Artigo Original

Processos de Resiliência em Migrantes: Narrativas Biográficas de Brasileiros em Portugal

Procesos de la Resiliência en los Migrantes: Narraciones Biográficas de los Brasileños en Portugal

Sandra Roberto
Instituto Universitário de Lisboa, Portugal
Carla Moleiro
Instituto Universitário de Lisboa, Portugal

Processos de Resiliência em Migrantes: Narrativas Biográficas de Brasileiros em Portugal

Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 2, pp. 295-307, 2015

Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 10 Novembro 2014

Aprovação: 20 Maio 2015

Financiamento

Número do contrato: SFRH/BD/60693/2009

Resumo.: Os estudos sobre as migrações têm focado as dificuldades, as barreiras e obstáculos na chegada e permanência no país de acolhimento. Reconhecendo a existência destes processos adversos, poucos estudos se têm dedicado ao modo como os migrantes superam as dificuldades com as quais se vão deparando. Mais ainda, poucos estudos dedicam atenção ao processo migratório como um todo, com início ainda no país de origem. Partindo da perspectiva teórica da resiliência, este estudo procurou compreender os contextos de adversidade e de recursos dos migrantes brasileiros em Portugal, ao long o das suas trajetórias de vida, observados na ligação entre o país de origem e o país de acolhimento, por meio de 12 narrativas biográficas. A análise das narrativas revelou a diversidade de processos de resiliência entre os migrantes. Revelou ainda que o contexto de adversidade surgia por meio das relações de desvalorização e rejeição com os portugueses, salientando-se a importância das vinculações afectivas e do sentimento de pertença, bem como o papel da diáspora brasileira em Portugal, como recursos significativos. Neste artigo, são ainda discutidas as implicações clínicas da análise das narrativas, numa perspectiva da resiliência.

Palavras-chave: Resiliência, migração humana, narrativas.

Resumen.: Los estudios sobre la migración se han centrado en las dificultades, las barreras y los obstáculos de la llegada y permanencia en el país de acogida. Reconociendo la existencia de estos procesos adversos, pocos estudios se han dedicado al modo cómo los migrantes superan las dificultades que se les presentan. Aún más, pocos estudios dedican atención al proceso de la migración como un todo, con inicio todavía en el país de origen. Partiendo de la perspectiva teórica de la resiliencia, este estudio buscó comprender los contextos de adversidad y de recursos de los migrantes brasileños en Portugal, a lo largo de sus trayectorias de vida, observados en el enlace entre el país de origen y el país de acogida, a través de 12 narraciones biográficas. El análisis de las narraciones reveló la diversidad de procesos de resiliencia entre los migrantes. Reveló aun que el contexto de adversidad surgió a través de las relaciones de desvalorización y rechazo con los portugueses, destacándose la importancia de los vínculos afectivos y del sentido de pertenencia, así como el papel de la diáspora brasileña en Portugal, como recursos significativos. En este artículo, son discutidas también las implicaciones clínicas del análisis de las narraciones desde la perspectiva de la resiliencia.

Palabras clave: Resiliencia, migración humana, narraciones.

Os estudos sobre as migrações são tendencialmente centrados no impacto negativo e as consequências difíceis para aqueles que migram por inúmeras barreiras e obstáculos na tentativa de adaptação ou integração às sociedades de acolhimento. Mais ainda, são enumeradas várias perdas (laços familiares, língua, quadro cultural de referência, entre outros) com a partida do país de origem (Boss, 2006). De modo geral, é referido o impacto que o contato com as sociedades do país de acolhimento tem para os migrantes (Berry, 1997).

Ainda que estes processos estejam presentes e sejam possivelmente cumulativos, poucos estudos têm dedicado atenção aos recursos mobilizados para ultrapassar essas dificuldades, assim como são reduzidos os estudos implicados em compreender os processos dinâmicos envolvidos na interação entre adversidade e recursos. Sobre os percursos migratórios, a investigação tende a situar- se no período de chegada e permanência ao longo do tempo no país de acolhimento sob a perspectiva das diferenças e contrastes sociais e culturais (Yijälä & Jasinskaja-Lahti, 2010).

A abordagem teórica da resiliência apresenta uma proposta, talvez não contrária, mas complementar a esta perspectiva, enraizada nas dificuldades, no risco. A noção básica do conceito reconhece a existência de contextos adversos, mas centra-se nos recursos mobilizados para ultrapassar as adversidades em processos de ajustamento positivo (Luthar, Cicchetti, & Becker, 2000).

Partindo deste contexto geral, este estudo procura articular os contributos teóricos da resiliência na compreensão das trajetórias de vida de migrantes brasileiros em Portugal, por meio de narrativas biográficas. No entanto, a articulação teórica com vista a este objetivo geral encontra certas tensões de nível conceptual, epistemológico e metodológico.

Resiliência e migrações

Numa tentativa de clarificar as tensões existentes entre os principais conceitos deste artigo (resiliência, migrações e narrativas biográficas), mas também na possibilidade de estabelecer pontes entre eles, procuramos percorrer as fundações conceptuais e epistemológicas destas abordagens. O tema da resiliência tem sido pouco estudado numa abordagem compreensiva e, como salientam Luthar, Cicchetti e Becker (2000), parece-nos também importante que a investigação produzida sobre a resiliência torne claro o ponto de partida dos pressupostos teóricos e epistemológicos face às várias possibilidades existentes, atendendo a que nas últimas décadas foram produzidas mais de 12 teorias sobre este tema (Fletcher & Sarkar, 2013).

O conceito de resiliência emergiu do conhecimento organizado em torno da psicologia positiva, fundada epistemologicamente numa perspectiva positivista. Os estudos nesta área têm procurado avaliar a forma como os indivíduos acionam determinados recursos face a determinantes contextuais adversos. Neste sentido, uma possibilidade de definição do conceito e usada na investigação empírica, (apesar de existirem outras perspectivas, nomeadamente um entendimento enquanto traço ou resultado de um processo), refere à resiliência como um processo, dinâmico e circunstancial, observando-se um ajustamento ou adaptação positiva face à ação de fatores protetores ou promotores em circunstâncias ou condições adversas (Luthar, Cicchetti & Becker, 2000).

Desta definição deriva a maioria dos estudos quantitativos sobre a resiliência, que procuram estudar o impacto de determinadas variáveis (fatores protetores) nos fatores de risco e a mensuração de resultados de ajustamento positivo. Nesses estudos, os fatores de risco são entendidos como eventos ou condições que aumentam a probabilidade de um resultado indesejável e os fatores de proteção como aqueles que exercem um efeito de moderação na influência dos fatores de risco, como a redução do impacto do risco, a redução das reações negativas em cadeia, ou o acesso a novos recursos que permitam lidar com os fatores de risco (Riley & Masten, 2005). Este entendimento relaciona-se com o poder preditivo dos fatores que constituem o conceito, na procura de relações de causalidade. Neste estudo adotamos a designação de adversidade e recursos, exatamente pelo distanciamento a esta postura positivista face ao conceito.

Abdicando do valor preditivo do conceito, aderimos à proposta de Yunes (2003), alertando para a necessidade de estudos com uma abordagem da dimensão subjetiva da resiliência, que captem os significados atribuídos pelas pessoas à sua experiência individual. Esta ideia abre a porta à comunicação com outras fundações epistemológicas. No objeto de interesse deste estudo, procuramos compreender a resiliência enquanto processo dinâmico e circunstancial, baseado na construção e partilha de significados individuais, socialmente construídos. Ungar (2008) acrescenta ainda a preocupação com certa hegemonia nos estudos sobre a resiliência e, é nesse sentido, que procura incluir a dimensão cultural na definição. Define a resiliência como:

No contexto de exposição a adversidade significativa, a resiliência é simultaneamente a capacidade dos indivíduos de navegarem na direcção dos recursos psicológicos, sociais, culturais e físicos que sustentam o seu bem-estar, bem como a capacidade individual e coletiva de negociar esses recursos, obtidos e vivenciados de um modo culturalmente significativo (Ungar, 2008, p. 225; tradução nossa).

Por esta definição realçamos a importância da especificidade cultural, elemento constituinte e parte integrante de cada um individualmente.

O estudo da resiliência nos migrantes produzido nas últimas décadas abordou essencialmente as condições negativas associadas aos processos migratórios. No entanto, a possibilidade de migrar representa, antes de mais, um conjunto de novas e diferentes oportunidades para aqueles que migram, apesar das dificuldades inerentes, à saída do país de origem e à chegada ao país de acolhimento (Coll & Magnuson, 2014). Assim, a investigação sobre os processos de resiliência nas migrações surge pela necessidade de avançar para além do foco no deficit e de procurar uma compreensão sobre as estratégias e recursos usados pelos migrantes. Procuramos complementar esta abordagem acrescentando a necessidade de compreender este processo por via dos significados e sentidos atribuídos pelos migrantes sobre as suas trajetórias e percursos migratórios.

A ideia trazida pela noção de trajetória, “permeação recíproca dos processos sociais e subjetivos temporalmente ordenada” (Schütze, 1981, p. 94 citado por Apitzsch & Siouti, 2007; tradução nossa), surge alinhada com os pressupostos de organização deste estudo, numa lógica construcionista (Lock & Strong, 2010) e com o fio condutor da abdução (Marshall & Rossman, 2011). Procuramos ainda compreender os processos migratórios por meio das lentes do conceito de transnacionalismo, definido como “o processo através do qual, os migrantes criam campos sociais que ligam o seu país de origem ao país de acolhimento” (Schiller, Basch & Blanc-Szanton, 1992, p. 81; tradução nossa). A ideia central é a da existência de um produto, resultado das interações dos migrantes nas suas experiências passadas e presentes, referentes aos contextos sociais e culturais de ambos os países.

Estes fundamentos interdisciplinares e as fundações epistemológicas sobre resiliência e migrações clarificam o objetivo deste estudo que procura compreender as trajetórias de vida e os significados atribuídos pelos migrantes aos processos de resiliência. Ou seja, por meio das narrativas biográficas, procura conhecer os contextos de adversidade e os recursos dos migrantes brasileiros ao longo das suas trajetórias de vida, observados na ligação entre o país de origem e o país de acolhimento.

Migrantes brasileiros em Portugal

A entrada de migrantes em Portugal tornou-se mais expressiva no final dos anos 1990, sendo relativamente recente, quando comparada com o historial de outros países com maior tradição no acolhimento de migrantes. Os brasileiros em Portugal representam a comunidade mais numerosa (total de 91.238), contabilizando cerca de 25,3% do total de população estrangeira no país (Serviço de estrangeiros e Fronteiras, 2013). A migração brasileira com destino a este país teve essencialmente duas grandes vagas, com características distintas. A primeira vaga, nos anos 1980 e 1990, foi constituída por profissionais qualificados, com atividade profissional liberal ligados às áreas da gestão, da tecnologia e da investigação científica. A segunda vaga, sobretudo entre 1998 e 2002, trouxe ao país, migrantes jovens, com baixas ou médias qualificações, integrados no mercado de trabalho português em segmentos pouco diferenciados como a construção civil, o emprego doméstico e a limpeza, em geral (Malheiros, 2007). O fluxo migratório brasileiro, entre aqueles que se têm consolidado em Portugal, foi aquele que mais foi sendo alterado ao longo do tempo, exatamente pela transformação destas características dos migrantes.

Pela história recente de migração, os estudos sobre os migrantes brasileiros em Portugal não são muito abundantes. Apenas nos últimos dez anos, verificou-se a produção de trabalhos sobre a migração brasileira em Portugal, na sua maioria dissertações de mestrado ou estudos temáticos, de uma divulgação restrita (Malheiros, 2007). O conhecimento produzido concentra-se em descrições sociodemográficas e laborais ou sobre processos de construção da identidade. Alguns estudos qualitativos possibilitam conhecimento mais alargado sobre esta comunidade, nomeadamente ao nível das condições laborais, bem como ao nível dos processos de integração na sociedade portuguesa. Existe ainda alguma expressão dos estudos sobre gênero e migrações, especificamente sobre o preconceito contra as mulheres brasileiras (Miranda, 2009). Pela escassez de publicações, o presente estudo pretende contribuir para compreender a trajetória migratória dos brasileiros em Portugal, em particular os recursos mobilizados para superar a adversidade, por meio das narrativas biográficas.

Método

O método das narrativas biográficas insere-se num tipo específico de investigação com recurso nas narrativas. Na investigação sobre as migrações com narrativas autobiográficas têm sido usados vários métodos que possibilitam o estudo das experiências e significados no contexto de cada indivíduo, incluindo o método de reconstrução de casos (Fischer-Rosenthal & Rosenthal, 1993). A abordagem deste método tem por base a ideia de que por meio do processo de reconstrução de cada caso torna-se possível aceder à interação entre o indivíduo e os aspectos institucionais da realidade social, sem perder de vista a perspectiva da narrativa como um todo (Gestalt). Conforme referido pela autora, o objectivo do método:

é a reconstrução do significado biográfico das experiências no momento em que aconteceram e promover a reconstrução da sequência cronológica em que ocorreram essas experiências. O objectivo da análise da história de vida narrada ... é a reconstrução do significado actual das experiências e a reconstrução da ordem temporal da história de vida no presente em que é narrada ou escrita (Rosenthal, 1993, p.60; tradução nossa).

Participantes

As narrativas biográficas deste estudo foram recolhidas junto de migrantes brasileiros há mais de dois anos em Portugal, perfazendo um total de 12 participantes, sete mulheres e cinco homens. Os participantes tinham entre 29 e 50 anos, e residiam na zona urbana ou limítrofe da cidade de Lisboa. A maioria dos participantes tinha escolaridade média ou ensino técnico-profissional e duas pessoas com um curso superior. Em nível da atividade profissional, os participantes exerciam funções em trabalhos pouco diferenciados, sobretudo na área da restauração e do trabalho doméstico, exceto dois participantes que tinham iniciado um negócio próprio: um ligado à área da estética corporal e o outro na construção civil. Todos os nomes dos participantes foram mantidos anônimos, tendo sido criados nomes fictícios.

Procedimentos

Neste estudo adotamos as considerações teóricas sobre a forma de conduzir a entrevista, no sentido clássico da formulação adotada por Schutze (1983, citado por Apitzsch & Siouti, 2007). Estes autores sugerem uma questão introdutória aberta que inicie a narração autobiográfica e que permita ao narrador contar espontaneamente a sua história de vida, até que este indique que concluiu a sua narrativa. Ao evitarem-se questões pré-definidas ou os porquês, possibilita-se a narrativa espontânea, pelos motivos próprios do narrador e pela ordem que configura a sua experiência individual. A figura do entrevistador deve ser a de um ouvinte interessado e empático pela história do seu narrador, encorajando assim o desenrolar da narrativa (Rosenthal, 1993).

A entrevista foi conduzida de modo a integrar as considerações teóricas acima descritas. Assim, a questão de abertura colocada neste estudo foi formulada do seguinte modo: “Gostaria de pedir que me contasse a sua história de vida, todas as experiências e eventos dos quais se lembra. Pode levar o tempo que quiser. Não irei interromper. Apenas no final farei algumas questões.” Após a conclusão da narrativa por indicação do narrador, foram colocadas algumas questões, no sentido de solicitar esclarecimentos sobre o conteúdo relatado, em particular, ambiguidades, lacunas, hesitações ou informação contraditória (Schutze, 1983, citado por Apitzsch & Siouti, 2007).

Os participantes deste estudo foram contatados inicialmente por meio de participantes de um estudo anterior utilizando a técnica da bola de neve. Foi pedido a estas pessoas que indicassem alguém da comunidade brasileira que estivesse em Portugal há mais de dois anos.

O encontro e o desenvolvimento das narrativas aconteceram nos locais eleitos e sugeridos por cada participante. Assim, algumas narrativas decorreram na casa dos próprios, outras em cafés frequentados pelos mesmos ou destinados para este fim. Em cada encontro foi explicado o objetivo do estudo, bem como as dimensões da participação voluntária e a garantia de proteção da confidencialidade e anonimato no tratamento da informação, solicitando o consentimento informado e esclarecido a cada participante. Este estudo respeitou os princípios do código de ética dos psicólogos em Portugal (Ordem dos Psicólogos Portugueses, 2010).

As narrativas foram conduzidas pelo primeiro autor deste estudo e gravadas em formato áudio. Posteriormente, esta informação foi transcrita por um assistente de investigação, tendo a informação áudio sido novamente usada no processo de análise das narrativas, em simultâneo com o texto das transcrições. As narrativas tiveram duração variável, entre 25 min e 2h45min; após a transcrição integral de cada entrevista e respectivas anotações, seguiu-se o método de análise das narrativas da reconstrução de casos. Este método é o resultado da junção entre: hermenêutica, procedimento de análise de textos e análise temática (Fischer-Rosenthal & Rosenthal, 2004). Distingue-se de outros métodos porque parte do pressuposto de que existem dois níveis de análise em cada narrativa: a história de vida como foi vivida e a história narrada. Pela distinção entre estes dois níveis, assim como da análise da relação entre eles, foi possível o processo de reconstrução de cada caso, de um modo orientado para o processo.

A análise das narrativas de reconstrução de casos respeitou os cinco estádios sequenciais, sistematizados pelos autores (para uma descrição detalhada de cada uma destas etapas consultar Fischer-Rosenthal e Rosenthal, 2004): 1) análise dos dados biográficos; 2) análise do texto e de áreas temáticas; 3) reconstrução da história de vida; 4) análise detalhada dos segmentos de textos individuais e 5) contrastar a história de vida como foi narrada com a vida como foi vivida. Estas etapas procuram encontrar o processo de formação da narrativa e da vida atual, sem perder de vista a relação recíproca entre as duas e simultaneamente a unidade do caso.

Resultados

As narrativas biográficas foram agrupadas (à semelhança da proposta de Hollway e Jefferson, 2000, capítulo 6) por meio de uma característica comum e mais saliente na forma de contato com o país de acolhimento, congregando simultaneamente outros aspectos do país de origem e da decisão de migrar. Esta proposta de agrupar as narrativas levanta algumas dificuldades na forma de tratar a quantidade de informação constituinte da história de uma vida, neste caso, de 12 histórias. Por um lado, coloca-se a necessidade de respeitar a especificidade biográfica de cada um dos casos, por outro lado, a utilidade de agrupar características comuns para condensar e comunicar a informação é acompanhada da inevitável perda daquilo que é singular e exclusivo de cada pessoa. Apesar desta ambivalência, decidimos pelo agrupamento de traços comuns nos significados atribuídos às trajetórias de vida salientes nas narrativas, por permitir ganhar esta perspectiva daquilo que é transversal dentro de cada grupo criado, sem perder a expressão dos significados atribuídos pelos migrantes. Foram então constituídos quatro grandes grupos, caracterizados por expressões brasileiras: “correr atrás”; “segurando as pontas”; “pairando”; “quebrar o galho”.

“Correr atrás”

De modo geral, a expressão da gíria brasileira “correr atrás” é usada para designar o processo para alcançar um objetivo. Este primeiro grupo ficou constituído por um conjunto de quatro pessoas: Bruna (32 anos), Ângela (26 anos), Carlos (38 anos) e Sílvio (50 anos).

Dos traços comuns, destacou-se o contexto socioeconômico de origem por ser desfavorecido em nível dos fracos recursos econômicos e da reduzida escolarização do núcleo familiar e residentes na periferia de grandes cidades como São Paulo e Curitiba. Este contexto de fracos recursos econômicos, desde cedo, colocou estas pessoas na posição de “correr atrás”, ou seja, ainda muito novos, tiveram que articular as exigências do trabalho com o investimento escolar. Ângela relatou este passado:

Então ia todos os dias de manhã (à escola) e voltava a correr ... e ia toda suada, transpirada, corria para lá, apanhava o ônibus e dormia no ônibus claro ... tinha as aulas todas até à meia-noite e meia. Depois vinha embora. Chegava na minha cidade 1h30 da manhã e depois no outro dia, 8h da manhã, trabalhar e tal....

Quer o significado da infância, quer o início da idade adulta estava relacionada com a preocupação dos adultos sobre os recursos econômicos, implicando a entrada precoce no mundo do trabalho. No entanto, a expressão dos laços de afeto com esses adultos significativos da família nuclear foi retratada como sendo bastante reduzido, e talvez também por isso pouco abordada. As incursões a este passado relacional tinham pouca expressão nas narrativas, acabando por ser um tema sinteticamente abordado, como se fosse evitado.“... eu não tinha um apego muito próximo com a minha família ... para você ver, nunca se estabeleceu uma relação de amizade com o meu irmão. Vim a ter uma relação com ele, agora” (Sílvio).

Parece ter existido um claro investimento no desejo e aspiração de mobilidade e ascensão social, por via do percurso acadêmico e profissional. No entanto, esse desejo esbarrou com as fracas oportunidades da sociedade brasileira socialmente estratificada. Como referiu Carlos, “Na altura, o Brasil estava assim, se não tivesse um padrinho, não valia a pena”. No seguimento do confronto com a impossibilidade de concretização da ascensão social surgiu a decisão de deixar o país, numa perspectiva de cortar com o passado, com aquilo que era difícil e negativo. A representação de Portugal, onde tudo seria bom, surgia por contraste com o país de origem iniciando-se um novo ciclo de desejos e aspirações. Sílvio e Bruna (respectivamente) abordaram esta representação da migração, de um modo complementar e sob esse ponto de vista dos contrastes entre países: “Como eu não sabia o que me esperava, não esperava muita coisa, sabia das dificuldades mas acima de tudo era deixar para trás o que era mau, então a partir dali eu achava que ia ser bom.”. E acrescenta: “Vir para Portugal foi em busca disso, foi em busca se calhar do sonho americano, sonho português neste caso, foi um bocado isso, quis vir buscar a minha independência” (Bruna).

Em Portugal, estas quatro pessoas retomaram o “correr atrás”, ou seja, voltaram a fazer um grande investimento na dimensão acadêmica e/ou laboral. Ângela e Sílvio, pouco tempo depois de terem chegado ao país, estruturaram negócios por conta própria. Bruna estudou no ensino superior e trabalhou simultaneamente e Carlos tinha uma atividade profissional no setor comercial. Independentemente da área profissional onde estavam inseridos, tratou, acima de tudo, do grande investimento nesta área das suas vidas e da forma como estabeleceram comparações contrastantes entre Portugal e Brasil em nível da situação social e econômica atual. Nesse sentido, Carlos salientou a sua postura:

Foram dois meses à procura de trabalho porque entrei no país ilegal e não tinha visto, entrei primeiro num lugar, me legalizei lá e aí eu pensei vou dedicar-me à carreira, tirei o curso e aí fui tirando lucros disso.

Na chegada ao país, as relações com os portugueses eram sentidas como hostis, promovendo um sentimento de isolamento, tendo sido alteradas ao longo do tempo. Nesse sentido, sucedeu simultaneamente o distanciamento com os brasileiros em Portugal, em particular, aqueles que não ascenderam a uma posição profissional, acadêmica ou econômica tão favorável quanto a deles, sendo privilegiadas, também por esse motivo, as relações com os portugueses.

A dimensão dos contrastes surgiu ainda acentuada a partir de uma crítica e de uma zanga dirigida ao Brasil (ou aquilo que representa).“O único defeito do meu país, infelizmente é a falta de cultura, a falta de inteligência, é uma percentagem muito grande de ignorância ainda” (Ângela). Sobre os brasileiros, Bruna referiu “nós os brasileiros, temos uma coisa, nós ganhamos hoje para gastarmos hoje e amanhã logo se vê ... o brasileiro é muito preguiçoso e para ganhar alguma coisa é muito falso

... eu não confio em brasileiros.”

“Segurar as pontas”

“Segurar as pontas” é tendencialmente sinônimo de aguentar a pressão ou a dor, conforme o contexto, mas, no geral, refere-se ao modo como alguém numa situação difícil vai conseguindo lidar em esforço. A ideia transmitida pela expressão “segurar as pontas”, nestas narrativas, pareceu refletir o esforço para estar no presente na relação com o passado, e com o país que estes migrantes escolheram para viver. Este grupo foi constituído por meio das narrativas de duas pessoas: Juliana (28 anos) e Rogério (25 anos).

Juliana nasceu e cresceu no interior do Brasil, no Estado do Paraná, num ambiente marcadamente rural, de fracos recursos econômicos e com uma família extensa e numerosa. Rogério, apesar de ter crescido também num meio socioeconômico desfavorecido, cresceu nos arredores de uma grande cidade em Santa Catarina, também numa família grande. Este detalhe da família numerosa foi significativo na medida em que os vários elementos que a compõem poderiam ser recursos afetivos importantes, algo que não se verificou e dos quais sentiram a falta. “A minha história é muito complicada, muito mesmo, tive muitas perdas, das pessoas mais importantes... nós somos uma família muito separada, não há união...” (Rogério). No caso de Rogério, foi assinalada a dimensão da perda pela morte de vários familiares, incluindo pai e mãe. Na vida de Juliana, a saída de casa da mãe na infância e a desatenção do pai relativamente aos filhos tornou também saliente o sentimento de solidão.

Ainda sobre os contextos socioeconômicos desfavoráveis, sobressaiu uma clara falta de perspectiva de uma vida melhor no país de origem. Efetivamente, o Brasil parecia ser o lugar de múltiplas perdas, quer da perda das relações significativas de afeto, quer das perspectivas sociais e econômicas. Juliana e Rogério encontraram na migração uma saída a estas dificuldades. No entanto, a vida em Portugal apresentou grandes dificuldades no estabelecimento de novos relacionamentos, em particular com os portugueses. O contexto relacional e social em Portugal era sentido como hostil, marcado por episódios de desvalorização e associado a um sentimento de grande vulnerabilidade e isolamento, destacando-se:

A gente sofre um pouco de preconceito no início, as pessoas nos tratam mal, não sei se é por agente não estar forte o suficiente... Não tem um migrante, pelos menos os brasileiros, que chegou aqui e pode dizer “eu gostei”, nunca ouvi ninguém dizer isso, todo o mundo chora, quer ir embora... (Juliana).

Simultaneamente, era valorizada a permanência em Portugal por via das dimensões básicas de organização das sociedades, quer em nível da educação, quer em nível da saúde. Juliana e Rogério salientam as possibilidades oferecidas aos seus filhos de escolas públicas e de um sistema nacional de saúde sem necessidade de seguros para garantir o acesso aos serviços. No mesmo sentido, sublinharam a dimensão da segurança física por sentirem a ausência de violência e agressão física presente no Brasil. “No meu caso, eu fiquei por causa da minha filha e da minha sobrinha porque aqui o estudo é muito melhor, a educação, tudo... e por elas eu aguentei e vou aguentando até onde der...” (Juliana).

“Pairando”

Esta expressão está relacionada com a ideia de ficar a observar o rumo dos acontecimentos, sem grande investimento ativo na direção que estes poderão tomar. Ao contrário dos outros grupos, nesta expressão é incluído apenas um participante, mas cuja história de vida se distancia das restantes, ao ponto de justificar esta (des)agregação.

Cristina (28 anos) nasceu e cresceu no interior do Brasil (Maranhão). A história da sua vida esteve estreitamente ligada à relação com a sua mãe, com características específicas de grande proximidade. Esta relação foi marcada pela exigência dos problemas de saúde na infância, como infecções respiratórias de maior ou menor gravidade, requerendo maiores cuidados maternos: “Como eu tive aqueles problemas todos de saúde, eu fui a mais doente, na minha casa a minha mãe sempre estava ali do meu lado, sempre muito apegada”.

As escolhas que Cristina foi fazendo ao longo vida parecem estar intimamente ligadas às relações significativas da sua vida, entre a dimensão amorosa e a maternal. “Lá no Brasil fiz o ensino médio e o vestibular para Direito mas não comecei por causa do namorado, tive que ir para o Rio de Janeiro por causa do namorado....”

A decisão de migrar para Portugal surgiu num contexto semelhante, em nível das relações amorosas. Ao mesmo tempo em que parece ter representado um corte na relação com a mãe, “ele era apaixonado por mim e sempre tinha vontade de me trazer para cá e eu saí com 23 anos da barra da saia da minha mãe, como se fala lá”.

Sobre a vida em Portugal, a única referência a outros contextos para além da relação amorosa revelou um quase desligamento do contexto social e cultural português, como se fosse uma continuidade do Brasil.

Quando eu cheguei disse, gosto! Para mim não teve problema nenhum, foi normal. Conheço muita gente, muito brasileiro, português é assim pouco, é que no meu trabalho só tem brasileiro. A gente brinca quando não estamos na hora do trabalho, quando não tem clientes ali a gente está rindo, depois de uma noite a gente bota a música, o pessoal começa a dançar e essas coisas.

Esta breve referência ao processo migratório surgiu de passagem para outro tema, sendo a única referência à mudança de país, para destacar a relação amorosa que mantém desde que chegou a Portugal, que oscila entre a relação materna e a relação amorosa. “E aí ele falou que queria casar comigo, que me amava,.... Eu fiquei surpresa. Fiquei muito surpresa porque eu amo ele, sabe um amor que eu fico pensando.... o amor de mãe e filha é diferente.”

“Quebrar o galho”

O termo é utilizado nas situações em que, perante uma dificuldade, surge algo ou alguém para auxiliar e possibilita que essa dificuldade seja ultrapassada. Este grupo caracterizou-se por ser aquele que concentrou o maior número de narrativas, cinco no total: Luana (35 anos), Nora (29 anos), José (41 anos), Mateus (29 anos) e Marco (34 anos).

As histórias de vida destas cinco pessoas apresentaram características comuns. Num primeiro momento, cada uma delas abordou o passado ligado a familiares e amigos, nomeadamente no período de infância, na periferia de grandes cidades do interior e litoral do Brasil (Teresina, Belém, Osasco, Jaru, Linhares e Parnaíba), onde as condições de vida eram economicamente pouco favoráveis. Como referiu José, “A família era muito grande, com muitos irmãos, havia um pedaço de terra, onde se criava animais para comer e colhiam outros alimentos. Ninguém passava fome! Não era muito mas chegava para todos.” A escolaridade não pareceu ter tido um investimento muito significativo no Brasil. No entanto, existia uma aspiração em aumentar as condições econômicas de origem por meio de vários trabalhos simultâneos ou da tentativa de criação de pequenos negócios. Contudo, subsistia certa frustração na relação entre os ganhos recebidos e a energia despendida para aumentar as possibilidades e recursos econômicos.

A possibilidade de vir para Portugal surgiu na sequência desse balanço. Para estas pessoas existiu um plano, mais ou menos, definido de migração temporária, ou seja, a permanência em Portugal seria apenas durante o tempo suficiente para angariar capital econômico necessário e regressar ao Brasil.

E aí eu tive uma amiga que me convidou para vir para Portugal. Todos os meus amigos diziam que ganhavam 1000 e tal euros. Pô isso é um bom dinheiro no Brasil, dá para juntar e fazer alguma coisa aqui” (Mateus).

Independentemente do tempo de permanência em Portugal (entre 4 e 11 anos), o regresso ao país de origem manteve-se em aberto. Em alguns casos como Luana e José, o balanço entre ganhos e perdas era mais favorável para Portugal, demonstrando alguma inclinação para que este tempo de permanência possa a vir a ser definitivo. Nas restantes pessoas, o plano de regresso permaneceu viável e um objetivo a alcançar, ainda que, sem previsões para que tal se venha a concretizar. “Tenho plano de voltar ao Brasil porque Portugal já não anda, nem a minha cabeça está aqui, no lugar onde tem que estar” (Nora). Em qualquer dos casos, o balanço entre ganhos e perdas salientou, por um lado, a falta que sentem das referências culturais e de pessoas significativas, do clima e da paisagem no Brasil, em contraponto com a vida em Portugal, onde foi possível adquirir mais recursos econômicos, estabelecer algumas relações de amizade com portugueses, mas também com muitos brasileiros a viverem no país, onde o ambiente é seguro e o clima ameno.

Discussão

Este estudo procurou compreender os processos de resiliência na dinâmica entre recursos e adversidades e por meio dos significados atribuídos pelos migrantes à sua trajetória de vida, tanto no país de origem, quanto no país de acolhimento. As narrativas biográficas e a metodologia de análise proposta por Fischer-Rosenthal e Rosenthal (1997) possibilitaram esta abordagem.

Globalmente, os significados atribuídos aos processos migratórios foram uma síntese integrada entre passado, presente, desejos, investimentos, afectos, relações, contextos econômicos e estruturas sociais, readquirindo diferentes significados e expressões em cada uma das histórias de vida (ou grupos de narrativas), assim como cada contexto social e cultural introduziram nuances e características específicas. Com esta perspectiva, procuramos desmontar a tendência para homogeneizar os processos migratórios, atendendo à proveniência dos migrantes (Ungar, 2008). Contrariando essa tendência, realçamos a variabilidade existente entre os migrantes brasileiros suportada em significados assentes numa perspectiva construcionista (Lock & Strong, 2010).

A análise das narrativas dos migrantes participantes neste estudo evidenciou a relação das dimensões dos processos de resiliência. No país de origem e em nível das adversidades foi possível identificar, essencialmente duas dimensões; a realidade socioeconômica e os laços de vinculação afetiva. A primeira dimensão diz respeito à escassez dos recursos econômicos e acadêmicos, bem como da falta de perspectiva e aspiração de aumento desse patrimônio no Brasil. Nestes casos, migrar para Portugal fez parte dos recursos disponíveis ao alcance destes migrantes, com o objetivo de mudar a condição da qual partiram na origem, como aliás referido por diversos autores (Portes & Rumbaut, 1996) que salientam a condição econômica desfavorável enquanto adversidade e como motivo de migração. No entanto, a segunda dimensão refere-se à falta de laços de vinculação afetiva no país de origem (ou laços afetivos disfuncionais), quer por perdas reais de pessoas significativas (morte ou abandono), quer por relacionamentos entre familiares pouco satisfatórios. O interessante destes casos é o fato desta especificidade dos laços afetivos permanecer no país de acolhimento, potenciado pelo contexto social português, globalmente sentido como hostil, com base nas interações com os portugueses pautadas por sentimentos de desvalorização (rejeição e preconceito). Este aspecto particular dos laços afetivos merece atenção pelo fato de muitos estudos revelarem a dimensão das perdas (reais e simbólicas) dos migrantes na chegada a um novo país (Boss, 2006). Contudo, neste caso, esta dimensão é anterior ao projeto migratório, retomada (ou aumentada) posteriormente por dificuldades sentidas nas relações interpessoais no país de acolhimento.

O modo como os migrantes deste estudo permaneceram no país de acolhimento realça diferentes perspectivas, das quais destacamos duas principais dimensões: o sentimento de pertença e as vinculações afetivas.

Por meio do primeiro grupo de migrantes, compreendemos a dinâmica existente entre o estabelecimento de relações significativas com portugueses e o sentimento de pertença. Como referem Sroufe e Waters (1977), é a possibilidade de estabelecer relações de proximidade com outros que possibilita um sentimento de segurança básica, de estar emocionalmente ligados a pessoas e lugares, bem como a sensação de se sentirem aceites no contexto social e cultural. Esta necessidade parece ser tanto maior, quanto mais vincada é a dimensão contrastante entre contextos. Ou seja, neste caso, o fosso aberto entre os países, onde o Brasil e os brasileiros são representados sob as perspectivas desvalorizadoras e negativas. Mais ainda, como salienta Baumeister (2012), a necessidade de pertença é de tal forma importante que, quando se perdem determinados laços, procuram-se outros que possam amortecer o impacto dessa perda e que continuem a satisfazer a necessidade de pertença.

Sobre o sentimento de pertença, poder-se-á acrescentar a associação entre a existência de laços de vinculação institucional e cultural, sublinhado pelo segundo grupo de participantes (sugerido por autores como Lewicka, 2011). No caso destes migrantes, as dimensões da educação e saúde em Portugal servem como elo e proximidade ao país, na medida em que são beneficiários destes sistemas, partilhado em igualdade de oportunidades e circunstâncias com os portugueses. Apesar de pouco frequente, a relação entre resiliência e pertença em migrantes tem sido estudada por alguns autores, nomeadamente, Baskin, Wampold, Quintana e Enright (2010), sinalizando a importância da pertença como recurso contra o isolamento e solidão.

Destacou-se ainda no terceiro grupo que as vinculações afetivas podem ser de tal modo intensas que têm potencial efeito analgésico face a dificuldades provocadas pela ruptura no contexto, neste caso, pela saída do país de origem.

Por último, no quarto grupo revisitamos com maior clareza a noção de pertença associada ao conceito de diáspora. Estes migrantes salientaram a dinâmica entre ganhos e perdas, os aspectos positivos da permanência em Portugal, as vinculações afetivas aqui criadas, mas simultaneamente, aquelas que ficaram no Brasil, que são significativas e fazem falta. Tsolidis (2013) salienta exatamente esta dimensão dinâmica entre ganhos e perdas que caracteriza a diáspora. A autora refere à existência simultânea da perda da íntima ligação histórica, tradicional, familiar e dos costumes do país de origem, e os ganhos a vários níveis no novo país. A perda parece ser possível apenas pelo ganho de certo mito ou ilusão de que existirá sempre um regresso à terra natal. Desenvolve-se então uma dupla lealdade, quer em relação ao país de origem, quer relativa ao país de acolhimento. À medida que os migrantes vão integrando elementos do novo país, estes vão sendo sedimentados sobre as representações do país de origem como lugar de regresso.

Esta análise das narrativas reforça o entendimento sobre os processos de resiliência não como um resultado, mas como um processo complexo e de inter-relação entre condições e contextos, à semelhança dos autores que sublinham o interesse na resiliência nesta vertente dinâmica e complexa (Luthar, Cicchetti, & Becker, 2000), centrada nos contributos das especificidades culturais (Ungar, 2008). O processo de resiliência dos migrantes deste estudo assume várias funções e diversas configurações, nomeadamente, a anulação do impacto da adversidade, desenvolvendo possibilidades alternativas ou ultrapassando as adversidades integrando-as nos percursos e trajetórias de vida.

Considerações Finais

Este estudo procurou trazer à luz a dimensão das migrações observadas na continuidade entre país de origem e acolhimento, na lógica da (re)construção de significados. Esta abordagem integrada e centrada na subjetividade tem sido pouco frequente na investigação sobre os processos migratórios em psicologia, predominando a perspectiva sobre as condições de ajustamento no destino (Yijälä & Jasinskaja-Lahti, 2010).

Em nível das implicações do trabalho clínico com migrantes poderá ser de grande importância a forma como são considerados os aspectos relacionados com o país de origem, dado que muitos migrantes tiveram trajetórias de vida marcadas por condições adversas ainda antes de migrarem. Nesse sentido, estas condições poderão estar relacionadas com as dificuldades vividas no país de acolhimento, onde estas são acentuadas e recriadas requerendo por esse motivo a atenção dos clínicos. Por outro lado, salientamos neste artigo as dimensões da pertença e das vinculações afetivas, sociais e culturais relacionadas com a necessidade de ser aceite. Neste sentido, a relação terapêutica constitui a possibilidade de desenvolver laços importantes de vinculação afetiva. Os laços estabelecidos entre terapeuta e paciente possibilitam o desenvolvimento da aliança terapêutica que permite a regulação emocional, a confiança e a dependência necessária a este processo (Diener & Monroe, 2011).

Em nível da política e intervenção social sublinhamos que a compreensão e o conhecimento dos recursos no processo de resiliência não poderá ter como implicações ou consequências práticas, a demissão dos interventores sociais e dos decisores políticos em nível das politicas migratórias (Seccombe, 2002). A questão central mantém-se, na medida em que, face ao contexto adverso associado aos processos migratórios e apesar da capacidade de muitos migrantes em navegarem e negociarem os recursos existentes, nem todos o conseguem e para outros, continuam a ser insuficientes, conduzindo a situações de fragilidade e exclusão social. Como refere Gilligan (2004), a intervenção numa perspectiva da resiliência não pode focar apenas os fatores individuais, mas, também, as deficiências estruturais na sociedade, de forma a tornar as pessoas mais fortes, mais competentes e mais funcionais em situações adversas.

Das limitações do estudo salientamos o fato de, dada a diversidade das narrativas e o interesse por cada trajetória, a especificidade individual ficar diluída nos pequenos grupos criados e alguns significados ficarem perdidos ou sem o destaque merecido face à necessidade de aglutinação da informação de várias narrativas (Hollway & Jefferson, 2000). No entanto, em termos de ganhos, a opção pelo agrupamento das narrativas permitiu compreender alguns traços comuns que sobressaíram das trajetórias individuais e simultaneamente aqueles que são distintos entre cada grupo. De qualquer modo, a análise das narrativas, conforme sugerem os autores (Fischer-Rosenthal & Rosenthal, 2004), tem sempre caráter hipotético e temporário. Isto implica que esta possibilidade de análise será certamente alterada, com a permanência dos migrantes ao longo do tempo no país de acolhimento, já que tem sido estudada a importância desta dimensão temporal em nível das transformações ocorridas nos migrantes.

Por último, reforçamos a especificidade dos migrantes entrevistados, no sentido em que todos eles residiam na capital do país - Lisboa, onde se concentram a grande maioria dos migrantes brasileiros e onde se verifica alguma confluência de diversidade cultural, por via da concentração de migrantes residentes de várias origens. Este contexto social, geograficamente localizado numa grande cidade (55% do total de migrantes residem em Lisboa), será certamente distinto de outras cidades ou de um ambiente rural de outra zona do país.

Apoio e financiamento:

Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Bolsa de doutoramento SFRH/BD/60693/2009, Portugal.

Referências

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Autor notes

Sandra Roberto: mestre em Psicologia Clínica, pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa; doutoranda em Psicologia, pelo Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE-IUL, CIS, Portugal.
Carla Moleiro: doutora em Psicologia Clínica, pela University of California, Santa Barbara, EUA; professora auxiliar e investigadora em Psicologia no Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE-IUL, CIS; presidente da Associação Portuguesa de Psicologia e Psiquiatria Transcultural.

E-mail: sandragasroberto@gmail.com

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