Artigo Original

DIFICULDADE NA NOÇÃO LÓGICA DE CONSERVAÇÃO DE QUANTIDADE NO ESTÁGIO PRÉ-OPERATÓRIO

DIFICULTAD EN LA NOCIÓN LÓGICA DE CONSERVACIÓN DE LA CANTIDAD EN LA ETAPA PRE-OPERATIVA

Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil

DIFICULDADE NA NOÇÃO LÓGICA DE CONSERVAÇÃO DE QUANTIDADE NO ESTÁGIO PRÉ-OPERATÓRIO

Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 3, pp. 341-352, 2015

Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 08 Julho 2014

Aprovação: 23 Outubro 2015

RESUMO.: O artigo aborda a dificuldade na noção lógica de conservação de quantidade da criança, no estágio pré-operatório. Retoma essa análise presente na investigação de Piaget e Szeminska (1975). Argumenta que, a partir da abordagem lógica do sentido e da referência em Frege (1892), verificamos uma aproximação entre essa abordagem e a análise de Piaget e Szeminska e pensamos que a criança com acesso à noção lógica de conservação de quantidade se encontra sob o primado da referência. Ademais, argumenta que Lacan (1971), a partir da abordagem de Frege, reivindica que a referência é fálica e, nessa direção, podemos pensar que a referida criança, quando aprende a conservar quantidade, está sob o primado da referência fálica que diz da operacionalidade da função paterna. Propõe, nessa direção, que o argumento apresentado por Lacan contribui para a compreensão dessa dificuldade detectada por Piaget.

Palavras-chave: Compreensão de número, noção de conservação, função paterna.

RESUMEN.: El artículo aborda la dificultad de la noción lógica de conservación de la cantidad de niños en la etapa pre- operativa. Recoge este análisis presente en la investigación de Piaget y Szeminska (1975). Argumenta que desde el enfoque de la lógica de sentido y referencia en Frege (1892), se pode ver una conexión entre este enfoque y el análisis de Piaget y Szeminska, y pensar que el niño con el acceso a la noción lógica de conservación de la cantidad se encuentra bajo el primado de la referencia. Además, argumenta que Lacan (1971) desde el enfoque de Frege reivindica que la referencia es fálica, y, por consiguiente, se pode pensar que ese niño cuando aprende a conservar la cantidad está bajo el primado de la referencia fálica diciendo la operatividad del padre simbólico. Propone, en este sentido, que el argumento presentado por Lacan contribuye a la comprensión de esta dificultad, detectada por Piaget.

Palabras-clave: Comprensión de número, noción de conservación, función paterna.

Introdução

Pesquisas apontam que as crianças com problemas de aprendizagem matemática apresentam dificuldade central no acesso à noção de número. Desse modo, o senso numérico é um conceito fundamentalmente importante para o campo das dificuldades de aprendizagem matemática no que concerne à intervenção e à prevenção. Corso e Dorneles (2010) definem por senso numérico o conceito que se refere à facilidade e à flexibilidade das crianças com números, bem como a compreensão do significado deles e ideias relacionadas a eles. Um senso numérico com bom desenvolvimento comporta, portanto, habilidade da criança na estimativa de quantidades, reconhecimento de erros em julgamentos de magnitude ou de medida, realizações de operações quantitativas tais como: menor do que, maior do que e equivalência.

A ideia de propriedade comutativa também pode ser melhor compreendida quando alguém se apoia no senso numérico. Um aluno pode ser ensinado que 3x4=4x3 porque a lei comutativa da multiplicação diz que axb=bxa. No entanto, ele pode ter a compreensão de que aquelas afirmações tratam de um reagrupamento da mesma quantidade. Se um conjunto de 12 itens é agrupado em 3 subconjuntos de 4 itens ou em 4 subconjuntos de 3 itens é irrelevante - os 12 itens originais permanecem (Corso & Dorneles, 2010, p. 300).

Nesse contexto, uma pergunta que se coloca é acerca da origem do senso numérico. Sabemos que, enquanto a vertente inatista advoga pela ideia de que há algum tipo de predisposição inata que nos possibilita a competência numérica, a epistemologia genética com Piaget propõe que tal posse do número não é inata, não é resultado de uma habilidade inata de abstração numérica das crianças. Antes, “ele deixa de olhar para as hipotéticas estruturas inatas e para os estímulos ambientais e dirige sua atenção para o sujeito; mais especificamente, para a ação do sujeito” (Becker, 2013, p. 69), que, por meio de suas estruturas cognitivas, “se adapta intelectualmente e organiza o meio em que vive. Ou seja, através de acomodações e assimilações de esquemas, o indivíduo constrói o seu conhecimento a respeito do mundo” (Queiroz, Macedo, Alves, & Garioli, 2009, p. 298). Nessa direção, a noção de número é uma construção que resulta de um processo interacional entre o sujeito e o objeto. Essa construção se dá etapa a etapa, a partir da síntese da classificação e da seriação de elementos (Nogueira, 2006), “chegando à totalidade operatória do conjunto dos números inteiros finitos, ‘indissociavelmente cardinais e ordinais’” (Duro & Cenci, 2013, p. 4).

Neste artigo, retomamos essa análise da origem do número presente na investigação de Piaget e Szeminska (1975), no livro A Gênese do Número na Criança, privilegiando, no recorte a ser feito, a noção de conservação de quantidade na criança do estágio pré-operatório. Nas provas às quais as crianças foram submetidas nesta pesquisa, tal noção foi fixada como uma das “qualidades” ou “necessidades” para a existência do número, a qual é, inclusive, apresentada como condição de todo e qualquer conhecimento.

Ademais, reivindicamos que, a partir da abordagem lógica do sentido e da referência presente em Frege (1892/1978a), podemos verificar uma aproximação entre essa abordagem e a análise de Piaget e Szeminska, pensando que a criança com acesso à noção lógica de conservação de quantidade se encontra sob o primado da referência. No entanto argumentamos que Lacan (1971/2009), a partir da abordagem de Frege, reivindica que a referência é fálica. Tal referência fálica concerne à operacionalidade do pai simbólico, que, dentre variados modos de dizê-la, abordaremos no presente artigo pela negativização do falo imaginário e, por conseguinte, pela elevação deste à categoria de falo simbólico, “presença da ausência do objeto real” (Becker, 2010, p. 45). Dessa forma, a partir do percurso pretendido e considerando a afirmação do próprio Piaget (1954) de que não existem comportamentos puramente cognitivos, perguntamo-nos se, nessa direção, podemos pensar que a referida criança, quando aprende a conservar quantidade, está sob o primado da referência fálica que diz da operacionalidade da função paterna. E, por conseguinte, se o argumento apresentado por Lacan contribui para a compreensão dessa dificuldade detectada por Piaget. Esses pontos, conjuntamente com a necessária retomada da análise de Piaget e Szeminska, por meio do já referido recorte, balizarão o percurso do presente artigo.

Piaget e Szeminska sobre a dificuldade do acesso à noção lógica de conservação de quantidade da criança no estágio pré-operatório

Piaget e Szeminska (1975), no livro A Gênese do Número na Criança, buscam confirmar a hipótese de que a criança acede à noção lógica de número como representação de quantidade, quando consegue aceder à noção de conservação de quantidades ao comparar quantidades corretamente. O que quer dizer isso? Quer dizer que esses pesquisadores estão buscando confirmar a hipótese do número como síntese das operações de classificação e de seriação.

Desse modo, de acordo com Piaget e Szeminskai (1975), para a construção da noção de número, é necessária a sua conservação como quantidade, mesmo que haja alteração da distribuição espacial dos elementos considerados. Nessa direção, de acordo com Nogueira (2011), os referidos pesquisadores argumentam que a capacidade apresentada pela criança de contagem exitosa dos objetos na matriz da quantificação, e não do “conhecer décor” da sequência de palavras-número usadas na contagem, é progressiva e interna, dependendo da coordenação de diversas ações sobre os objetos.

Rangel (1992) sistematiza as referidas ações que a criança precisa desenvolver sobre os objetos para que, de fato, tenha posse do número. Tais ações, podemos dizer, são: a classificação: reunir os objetos que serão contados, separados dos que não serão; a seriação: ordenação dos objetos para que todos sejam contados, ou seja, nenhum fique de fora e seja contado somente uma vez; a ordenação dos nomes aprendidos para enumerar os objetos no sentido da sucessão convencional, sem o esquecimento de nomes e sem emprego do mesmo nome mais de uma vez; a correspondência biunívoca ou correspondência termo a termo: o estabelecimento da correspondência biunívoca e recíproca nome-objeto; o princípio da cardinalidade: entender que a quantidade total de elementos de uma coleção pode ser expressa por um único nome.

Piaget e Szeminska “chegam, então, à conclusão de que a construção do número se dá etapa a etapa, a partir da união da inclusão e da seriação de elementos, chegando à totalidade operatória do conjunto dos números inteiros finitos, ‘indissociavelmente cardinais e ordinais’” (Duro & Cenci, 2013, p. 4).

Compreender o número significa sintetizar a ordem e a inclusão hierárquicas. Dessa maneira, é importante que, ao contar, a criança mantenha uma ordem mental organizada, a fim de contar cada elemento uma, e apenas uma, única vez... No entanto, se apenas essa organização fosse necessária, a criança não compreenderia a quantidade que cada número representa, já que o contaria um de cada vez, desprezando o grupo de elementos. Então, considera-se a inclusão hierárquica para que os números sejam quantificados enquanto grupo, de forma ordenada e inclusiva; 1 antes do 2, mas incluído em 2, 2 antes do 3 e após o 1 e, dessa forma, 1 e 2 incluídos em 3 e assim por diante (Duro & Cenci, 2013, p. 5).

Por conseguinte, para Piaget e Szeminska (1975), na investigação tratada no presente artigo, investigação essa concernida com a origem do número, é essencial a identificação do momento em que as crianças passam de raciocínios baseados somente nas qualidades dos objetos, sem conservação de quantidades, para raciocínios fundamentados nas quantidades que estabelecem. Na vertente dessa referida investigação, Piaget afirma que conhecer de cor a sequência de palavras utilizadas na contagem não é suficiente para a construção da estrutura de número. Inclusive, sobre isso, cabe notar que, para Nogueira (2011, p.110), tal afirmação tem “sido evocada para justificar a ênfase nas atividades lógicas em detrimento de atividades numéricas na Educação Infantil”. Isso é importante, pois “o caráter abstrato da disciplina é considerado um dos motivos para o baixo desempenho dos estudantes com dificuldades em matemática” (Carmo & Simionato, 2012, p. 325).

Dessa maneira, Piaget e Szeminska (1975) verificam que, de modo geral, a criança somente começa a aceder à estrutura de número na passagem do estágio pré-operatório para o estágio operatório, isto é, geralmente entre 6-7 anos. É a partir dessa idade “que a contagem torna-se confiável e, portanto, passa a ser a maneira mais utilizada pelas crianças para a determinação de quantidades” (Nogueira, 2011, p. 112). Segundo Piaget e Szeminska (1975), a correspondência biunívoca ou correspondência termo a termo não garante a conservação da quantidade por parte da criança, visto que uma criança pré-escolar pode facilmente enfileirar objetos em correspondência a outros já enfileirados, mas não acreditar na conservação dessa quantidade caso a densidade de um dos conjuntos sofra alteração.

Nas provas às quais as crianças foram submetidas nesta pesquisa, os pesquisadores se fixaram nas principais “qualidades” ou “necessidades” para existência do número: a conservação de quantidades apresentada como condição de todo e qualquer conhecimento; a correspondência biunívoca ou correspondência um a um; a determinação da cardinalidade e do princípio ordinal, buscando a referida confirmação da hipótese de que o número é a síntese original da classificação e da seriação.

Conforme dito na introdução, importa-nos no presente artigo recortar privilegiadamente uma dessas necessidades fixadas por Piaget e Szeminska (1975, p. 23) nas referidas provas propostas, a saber, a noção de conservação de quantidades. Nesse sentido, cabe dizer que os referidos autores começam por argumentar que todo conhecimento de ordem científica ou do senso comum “supõe um sistema, explícito ou implícito, de princípios de conservação”. Nessa direção, argumentam que a noção de conservação constitui uma condição necessária, sem a preocupação de saber se ela é suficiente para a atividade racional. Assim sendo, para os autores, o pensamento aritmético se situa exatamente nessa regra: a noção de conservação constitui uma condição necessária, ainda que não suficiente para qualquer inteligência matemática. Os pesquisadores “ainda relacionam a conservação da quantidade com a construção da própria quantidade, afirmando que a criança ‘... só descobre a quantificação real no momento em que se torna capaz de construir totalidades que se conservam’” (Duro & Cenci, 2013, p. 7).

De acordo com Piaget e Szeminska (1975), a demonstração que a exigência de conservação não é inata, e sim construída, ocorre a partir dos resultados obtidos com a técnica adotada (a fim de comprovar, ou não, a conservação da quantidade na criança). Essa técnica consiste em, por exemplo, apresentar primeiramente à criança dois recipientes cilíndricos com as mesmas dimensões, denominadas A1 e A2, com a mesma quantidade de líquido, cujo nível é visível. Em seguida, despejar na frente dessa criança o líquido contido em A2 em outros dois recipientes, denominados B1 e B2, semelhantes entre si, porém menores que os anteriores. Resumindo a tônica do método, podemos dizer que o problema da conservação é investigado por meio de haver, diante da visão da criança, uma verdadeira submissão dos líquidos a todas as aparentes deformações possíveis. A pergunta feita à criança é se a quantidade transvasada de A2 para (B1 + B2) permaneceu a mesma de A1.

Se for preciso, pode-se a seguir verter o líquido contido em B1 em dois recipientes iguais entre si e menores ainda, C1 e C2; após, se se apresentar o caso, despejar B2 em dois outros recipientes C3 e C4, idênticos a C1 e C2; coloca-se então as questões da igualdade entre (C1 + C2) e B2 ou entre (C1 + C2 + C3 + C4) e A1 etc (Piaget & Szeminska, 1975, p. 25).

Segundo Piaget e Szeminska (1975), os resultados encontrados sugerem a demonstração de que a conservação das quantidades contínuas parece ocorrer somente na fase de desenvolvimento intelectual da criança, geralmente compreendida entre os 07 e os 12 anos, ou seja, que a conservação se constrói pouco a pouco. Dessa forma, na fase compreendida geralmente entre os 02 e os 07 anos, conhecida como fase pré-operatória, os resultados parecem demonstrar que as quantidades contínuas não são consideradas constantes. No curso dessa fase, em que “a percepção ainda domina o raciocínio” (Queiroz et al., 2009, p. 300), a criança toma como algo natural que a quantidade de líquido varie de acordo com a forma, as dimensões e o número dos recipientes nos quais ele é transvasado.

Apesar de as razões apresentadas em favor da não conservação: diferença de nível, de tamanho, de número de vidros etc., variarem de um sujeito a outro ou de um momento a outro, toda mudança percebida é considerada uma modificação no valor total do líquido. Assim, a percepção das mudanças aparentes “não é de modo algum corrigida por um sistema de relações ou de operações que assegurem a existência de uma invariante de quantidade” (Piaget & Szeminska 1975, p.25). Segundo Piaget e Szeminska (1975, p. 30), tais reações são as mais primitivas da criança face ao problema da conservação das quantidades e “sua significação é clara: o sujeito não se acha de modo algum inclinado a admitir que uma mesma quantidade de líquido possa permanecer invariante através das mudanças de forma ligada a seus transvasamentos” (p. 30).

Logo, os referidos autores argumentam pela potencialidade de engano em jogo na percepção imediata que parece trabalhar em direção oposta ao trabalho empreendido pela inteligência da elaboração da noção de uma quantidade constante. Ou seja, trabalhar em direção oposta à dimensão do julgamento, visto que o julgamento ou juízo somente funciona quando a percepção imediata não é suficiente para prover o sujeito da informação de que uma quantidade determinada de líquido não varia se houver transvasamento de um recipiente de forma A para um ou dois recipientes de forma B. Argumentam, por conseguinte, que o problema próprio da análise psicogenética, antes de ser o de descobrir por que a referida percepção é enganadora, é o de descobrir “por que os sujeitos de um certo nível nela se fiam sem mais pedir, enquanto outros a corrigem e completam através da inteligência” (Piaget & Szeminska, 1975). O de descobrir por que a criança não consegue aceder, nessa fase, ao ato de compreensão intelectual “que será tanto mais importante e mais facilmente analisável quanto mais enganadora for a percepção imediata” (p. 30-31).

No que concerne à questão do por que a criança, de saída, já não acede à noção da conservação da quantidade, ressalta a este respeito “a insuficiência da quantificação das qualidades percebidas e a incoordenação das relações quantitativas em jogo nas percepções” (Piaget & Szeminska, 1975, p. 31). Por exemplo: “quando o sujeito conclui que a quantidade aumenta porque o nível se elevou, ele se esquece de considerar a largura do recipiente e, se o faz a seguir, esquece o nível etc.” (p. 33). Essa conjugação termina por resultar em um tipo de reação que porta duas características: 1) a contradição incessante, pois o sujeito ora acredita em uma coisa, ora crê no inverso, sem considerar que pudesse ter errado anteriormente. 2) a segunda característica é afinada com a contradição lógica, a saber, a impressão conferida é de uma ignorância por parte da criança da noção de uma quantidade total, portanto de uma impossibilidade de raciocinar, “a não ser sobre uma única relação de cada vez, sem coordená-la às outras” (Piaget & Szeminska, 1975, p. 32).

Nessa linha de raciocínio, Piaget e Szeminska (1975) concluem, no que concerne a essa fase de desenvolvimento intelectual na criança, que, como já dito, os sujeitos dessa fase não têm a noção de conservação da quantidade. Ademais, argumentam que, se eles não a têm, é porque eles não lograram construir a noção da própria quantidade, na acepção de quantidade total, devido, por sua vez, à impossibilidade de composição das relações ou das partes em jogo, “pois seu espírito não ultrapassa o nível das qualidades ou das quantidades “brutas” (p.36). Ou seja, “sendo a centração uma característica desse período, a criança permanece fixada sobre um número limitado de aspectos, estando incapacitada de avaliar todas as características do contexto” (Queiroz et al., 2009, p. 301).

No entanto, entre as reações dos sujeitos que não acedem à noção da conservação das quantidades e as reações daquelas que a postulam como uma necessidade simultaneamente física e lógica, é possível a verificação de certo número de comportamentos intermediários que caracterizam uma segunda fase, embora isso não signifique que todas as crianças passarão inevitavelmente por essa fase de transição. Durante essa fase, a noção de conservação se impõe de modo progressivo, pois ela ocorre de tal modo que, “se ela é descoberta no caso de certos transvasamentos, dos quais nos será preciso procurar determinar os caracteres, ela não é generalizável a todos” (Piaget & Szeminska, 1975, p. 25).

Aqui, no momento conclusivo do recorte dessa dificuldade do acesso à noção lógica de conservação de quantidade, importa, para o objetivo do presente texto, trazer novamente a afirmação do próprio Piaget (1954), de que não existem comportamentos puramente cognitivos, considerando “a afetividade como um agente motivador da atividade intelectual” (Queiroz et al., 2009, p. 304). Pensamos que, ao afirmar isso, ele confere abertura para que possamos investigar que aspecto da dimensão subjetiva pode interferir no âmbito da dificuldade de aprender a noção de conservação de quantidades. Mais especificamente para o nosso caso, importa perguntar o que, do ponto de vista psicanalítico, poderíamos dizer que pode estar em jogo no âmbito dessa dificuldade. Para responder, propomos um percurso psicanalítico que, se não dialoga em específico com a lógica de Piaget, dialogará com a lógica que pensamos estar na base dessa leitura piagetiana, a saber, a lógica de Frege (1892/1978a), na sua abordagem do sentido e da referência. Então, passemos a essa seção.

Frege sobre o Sentido (Sinn) e a Referência (Bedeutung)e Lacan sobre o pai idealizado e a referência fálica

Frege (1892/1978a), no clássico artigo Sobre o sentido e a referência, afirma que um sinal exprime um sentido (Sinn) e designa uma referência (Bedeutung), traçando uma distinção entre essas duas dimensões. De acordo com Lacan (1971/2009), a observação de Frege gira inteiramente em torno de que, conduzidos a certo ponto do discurso científico, verificamos fatos tais como: será que é a mesma coisa dizer Vênus ou designá-la desses dois modos seguintes, como por muito tempo ela foi designada, estrela da manhã e estrela da tarde ou estrela vespertina? “Será a mesma coisa dizer Sir Walter Scott e dizer o autor de Waverley1 ? ... É no exame dessa distinção que Frege se apercebe de que não é possível, na totalidade dos casos, substituir Sir Walter Scott por o autor de Waverley” (p. 159). Ainda segundo Lacan (1971/2009), é nessa análise que Frege distingue que o autor de Waverley

é um modo de designação de Sir Walter Scott, isto é, veicula um sentido (Sinn), enquanto Sir Walter Scott designa uma referência (Bedeutung). Se na sentença: O Rei Jorge III procurou informar-se se Sir Walter Scott era o autor de Waverley, substituirmos o autor de Waverley por Sir Walter Scott, obteremos uma frase com sentido diferente: O Rei Jorge III procurou informar-se se Sir Walter Scott era Sir Walter Scott.

Dessa forma, com base em Leibniz, que argumenta que o que designa uma referência equivalente pode substituir-se, indiferentemente, Frege tem o mérito de perceber que a substituição de um sinal por outro com a mesma referência, mas sentido diferente, introduz uma diferença não somente comportada pelo sinal que exprime o sentido, na matriz de uma relação sinonímica, mas também no sentido expresso por esse sinal (Dummett, 1973b). Por conseguinte, Frege argumenta que um nome próprio ou uma sentença assertiva completa exprime seu sentido (que recebe o nome de pensamento no caso da sentença) e designa ou refere-se a sua referência. De acordo com Dummett (1973a), enquanto por sentido (Sinn) Frege entende o modo de apresentação do objeto, a referência (Bedeutung) seria o objeto determinado. Ademais, a partir desse famoso exemplo que ele apresenta: Estrela da Manhã e Estrela da Tarde, Frege reivindica que tais sinai, seriam nomes próprios que comportariam uma relação de igualdade, dado que, mesmo se tratando de sinais diferentes com diferentes sentidos, referem-se à mesma coisa, a saber, o planeta Vênus. Importa assinalar que para Frege é a referência (Bedeutung,) e não o sentido (Sinn) que tem valor de verdade. Logo, ainda que porte diferenças nos seus modos de apresentação, nos seus sentidos, há um nível de conservação da mesma coisa no plano da referência que tem valor de verdade.

Mas, aqui, interessa-nos, especificamente, a abordagem fregeana da referência, que não se exaure no plano linguístico, estendendo-se também ao plano da matemática, pois o mesmo se aplica, por exemplo, a “2+5 e 3+4” (Frege, 1891/1978b, p. 36). Para o autor, diferentemente de uma visada que qualifica essas duas operações como tratando do igual, mas não do mesmo, trata-se da mesma coisa apresentada de modos diferentes. No caso do segundo exemplo dado, o qual nos interessa especificamente, trata-se da referência no plano da mesma quantidade apresentada de diferente modo. Trata-se, nesse plano, portanto, da conservação da quantidade, a despeito da modificação na disposição dos elementos que compõem o número como quantidade total. Para Dummett (1973b, p. 159), o fato de a referência não determinar o sentido, pois nós podemos associar o mesmo referente com diferentes expressões e diferentes modos, constitui toda a razão para o emprego, por parte de Frege, não somente do sentido, mas também da referência.

Pensamos que um dos méritos dessa escrita lógica, que interessa à ciência como um todo, e aqui, é claro, devemos incluir toda e qualquer abordagem científica que se interesse pelo desenvolvimento cognitivo da criança, como o é a leitura piagetiana, é que tal escrita, para o nosso caso específico, indica que a mesma quantidade pode ser apreendida de diferentes modos. Além disso, o tratado lógico fregeano patentiza a lógica presente na ciência moderna, pois respalda a possibilidade da descoberta reivindicada por essa última de que há “um saber no real do qual ela deduz leis que possuem um valor universal” (Marcos, 2011, p. 150). Essa possibilidade está calcada na referida dimensão de conservação a partir da qual “ela pode predizer o que se passa no real através de experiências empíricas” (Marcos, 2011, p. 150). É justamente com essa ciência moderna que a abordagem da noção de conservação de quantidade em Piaget está afinada. Dito de outra maneira, identificamos um parentesco entre a abordagem fregeana do sentido e da referência, no que tange ao sentido como um modo de apresentação não ser um guia seguro, no que se refere ao plano da conservação, que pode ocorrer no nível da referência, e a abordagem piagetiana da aparência como fonte de engano (Lajonquière, 1992) para o acesso à noção lógica de conservação de quantidades na criança da fase pré-operatória.

Ademais, essa escrita lógica da referência (Bedeutung) como distinta do sentido (Sinn) interessa também à psicanálise. No entanto, Lacan (1971/2009) tem algo a dizer sobre isso. No seu seminário De um discurso que não fosse semblante, ele dá um passo a mais nessa referida questão ao analisar o mito do pai da horda primeva, inventado por Freud (1913/1996a), como todo o mito o é: para dar conta de um impossível. No presente caso, para dar conta do impossível do que é um pai. Nessa direção, Lacan parece nos indicar que o ponto de instauração do Significante do Nome-do-Pai que veicula a lei do desejo é o mesmo para o Pai gozador, não castrado, toda potência e, portanto, idealizado, e para o Pai que introduz a perda de gozo, participando da dimensão do Outro castrado. O que isso quer dizer? Significa que ele retoma a definição que dera anteriormente ao Significante do Nome-do-Pai “como significante capaz de dar um sentido ao desejo da mãe” (Lacan, 1971/2009, p. 161), ratificando esse plano do sentido, mas sugerindo outra dimensão: a dimensão de um simbólico que toca o real ao escrevê-lo. Escrita do real, pelo simbólico, operacionalizada pela operação de castração, que, dentre variados modos de dizê-la, podemos abordá-la, como o faremos aqui, pela negativização do falo imaginário e, logo, pela elevação deste à categoria de falo simbólico, “presença da ausência do objeto real” (Becker, 2010, p. 45). Assim, Lacan (1971/2009) sugere que o sentido concerne ao sentido do assassinato do pai (p. 165).

Para o que vamos apontar adiante como um primeiro passo da formulação do nosso argumento a partir de uma possível leitura psicanalítica acerca da dificuldade do acesso à noção lógica de conservação de quantidade da criança na fase pré-operatória, propomos, em primeiro lugar, levar em consideração que a abordagem fregeana sobre o sentido (Sinn) e a referência (Bedeutung) se encontra presente no pano de fundo dessa análise de Lacan. Em segundo lugar, propomos pensar que, nesse ponto do assassinato do pai, temos também a referida dimensão do pai idealizado, o pai toda potência e, portanto, não castrado. Em terceiro, considerar que o pai idealizado concerne à dimensão do pai que se apresenta sob a aparência de ter o falo, que é uma das formas de referência ao objeto enigmático que causa o desejo do Outro, por estar justamente, na dimensão do pai não castrado. E em quarto, destacar os significantes que incidem nessa análise, fazendo que as categorias lógicas do sentido e da referência reverberem sobre essa análise e essa análise também reverbere sobre essas categorias.

Feitas essas propostas que pensamos ser fundamentais para a formulação do primeiro passo do nosso argumento, apontamos que Lacan confere uma indicação de que a categoria lógica do sentido concerne ao pai idealizado que se apresenta sob a aparência de ter o falo, conferindo um sentido ao desejo enigmático do Outro materno, ao Outro idealizado, que, embora concirna aos três registros, tem a prevalência do registro imaginário. Aqui, importa antecipar algo que será melhor explicitado: se o ato desejante, no qual se inclui o ato de aprender, é devedor da castração no Outro e, por conseguinte, no sujeito, castração intimamente vinculada à sustentação do enigma do desejo do Outro, quando o sujeito fica tomado por essa dimensão idealizante, ele não acede a esse ato.

Importante lembrar que, tal como Corrêa e Pinheiro (2013) apontam, no acesso ao ato de aprender há certo nível de embaraço inevitável na criança como um dado estrutural próprio da experiência de aprendizagem, cujo paradigma podemos encontrar justamente nessa fase, que Piaget denomina de fase pré-operatória, a qual coincide com a latência descrita por Freud nos Três ensaios (Freud, 1905/1996b). Embaraço com o material novo apresentado que, psicanaliticamente falando, diz de um embaraço mais fundamental com o enigma do desejo do Outro. É claro que existem as vicissitudes nas quais esse embaraço demora a desbastar, introduzindo, entre outros sintomas, verdadeiros padecimentos nas aprendizagens.

Portanto, como um primeiro passo da formulação do nosso argumento, propomos pensar a categoria lógica do sentido em Frege, como concernente à dimensão da aparência pela qual a criança, sob o seu primado, na fase pré-operatória, não acede à noção de igualdade lógica de quantidades, em Piaget, e ademais, também como concernente ao Outro idealizado, em Lacan, que pode escamotear o ato desejante, e aí incluímos o ato de aprender antecedido e apoiado pelo estrutural embaraço da criança com o enigma do desejo do Outro. Importante deixar claro, que não estamos restringindo aqui a categoria do sentido em jogo no sentido dado ao desejo da mãe, ao Ideal. Tal análise ultrapassaria os limites do artigo. O que pensamos poder dizer e que importa para o nosso propósito é que o Ideal toma lugar nessa dimensão do sentido conferido ao desejo materno pelo Significante do Nome-do-Pai.

Entretanto Lacan afirma que a referência (Bedeutung) é sempre fálica. Pensamos que, ao dizer isso, como já apontado, Lacan sugere outra dimensão do Significante do Nome-do-Pai, além de conferir um sentido ao desejo enigmático do Outro materno: a dimensão de um simbólico que toca o real ao escrevê-lo. No entanto, aqui já é preciso dizer: o real da psicanálise não é o real da ciência e, por conseguinte, não é o real em jogo no plano da conservação de quantidades em Piaget, embora esteja intimamente articulado com ele, fazendo que tal assinalamento de Lacan, acerca da referência em sua relação com o real na psicanálise, venha a contribuir para a compreensão da dificuldade de acesso à noção lógica de conservação de quantidades detectada por Piaget na criança da fase pré- operatória, pois, “em psicanálise, não podemos traçar leis universais, deduzidas da experiência, para predizer o que tal sujeito faria colocado em tal situação” (Marcos, 2011, p. 150).

Lacan (1964/1988), para falar do real na psicanálise, retoma a Física de Aristóteles que, no seu estudo sobre as causas que produziam os diferentes efeitos na realidade, falou de duas delas, cuja eficiência escapa por falta de intencionalidade. Nessa dimensão da causa acidental, Aristóteles a divide em dois tipos: tychê e autômaton. Ao ler essa abordagem aristotélica, podemos dizer que ambas as dimensões comportadas pela causa acidental concernem à dimensão do acaso. Mas também podemos dizer que, enquanto a noção de autômaton parece designar o acaso significante que envia ao jogo dos signos e seu retorno, a tychê pode ser lida como o acaso do real: o encontro faltoso, para além do autômaton, a dimensão do que se repete como falta. Desse modo, para Lacan (1964/1988), poderíamos dizer que no real da psicanálise há também uma dimensão de conservação, uma vez que é a repetição, por excelência, aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar, ainda que sob modos de apresentação diferentes, como bem atestam os considerados novos sintomas, que, em nossa leitura, não são tão novos assim, pois há nessas manifestações uma dimensão que se repete concernente ao real da estrutura. Mas isso já seria outro trabalho.

No entanto, tal repetição, como dissemos, é a repetição da falta. O que isso significa e como poderíamos pensar o real na psicanálise, em relação ao real da ciência e, por conseguinte, ao real em jogo no plano da conservação de quantidades em Piaget, já que há algo que os aproxima (o plano da conservação concernente à repetição), embora não sejam os mesmos? Entendemos que o real na psicanálise é a repetitiva incidência tíquica (tychê) do acidente, da ruptura, do buraco, da imprevisibilidade, da surpresa na dimensão do funcionamento tranquilo das leis da previsibilidade. É a incidência faltosa, sob a modalidade do contingente, na dimensão do que se repete como previsível e estável como são os sistemas científicos. E esse real, é preciso dizer, é fundado pelo simbólico, pelo saber do Outro, constituindo-se no ponto de falta nesse saber. Tal ponto de falta no saber do Outro, introduzindo a sua inconsistência lógica, é encontrado traumaticamente pela criança nas lacunas, nos buracos do seu discurso, nos pontos em que algo resiste ao efeito de cola: “o que ele deseja quando me diz isso”? Desejo do Outro que está para além ou para aquém no que esse Outro diz, do que ele intima, do que ele faz surgir como sentido, a partir do qual “a falta do Outro é colocada à mostra, anunciada” (Pisetta & Besset, 2011, p. 321). É justamente diante desse embaraço insuportável, diante desse real tíquico (tychê) no saber do Outro, que a criança estruturalmente faz um apelo ao Outro idealizado.

Mas o que essa análise de um possível ponto de aproximação e de diferença do real na psicanálise, em sua relação com o real na ciência e, consequentemente, com o real no plano da conservação de quantidades, na epistemologia genética, dialoga com o nosso objeto no presente artigo, que é a dificuldade do acesso à noção de conservação de quantidade na criança da fase pré- operatória, detectada por Piaget?

Nesse ponto, para responder a essa questão, cabe retomar o que formulamos acerca do que Lacan pretende dizer, quando, ao tomar o texto de Frege para análise, afirma que a referência é sempre fálica. Entendemos que ele sugere outra dimensão do Significante do Nome-do-Pai, além de conferir um sentido ao desejo enigmático do Outro materno: a dimensão de um simbólico que toca o real ao escrevê-lo.

Trata-se da escrita do real tíquico (tychê) pelo simbólico, operacionalizada pela operação de castração, pela negativização do falo imaginário e, por conseguinte, pela elevação deste à categoria de falo simbólico. Portanto, a partir desse passo de Lacan, em uma leitura psicanalítica, trata-se, na referência, de um recobrimento do real da inconsistência que, paradoxalmente, em um mesmo golpe, aponta para ele (o real), pois o falo é a “presença da ausência do objeto real” (Becker, 2010, p. 45). Ajuda-nos a entender a noção do falo simbólico, como operador lógico que consegue tocar o real ao escrevê-lo, a nota de Lacan (1972-73/1996) do falo “como ponto chave, o ponto extremo do que se enuncia como causa do desejo” (p. 126).

A passagem para a mediação, entre aspas, é apenas a mediação do pelo menos um que sublinhei, e que encontramos em Peano no n +1 sempre repetido, aquele que pressupõe, de certo modo, que o n que o precede se reduz a zero. Pelo que ele se reduz a zero? Precisamente pelo assassinato do Pai. É por essa referência, esse desvio, essa maneira oblíqua, ungerade, para empregar o termo do próprio Frege, que o sentido do assassinato do Pai se relaciona com uma Bedeutung, a do falo (Lacan, 1971/2009, p.165).

Assim, enquanto na lógica de Frege e na de Piaget afinada com a ciência a diferença no modo de apresentação das quantidades não é um guia seguro no que tange à dimensão que se conserva, visto que, apesar da aparência diferente, a mesma quantidade pode ser conservada, na visão psicanalítica a criança, quando ainda não conseguiu elevar o falo imaginário à categoria de falo simbólico, muito embaraçada que se encontra com o real tíquico (tychê), que pode abalar a segurança e a conservação dos sistemas permanentes, estáveis e previsíveis, encontra-se também muito tomada pela dimensão idealizante no Outro, à qual ela estruturalmente faz um apelo, e, por conseguinte, podemos dizer a partir do nosso percurso, muito tomada pelo modo de apresentação das quantidades.

Diferentemente, podemos pensar, a partir de Lacan, que tal acesso à noção de conservação de quantidade ocorre quando a criança consegue, minimamente, desbastar o seu embaraço com o real tíquico (tychê), capaz de transtornar qualquer plano de conservação calcado na referência científica e, em um mesmo golpe, desbastar a dimensão idealizante do Outro ao qual ela estruturalmente faz um apelo. Tal desbastamento concerne à assunção da referência fálica, quando o falo imaginário é elevado à categoria de falo simbólico, recobrindo e apontando em um mesmo golpe a falta radical de objeto, fazendo, portanto, uma escrita do real tíquico concernente à inconsistência lógica do saber no Outro com o qual a criança, nessa fase, por uma questão estrutural, já se encontra embaraçada.

Podemos dizer, pois, que a criança com acesso à noção lógica de conservação de quantidades está sob o primado da referência fálica, respondendo pela via do falo simbólico.Falo simbólico este que faz uma escrita do real tíquico (tychê), concernente à inconsistência lógica do saber no Outro, que, por se repetir como falta, incide como fonte de embaraço diante de toda e qualquer aprendizagem ancorada na repetição como previsibilidade e estabilidade, da mesma forma como é a aprendizagem da noção de conservação de quantidade, patenteada pela noção científica de referência que, por sua vez, encontra na noção lógica de referência, em Frege, a fonte na qual vai beber.

Portanto, cabe retomar. Pensamos ser possível formular que, na visão psicanalítica, a criança com acesso à noção lógica de conservação de quantidades está sob o primado da referência fálica, respondendo pela via do semblante. Mas não o semblante na vertente imaginária, e sim o semblante que faz uma escrita do real como encontro faltoso. O semblante na sua dimensão simbólica que toca nesse real: uma dimensão cuja prevalência é do simbólico, que, ao sustentar o real da inconsistência, em ato, consegue fazer algo com ele, que consegue tocar esse real ao escrevê-lo. É o Significante do Nome-do-Pai, por excelência.

Ademais, a partir do nosso referencial psicanalítico (Freud e Lacan), não devemos tomar a vivência edípica, na qual se dá a operacionalidade do pai simbólico, em termos de uma cronologia rígida, dentro de uma linha de interpretação freudiana, cernindo-a por volta de 05 anos, franqueando a aqui pleiteada possibilidade de legitimidade da aproximação entre a fase pré-operatória, da qual nos fala Piaget, e a vivência edípica. Entendemos, a partir da leitura de Lacan a respeito dessa vivência descrita por Freud, que o pai é um operador lógico. A sua operacionalidade é, portanto, lógica, fazendo sua incidência muito precocemente, diga-se de passagem.

No entanto, mesmo não entendendo esse momento como aquele no qual se deu a incidência lógica do Significante do Nome-do-Pai, pensamos que tem o seu lugar tal momento, por volta de 05 anos, no qual a criança ainda se encontra embaraçada com o enigma do desejo do Outro, cuja sustentação diz da operacionalidade do pai simbólico, pois, nessa fase, colhemos vários indicativos desse embaraço, por exemplo, os seus porquês intermináveis. Trata-se de uma fase que, de acordo com Lacan (1964/1988), antes de visar a uma demanda de respostas, visa à sustentação da pergunta pelo Outro, a quem essas incansáveis perguntas se dirigem. São porquês que visam colocar à prova a pergunta pelo desejo do Outro.

Se levarmos em consideração que algo tão significativo em nível simbólico, como são a leitura e a escrita, ocorre justamente quando esse embaraço é minimamente desbastado, podemos no mínimo sustentar, na matriz da referida operacionalidade lógica do pai, a pergunta: “se não podemos pensar essa fase como o instante da incidência, poderíamos pensá-la como um momento lógico necessário rumo ao ponto de conclusão dessa operacionalidade”?

A respeito dos mencionados indicativos do embaraço com a castração no Outro, presentes de modo patente nessa fase, ressaltamos que é justamente nessa vertente, também de um indicativo do referido embaraço típico da idade (claro que não de maneira rígida), que estamos no presente artigo propondo abordar a dificuldade do acesso à noção lógica de conservação de quantidades da criança, verificada por Piaget.

Apenas a título de problematização, pois tal ponto também ultrapassa o alcance do presente artigo, perguntamos se a referida incidência precoce do Significante do Nome-do-Pai, do qual nos fala Lacan, a saber, na experiência conhecida como Estádio do Espelho, ocorrida entre os 06 e 18 meses, não nos confere uma possibilidade diante de reivindicações atuais, provenientes de pesquisas com bebês acerca da incidência precoce do número na criança. Importa dizer que, embora tais resultados de pesquisa terminem por questionar o argumento piagetiano acerca da posse do número, de acordo com Nogueira (2006, 2011), os sujeitos da pesquisa de Piaget e Szeminska (1975) foram restritos a crianças do período pré-operatório, somente porque a análise necessita fixar começos, pois não é possível dizer que não existam indicativos da presença do número em crianças mais novas. Mas isso, conforme foi dito, já demandaria outro trabalho.

Considerações Finais: uma contribuição à teoria piagetiana do acesso à noção lógica de conservação a partir da abordagem lacaniana

A partir do percurso traçado na questão concernente à ausência da noção de conservação de quantidades na criança da fase pré-operatória, está em jogo o embaraço infantil com a inconsistência no Outro, introduzida pelo seu desejo enigmático. Ou seja, no cerne do argumento piagetiano acerca da ausência da noção lógica de conservação de quantidades, a criança, nessa fase, diante de mudanças nos modos de apresentação, não consegue perceber que, apesar da aparência diferente, a quantidade é a mesma: não consegue perceber que “o aparente pode resultar enganoso” (Lajonquière, 1992, p. 23). Pensamos que, na dificuldade da criança de não se deixar levar pela aparência, o que está em jogo é o apelo ao pai introduzido pelo embaraço dela com o desejo enigmático do Outro. Face a esse desejo angustiante, ela encontra, na dimensão do pai, que se coloca diante desse sujeito sob a

aparência de ter o falo, pai idealizado, não castrado, a possibilidade da crença cega nele.

Convém ressaltar que, nessa leitura piagetiana do acesso à noção de conservação de quantidades, percebemos uma dimensão lógica à moda da lógica de Frege (1892/1978a) quando ele aborda a referência como uma dimensão lógica que tem valor de verdade, que pode se apresentar de diferentes modos, isto é, com diferentes sentidos, definido por ele como o modo de apresentação do objeto. Ou seja, esses modos diferentes de apresentação de Frege estão ligados à questão da aparência discutida por Piaget na dificuldade da criança na fase pré-operatória.

Considerando esse parentesco da abordagem piagetiana com a lógica fregeana, Lacan (1971/2009), referenciado nesse artigo de Frege, transcende essa lógica ao indicar que o sentido (Sinn) em Frege concerne à dimensão do pai idealizado e ao argumentar que a referência (Bedeutung) é sempre fálica, recobrimento do real tíquico. Desse modo, com o respaldo no parentesco encerrado entre a abordagem piagetiana e a lógica fregeana, podemos dizer que, em Piaget, a dimensão do acesso à igualdade lógica de quantidade é o primado da referência. Ademais, com o respaldo no referido passo a mais que Lacan dá em relação a essa lógica, podemos dizer que a dimensão do acesso à presença da conservação da noção de quantidade, que, de acordo com Piaget, falta na fase pré-operatória, é o primado da referência fálica. Mas a referência fálica (a suposição de que é o falo simbólico que causa o desejo enigmático do Outro, que diz do real tíquico (tychê), concernente ao ponto de falta no seu saber) visa a recobrir e a apontar, em um mesmo golpe, a falta radical do objeto para esse desejo. É exatamente porque ela visa a escrever esse objeto como impossível, objeto como causa do desejo do Outro, e não objeto alvo desse desejo, que a referência fálica é o recobrimento do real tíquico (tychê) traumático, que pode incidir como repetição da falta em todo e em qualquer plano de conservação.

Dessa forma o ato de aprender a noção de conservação de quantidades é devedor da operacionalidade do pai simbólico, no sentido de certo desbastamento da dimensão do pai idealizado que, a partir de Lacan, podemos dizer que é o que parece estar em jogo na categoria lógica do sentido em Frege e da aparência obstrutora do acesso à noção lógica de conservação de quantidades em Piaget. Mas também no sentido de uma possibilidade para a criança de certa escrita do real tíquico (tychê), traumático, por excelência, com o qual a ela, nessa fase, geralmente se encontra embaraçada. Essa possibilidade, é preciso assinalar, está intimamente associada com o referido desbastamento da dimensão do pai idealizado. Em outras palavras, a referência fálica confere certo desbastamento do Outro idealizado e, com isso, como pudemos ver no percurso apresentado, confere certo desbastamento no sentido do modo de apresentação das coisas, possibilitando acesso à capacidade de perceber que a mesma coisa pode se apresentar de modos diferentes, que a mesma quantidade pode ser conservada a despeito de alguma mudança na disposição dos elementos que compõem o número como quantidade total. Ademais, apesar da existência radical do real, como conservação na matriz da repetição da falta, há uma dimensão de conservação na matriz de uma previsibilidade.

Mesmo com o que a psicanálise pode introduzir a mais nessa problemática, não podemos deixar de reconhecer a argúcia de Piaget em perceber que a noção lógica de conservação de quantidades só é acedida quando a criança consegue ir além da primazia do modo de apresentação das coisas e acede à capacidade de perceber que a mesma quantidade pode se apresentar de modos diferentes, ou seja, à noção de referência em Frege. No entanto, se, como dissemos, o próprio Piaget (1954) afirmou que não existem comportamentos puramente cognitivos, considerando “a afetividade como um agente motivador da atividade intelectual” (Queiroz et al., 2009, p. 304), ele confere abertura para que possamos investigar que aspecto da dimensão subjetiva pode interferir no âmbito da dificuldade de aprender a noção de conservação de quantidades. E, do ponto de vista psicanalítico, pensamos estar em jogo o embaraço da criança com a incidência do real tíquico (tychê) concernente ao ponto de falta no saber do Outro, introduzido pelo seu desejo enigmático. Nessa direção, pensamos que a referida operacionalidade do pai simbólico confere um desbas tamento desse embaraço, conferindo, também, abertura para tal aprendizagem. Propomos, nessa direção, que o argumento apresentado por Lacan contribui para a compreensão da dificuldade de acesso à noção lógica de conservação de quantidades da criança na fase pré-operatória, detectada por Piaget.

Apoio e financiamento:

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Universidade Federal de Juiz de Fora

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Notas

1 Sir Walter Scott é, de fato, o autor do livro intitulado Waverley

Notas

2 Sir Walter Scott is, indeed, the author of the book entitled Waverley.

Autor notes

Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa: Psicóloga. Psicanalista. Membro do Ato Freudiano Escola de Psicanálise de Juiz de Fora (MG). Membro da Associação Mundial de Psiquiatria. Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestrado em Philosophy and Ethics of Mental Health by University of Warwick (Inglaterra).

E-mail: crlopes2001@yahoo.com.br

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