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Transmissão Intergeracional do Apego Seguro: Evidências a Partir de Dois Casos
Marcela Bortolini; Cesar Augusto Piccinini
Marcela Bortolini; Cesar Augusto Piccinini
Transmissão Intergeracional do Apego Seguro: Evidências a Partir de Dois Casos
Transmisión Intergeneracional del Apego Seguro: Evidencias a Partir de Dos Casos
Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 2, pp. 247-259, 2015
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá
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Resumo.: O objetivo do estudo foi investigar as experiências da mãe com seus cuidadores e o apego seguro do filho. Participaram duas díades mãe-filho (mãe: 38a; filho: 2a 2m; mãe: 34a; filho: 2a 2m), em que a criança apresentava comportamentos de apego seguro, avaliados pelo Attachment Q-sort. As experiências das mães com seus cuidadores foram investigadas por uma escala que avaliou as percepções sobre seus pais, e por meio da avaliação das representações de apego; enquanto a relação atual das díades foi investigada por meio de uma entrevista. Os resultados revelam consistências entre as experiências das mães com os seus cuidadores caracterizadas por um cuidado afetivo, sensível e incentivador da autonomia e os comportamentos de apego seguro do seu filho, bem como uma boa relação atual mãe-filho. Estes resultados apoiam a literatura que destaca a intergeracionalidade dos padrões de apego, visto que as experiências maternas com seus cuidadores relacionam-se com o apego seguro do filho.

Palavras-chave: ApegoApego,representaçãorepresentação,transmissão psíquica entre gerações.transmissão psíquica entre gerações..

Resumen.: El objetivo del estudio fue investigar las experiencias de las madres con sus cuidadores y el apego seguro del niño. Participaron dos díadas madre-hijo (madre: 38a, hijo: 2a 2m; madre: 34a, hijo: 2a 2m), cuyos niños presentaban comportamientos de apego seguro, evaluados por el Attachment Q-sort. Fueron investigadas las experiencias de las madres con sus cuidadores por una escala que evaluó las percepciones sobre sus padres, y a través de la evaluación de las representaciones de apego; ya la proporción actual de las diadas fue investigada a través de una entrevista. Los resultados muestran las coherencias entre las experiencias de las madres con sus cuidadores caracterizadas por una atención afectiva, sensible y de apoyo de la autonomía y las conductas de apego seguro de su hijo, así como la buena relación actual madre-hijo. Estos resultados apoyan la literatura que pone de relieve la intergeneracionalidad de los patrones de apego, ya que las experiencias maternas con sus cuidadores se relacionan con el apego seguro del hijo.

Palabras clave: Apego, representación, transmisión psíquica entre las generaciones..

Carátula del artículo

Artigo Original

Transmissão Intergeracional do Apego Seguro: Evidências a Partir de Dois Casos

Transmisión Intergeneracional del Apego Seguro: Evidencias a Partir de Dos Casos

Marcela Bortolini
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brazil
Cesar Augusto Piccinini
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brazil
Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 2, pp. 247-259, 2015
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 10 Outubro 2014

Aprovação: 26 Abril 2015

Os sentimentos e os comportamentos da mãe em relação ao filho são profundamente influenciados por suas experiências pessoais, principalmente aquelas vivenciadas com os próprios pais (Bowlby, 1988/1989). Nesse sentido, a sensibilidade de uma mãe diante das demandas do seu filho tende a estar associada a sua história de vínculos afetivos com seus cuidadores e contribui para que a criança tenha um apego seguro (Bowlby, 1969/1990). A teoria do apego (Bowlby, 1969/1990) caracteriza apego como um vínculo afetivo constituído por meio do desenvolvimento emocional e cognitivo da criança e pela consistência do cuidado dos pais. A criança apresentaria um senso de segurança que estaria ligado a uma ou mais figuras de apego (Bowlby, 1969/1990). Seguindo as contribuições de Bowlby, Ainsworth (1989) desenvolveu um procedimento de laboratório conhecido como situação estranha, o qual permitiu a classificação do apego do bebê em relação às figuras de cuidado em três tipos: apego seguro, apego inseguro evitativo e apego inseguro ambivalente e, posteriormente, um quarto tipo, classificado por Main (1991) como apego desorganizado.

Além das relações cuidador-criança resultarem em padrões de apego distintos, Bowlby (1969/1990) também sugeriu que essas relações estão relacionadas ao desenvolvimento de uma organização psicológica interna, em outras palavras, modelos representativos do self e da figura de apego, nomeados de modelos de funcionamento interno. Ao final do primeiro ano de vida e durante o segundo e o terceiro, com a aquisição da linguagem, a criança se habilita a construir modelos de funcionamento interno, ou seja, representa o que ela espera do mundo físico, da maneira como a mãe e outras pessoas significativas poderão se comportar, bem como o que ela espera acerca dela mesma e das interações. Logo, as experiências de vida com os cuidadores teriam impactos considerados transcendentes ao desenvolvimento individual, de modo a instaurar um padrão internalizado de funcionamento e de interação com o mundo (Fonagy, 1999; Huang, Lewin, Mitchell, & Zhang, 2012; Van Ijzendoorn & Bakermans-Kranenburg, 1997).

Diante da importância do conceito de modelo de funcionamento interno no desenvolvimento posterior, Waters e colegas (Waters, Rodrigues, & Ridgeway, 1998; Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001) criticaram alguns aspectos desse conceito, como o fato de o mesmo poder ser substituído pelo conceito de representações mentais. Para eles existem diversas formas de representações mentais, com características operacionais próprias e com diferentes implicações para o desenvolvimento. Perante as inconsistências, esses teóricos sugeriram o termo representações mentais de apego, as quais estão associadas a uma arquitetura cognitiva específica, na qual o apego, ou o fenômeno de base segura, está representado na memória como script, ou seja, uma construção que está relacionada à rede afetiva da memória semântica, a qual guarda crenças sobre aspectos da vida familiar. Os scripts são estruturas cognitivas e dinâmicas coconstruídas durante a infância com as figuras primárias de apego. Estes são criados na repetição de experiências semelhantes e mobilizados quando uma determinada experiência se aproxima dessa representação de apego existente.

Assim sendo, os teóricos da teoria do apego vêm postulando a hipótese da existência de uma relação entre a experiência dos indivíduos com suas figuras de apego e sua capacidade de formar vínculos afetivos mais tarde, ou seja, o padrão de apego tende a ter estabilidade ao longo do desenvolvimento (Bolwby, 1989; Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001; Broussard & Cassidy, 2010). Apesar dessa tendência à estabilidade dos padrões de apego, salienta-se que Bowlby (1969/1990) e Ainsworth (1989) não recusavam totalmente a possibilidade de mudança desses padrões, de modo que as representações de apego podem ser vulneráveis a situações de vida difíceis. Logo, os teóricos consideram a existência de certa estabilidade do padrão de apego ao longo do desenvolvimento, representada principalmente pelo conceito mais atual de representação mental de apego. Entretanto, este padrão tenderia a ser modificado por eventos positivos ou negativos, ou por reelaborações dessas vivências.

Além dessa hipótese da estabilidade dos padrões de apego, pesquisadores têm investigado a associação entre os padrões de apego dos cuidadores e dos filhos, e tem sugerido uma inter-relação entre representações de apego dos genitores, comportamentos parentais e padrões de apego dos filhos, sugerindo uma transmissão intergeracional dos padrões de apego (Muzzio, Muñoz, & Santelices, 2008; Dollberg, Feldman, & Keren, 2010). A meta-análise de van Ijzendoorn (1995) evidenciou fortes associações entre as representações de apego dos pais e o senso de segurança dos filhos. Nesse mesmo sentido, o estudo de Wong et al. (2011), realizado com 121 mães e seus filhos pré-escolares, também investigou como a relação mãe-bebê influenciava o desenvolvimento do apego desse bebê. Os resultados encontrados revelaram que os comportamentos de base segura das crianças e a qualidade das representações de apego das mães apareceram significativamente associados.

Van Ijzendoorn e Bakermans-Kranenburg (1997) referem que algumas relações podem ser destacadas nessa transmissão: as experiências passadas de apego podem ser ressignificadas pela representação mental atual de apego, influenciando os comportamentos parentais e a construção de novas relações de apego; a representação de apego presente é formada com base nas experiências iniciais de apego, e também pelas relações presentes que um bom amigo, cônjuge ou terapeuta pode proporcionar uma base segura para ressignificar experiências adversas da infância; além disso, o comportamento dos pais seria influenciado pelo contexto social, visto que a rede de apoio social pode moderar os efeitos de circunstâncias desfavoráveis e que algumas crianças podem tornar mais difícil para que os pais sejam sensíveis, por deficiências físicas graves ou temperamento altamente irritável.

Dessa maneira, os padrões de apego contemplam diversas variáveis individuais dos pais e da criança, relacionais e contextuais que podem influenciar o relacionamento da criança com cada um dos progenitores. Considerando o exposto acima, o presente estudo buscou investigar qualitativamente as experiências da mãe com os seus cuidadores e a relação atual mãe-filho em duas díades com apego seguro. Com base na literatura que destaca a estabilidade do padrão de apego ao longo do desenvolvimento (Bolwby, 1989; Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001), a expectativa é de que o apego seguro da criança esteja associado às experiências da mãe com os seus cuidadores.

Método
Participantes

Participaram do presente estudo duas díades mãe-bebê cujos bebês apresentavam comportamentos de apego seguro, avaliados pelo Attachment Q-sort (Waters, 1987) quando eles tinham 24 meses de idade. No caso 1, a mãe Roberta tinha 37 anos e o filho, Rafael, dois anos e dois meses; enquanto no caso 2, a mãe Carla tinha 44 anos e o filho, Carlos, dois anos e dois meses. Os nomes utilizados no presente estudo são fictícios para preservar a identidade dos participantes. As crianças apresentavam comportamentos de apego seguro com escores 0,639 e 0,524, respectivamente, o que os colocava entre as crianças com apego mais seguro dentre as 63 avaliadas, que integravam o estudo maior intitulado “Impacto da creche no desenvolvimento socioemocional e cognitivo infantil: estudo longitudinal do sexto mês de vida do bebê ao final dos anos pré-escolares - CRESCI” (Piccinini et al., 2012). As díades moravam com o pai da criança em Porto Alegre e eram de nível socioeconômico médio. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo que o projeto Cresci foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFRGS (processo nº 2010070, de 06/12/2010) e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (processo n° 100553).

Delineamento, procedimento e instrumentos

Foi realizado um estudo de caso coletivo (Stake, 1994), com o objetivo de investigar qualitativamente as experiências da mãe com os seus cuidadores e a relação atual mãe-filho em duas díades com apego seguro. As famílias foram contatadas via telefone e/ou e-mail. Para aquelas que concordaram em participar, foram agendados dois encontros individuais com a mãe, de aproximadamente 1h30min cada, na universidade ou outro local de sua escolha. Foram utilizados os seguintes instrumentos: (1) ficha de dados sociodemográficos da família (NUDIF/CRESCI, 2011): utilizada para obter informações da configuração de moradia, situação profissional, renda da família, entre outros dados da família; (2) Attachment Q-Sort/AQS (Waters, 1987): usado para avaliar os comportamentos de apego da criança. É composto de 90 itens que caracterizam comportamentos de crianças e são distribuídos pela mãe em pilhas que vão de 9 (totalmente parecido) até 1(totalmente diferente). A correlação entre os resultados pontuados e o protótipo da criança segura (valor critério estabelecido por especialistas na área) permite que se obtenha um perfil da criança num contínuo que pode variar entre -1 e +1 (correlação perfeitamente negativa ou positiva com a criança segura ideal), conforme detalhado por Waters (1987). Para o presente estudo foi utilizada a versão traduzida por Barbisan (1993); (3) Parental Bonding Instrument - PBI (Parker, Tupling, & Brown, 1979): avalia a percepção dos respondentes a respeito dos cuidados recebidos de seus pais por meio de 25 itens respondidos em uma escala likert envolvendo dois eixos, o afeto (afeto, calor, disponibilidade, cuidado, sensibilidade versus frieza e rejeição) e a superproteção dos pais (controle, intrusão versus encorajamento da autonomia). O instrumento classifica os pais em uma de quatro categorias: cuidado ótimo; controle afetivo; controle sem afeto e cuidado negligente. O PBI foi adaptado para o português por Hauck et al. (2006); (4) Attachment Script Assessment (Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001): avalia se a pessoa possui ou não um script, ou representação de apego de base segura. Para aplicação são usadas cinco folhas de papel, cada uma contendo um título e uma lista de palavras distribuídas em três colunas e se solicita que a pessoa elabore uma narrativa. Duas das histórias são adulto-criança (“A manhã do bebê” e “Consultório do médico”), outras duas histórias são adulto-adulto (“O acampamento de Joana” e “Pedro e o Acidente de Suzana”) e uma quinta, considerada neutra visto que não entra na análise (“A manhã de compras”). As quatro narrativas são posteriormente analisadas em termos de coerência, conhecimento e acesso do script de base segura. Cada narrativa recebe um escore de 1 (script sem conteúdo de base segura aparente) a 7 (script com conteúdo de base segura com elaboração substancial), sendo o escore final a média das quatro histórias. Para o presente estudo a codificação das narrativas foi realizada pela primeira autora e por outras duas graduandas treinadas na teoria e na prática por uma especialista no uso deste instrumento. A versão utilizada neste estudo foi a traduzida para o português por Semensato (2009). A confiabilidade entre codificadores das histórias foi: “A manhã do bebê” (95,2%), “Consultório do médico” (93,7%), “Acampamento de Joana e Pedro” (88,9%) e “Acidente de Suzana” (85,7%) e (5) entrevista sobre a relação mãe-bebê (NUDIF/UFRGS, 2012): trata-se de uma entrevista estruturada, realizada de forma semidirigida, construída para investigar a relação mãe-bebê, e foi baseada nos eixos de afeto e superproteção da Parental Bonding Instrument- PBI (Parker et al., 1979). As respostas foram examinadas por análise de conteúdo qualitativa (Laville & Dionne, 1999), com base nos dois eixos da PBI, afeto e a superproteção e nos próprios dados, o que permitiu identificar indicadores atuais da relação mãe-bebê.

Resultados

Os resultados serão apresentados separadamente para cada caso com destaque para os seguintes tópicos: 1) caracterização do caso, aborda características sociodemográficas, contexto familiar e percepção da mãe em relação aos seus cuidadores, avaliado pelo Parental Bonding Instrument; 2) representações de apego da mãe, onde se descreve os achados do Attachment Script Assessment; 3) Relação mãe-bebê, onde são destacados os aspectos relacionais da díade relatados pela mãe na entrevista sobre a relação mãe-bebê; 4) discussão do caso, onde se apresenta uma compreensão dinâmica do caso, relacionando todas as informações disponíveis.

Caso 1: Roberta e Rafael

Caracterização do caso

Roberta era uma mulher de 37 anos, casada com Renato (42 anos) há quatro anos e mãe do seu primeiro filho, Rafael, (2 anos e 2 meses). Roberta veio de um casamento anterior que não foi adiante, dentre os motivos da separação era a indisponibilidade emocional dele. Renato, seu atual marido, também era separado e pai de três filhos, sobre os quais ele tinha a guarda. Na entrevista, Roberta vivia com o atual marido e seus três enteados, dois adolescentes e uma criança, os quais se relacionavam muito bem, segundo relatou.

Roberta se sentia muito feliz pela escolha de marido e de pai que fizera, pois Renato era muito amável, sensível, com um lado paterno muito desenvolvido. Ela percebia que fez uma escolha de marido e de pai para o filho muito diferente da que sua mãe havia feito. Roberta teve a presença do seu pai até seus dois anos de idade, quando ele se separou de sua mãe e o contato foi por meio de uma pensão, segundo relatou. Ela considerava o seu pai uma pessoa muito atrapalhada emocionalmente, e para ela era um modelo de abandono. Para lidar com esse registro, Roberta salientou que realizou dez anos de terapia. Já em relação a sua mãe, Roberta tinha uma grande admiração, pois teve um cuidado considerado ótimo segundo o Parental Bonding Instrument, visto que a mãe foi muito afetiva nos anos iniciais e também teve uma superproteção controlada, ou seja, conseguiu possibilitar o desenvolvimento da autonomia de Roberta.

Para cuidar de seu filho atual, Rafael, Roberta teve seis meses de licença maternidade e depois voltou a trabalhar, com uma carga horária de 8 h. A volta ao trabalho, nos primeiros meses, levou a escolha de uma babá, que ela descreveu como muito afetuosa. Quando Rafael completou um ano, eles resolveram colocar o filho em uma creche no turno da tarde, onde tinha uma professora que foi descrita como muito afetiva.

As respostas da Roberta à avaliação dos comportamentos de apego de Rafael, por meio do instrumento Attachmetn Q-sort (Waters, 1987), revelou altos escores de comportamento de apego de segurança (0,639), indicando que a mãe tende a ser uma base segura para Rafael, ou seja, uma fonte de conforto e afeto frente às suas necessidades emocionais de angústia, bem como sensível às necessidades de exploração do filho, possibilitando que este sentisse confiança para ir a busca do desconhecido, bem como para retornar frente às ansiedades e desejos de estar perto da mãe.

Representações de apego da mãe

Com relação à representação de apego, avaliada pelo Attachment Script Assessment (Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001), Roberta apresentou narrativas organizadas indicando representações de apego com base segura tanto em relação às histórias adulto/criança quanto nas histórias adulto/adulto. As narrativas de Roberta revelaram a presença de base segura nas relações entre os personagens, os quais auxiliaram a selecionar e implementar estratégias para normalizar a situação e difundir a angústia criada na narrativa, bem como facilitaram a transição para outras atividades. O personagem caracterizado como base segura auxiliou a focar em aspectos mais positivos, de maneira a difundir as emoções negativas, normalmente salientando o lado positivo da situação. O foco interpessoal, a sensibilidade ou a percepção do estado emocional dos personagens envolvidos estiveram bastante presente. O conteúdo da narrativa evidenciou interação e cooperação entre os personagens e reciprocidade emocional, em que a emoção expressa de um personagem provoca uma resposta emocional no outro. Assim, a análise evidenciou conteúdos de base segura, indicando a presença de representações de apego seguro.

Relação atual mãe-filho

Com base nos altos escores dos comportamentos de apego avaliados pelo Attachment Q-sort e na entrevista sobre a relação mãe-bebê, pode-se pensar que Roberta se percebe como propiciando uma base segura para Rafael, ou seja, uma fonte de conforto frente às suas necessidades emocionais. Durante a entrevista, Roberta se descreveu como uma mãe amorosa, sensível e disponível frente às necessidades do filho como, por exemplo, no momento do horário de dormir:

Eu me sinto feliz de saber que ele tá atendido no que ele precisa. A coisa do sono com ele é muito tranquila, ele diz eu não quero dormir, e eu digo vamos botar o pijaminha, vamos trocar essa fralda e eu fico muito feliz quando ele me dá um beijo e me diz boa noite mãe e eu vejo ai que bom que tu entendeu que eu queria dormir.

Roberta mencionou que em alguns momentos que gostaria de ser menos brava internamente: “Eu acho que eu gostaria de poder relativizar mais as coisas, tem horas que eu me sinto muito brava, internamente, mas consigo não atuar essa vontade, mas às vezes eu acho que eu sou um pouco impaciente”. Essa consciência dos sentimentos e dos pensamentos visivelmente possibilitou que Roberta se questionasse e pensasse sobre os mesmos, podendo assim ter um comportamento mais condizente com uma relação mais saudável. Além disso, essa consciência também esteve presente diante das expectativas que tinha sobre o Rafael, consciência esta que a ajudou a manejar esses desejos: “Eu espero que ele tenha um comportamento de uma criança maior do que ele tem, eu consigo controlar isso, mas eu sei que eu esperaria que na hora de sair ele tivesse esperando com a mochila”.

Outro momento em que a sensibilidade de Roberta estava presente na relação com o filho quando ele estava cansado:

Ele chega da escola cansado, não dormiu, acordou cedo de manhã, tá naquele ranço medonho e aí ele fica numa coisa mais regressiva, e aí eu não consigo entender. Daí eu digo: ‘Não filho, só um pouquinho, assim a mãe não vai conseguir entender, fala direitinho, tu quer um leitinho, tu quer água, o que tu quer? Não, mãe!’ E se joga, é mais difícil.

Em relação a essa disponibilidade, ela pareceu ser uma mãe com muita disponibilidade emocional. Essa disponibilidade, bem como sensibilidade, estava presente claramente frente aos medos do filho:

Agora ele tá numa fase de medos ‘Ahhn, ó o baulho, é o leão que tá chegando’ e eu ‘Ah, filho é o leão!’. Então tu fica horas naquela função. Quando ele diz, ‘Eu tô com medo de ir no quarto mãe, vai comigo’, daí vou com ele.

Em relação ao jeito de falar com o filho, Roberta mencionou que se achava doce e explicativa: “Se eu me irrito com ele, eu digo: a mãe ficou muito chateada porque tu fez isso. Eu tenho um jeito um pouco explicativo demais, segundo o Ricardo”. O fato de Roberta fornecer explicações para o filho parece que possibilitou que o filho compreendesse o que ocorria na relação de ambos, principalmente quanto ao reconhecimento dos sentimentos de ambos. Porém, quando o filho demandava firmeza, Roberta também disse ser firme com ele, como, por exemplo, quando Rafael ficava birrento: “Mais difícil é quando ele tá birrento ou num momento em que ele grita. Eu paro, seguro ele bem firme e olho e digo, filho a mamãe tá falando contigo, olha pra mim, às vezes eu tenho que contê-lo”. Nesses momentos, a mãe conseguia lidar de uma maneira a acalmar o filho e impor um limite saudável.

Os momentos de briga de Rafael com a afilhada de Roberta foram muito utilizados por ela para a educação do filho, principalmente com o intuito que ele desenvolvesse sentimentos de empatia e de respeito frente aos outros, bem como identificasse os seus sentimentos frente às situações que ele não era legal. Já em relação ao controle exercido para com o filho e o incentivo à autonomia, Roberta sentia que “melhorou mil vezes” desde que ele nasceu. Roberta percebeu que o maior incentivo da autonomia era relacionado ao brincar: “Às vezes eu vou tri animada no parque com ele e ele não quer andar de balanço, paciência, e ele diz: ‘Não queio mamãe’”.

Apesar dessa consciência, do quanto era saudável para o filho ter autonomia e crescer, Roberta referiu que sentia saudade de quando ele era bebê, mas também identificou o quanto gostava das novas habilidades de comunicação do filho: “Eu tinha mais controle das coisas. Mas essa capacidade de comunicação que ele tem, dele ser capaz de me dizer o que ele jantou, o que ele quer tomar. E toda essa coisa assim dessa interação eu acho maravilhoso”.

Discussão do caso 1

Os relatos acima revelaram que a história de vinculação de Roberta com seus próprios pais foi, possivelmente, repleta de ressignificações. Em um primeiro momento pela ausência do pai que, segundo Roberta, deixou uma marca de abandono. Segundo a literatura, uma marca de ausência quando relacionada ao não desejo do outro querer estar vinculado, tende a deixar registros negativos do self, como possível baixa autoestima, desvalorização e sentimento de não merecimento de afeto (Bowlby, 1989/1988). Assim como uma visão negativa do cuidador, sendo este não sensível, não disponível para com as suas necessidades emocionais (Ainsworth, 1989). Porém, apesar dessa possível marca emocional, percebeu-se que a mãe de Roberta foi uma figura positiva de vinculação para ela, favorecendo que ela se sentisse amada e com senso de disponibilidade do outro para lidar com as suas ansiedades e incentivo a enfrentar seus medos.

Conforme visto, as representações mentais de apego de Roberta com os seus cuidadores apresentaram conteúdo de base segura e esse resultado pode ser compreendido pela relação com a sua mãe. Essa é corroborada pela literatura que destaca que as pessoas que tiveram vivências emocionais saudáveis nos anos iniciais tendem a desenvolver representações de apego com base segura (Broussard & Cassidy, 2010; Dollberg, Feldman, & Keren, 2010; Waters, Merrick, Treboux, Crowell, & Albersheim, 2000). Também é possível pensar em uma possível ressignificação da marca de abandono do seu pai, por meio da psicoterapia pessoal que se estendeu por dez anos. Segundo a literatura, vínculos fortes com terapeutas se caracterizam como um fator de ressignificação das representações mentais de apego frente a registros emocionais negativos de figuras importantes de vinculação (Shaver & Mikulincer, 2010; Van Ijzendoorn & Bakermans-Kranenburg, 1997). Ressignificações também parecem ter ocorrido nas suas relações amorosas mais recentes. Roberta vivenciou uma experiência com seu primeiro marido, o qual, segundo relatou, não era um bom companheiro e não seria um bom pai. Entretanto, o novo parceiro é claramente descrito nos relatos de Roberta como exercendo um papel de base segura em sua vida (Selterman, Apetroaia, & Waters, 2012).

Essas vivências, possivelmente repletas de ressignificações, provavelmente repercutiram na maneira de Roberta se relacionar com o filho. A presença de representações de base segura relaciona-se à disponibilidade emocional, às trocas emocionais, à sensibilidade aos sinais do outro, à capacidade de dar conforto e proteção, assim como com a disponibilidade em fornecer explicações e incentivar a autonomia, à exploração, e diante de uma crise poder resolvê-la (Wong et al., 2011). Verifica-se tanto pelos resultados do Attachment Q-sort, quanto pelos relatos de Roberta à entrevista, o quanto ela era sensível aos sinais do filho, respeitava-o como uma pessoa com seus desejos e vontades próprios, possibilitando que o incentivasse na sua autonomia. Também se identificou afetividade para com o filho, bem como a disponibilidade emocional para estar com ele em momentos mais fáceis, nos quais era mais doce e afetiva, e nos mais difíceis, quando era necessário impor limites com uma postura mais firme. A consciência de Roberta sobre seu estado emocional quanto comportamental, influenciava muito na sua relação com o filho, visto que evitava que ela tivesse comportamentos que não seriam favoráveis para o desenvolvimento emocional saudável do filho.

Outro dado de uma relação caracterizada por uma base segura é quando a criança solicita à mãe quando não está bem ou quando precisa de ajuda para lidar com seus medos (Ainsworth, 1989) e isto aparecia em Rafael quando solicitava a mãe no momento de ir dormir. Ou ainda, quando ele demonstrava gostar da presença da mãe, para conversar, brincar, expressando sentimentos de segurança e liberdade para ser ele mesmo, para nomear seus desejos e explorar o que tinha vontade de conhecer. Logo, olhar para esses comportamentos do filho, evidencia o quanto esta díade se encontrava em uma relação que proporcionava o desenvolvimento de um apego mais seguro no filho.

Quanto às relações de Rafael com seus cuidadores, também chama atenção o apoio que recebeu de sua babá que parecia contribuir para o seu apego seguro. Pela entrevista percebe-se que ela parecia ser muito afetiva e vinculada com ele, sendo sensível, amável e disponível. Segundo a literatura, cuidadores, principalmente aqueles que passam mais de 10 h por dia com a criança, tendem a influenciar no apego da criança (Waters et al., 2000). Nesse mesmo sentido, refere-se que a professora era muito afetiva com Rafael, o que também pode ter contribuído para a formação de um apego mais seguro. Pode-se também pensar que o próprio Rafael com sua subjetividade, construída nas suas relações com sua mãe e seu pai, acabava despertando nos adultos, comportamentos que correspondiam as suas demandas. Logo, verifica-se que a caminhada de ressignificação de Roberta frente às marcas deixadas pelo seu pai, principalmente com uma mãe amável, com a terapia e a presença de um marido afetivo, possibilitaram uma saudável relação com o filho.

Caso 2: Carla e Carlos

Caracterização do caso

Carla tinha 34 anos, era casada com César (44 anos) há quatro anos, e mãe do seu primeiro filho, o Carlos (2 anos e 2 meses). Os três moravam juntos em um apartamento. Nessa família, os meses iniciais de Carlos foram muito difíceis para Carla, visto que o filho tinha muitos refluxos e vomitava o tempo todo. As ansiedades maternas presentes nesses primeiros meses do filho acerca do bem-estar do filho foram compartilhadas ao longo de toda a gravidez com a psicóloga com quem fazia psicoterapia. Apesar do relacionamento com o marido ser caracterizado como muito bom, por ele ser muito presente, afetivo e disponível, ela referiu que esses meses iniciais foram difíceis para o casal, visto que todas as atenções estavam direcionadas para o filho.

Carla referiu que seguia um modelo de mãe parecido com a sua própria mãe, a qual era atenciosa, presente, afetiva e continente. Em relação ao seu pai, Carla referiu que ele foi um grande modelo, pois sempre conversava muito e dava muita atenção. Assim, com relação ao cuidado recebido de sua mãe, este foi considerado de controle com afeto, segundo o Parental Bonding Instrument, ou seja, um cuidado caracterizado por afeto e com uma superproteção; e a percepção do cuidado recebido do pai, foi de cuidado ótimo, ou seja, um cuidado afetivo e com uma proteção adequada.

As respostas da Carla à avaliação dos comportamentos de apego de Carlos, por meio do instrumento Attachmetn Q-sort (Waters, 1987), revelou que a mãe tende a ser uma base segura. Carla possivelmente era uma fonte de conforto e afeto frente às necessidades emocionais de angústia do filho e, ao mesmo tempo, sensível às necessidades de exploração.

Representações de apego da mãe

Com relação à representação de apego, avaliada pelo Attachment Script Assessment (Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001), Carla apresentou escores que caracterizam narrativas organizadas à volta de representações de apego com base segura em relação aos cuidadores e às relações românticas. A análise das narrativas elaboradas por Carla revelou que o personagem que representou a base segura teve consciência do estado emocional do outro personagem, ajudou a implementar estratégias para normalizar a situação de crise elaborada, auxiliou a minimizar os sentimentos de ansiedade e tristeza e focou em aspectos mais positivos, normalmente salientando o lado positivo da situação de crise. Um foco interpessoal entre os personagens também foi característico das narrativas, como uma sensibilidade às necessidades de conforto e proteção do outro e uma reciprocidade emocional. Estiveram presentes também explicações sobre a situação da crise, com o intuito de minimizar as angústias presentes em um momento ansiogênico. Assim, a análise revelou conteúdos de base segura, indicando a presença de representações de apego seguro.

Relação atual mãe-filho

Com base nos resultados do Attachment Q-sort (Waters, 1987) e na entrevista sobre a relação mãe-bebê, pode-se concluir que Carla se relacionava com Carlos de uma maneira a prover uma base segura para o filho. Carla se percebia de um jeito que favorecia que o filho tivesse a tendência de ter um apego mais seguro, visto que ela era participativa, brincalhona, cuidadosa, carinhosa. Apesar de Carla perceber que essa sua disponibilidade para tratar o filho com ânimo e com atenção variava um pouco quando ela estava cansada ou quando percebia que o filho estava irritado, o jeito deles se relacionarem não mudava muito:

Tem dias que eu chego mais cansada ou tem dias que ele tá mais difícil. Daí o banho é mais rápido, por exemplo. Então, tem dias que eu acho que eu não tô tão afim de brincar, aí ele fica vendo DVD e eu do lado dele.

Carla acreditava que mesmo nessas situações de cansaço conseguia atender ao filho:

E as necessidades emocionais tem dias que eu vejo que ele tá muito querendo atenção, talvez eu quero fazer outra coisa e penso “Porque ele não brinca mais sozinho”. Acho que são necessidades emocionais dele, que às vezes não é fácil de lidar, mas não tem uma coisa de não conseguir lidar com essas necessidades dele, percebo que as atendo pelas respostas dele.

Quanto à sua disponibilidade de tempo, Carla achava que era bastante: “Eu percebo até demais, às vezes. Acho que como tem essa coisa de eu ser autônoma, facilita”. E quanto à disponibilidade emocional, Carla se percebia disponível:

Percebo que tenho disponibilidade, mas tem outras coisas que influenciam. Pode ser que muitas vezes eu esteja presente fisicamente, mas emocionalmente tô preocupada com algum cliente, ou alguma coisa com o marido, não é o mundo das maravilhas, com certeza.

Carla percebeu que protegia muito o filho, principalmente em situações que talvez fosse bom Carlos vivenciar e dar conta da emoção que sentia:

Por exemplo, ele tá vendo um DVD e eu acho que tem uma parte que ele fez um rosto que eu sei que é de susto. E eu digo “Não filho, não precisa se assustar”, e ele chora. E o César diz “Não, tu que fez ele chorar, não fala, não precisa”, e o meu marido tem razão.

O fato de Carla se questionar e aceitar o olhar do marido parece contribuir para o desenvolvimento emocional mais saudável do filho.

A relação mãe e filho também se estabelecia muito pela conversa: “Ah, eu costumo conversar muito, combinar coisas, perguntar coisas, se ele gostou de tal coisa, elogiar quando ele fez alguma coisa legal, tipo quando ele guarda as coisas eu elogio, dou um beijinho nele”. Os momentos que o filho mais ficava triste ou bravo eram nas brincadeiras, e Carla tendia fornecer várias explicações para o filho lidar com essas situações. Diante de sentimentos negativos do filho, identificou-se a sensibilidade de Carla para atenuá-los:

Pego ele no colo quando ele tá quase chorando, explico o que esta errado, quando ele fica bravo com os brinquedos, também explico o que aconteceu, tento nomear as coisas pra ele. Ajudo muito, tenho certeza que ele precisa disso para o desenvolvimento dele.

Outro exemplo: “Montar um jogo e não consegue, ele fica bravo. Aí eu digo pra ele: ‘Entendi que tu ficou bravo, então pede ajuda da mamãe’”.

Carla percebia que o filho estava mais independente e que agora ele comunicava muito mais seus desejos, e muitas vezes o jeito que o filho encontrava de se comunicar era se jogando no chão, fazendo birra. Diante dessas situações, Carla e o marido tinham determinadas atitudes, que posteriormente eram questionadas por Carla: “O que eu poderia ter feito melhor?”. Esse questionamento possibilitava que Carla fosse observando quais eram as melhores atitudes para se ter com o seu filho. Apesar desses questionamentos, Carla referiu que se sentia “segura” com as suas atitudes. Principalmente quando o filho solicitava os pais para brincar: “No prazer dele de tá com a gente, no prazer dele de voltar pra casa”.

Em relação ao crescimento do filho, Carla falou que ficava muito feliz de ver o filho adquirindo novas habilidades, mas ao mesmo tempo se dava conta que já não tinha mais um bebê em casa: “Fico totalmente feliz e orgulhosa. Mas às vezes eu olho ele, meu Deus como esse guri tá enorme na cama! Fico com uma sensação que tá passando tudo rápido, mas eu sempre penso que eu to aproveitando muito”.

Discussão do caso 2

Carla referiu o quanto o jeito de cada um dos seus cuidadores contribuiu para o seu desenvolvimento e para o jeito de ela ser mãe. Sua mãe era vista como muito afetiva, muito presente, participativa, bem como também continente e com capacidade para dar o limite adequado. A mãe foi valorizada pelos gestos de carinho, que até foram interpretados como superproteção na época da adolescência. O pai foi valorizado pelas conversas, que foram visivelmente importantes para ela. De acordo com essas vivências positivas, as representações de apego de Carla dos cuidadores foram caracterizadas como de base segura. A presença de base segura nas suas representações de apego esteve relacionada com o fato de Carla tender a se sentir emocionalmente atendida em suas necessidades emocionais e com recursos para enfrentar as suas ansiedades. A literatura sugere que quando filhos tiveram experiências positivas com os seus pais na infância, tendem a ter representações de apego com base segura na vida adulta (Broussard & Cassidy, 2010; Dollberg, Feldman, & Keren, 2010; Waters et al., 2000).

Em relação às representações de apego das relações românticas, Carla também apresentou conteúdo de base segura. Pode-se pensar que essas representações são fruto das vivências positivas nas suas relações amorosas. Percebe-se que a relação com o marido era repleta de afetividade, caracterizada por gestos de carinho e de afeto. Também era possível identificar que mesmo em momentos de dificuldade, o casal conseguia identificar a falta de investimento conjugal, e essa consciência possibilitou que ambos voltassem a olhar para a relação. Reciprocidade e empenho conjunto frente a uma crise está associada com o fenômeno de base segura nas representações de apego amorosas (Selterman, Apetroaia, & Waters, 2012; Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001).

A percepção de um cuidado afetivo, as representações de apego de base segura em relação aos cuidadores e às relações amorosas tendem a contribuir para a presença de comportamentos de apego de um filho, principalmente pela maneira dessa mãe se relacionar com o seu filho (Van Ijzendoorn & Bakermans-Kranenburg, 1997; Waters & Waters, 2006). Quando investigada a relação da díade mãe-filho, observou-se que Carla apresentou disponibilidade emocional e de tempo para estar com o seu filho, bem como vontade de estar com o filho, prazer em brincar e interagir, ficando evidente a presença de troca emocional. Essas características são retratadas pela literatura, de modo que mães que apresentam conteúdo de base segura nas suas narrativas tendem ser sensíveis aos sinais de seus filhos e têm filhos que as utilizam como uma base segura (Bost et al., 2006).

Carla refletia sobre o seu estado emocional, e identificava a influência deste em seus comportamentos na interação com o filho. Outro fato importante é que Carla não tendia a se culpar pelo fato de não estar sempre disponível emocionalmente para o filho, visto que via isso como um processo normal do ser humano. Além da relação de Carla e o seu filho ser permeada de carinho, afetividade, atenção ao estado emocional, percebe-se que ela também incentivava a autonomia do filho, deixando-o identificar o que mais gosta de comer, de brincar e lidasse sozinho com alguns desafios condizentes à idade dele como, por exemplo, em jogos. Carla se caracteriza por uma mãe sensível ao estado emocional do filho, de modo a atender as necessidades emocionais deste.

Outra característica importante foi o fato de ela fazer terapia, sendo este mais um auxílio e fonte de ressignificações, conforme referido pela literatura (Grossmann & Grossmann, 2011; Van Ijzendoorn & Bakermans-Kranenburg, 1997). Informações referentes à babá e outros cuidadores não foram salientadas por Carla, mas contatou-se que o casal se organizou financeiramente e quanto à carga horária laboral, para estarem mais presentes nesses primeiros anos do filho. Por fim, verificou-se que as vivências positivas da infância de Carla, parecem relacionadas com as suas representações de apego, que por sua vez parecem associadas com o tipo de relação que Carla estabeleceu com o filho e os comportamentos de apego de seguridade do filho.

Considerações Finais

Os resultados do presente estudo apresentam evidencias que endossam a expectativa inicial de que o apego seguro apresentado pelas duas crianças investigadas, estivesse associado às experiências de suas mães com os seus cuidadores. Estes resultados apoiam a literatura que destaca a intergeracionalidade dos padrões de apego, visto que as experiências maternas com os cuidadores apareceram relacionadas com o apego seguro do filho (Bolwby, 1989; Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001).

Quanto às vivências com os seus cuidadores, as duas mães tiveram a cuidadora materna, muito sensível, afetiva, disponível, continente. Quanto ao cuidador paterno, apesar de uma delas (caso 1) ter uma vivência de abandono pelo pai, posteriormente, parece que ressignificou esse registro emocional de uma maneira mais saudável, seja pela extensa relação terapêutica e/ou pela relação com o marido. E, a outra mãe (caso 2), apresentou um registro de um pai muito presente, disponível e sensível, semelhante ao da cuidadora materna. Logo, ambas as mães tinham representações de apego em relação aos cuidadores com base segura.

Quanto às representações de apego sobre as relações amorosas, as duas mães também apresentaram conteúdo de base segura e relataram vivências positivas com os maridos, os quais tendiam ser amorosos, sensíveis, disponíveis e presentes. Ambas criaram narrativas características de representações de apego mais seguras sobre as relações amorosas. Quanto a essa semelhança entre a presença de base segura em ambas as representações de apego (criança-adulto e adulto- adulto), a literatura refere que as pessoas tendem a se relacionar com parceiros condizentes com a representação de apego em relação aos cuidadores, ou seja, encontram parceiros que tendem caracterizar aquilo que pensam de si e daquilo que esperam do outro (Bowlby, 1973/1998; Waters & Rodrigues-Doolabh, 2004). Quanto à relação atual com o filho, as duas mães destacaram mais os comportamentos de apego de segurança e menos os comportamentos de dependência. Esses dados possibilitam inferir que os filhos tendiam a ver as mães como uma base segura (Ainsworth, 1989). Esse fenômeno de base segura, segundo Parker, Tupling e Brown (1979/1997), tende a estar presente quando a relação mãe-filho é caracterizada pela afetividade, calorosidade, disponibilidade, sensibilidade e encorajamento da autonomia.

Juntos aos resultados das análises revelaram consistências entre as experiências das mães com os seus cuidadores caracterizadas por um cuidado afetivo, sensível e incentivador da autonomia e os comportamentos de apego seguro do seu filho. Dessa maneira, as evidências revelam aspectos da intergeracionalidade dos padrões de apego dessas mães e dos seus filhos, o que permite inferir que experiências positivas com os cuidadores tende a ter uma importante influência nas relações parentais ao longo da vida.

Apesar de eventuais limitações metodológicas do estudo (poucos casos; instrumentos respondidos apenas pela mãe, sem triangulação; inibição na elaboração das narrativas; desejabilidade social ao se referir sobre a relação com o filho) destaca-se a importância do achado ao trazer evidências empíricas sobre as relações iniciais com os cuidadores e as posteriores representações de apego dessas relações. Além disso, estas representações parecem estar intimamente relacionadas com as relações posteriores estabelecidas ao logo da vida, entre elas as relações amorosas. Neste sentido, é muito importante que os profissionais de saúde se mantenham atentos à qualidade das relações afetivas entre as díades mãe-filho e também nas famílias, para que possam eventualmente atuar, minimizando as marcas que relações afetivas inadequadas possam trazer para as crianças e adultos.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 Authors and Rita de Cássia Sobreira Lopes are responsible for the English version.
Autor notes
Marcela Bortolini: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Brasil.
Cesar Augusto Piccinini: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Brasil.

E-mail: bortolini.marcela@gmail.com

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