação pelo médico de que infalivelmente as associações produzidas levarão à lembrança patológica original e na exigência de total cooperação e atenção da parte do paciente. A pressão (Druck) na testa encarna essa modalidade de pressão (Drängen) (Freud, 1895/1999) psíquica exercida pelo analista.

Segundo Freud, trata-se de um efeito da resistência quando o paciente alega não possuir nenhuma ideia para associar. Para ele, a resistência exerce uma crítica constante que seleciona e limita os conteúdos que serão verbalizados. Daí a opção por intensificar a pressão sugestiva até alcançar a ponta de uma cadeia associativa.

Acerca da superação da resistência pela sugestão, Freud propõe a analogia com uma porta emperrada, que, para abrir, requer a aplicação de uma certa quantidade de força no trinco (Freud, 1895/1999). Apesar dessa imagem, o esforço dispendido pelo médico não pode ser tomado por uma ação mecânica. Por isso, Freud confessa que não concebe tratar alguém que lhe cause repulsa ou que não seja capaz de lhe despertar alguma simpatia.

A Intensificação da Experiência do Inconsciente

Se nos “Estudos sobre Histeria” a discussão sobre a técnica acontece de forma sistemática e detalhada, depois de 1895 a apresentação dos avanços nessa área ocorre de modo fragmentado e esparso. No que diz respeito ao manejo da fala, é possível encontrar algumas referências pontuais nas “Cartas a Fliess” (Freud, 1962).

De todo modo, as transformações na técnica que ocorrem nesse período são decisivas para o entendimento da gênese do dispositivo psicanalítico (Vidal, 2010). Não raro, a discussão sobre a técnica se confunde com a teorização metapsicológica. Acreditamos que isso se deve a indissociabilidade entre o uso da técnica analítica e a referência ao inconsciente tal como desponta nos escritos desse período (Tessier, 2012).

Para nós, a mudança mais importante desse período que pavimenta o caminho para a associação livre é a reformulação da explicação etiológica da neurose, cuja ênfase é deslocada para um modelo fundamentado na referência à fantasia. Aqui acompanhamos o raciocínio de Dunker (2011), que discute a estrutura fundamental da clínica para em seguida apresentar as especificidades da clínica médica e da psicanalítica. Dunker salienta que a passagem daquela para esta implica numa ampla reformulação das relações constituídas entre etiologia, semiologia, diagnóstico e tratamento.

É possível situar um elo importante dessas transformações já no final do ano de 1896, na carta 52, quando um avanço na explicação da constituição dos processos de memória põe em andamento uma reformulação radical da etiologia das neuroses. Na referida carta, Freud (1962) explica a memória como uma estrutura dinâmica formada por camadas, cada uma delas possuindo modos de funcionamento e registro específicos. Resulta daí a necessidade de se pensar a produção das lembranças como um processo complexo composto por inscrições (Niederschrift), reordenamentos (Umordnung), reinscrições (Umschrift) e traduções (Übersetzund) do conteúdo original na passagem de um nível para o outro (Freud, 1962). Então, situa o recalque (Verdrängung) como uma operação que incide na fronteira entre essas camadas, impondo uma distorção do conteúdo (Freud, 1962). Das vicissitudes e falhas desse processo resulta o caráter traumático das reminiscências. Doravante, o trauma não será mais concebido como consequência direta de experiências vividas na realidade.

Poucos meses depois da carta 52, Freud produz uma sequência de comentários sobre a fantasia. Primeiro salienta a influência da fantasia na formação dos sintomas. Em seguida, explica a sua origem a partir de um processo de significação retroativa (nachträglich) de fragmentos de memórias (Freud, 1962).

No manuscrito M, de 25 de abril de 1897, Freud aplica sua leitura analítica do psiquismo à descrição da gênese da fantasia. Segundo ele, a fantasia advém da “junção inconsciente” (unbewusste Zusammenfügung) (Freud, 1962, p. 176) de cenas vividas, fragmentos do que é escutado e determinadas tendências (que entendemos como moções libidinais). Logo depois, escreve: “A fantasia acontece por (meio de um processo de) derretimento (Verschmelzung) e deformação (Entstellung) análogo à decomposição (Zersetzung) de um corpo químico que é fundido (Zusammengesetzten) com um outro” (Freud, 1962, p. 176, tradução nossa).

Na carta de 07 de julho de 1897, Freud declara não haver impedimentos para que do inconsciente, por vias indiretas, se produzam formações psíquicas superiores. Conclui com uma referência à técnica, que a partir daí “começa a preferir um caminho como sendo o natural” (Freud, 1962, p. 184, tradução nossa). Esses avanços levam a uma crise criativa, cujo ápice pode ser localizado na carta de 21 de setembro, quando afirma não acreditar mais em sua neurótica (a hipótese da etiologia traumática, base de sua teoria das neuroses). A partir desse ponto, proliferam-se menções a sua autoanálise. Em 28 de maio de 1899, de modo conciso e lacônico, Freud escreve ter concluído uma etapa de sua investigação e declara que sua técnica está suficientemente completa. Em agosto do mesmo ano comunica a conclusão do livro dos sonhos.

Freud, portanto, vincula esse movimento de transformação da técnica à opção por uma direção mais natural e espontânea do trabalho clínico. Tais mudanças, por sua vez, apoiam-se na confiança no poder de resolutividade dos processos inconscientes por uma via analítica.

Gostaríamos ainda de destacar um trecho do artigo “Sobre o Mecanismo do Esquecimento” (Freud, 1899/1999). Esse pequeno texto se inicia com uma nota sobre o papel da atenção no mecanismo do esquecimento nas afasias motoras. Freud destaca uma reação frequente nos pacientes que sofrem dessa doença. Eles se esmeram inutilmente em alcançar a palavra esquecida por meio de um tensionamento voluntário da atenção. Constata em seguida que a melhor estratégia para essa situação é desviar intencionalmente o interesse da palavra que se quer lembrar. Freud então aplica a mesma estratégia para analisar um esquecimento seu. Com isso, a modulação da atenção passa a constituir uma via alternativa ao uso da sugestão.

Conclusão: a Primeira Descrição da Técnica

O sintagma associação livre assim como as denominações regra fundamental e principal só surgem no texto freudiano a partir de 1910 (Freud, 1910/1999). Apesar disso, podemos situar, já no livro dos sonhos (Freud, 1900/1999), uma descrição protoconceitual desse procedimento. Ela consiste no condensado das experimentações em torno da técnica, amealhados na década anterior. Podemos definir o sentido que marca a pesquisa de Freud nesse período como um movimento em direção à depuração da técnica para adaptá-la aos objetivos analíticos. Fica evidente a opção pelo caminho mais simples ou natural, no sentido de privilegiar as manifestações espontâneas das resoluções inconscientes como a principal força propulsora do tratamento.

Essa descrição protoconceitual (Freud, 1900/1999) é composta por três eixos: 1) a suspensão do afeto de repulsa e do julgamento intelectual e moral; 2) uma modificação no modo de funcionamento da atenção, cujo foco é desviado dos fatos externos para os processos internos (intrapsíquicos) e 3) a expressão imparcial e fidedigna do que se apresenta imediatamente à consciência.

Gostaríamos de no futuro investigar o prosseguimento do trabalho de articulação conceitual em torno da associação livre. Freud reconhece o caráter problemático da modulação da atenção e buscará tratar esse problema a partir de outros procedimentos técnicos suplementares (atenção flutuante e transferência) e de alguns desenvolvimentos metapsicológicos (a delimitação mais precisa da relação entre atenção e percepção no contexto dos dois princípios do funcionamento psíquico). Além disso, consideramos importante situar a retomada da discussão sobre a sugestão, haja vista que Freud admite sua permanência residual no contexto do tratamento psicanalítico. Esperamos também recolher e discutir as metáforas das quais Freud se utiliza para ilustrar a técnica da associação livre.

Material suplementar
Referências
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Notas
Autor notes
Fabiano Chagas Rabêlo: psicanalista, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, professor assistente da Universidade Federal do Piauí - Campus Parnaíba, Brasil.
Reginaldo Rodrigues Dias: psicanalista, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, professor auxiliar da Universidade Federal do Piauí - Campus Parnaíba, Brasil.
Gustavo Freitas Pereira: filósofo, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor adjunto da Universidade Federal do Piauí - Campus Parnaíba, Brasil.
Maria Helena Figueiredo de Oliveira: graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí - Campus Parnaíba, Brasil.
Nathalia Lorenne de Oliveira: graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí - Campus Parnaíba, Brasil.

E-mail: fabrabelo@hotmail.com

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