Artigo Original
Recepção: 27 Março 2015
Aprovação: 30 Outubro 2015
DOI: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i3.27141
RESUMO.: As desordens do espectro autista são descritas por déficits persistentes na interação e comunicação social, além de padrão restrito, repetitivo e estereotipado de comportamentos, interesses e atividades. Apesar dessa descrição dominante - a partir dos déficits -, na literatura também há autores que lançam olhares aos comportamentos para além dos déficits. Nessa perspectiva, o objetivo deste trabalho foi investigar como se dão os processos de interação social em crianças com autismo em contexto familiar, mais especificamente analisando os processos de atenção conjunta. Estudos de casos múltiplos foram conduzidos com duas crianças de cinco anos diagnosticadas com o transtorno. Por dois meses, foram feitas videogravações semanais das crianças no contexto familiar. Com base no referencial da Rede de Significações, as cenas foram mapeadas e transcritas, e as interações analisadas por meio da noção de fluxo interacional. Apesar da presença de comportamentos e interesses repetitivos e estereotipados nos dois casos, verificou-se a ocorrência de recursos comunicativos na interação, a qual se deu, muitas vezes, em situações de contraposição ou evitação social. Além desses comportamentos, verificou-se o estabelecimento de atenção conjunta e processos de negociação de interesses por parte das crianças. A evidência de tais comportamentos coloca como necessária maior exploração do tema, já que apontam para algumas potencialidades, mesmo que através de modos particulares nessas crianças.
Palavras-chave: Autismo, interação social, atenção conjunta.
RESUMEN.: Los desórdenes del espectro autista son descritos como déficits persistentes en la interacción y comunicación social, más allá del estándar limitado, repetitivo y estereotipado de comportamientos, intereses y actividades. A pesar de esa descripción dominante - a partir de los déficits -, en la literatura también hay autores que han mirado los comportamientos más allá de los déficits. A partir de esta perspectiva, el objetivo de este trabajo es investigar cómo se dan procesos de interacción social en niños con autismo dentro de un contexto familiar, más específicamente a partir del análisis de procesos de atención conjunta. Se llevaron a cabo estudios de caso múltiple, con dos niños de cinco años diagnosticados con el trastorno. En un periodo de dos meses se hizo videograbaciones semanales de los niños en el contexto familiar. Con base en el marco de la red de significados, las escenas fueron mapeadas y transcritas, y las interacciones analizadas por medio de la noción de flujo de interacción. A pesar de la presencia de comportamientos e intereses repetitivos y estereotipados en ambos casos, se encontró que existe una producción de recursos comunicativos en la interacción los cuales se dieron, muchas veces, en situaciones de contraposición o evasión social. Además de estos comportamientos, se verificó el establecimiento de atención y procesos conjuntos de negociación de intereses por parte de los niños. La evidencia de tales comportamientos se hace necesaria una mayor exploración del tema, ya que ellas apuntan hacia algunas potencialidades incluso a través de las formas particulares de estos niños.
Palabras-clave: Autismo, interacción social, atención conjunta.
Desde a primeira caracterização do autismo, por Leo Kanner, em 1943, o campo sobre a temática se desenvolveu de maneira distinta e controversa. A esse quadro foram atribuídas diferentes origens, modos de diagnosticar e de intervir no transtorno. Assim, apesar da extensa literatura acerca do tema, este ainda se apresenta como um desafio (Baptista & Bosa, 2002).
Dentro desse campo, destaca-se a descrição do autismo fundamentalmente a partir de déficits. Contemporaneamente, os principais déficits apontados como critérios para diagnóstico são: padrão repetitivo, estereotipado e restrito de comportamentos, interesses e/ou atividades; e prejuízos na interação e comunicação (American Psychiatric Association [APA], 2013). Considerando que grande parte dos trabalhos tem se dedicado ao tema a partir de tais descrições, é importante compreender como eles têm sido discutidos e como têm sido problematizados em um olhar diferente relativo ao uso dos déficits como único referencial.
Padrão Restrito, repetitivo de comportamento interesses e/ou atividades
Esse conjunto de sintomas tem sido menos investigado que os demais, sendo classificado em dois domínios: padrões de comportamentos motores e sensoriais repetitivos e insistência na monotonia (Szatmari, et al., 2006). Nestes, estariam classificados comportamentos repetitivos e maneirismos motores, preocupação com partes dos objetos, inflexibilidade na adesão de rotinas e padrão restrito de interesses (Ray-Subramanian & Weismer, 2012).
Alguns estudos atribuem uma correlação negativa entre a intensidade desses comportamentos e o desenvolvimento das crianças (Szatmari, et al., 2006). Ao encontro deste trabalho, Ray- Subramanian e Weismer (2012) verificaram que crianças com esses padrões têm maior risco de desenvolver problemas de linguagem, e os autores também perceberam melhoras na linguagem como preditivos da redução daqueles comportamentos.
Para além dessas descrições, outros autores tratam as estereotipias e os movimentos repetitivos de modos diversos. Klinger (2010) refere-se a esses comportamentos como sendo carregados de sentidos, analisando-os no contexto interacional. Kennedy, Kim, Knowles e Shukla (2000) buscam possíveis funções das estereotipias, descrevendo-as como se dando em momentos de ausência de estimulação ou como esquivas à interação. Ainda na literatura, há entendimentos desses comportamentos como característicos de situações extremas e geradoras de ansiedade, sendo significados como um modo pelo qual as pessoas com o transtorno buscam se acalmar (Joosten & Bundy, 2010; Ray-Subramian & Weismer, 2012).
Na literatura, outros comportamentos são também referidos em uma perspectiva de déficit, particularmente aqueles relacionados à interação social.
Interação social, comunicação e atenção conjunta no transtorno autista
Nesse campo, há uma série de indicadores de prejuízo como a não efetivação de contato ocular e o incômodo com o contato corporal; problemas na linguagem verbal e não verbal, além de comprometimento da atenção conjunta (Lawton & Kasari, 2012). Nesse sentido, Wetherby (2006) aborda a existência de falhas simbólicas, compreendidas como relacionadas a desordens na aquisição de gestos, palavras, imitação e jogo simbólico. A qualidade e quantidade do uso de gestos são referidas como limitadas, e as pessoas com autismo usariam predominantemente um contato gestual primitivo para se comunicarem. Esse contato seria caracterizado pela condução de pessoas (puxam ou manipulam a mão de outra pessoa) a fim de alcançar o objeto desejado. Poderia haver ainda ausência no uso convencional dos gestos declarativos, como o de mostrar e de apontar.
Cabe ressaltar que os gestos declarativos são tidos como fundamentais no desenvolvimento da atenção conjunta. Como Tomasello (2003) propõe, esta seria uma habilidade para perceber o outro enquanto agente intencional e a si próprio dessa maneira. Conforme Passerino e Santarosa (2007), a atenção conjunta seria uma interação na qual os sujeitos - conjuntamente e por certo período de tempo - orientam sua atenção a um terceiro elemento, seja este objeto ou pessoa. Essa habilidade é considerada essencial para o desenvolvimento de interações sociais recíprocas, da linguagem e da capacidade simbólica, e seu comprometimento é visto como um indicador precoce para o diagnóstico do autismo (Bosa, 2002).
No caso do autismo, os déficits na atenção conjunta são considerados relacionados às dificuldades e aos prejuízos do desenvolvimento da linguagem (Wong & Kasari, 2012). Deste modo, os prejuízos seriam na ordem do simbólico e seus atos comunicativos, em sua maioria, tidos como não interativos, havendo dificuldade de usar a linguagem de forma funcional (Giardinetto, Deliberato, & Aiello, 2012).
Apesar de esses comprometimentos serem amplamente reconhecidos, Bosa (2002) pontua que existem evidências que confirmam o engajamento e a resposta a interações sociais por autistas. Segundo a autora, as pessoas com autismo mostram capacidade de ter comportamentos afiliativos, além de emitirem vocalização em direção a parceiros e apresentarem comportamentos indicativos de apego. Tais evidências contribuiriam para relativizar concepções de que pessoas com autismo evitam, de forma persistente, a interação social.
Na mesma perspectiva, Menezes e Perissinoto (2008) identificaram habilidades de atenção conjunta em crianças com autismo, principalmente como resposta das crianças à ação do adulto e não como busca das crianças pela atenção compartilhada com o adulto. No entanto, as autoras verificaram que, em vários casos, tanto a criança responde à ação de um adulto como pode tomar a iniciativa de compartilhar a atenção com o outro. Nessa mesma direção, Wong e Kasari (2012) observaram melhora no envolvimento conjunto de crianças durante a interação com um jogo nas intervenções e no treinamento proposto pelas professoras.
Nesse tocante, cabe ressaltar o trabalho de Colus (2012), que ao tratar da atenção conjunta em um bebê com deficiência visual severa, destacou que aquela deveria ser analisada para além da percepção visual, considerando outras modalidades perceptuais que possibilitariam a interação triádica. A autora sugere buscar a triangulação através de percepções como audição e tato, levantando a hipótese de haver maneiras diversificadas de estabelecimento do processo de atenção conjunta. Poder-se-ia desdobrar essas reflexões e hipótese para crianças com autismo, já que o contato ocular/visual é tido como prejudicado.
Nesta introdução, ao se fazer um retorno à literatura, compreendeu-se que uma parte (dominante) da produção da área tem foco nos déficits relacionados ao autismo. O reconhecimento dos prejuízos é importante para a atuação, mas como Silva (2010) afirma, a depender do destaque dado a essas características, pode-se contribuir para cristalizar concepções de autistas como pessoas incapazes de estabelecer contato social. Do mesmo modo, Camargo e Bosa (2009) assinalam que tais visões - que julgam essa criança como alheia -, podem restringir a motivação em investir nas potencialidades, limitando as formas de estabelecer as relações, prejudicando ainda mais uma melhor compreensão de processos. Delfrate, Santana e Massi (2009) discutem a importância de se construir um olhar com certo distanciamento do que é tido como déficit na linguagem, compreendendo que as pessoas com autismo estão imersas no universo da linguagem e das práticas sociais, e de alguma maneira partilhando-as.
Campelo et al. (2009) e Delfrate, et al. (2009) discutem que a linguagem não verbal e até mesmo a linguagem verbal com estereotipias podem se mostrar comunicativas. Bagarollo, Ribeiro e Panhoca (2013), entendendo a brincadeira como construída socialmente, identificaram possibilidades de brincadeira em crianças com autismo, ressaltando que estas podem acontecer com capacidade de simbolização. Lemos, Salomão e Agripino-Ramos (2014), em um estudo em contexto escolar, salientaram a importância de se olhar para as ações dessas crianças sem qualificá-las apenas como com prejuízos, buscando compreender como esses modos particulares permitem aos parceiros maior contato com esses alunos.
Nesse olhar para as crianças com autismo para além das características diagnósticas deficitárias delineou-se o objetivo deste trabalho, que foi investigar se se dão em caso afirmativo, como se dão processos de interação social em crianças com autismo em contexto familiar. Nesses processos, buscou-se mais especificamente verificar a ocorrência da atenção conjunta das crianças com seus parceiros.
Método
Para este estudo, optou-se pelo método qualitativo, tendo como base teórico-metodológica a perspectiva da Rede de Significações (Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva, & Carvalho, 2004). Essa perspectiva ancora-se em uma abordagem histórico-cultural, que propõe que o desenvolvimento humano se dá através de um processo de coconstrução, no qual a pessoa se constitui em sua relação com o outro e com o mundo. Nessa perspectiva, a proposta foi compreender os fluxos de comportamento estabelecidos em processos dialógicos por crianças com autismo em suas “inter- ações” com seus familiares pelas quais entende-se que se constituem os modos de significar o mundo, o outro e a si mesmas.
Definiu-se, para tanto, que o trabalho empírico seria realizado mediante estudos de casos múltiplos (Yin, 2005), com duas crianças entre três e seis anos que haviam recebido o diagnóstico de autismo (APA, 2002). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRP - USP (n°. 511/2010) - e por meio do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, a pesquisa foi autorizada pelos responsáveis das crianças.
Para o trabalho, convidaram-se famílias com crianças que frequentassem instituições especializadas. O projeto foi apresentado para três famílias, e duas consentiram com a participação dos filhos, os quais foram considerados os participantes focais do estudo. Porém como o foco do trabalho recai sobre processos interativos, tanto seus familiares como a pesquisadora foram considerados participantes do estudo (Rossetti-Ferreira et al., 2004).
No período de coleta de dados, ambas as crianças tinham cinco anos de idade, sendo uma do sexo masculino e a outra do sexo feminino. A fim de preservar suas identidades, foram estabelecidos nomes fictícios: André e Paloma.
André era filho único e morava com os pais. Nos primeiros anos de vida, havia desenvolvido linguagem verbal. No entanto houve regressão da fala e os pais buscaram ajuda; a criança foi diagnosticada com autismo aos três anos de idade.
Paloma também era filha única e recebeu o diagnóstico poucos meses antes do início da coleta dos dados. Ela nunca apresentou linguagem verbal. Filha de um casal divorciado, vivia com a mãe, mas passava regularmente as tardes na casa da avó paterna. Ambas as crianças frequentavam, além da escola regular, uma instituição especializada duas vezes por semana.
A coleta dos dados foi realizada por videogravações pela pesquisadora na casa de cada uma das famílias, uma vez por semana, ao longo de dois meses, e cada dia de gravação teve cerca de sessenta minutos. O foco das videogravações centrou-se nos processos interativos estabelecidos pela criança com os familiares no contexto doméstico. A opção pela gravação na casa das famílias se deu por considerar as especificidades do transtorno, já que usualmente mudanças na rotina das crianças representam a estas um estressor (Bosa, 2002). Além disso, o acompanhamento por maior período de tempo no ambiente doméstico foi compreendido como podendo possibilitar redução do estranhamento da criança à pesquisadora. Optou-se pela videogravação na residência da criança por se considerar que em ambientes familiares é possível observar características que não aparecem em outros contextos (Machado, 2000). Finalmente, tal opção se deu pela verificação na literatura de escassez de trabalhos com essa forma de registro, sendo encontrado apenas um trabalho realizado nesse contexto (Carter et al., 2010). Os demais estudos analisados haviam sido realizados com o uso de vídeo, privilegiando ambientes clínico (como em Bagarollo et al., 2013), escolar (como em Lemos et al., 2014) ou institucional (como em Silva, 2010).
Considerando que o estudo visou investigar as interações sociais e se estas envolvem posturas corporais, olhares e gestos, o uso das imagens em vídeo mostrou-se importante, uma vez que possibilitou inúmeros retornos às cenas registradas, viabilizando maior acompanhamento e refinamento na compreensão dos processos (Carvalho et al., 1996). Com as gravações, foi empreeendido um mapeamento dos dados, o qual consistiu em registrar em forma de transcrição e organizar as cenas e os comportamentos em diferentes categorias estabelecidas em função do objeto de estudo. O norteador para esse registro (e, posterior escolha dos episódios) foram as concepções relacionadas ao fluxo interacional propostas por Carvalho, Império-Hamburguer e Pedrosa (1996).
Estas autoras compreendem a interação como mais do que fazer algo junto, pois contemplam a interação como uma regulação recíproca, implícita e não necessariamente intencional entre parceiros, sendo vista enquanto potencial de regulação entre componentes de um sistema. Nessa perspectiva, a regulação é a apreensão dos movimentos ou comportamentos de uma das pessoas, em determinada situação, em função dos demais componentes (Carvalho et al., 1996). Como tantos outros eventos comportamentais, o evento interativo apresenta-se imerso em um fluxo, o que torna necessário fazer recortes a fim de captar os episódios que ali ocorrem.
O foco do presente trabalho foi buscar apreender o fluxo interacional e suas corregulações, dentro da dinâmica das relações no grupo, ao longo do tempo. Para que se pudesse descrever as interações nesse fluxo, mostrou-se necessário que se especificasse o que os participantes fazem (juntos ou não) e como o fazem (Carvalho, Branco, Pedrosa, & Gil, 2002). Nesse processo, destacam-se dois elementos: a orientação da atenção e os tipos de regulação que se estabelecem. A orientação da atenção é identificada com o alvo das ações das crianças através do olhar, da fala ou de movimentos. Já a regulação é captada pelo conteúdo dos comportamentos dos sujeitos e os efeitos dessas ações sobre os parceiros (Carvalho et al., 2002).
Considerando esses focos, orientação da atenção e os tipos de regulação, são estabelecidas categorias para a descrição dos processos: a interação propriamente dita, quando a orientação da atenção é mútua e há regulação recíproca; o movimento interativo, quando a orientação da atenção é mútua e a regulação recíproca ocorre, porém de maneira restrita, implicando na reorientação da atenção da criança-alvo para outros objetos, parceiros ou atividades; a participação periférica, quando há orientação da atenção da criança, mas a regulação do comportamento é unilateral (uma pessoa regula o comportamento da outra, porém não é regulada por ela); e, a atividade individual, quando há orientação da atenção, mas não há regulação de comportamentos (Carvalho, Branco, Pedrosa, & Gil, 2002).
Para alcançar o objetivo da pesquisa - apreender processos de interação e, especificamente, a atenção conjunta -, foram destacados alguns episódios interacionais dentre os vários identificados. A seguir, serão apresentados alguns destes, descritos (em itálico), os quais são posteriormente analisados e discutidos.
Resultados e Discussão
1°. Episódio - André: da estereotipia à brincadeira
4°. dia de videogravação; duração: 5’45’’; participantes: André, mãe e pesquisadora
Em grande parte dos minutos desse episódio, de diferentes maneiras a mãe de André busca conter o comportamento do filho de correr em círculos e bater as mãos nas pernas e na cabeça. A mãe o chama para brincar, pergunta sobre objetos, fala da cachorra da família, chama-o para ir à lavanderia com ela. Em alguns desses momentos, André reage, como quando, após a mãe falar da cachorra, ele alterna o olhar entre o canil e a mãe, firmando por alguns segundos seu olhar na direção da mãe, enquanto apresenta expressão facial de descontentamento. Depois de algum tempo andando em círculos e batendo as mãos nas pernas, ele para por alguns segundos. Logo, ele volta a fazê-lo. A mãe se direciona para ele e diz: “Pode parar!”. A mãe está com expressão facial brava e passa a andar atrás do filho, aparentemente para contê-lo fisicamente. Nesse movimento, sua expressão se ameniza e ela diz: “Eu vou te pegar”. André - que antes estava com expressão facial neutra - passa a sorrir e a correr da mãe. A mãe acelera o passo e o alcança, envolvendo-o com os braços, dizendo “Peguei você!”. Os dois sorriem. Em seguida, ele se solta, voltando a correr, sorrindo e olhando para trás, na direção da mãe. A mãe vai em direção a ele, alcança-o e eles ficam face a face. Ele corre na direção contrária à mãe, sorrindo largamente. Senta-se no sofá, onde a mãe o alcança e faz cócegas. Ele ri e corre para longe dela. André corre, então, sorrindo, na direção da pesquisadora (que está videogravando) e a envolve com seus braços, ficando atrás dela, gargalhando. A pesquisadora e a mãe também riem. A mãe encosta no filho, como se fizesse cócegas e diz “Vou pegar! Peguei!”. A mãe ainda diz: “Cê pediu socorro!? Já fez amizade!?”. A pesquisadora ri enquanto André continua atrás dela, envolvendo-a com os braços. Após se afastar da pesquisadora, esse movimento de André de correr da mãe e se esconder atrás da pesquisadora se repete por outras três vezes. Nesses momentos, André sorri e grita. A mãe elogia a ação da criança dizendo: “Que bonitinho!” e “Que gostoso!”.
No geral, o comportamento central do episódio é o movimento de André de andar e correr em círculos, batendo as mãos nas pernas e na cabeça, além de balançar agitadamente os braços. Esse dado merece destaque, já que ocorreu em todos os dias de videogravação e corresponde a aproximadamente 60% do total de minutos gravados. Nesse dia analisado, o movimento que a mãe tenta conter acontece em quase metade do tempo gravado. Assim, percebe-se que esse comportamento ocorre de maneira repetitiva e estereotipada, podendo ser caracterizado no grupo de sintomas da categoria de comportamento motores e sensoriais repetitivos (Szatmari et al., 2006).
A persistência do comportamento no episódio pode estar relacionada com o que a literatura aponta em relação aos atrasos de linguagem (Ray-Subramanian & Weismer, 2012) - como apresentado pelo participante, que tem quase ausência total de linguagem verbal. Porém como discutido por Klinger (2010), quando contextualizado esse comportamento pode ser analisado buscando-se os sentidos que têm na interação. No caso, a ocorrência desse comportamento se deu depois que a mãe ofereceu algo à criança - seja um alimento ou um brinquedo para que pudessem brincar. Assim, pode-se pensar que o comportamento tem uma função de esquiva ao que estava sendo proposto (Kennedy et al., 2000), ainda mais que, nesse momento, o comportamento veio acompanhado de expressão facial de descontentamento. Ainda pode ter o significado relacionado a algo que a criança não queria fazer, representando um desconforto ou uma ansiedade diante da situação proposta (Ray-Subramanian & Weismer, 2012).
Desse episódio, é importante ressaltar, contudo, aspectos relacionados ao fluxo interacional que se estabeleceu entre mãe e filho, fluxo que se origina inclusive do próprio comportamento repetitivo da criança. A partir desse fluxo, é possível perceber como as diferentes ações entre os parceiros acabaram por resultar em uma interação propriamente dita. Verifica-se que a atividade individual de André (andar e correr, batendo as mãos nas pernas e na cabeça) regula o comportamento da mãe. Ela busca, então, de diversas maneiras, que o filho pare, tentando regular o comportamento dele. Em alguns momentos, ela consegue estabelecer com André movimentos interativos, nos quais ele orienta sua atenção para ela (como no caso da menção ao cachorro). Entretanto, o comportamento dele não é regulado pelo da mãe de forma recíproca, já que ele persiste com o comportamento estereotipado.
Em outros momentos, como quando a mãe busca atenção do filho - e André permanece correndo - ele apenas desempenha uma participação periférica, não tendo seu comportamento regulado por ela. Há, assim, movimentos de aproximação e afastamento entre os dois. Há aproximações que levam a movimentos interativos e à interação propriamente dita; e também há afastamentos do parceiro com participações periféricas. Mas quando a interação através do pega-pega se desenrola entre mãe e criança - e posteriormente dos dois envolvendo a pesquisadora -, pode-se perceber que os participantes passam a ter os comportamentos reciprocamente regulados.
No fluxo, há mudanças na expressão facial dos participantes, com a emergência de falas carinhosas da mãe direcionadas ao filho, além de troca de olhares entre os dois, incluindo-se aí do próprio André em direção à mãe. Na atividade lúdica no contato físico direto (abraço, cócegas) permeado pelo afeto, dá-se a regulação recíproca dos parceiros. As trocas de olhares entre mãe, criança e pesquisadora representam aspecto que merece destaque, já que o contato ocular tem sido considerado pouco convencional em pessoas com autismo e tido como um dos principais componentes deficitários que se desenrolam nos problemas da interação social; o mesmo pode ser referido em relação ao contato físico e às expressões faciais entendidas como pouco presentes (APA, 2002), mas abundantes na cena observada.
Nesse episódio, há ainda evidências de atenção conjunta por parte de André, apesar de esta também ser uma habilidade considerada deficitária em pessoas com o transtorno (Passerino & Santarosa, 2007). A atenção conjunta se manifestou em resposta à ação da mãe (quando ele direciona o olhar a elementos que a mãe indica, como ao cachorro), manifestação que tem sido vista como a principal forma de estabelecimento da atenção conjunta no autismo (não sendo iniciativa da criança buscar atrair o olhar e a atenção da mãe a um terceiro objeto) (Passerino & Santarosa, 2007).
2°. Episódio - Paloma: Quero assistir esse desenho
5°. dia de videogravação; duração: 3’30’’; participantes: Paloma e a mãe
O episódio se inicia com Paloma deitada no sofá, assistindo televisão. Pouco depois, ela se levanta e vai em direção à mãe, que está limpando a garagem. A criança para em frente à mãe, com seu olhar voltado para o rosto da mãe, Paloma passando a balbuciar e gesticular na direção daquela. A mãe para de passar o rodo no chão, dirige-se ao rosto da filha e pergunta: “O que foi? O que você quer? Fala pra mamãe!”. Após alguns balbucios, sem compreensão por parte da mãe, Paloma passa a tentar pegar a mão da mãe. Esta se desvia do contato físico da filha e busca, novamente, por meio do verbal, que ela explique o que quer, pegando no rosto de Paloma e virando-o diretamente para si. Paloma se desvia desse gesto e busca, mais uma vez, pegar a mão da mãe. A mãe para de evitá-la e dá sua mão à filha, que a conduz até a sala. Paloma pega o controle remoto da televisão e o coloca nas mãos da mãe. Esta mexe no controle, tira o desenho que passava na televisão e coloca no menu de desenhos. A criança fica olhando na direção da televisão enquanto a mãe passa as telas do menu. Paloma dirige-se ao monitor da televisão e indica com o dedo na tela o desenho que quer. A mãe coloca no desenho indicado pela criança. Quando o desenho se inicia, a mãe diz: “Este você não gosta... já vou ficar aqui”. Dirigindo-se à pesquisadora, a mãe diz que logo terá que buscar outro desenho. A criança fica parada próxima à televisão e, quando aparece o título do episódio, ela anda na direção do sofá, aproximando -se da mãe. A mãe diz a ela: “Este é chato... você não gosta!”. A mãe mexe com o controle remoto e tira o desenho. Volta à tela do menu. Paloma se aproxima novamente da televisão. Em dois momentos, a criança coloca a mão no canto lateral da tela (ora do lado direito, ora do lado esquerdo, sem tocar nos ícones dos desenhos), indicando à mãe que faça o menu correr lateralmente. Finalmente, Paloma coloca a mão sobre um dos ícones. A mãe diz: “É esse aí?!” A mãe coloca no desenho indicado pela filha. Após, a mãe sai da sala, e Paloma volta a se deitar no sofá para assistir ao desenho.
No que diz respeito ao fluxo interacional, percebe-se como Paloma parte de uma atividade individual (deitada no sofá assistindo televisão) e passa a ter sucessivos movimentos interativos com a mãe (quando tenta que a mãe a compreenda, balbuciando e pegando-a pela mão), nos quais ambas possuem orientação da atenção recíproca. Apesar disso, a regulação dos comportamentos acontece de maneira restrita (como quando a mãe evita o contato da filha, buscando que ela se expresse por meio do verbal). Esse processo de aproximação entre as duas culmina em momentos nos quais ambas têm regulação e atenção recíproca (como quando elas regulam o comportamento, na busca pela escolha do desenho), caracterizando uma interação propriamente dita entre os parceiros.
Cabe destacar o papel ativo de Paloma nesse episódio, quando ela busca a interação com a mãe. A fim de fazer um pedido, a criança se desloca até onde a mãe está e busca se comunicar por meio do olhar, além dos balbucios e gesticulações, porém não é compreendida. Como se discute, em crianças com autismo há prejuízos na linguagem oral, com seu uso de maneira não convencional e com dificuldades em aspectos pragmáticos e na estruturação de narrativas, levando a limitações na construção de enunciações (Campelo et al., 2009). No entanto, ao não conseguir comunicar o que quer, Paloma busca fazê-lo de outra maneira, pegando na mão da mãe de modo a levá-la até a televisão. Assim, sem conseguir se comunicar pelo uso da linguagem verbal, a criança faz o uso de movimentos do corpo e de gesticulações, como puxar a mãe pela mão. Esses comportamentos, no entanto, são discutidos na literatura enquanto gestos primitivos, ressaltando sua existência como a de um prejuízo na capacidade simbólica da criança, comportamento considerado como importante no diagnóstico do transtorno autista (Wetherby, 2006).
Nesta análise, porém, compreenderam-se os comportamentos de Paloma como esta buscando efetivar uma interação e comunicação utilizando-se de diferentes recursos para isso. Evidencia-se, dessa maneira, a importância de também se ater a características da linguagem que estão para além da verbal a fim de compreender como a criança se expressa (Delfrate et al., 2009). Ao buscar e usar esses recursos, Paloma se mostra imersa não só no universo da linguagem, como compartilhando de formas de comunicação.
Ademais, o episódio traz a apresentação de comportamentos de atenção conjunta por Paloma, a despeito do que a literatura aponta como uma das importantes deficiências das crianças com autismo (Passerino & Santarosa, 2007). Mais ainda, Paloma é ativa no processo de compartilhamento da atenção, como discutem Menezes e Perissinoto (2008), embora as autoras também afirmem que esta é uma maneira pouco frequente de ocorrência desse processo. No caso, ao conseguir atrair a atenção da mãe e ao entregar-lhe o controle remoto, a criança é vista como a responsável pelo início do estabelecimento da atenção conjunta. Mais ainda, por meio do gesto de indicar ela estabelece, dentre as possibilidades do menu, qual o desenho quer. Novamente, esse gesto de apontar é visto como sendo usualmente deficiente nas crianças com transtorno autista (Wetherby, 2006). Aqui, seu uso é entendido como se fazendo de maneira ampla e explícita, possibilitando a comunicação da criança e o alcance de seu objetivo.
Além da capacidade de estabelecimento de atenção conjunta, é importante que seja abordado um grande foco de interesse de Paloma e que permeia todas as gravações: o interesse repetitivo por desenhos do mesmo personagem: Pica pau; tal interesse apareceu em 28% dos minutos videogravados. Nesse dia analisado, ela assistiu ao desenho durante 49% do tempo. Essa característica pode ressaltar o caráter sintomático caracterizado como insistência na monotonia (Szatmari et al., 2006). Se se olhar para além desse caráter, pode-se perceber o quanto esse interesse aparece em um jogo de figura e fundo em muitos processos interativos de Paloma. Esse interesse no Pica pau, muitas vezes, é o que motiva a busca pela interação (como ir até a mãe) sendo figura nesses momentos e motor de encontros nas relações.
3°. Episódio - André: Na garrafa ou no copo?
6°. dia de videogravação; duração: 3’13’’; participantes: André e a mãe
A mãe segura um brinquedo buscando brincar com a criança. André olha na direção da mãe, desvia-se dela e vai para a cozinha. A mãe o segue, ainda com o objeto na mão, tocando-o sobre a cabeça de André. Com uma expressão facial de incômodo, com um movimento de sua mão ele procura afastar o objeto. Na cozinha, André anda na direção do armário e pega um “squeeze”. Ao vê-lo com o objeto, a mãe diz: “Esta garrafa está sem bico”. Ela passa, então, a fazer uma série de tentativas para que a criança aceite um copo, ao invés da garrafa. Ela busca um copo na pia e diz: “Deixa, que eu vou colocar no copinho”. Nesse momento, André está com uma expressão facial neutra e segura a garrafa, alternando o olhar entre a mãe e a garrafa em sua própria mão. A mãe pergunta se ele quer suco e se aproxima do filho. A mãe coloca o copo em cima da mesa e tenta retirar a garrafa das mãos dele. André segura com firmeza a garrafa e se afasta da mãe. A mãe também se afasta, indo pegar o suco e o levando até a mesa. A mãe segura a caixa do suco e o copo. Dirigindo-se ao filho, levanta o copo e pergunta: “Coloco aqui?” André, então, estica o braço com a garrafa na direção da mãe. Ela indica a garrafa, e com o dedo encostado nela, pergunta: “Aqui?!”. Ele aproxima mais ainda a garrafa e a encosta na caixa de suco. A mãe diz que quer ver se ele vai conseguir beber o suco naquele recipiente. Ela coloca o suco na garrafa que a criança segura. Ele leva a garrafa à boca. A mãe está parada à frente dele, olha-o e tem as mãos na cintura. André não consegue beber e abaixa garrafa sobre a mesa, com expressão facial de decepção. A mãe pergunta a ele se ela pode colocar o suco no copo. Ele não se contrapõe e a mãe coloca o suco no copo. André bebe o suco no copo.
Com relação ao fluxo interacional, inicialmente, mãe e criança têm uma participação periférica com orientação da atenção recíproca, apenas o comportamento da mãe sendo regulado pelo de André (quando a mãe busca interação com o brinquedo e André recusa, afastando-se dela e indo para a cozinha). No desenrolar, as ações levam a um movimento interativo, com uma regulação recíproca, porém restrita (quando André anda em direção ao armário, reorientando sua atenção). Depois que André pega a garrafa no armário, acontecem diferentes movimentos interativos - por meio de olhares alternados entre a mãe, a criança e o objeto, além do movimento de esquiva de André (quando a mãe tenta tirar a garrafa) - que culminam na interação (em que criança e mãe negociam o recipiente onde será colocado o suco).
Na perspectiva do fluxo interacional (Carvalho et al., 2002), é perceptível como criança e mãe negociam ativamente o uso do recipiente para beber o suco: garrafa ou copo? De um lado, a criança se posiciona frente à mãe, buscando sustentar sua vontade; de outro lado, a mãe tenta convencê-la de que não dará certo. A criança e a mãe negociam e regulam mutuamente os comportamentos um do outro mediante gestos e movimentos corporais. Nesse sentido, verifica-se que André direciona o olhar para as ações da mãe, impede a retirada da garrafa de sua mão, leva a garrafa na direção da mãe para que o suco seja ali colocado. André, ao perdurar em sua decisão, regula o comportamento da mãe, insistindo para que ela coloque o suco na garrafa. Posteriormente, ele cede, deixando que a mãe coloque suco no copo, como ela havia indicado anteriormente. Assim, é possível perceber as posições sociais estabelecidas na relação de um parceiro em relação ao outro, cada um se colocando e negociando, em que ambos ora defendem suas intenções, ora cedem (Rossetti- Ferreira et al., 2004).
Embora André tenha permanecido com expressão facial neutra nos diferentes momentos, ele acompanhou a mãe com o olhar e se expressou por meio de gestos, demostrando intenções. Por meio dos gestos - como esticar a garrafa em direção à caixa de suco ou, depois, ao aceitar colocar o líquido no copo -, André demonstrou compartilhar a atenção com a mãe com relação aos objetos, estabelecendo uma relação triádica. Apesar de não usar o gesto de apontar e de não olhar à própria mãe em relação aos objetos em questão, como discute Tomasello (2003), André utilizou-se de outros recursos para compartilhar com a mãe o objeto no qual ele desejava que fosse colocado o suco - a garrafa e não o copo. Como discutido no trabalho de Colus (2012), é necessário que se busquem outras pistas para além da visual, para apreender o estabelecimento da atenção conjunta.
4°. Episódio - Paloma: Lugar de copo sujo é na pia
3°. dia de videogravação; duração:1’29’’; participantes: Paloma, o pai, a avó e a tia avó
Nesse episódio, Paloma tem seu interesse voltado ao desenho do Pica Pau, o qual o pai colocara no celular para ela assistir. Com esse interesse, simultaneamente ela desempenha outras atividades, sem perder foco da atenção nas imagens do celular. Paloma entra na cozinha e abre a geladeira, com sua atenção dirigida ao desenho que passava no celular. Nessa postura, com o olhar fixo no telefone, ela pega uma garrafa de refrigerante na geladeira e sai andando com ela em direção ao quintal. O pai a encontra no caminho e pega a garrafa da sua mão, dizendo que era para ela pegar apenas um copo. Ela resmunga e choraminga um pouco. Acompanha o pai até a cozinha, ficando ao seu lado enquanto ele coloca o refrigerante em um copo. Enquanto aguarda pelo copo de refrigerante, permanece olhando na direção do celular. Depois, pega o copo que o pai lhe entrega e anda em direção ao quintal. Ali, para e bebe o refrigerante, ainda mantendo o olhar voltado ao celular. Ao terminar de beber o refrigerante, ela joga o copo na brita. O pai que está atrás dela diz: “Não joga, não!”. Paloma permanece olhando para o celular. O pai toca nas costas dela e indica o copo, apontando e dizendo: “Pega aqui”. Paloma, que não desvia o olhar do celular, estica o braço e pega o copo. O pai encosta em seus ombros e diz: “Coloca lá na pia”. Ela anda e leva o copo para a pia, com o olhar ainda voltado para o celular.
O fluxo interacional do episódio tem início com a atividade individual de Paloma (pegar o refrigerante na geladeira enquanto assiste ao desenho). Quando encontra com o pai, ambos estabelecem um movimento interativo (quando ele retira a garrafa das mãos dela), tendo orientação da atenção recíproca e regulação de comportamentos, mesmo que de maneira restrita pela atenção de Paloma (que presta atenção ao celular). A criança volta a ter uma atividade individual (ao sair com o copo em direção ao quintal), porém exerce sobre o pai uma participação periférica, tendo ele seu comportamento regulado por ela (ao ir atrás da filha). A interação acontece quando ambos regulam os comportamentos um do outro de forma recíproca (ela pega o copo após a solicitação do pai e o leva para a pia).
Um comportamento recorrente nesse episódio foi o de Paloma permanecer com o olhar voltado ao celular, assistindo ao desenho do Pica Pau. Como explicitado no 2°. episódio, essa repetição de comportamento parece caracterizar insistência na monotonia, que pode estar relacionada a atrasos de desenvolvimento da comunicação (Szatmari et al., 2006). Este comportamento repetitivo aconteceu em 50% dos minutos videogravados nesse dia, o que pode reforçar seu caráter sintomático. Nos momentos ressaltados nesse episódio, porém, apesar de Paloma ter sua atenção centralmente direcionada ao desenho, ela faz uma série de outras atividades, como pegar a garrafa de refrigerante, beber o refrigerante e atender ao chamado do pai. Assim, apesar da permanência desse comportamento, este não parece impedir o entendimento da situação pela criança e a sua interação com o pai.
No momento de interação, Paloma se mostrou ainda com habilidade para compartilhar a atenção de um objeto, no caso o copo. Ela mostrou compreender o que o pai queria e respondeu de maneira adequada, evidenciando atenção conjunta que aparece em resposta à ação do adulto, como discutido por Menezes e Peressinoto (2008). É importante enfatizar que, ao longo desse episódio, Paloma compartilha a atenção do objeto com o pai, a despeito de não manter qualquer contato visual nem com o objeto nem com o pai, utilizando-se basicamente de pistas auditivas e táteis (Colus, 2012).
Considerações Finais
Este trabalho teve como objetivo apreender comportamentos de crianças com autismo sem um referencial centrado nos déficits, em acordo com Silva (2010). O intuito foi analisar os processos interativos de maneira contextualizada, em ambiente naturalístico, de modo a acompanhar como eles se desenvolvem nas relações. Vale frisar, no entanto, que a discussão não teve como intuito, de maneira leviana, negar as particularidades de manifestações nas áreas de interação e comunicação de crianças com o transtorno, mas buscar apreender se os processos de interação e atenção conjunta podem se manifestar de forma particular. Nessa confirmação, busca-se entender como aqueles processos acontecem e se há a possibilidade de atribuir outros sentidos a esses comportamentos.
Com o estudo, verificaram-se as estereotipias e os comportamentos repetitivos. No caso de André, em cerca de 60% do tempo videogravado ele caminha em círculos, balançando os braços. No caso de Paloma, há o interesse central nos desenhos do Pica Pau, presente em 28% das gravações. No caso de André, o comportamento pareceu ter a função de esquiva ou expressão de desconforto, como discutido por Kennedy et al. (2000). No caso de Paloma, seu interesse repetitivo foi o que motivou a busca pela interação e a levou a buscar se comunicar por meio do olhar, balbucios, gesticulações, pegando na mão da mãe, entregando-lhe o controle remoto, além do uso do gesto de apontar, de modo a atingir seu objetivo.
Esse uso de recursos comunicativos também se mostrou presente no caso de André, como a troca de olhares na brincadeira de pega-pega. No episódio da “garrafa ou copo?”, a criança demonstrou sua intenção de beber suco na garrafa quando segurou firme o objeto, evitando que a garrafa fosse retirada de sua mão, e também quando a levou na direção da mãe para que ela colocasse o suco na garrafa e, ainda quando não apresentou reação ao não conseguir beber diretamente nela. Verificou-se ainda o prazer ao contato físico, dentro da atividade lúdica de pega-pega, com a presença de largos sorrisos, toques corporais e abraço. À análise, conseguiu-se identificar e dar visibilidade ao dinamismo do fluxo interacional que envolveu as duas crianças em suas relações com os familiares, no contexto doméstico, com a efetivação de interações mutuamente reguladas.
Os episódios evidenciaram ainda que, por meio dos olhares, gestos e posturas corporais já referidos, as crianças demonstraram compartilhar a atenção com relação a um terceiro objeto, estabelecendo uma relação triádica. Essa relação foi evidenciada mesmo a despeito de as crianças não manterem qualquer contato visual nem com o objeto nem com o pai, utilizando-se basicamente de pistas auditivas e táteis, como no caso do copo de refrigerante de Paloma. O estabelecimento da atenção conjunta ocorreu, ainda, tanto em resposta à ação do adulto quanto de maneira ativa pela criança, promovendo a atenção do adulto em relação a um objeto.
Apesar dessas contribuições, entende-se que o presente trabalho apresenta limitações, já que se conduziu estudos de caso com apenas duas crianças. Considerando que o transtorno é um espectro, tornam-se necessárias pesquisas com maior número de crianças, com diferentes gravidades, para se caminhar em direção a uma maior compreensão sobre os alcances dos resultados aqui presentes (Baptista & Bosa, 2002).
A despeito das limitações, entende-se que o estudo traz aspectos que podem contribuir com elementos conceituais, além de poder ajudar familiares, profissionais da educação e da saúde nessa forma de ser e de se relacionar dessas crianças com transtorno. Acredita-se que com observações para os processos interativos dessas crianças compreendendo como essas ações se desenvolvem de maneira situada e relacional, pode-se contribuir para que modos particulares pelos quais essas crianças entram em contato com outras pessoas e posicionam -se em suas relações sejam potencializados.
Apoio e financiamento:
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
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Autor notes
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