Artigo Original
RETRAÇANDO OS DESLOCAMENTOS DE FOUCAULT: O LUGAR DA BIOPOLÍTICA E DA GOVERNAMENTALIDADE
VOLVIENDO A TRAZAR LOS DESPLAZAMIENTOS DE FOUCAULT: EL LUGAR DE LA BIOPOLÍTICA Y DE LA GUBERNAMENTALIDAD
RETRAÇANDO OS DESLOCAMENTOS DE FOUCAULT: O LUGAR DA BIOPOLÍTICA E DA GOVERNAMENTALIDADE
Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 3, pp. 365-376, 2015
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 31 Março 2015
Aprovação: 16 Outubro 2015
RESUMO.: Este estudo tem o objetivo de descrever os deslocamentos realizados por Foucault em sua obra, entendendo-se a que novos problemas eles respondiam. Busca-se também realçar sua reflexão política no uso das noções de biopolítica e de governamentalidade. Optou-se por analisar trechos da obra que resultem de sínteses feitas por Foucault sobre seu percurso, focalizando os deslocamentos ocorridos no período da genealogia do poder em diálogo com comentaristas. Discute-se a retomada contemporânea da noção de biopolítica e o valor heurístico da noção de governamentalidade. Com ela, Foucault buscou um instrumento analítico mais operacional, que lhe permitisse fazer uma análise macrossocial sustentada pela perspectiva da microfísica dos poderes. Argumenta-se que, em Foucault, o processo de teorização é privilegiado em relação à síntese teórica final. Assim, defende-se uma orientação de leitura pela primazia da dimensão teórico-metodológica sobre a teórico-temática. Aponta-se a importância de se utilizar as ferramentas teóricas de Foucault tanto em estudos temáticos particulares quanto em estudos de uma escala macropolítica.
Palavras-chave: Foucault, poder, metodologia.
RESUMEN.: El objetivo de este estudio es el de describir los desplazamientos realizados por Foucault en su obra y entender los nuevos problemas que responden. Se trata también de destacar su reflexión política al utilizar los conceptos de biopolítica y de gubernamentalidad. Se optó por analizar trechos de la obra que resultan de las síntesis hechas por Foucault sobre su trayectoria, con un enfoque en los desplazamientos ocurridos en el periodo de la genealogía del poder, mediante un dialogo con comentaristas. Se discute la reanudación contemporánea del concepto de biopolítica y el valor heurístico del concepto de gubernamentalidad. Con ella Foucault buscaba una herramienta más operativa y analítica que le permite un análisis macro-social apoyado por la perspectiva de la microfísica del poder. Se argumenta que en Foucault el proceso de teorización se privilegia con relación a la síntesis teórica final. Así, se defiende una orientación de la lectura de la primacía de la dimensión teórico-metodológica sobre la teórico-temática. Se destaca la importancia de utilizar las herramientas teóricas de Foucault no solamente en los estudios temáticos particulares, sino también en los estudios de una escala macropolítica.
Palabras-clave: Foucault, poder, metodología.
Há um relativo consenso na literatura em torno de uma periodização da obra de Foucault em três momentos: arqueologia do saber, genealogia do poder e constituição do sujeito ético. O próprio Foucault utilizou-se dessa tripartição em alguns momentos (Foucault, 1984, 2004c). Ainda que o autor defendesse a ideia de que cada pesquisa deveria ser realizada a partir da construção de instrumentos específicos a ela própria, e que a teoria não deveria ser pensada como um sistema, mas como uma caixa de ferramentas, frequentemente buscava refazer e alinhar sua trajetória de estudos, construindo, a posteriori, um desenho teórico-metodológico coerente. Em seus textos finais, esse desenho tomou a forma dos três eixos analíticos que se correlacionam: saber, poder e subjetivação (Foucault, 1984). Esses eixos de análise operam três grandes deslocamentos, porém não foram os únicos realizados por Foucault. Castro (2014, p. 74) considera que, na obra foucaultiana, “sempre houve deslocamentos”, através da formulação de novas hipóteses, de novos temas, de novas questões, bem como da revisão dos trabalhos anteriores. Isso ficou mais evidente com a publicação póstuma de seus cursos do Collège de France, em que as questões de método e as variações nas estratégias de análise eram sempre discutidas.
Este estudo empenha-se em descrever os deslocamentos mais marcantes no pensamento de Foucault, entender a que novos problemas eles respondiam e retraçar a coesão desse processo investigativo por ele conduzido. Argumenta-se que seus deslocamentos não constituíram rupturas, mas um movimento que reorganizava, provisoriamente, o conjunto de seu pensamento. Busca-se também, em diálogo crítico com autores contemporâneos, realçar a importância da noção de governamentalidade e suas possibilidades heurísticas no estudo de temas macropolíticos, ainda pouco discutidos pela literatura foucaultiana no Brasil.
Nas pesquisas em psicologia no Brasil, a referência à Foucault é extensa e crescente. Em um levantamento realizado em março de 2014 na base de dados SciELO, através do descritor “psicologia” combinado com o nome de variados filósofos, Foucault apareceu em 89 entradas, seguido por Deleuze em 32 e por Adorno em 26. Entretanto, esse grande uso de Foucault pela área apresenta problemas, um dos quais se indica nesta análise.
Para Foucault, tratava-se de se pesquisar em um campo empírico localizado e, nesse nível, colocar as questões cruciais para elaborar generalizações e conceitos mais amplos em um segundo momento. Sua formulação prescrevia que “as articulações teóricas são elaboradas a partir de um certo campo empírico”, o que denominava “problematização” (Foucault, 1984/2004d, p. 242). Rastreando algumas de suas principais formulações metodológicas presentes em seus cursos e livros, torna-se evidente que esses eixos de trabalho são centrais no decorrer de sua obra. O que se argumenta, ao acompanhar elementos de sua trajetória, é que se, por um lado, cada pesquisa ensejou a construção de instrumentos metodológicos específicos, por outro, seu estilo de trabalho mantém um enquadre relativamente estável. Como ele próprio afirmou: “Meu modo de trabalho não mudou muito, mas o que dele espero é que continue a mudar-me ainda” (Foucault, 1981/2010b, p.358).
Pode-se encontrar, em seu curso Do governo dos vivos, uma descrição de seu modo de trabalho e da importância dos deslocamentos que reorganizavam continuamente sua arquitetura conceitual. Em primeiro lugar, o autor acentua a defesa da teorização processual em detrimento da teoria sistematizada:
para mim, o trabalho teórico não consiste em estabelecer e fixar um conjunto de posições sobre as quais eu me manteria e cuja ligação entre essas diferentes posições, na suposta ligação coerente, formaria um sistema. Meu problema, ou a única possibilidade de trabalho teórico que sinto, seria a de deixar somente o desenho o mais inteligível possível, o traço do movimento pelo qual eu não estou mais no lugar onde eu estava agora pouco (Foucault, 1980/2011, p. 69).
Tem-se, assim, a elaboração de um corpo teórico em movimento, em constante modificação. Cada pesquisa colocava em xeque seu percurso anterior, que modificava posições, pois o objetivo não era sustentar postulados, mas transformar o que se pensava a partir das novas questões que o trabalho revelava. Assim, Foucault descreve seu movimento de teorização como uma “perpétua necessidade de realçar, de algum modo, o ponto de passagem que cada deslocamento arrisca modificar, se não o conjunto, pelo menos a maneira pela qual se lê ou pela qual se apreende o que pode ter de inteligível” (Foucault, 1980/2011, p. 69). Essa inteligibilidade buscada decorria de seu compromisso com a pesquisa em curso, o que colocava em segundo plano seu marco teórico anterior e o submetia a modificações. Seu foco não era a construção de um sistema teórico, mas um trabalho que se faz no cotidiano de cada pesquisa.
Este artigo está organizado de acordo com a abordagem mais convencional dos três eixos centrais da obra de Foucault. Dentro de cada um desses movimentos de seu trabalho procura-se realçar e retraçar seus deslocamentos, visando entender quais problemas teóricos eles tentavam resolver. Buscou-se localizar trechos da obra que tivessem um caráter de sínteses empreendidas por Foucault acerca de seu percurso. Em segundo lugar, optou-se por privilegiar os deslocamentos ocorridos no período da genealogia do poder, no qual foram elaboradas noções de forte viés político, tais como biopolítica, governamentalidade e segurança. Finalmente, buscou-se explorar alguns usos contemporâneos dos cursos dedicados à biopolítica e à governamentalidade, temas que, mesmo não tendo sido retomados em livros por Foucault, foram extensamente utilizados pela literatura anglo- saxônica.
Arqueologia do Saber
Ao se observar o conjunto da publicação de Foucault, percebe-se que suas modalidades de comunicação científica sofreram mudanças após sua entrada no Collège de France, onde ministrava cursos anuais. Foucault publicou oito livros completos durante sua carreira, considerando seu primeiro livro autoral A História da Loucura, de 1961. No período arqueológico, de 1961 a 1969, foram quatro livros em cinco anos. Nos 14 anos seguintes, até 1984, publicou outros quatro. Na genealogia do poder, foram dois (A Ordem do Discurso é, na verdade, a transcrição de uma aula) e, no eixo da subjetivação, outros dois. Assim, a demora na publicação dos volumes seguintes da História da Sexualidade não pode ser atribuída apenas a um “impasse” teórico (Deleuze, 1992, p. 135). Mesmo que esse impasse tenha existido, sabe-se que não foi o único. Aparentemente, após o período arqueológico e com o início de novo encargo, o compromisso de redigir e de ministrar cursos anuais sobre suas pesquisas em andamento, associado ao aumento de entrevistas e de pequenos artigos, além da intensificação de suas viagens como professor visitante em diferentes continentes, levaram-no a preterir o veículo livro como principal espaço de comunicação científica. Outro fator a ser lembrado m relação ao segundo hiato, foi sua contenda com sua editora Gallimard, em 1976, quando tomou a decisão de não mais publicar enquanto vigorasse seu contrato, com duração de mais cinco anos (Defert, 1999, p. 46).
No período arqueológico, Foucault demonstrava desinteresse no debate epistemológico sobre a validade das proposições para direcionar-se às condições de enunciação ou às regras de formação dos objetos e dos discursos. Essas regras de formação não são exclusivamente internas ao discurso, mas possuem “dependências” intradiscursivas, interdiscursivas (correlações com outros saberes) e extradiscursivas (correlações entre dimensões econômicas, políticas e sociais) (Foucault, 1968/2010a, p. 8). Destaca-se, aqui, a noção de “correlações” - estratégia analítica que se tornará um instrumento constante em suas pesquisas posteriores.
A perspectiva de normas ou regras, que compõem o acontecimento ou objeto estudado se manteve, com algumas modificações, ao longo do restante do percurso de Foucault. Por exemplo, ao se aproximar um texto de 1968, do período arqueológico, de outro datado de 1984, do período da subjetivação, percebe-se que, enquanto o eixo da discussão tem acentuadas diferenças, seu modo de trabalho comporta várias semelhanças. No primeiro texto, Foucault trata da análise dos discursos em sua perspectiva da arqueologia dos saberes (Foucault, 1968/2010a); no segundo, trata da história crítica do pensamento nas relações entre sujeito e objeto (Foucault, 1984/2004c).
No nível dos procedimentos analíticos, o que se encontra? Em 1968, apontava três critérios de análise dos discursos: 1) os de “formação”, devido à existência de regras de formação para todos os seus objetos, para suas operações, seus conceitos e opções teóricas; 2) os de “transformação” ou de limiar, visando definir “a partir de que limiar de transformação regras novas foram postas em jogo”; 3) os de “correlação”, que localizam o discurso tanto no contexto de outros discursos quanto no “contexto não discursivo no qual funciona (instituições, relações sociais, conjuntura econômica e política)” (Foucault, 1968/2010a, p. 4). Já em 1984, as “regras de formação” dos objetos são denominadas “jogos de verdade”, mas surge um novo objeto de interesse na pesquisa, que é o sujeito: “quais são os processos de subjetivação e de objetivação que fazem com que o sujeito possa se tornar, na qualidade de sujeito, objeto de conhecimento” (Foucault, 1984/2004c, p. 235). Tem-se, portanto, constância no enquadre metodológico (regras de formação/jogos de verdade), mas um novo conjunto de conceitos e eixos de análise que ainda não haviam sido explorados na década de 1960, tais como o poder e a subjetivação.
Foucault define, nesse mesmo texto, o escopo de sua empreitada como sendo:
Determinar, desde o século XVII, o modo de existência dos discursos, e, singularmente os discursos científicos (suas regras de formação com suas condições, suas dependências, suas transformações), para que se constitua o saber que é nosso hoje, e, de maneira mais precisa, o saber que se deu, por domínio, esse curioso objeto que é o homem (Foucault, 1968/2010a, p. 23).
Vale salientar que, na Arqueologia, dentro de uma pesquisa histórica, havia uma preocupação explícita com o presente, além de um objeto peculiar, definido como o “discurso”, com suas regras de formação e possíveis transformações, e uma marcação histórica e geográfica específica: Europa, séculos XVII a XIX. Por conseguinte, ao estudar o arquivo, Foucault buscava as condições singulares de emergência dos acontecimentos.
Na entrevista de 1968, Foucault responde a uma questão sobre se sua obra permitia ou não condições para uma política progressista. Em sua resposta, afirma que tal política depende do conhecimento histórico das regras de formação das práticas, não faz do sujeito seu operador universal, entende que os discursos de toda ordem são práticas e não toma o discurso científico como soberano sobre os demais (Foucault, 1968/2010a). Portanto, a preocupação política na análise dos discursos já transparecia no período arqueológico.
Tomando a argumentação discutida, o presente estudo distancia-se parcialmente de uma interpretação corrente de que Foucault, em seus primeiros trabalhos arqueológicos, tinha uma “ênfase exclusiva” na análise descritiva dos discursos, e que somente no período genealógico enfatizou aquilo que condiciona, limita e institucionaliza as formações discursivas (Dreyfus & Rabinow, 1995, p. 202). Esse argumento é pertinente apenas na segunda afirmativa. Há, de fato, um deslocamento de ênfase e uma maior exploração das instituições não discursivas, porém elas não estão ausentes do período arqueológico, e isso é particularmente incisivo em seu primeiro livro sobre a loucura. Contudo, há que se perguntar quais são as razões desse deslocamento do saber para o saber-poder.
Genealogia do poder
Afinal, como o arqueólogo deve lidar com a análise dos discursos em suas dimensões políticas? Em entrevista de 1977, Foucault avaliou que, ao contrário do que se pensa, teve grande dificuldade em formular a questão do poder, mesmo que o tema permeasse, de maneira não explicitada, sua obra anterior. Atribuiu sua “incapacidade” à situação política da época, tensionada entre uma direita (que acusava o socialismo soviético como totalitário) e uma esquerda (que denunciava o capitalismo como dominação de classe). Contudo, nessa polarização, a mecânica do poder não era analisada. Isso só lhe foi possível depois de 1968, com o surgimento “de lutas cotidianas e mantidas na base” (Foucault, 1977/2014, p. 19). Antes disso, ele não havia isolado esse problema central de poder.
Por conseguinte, embora o tema do poder estivesse implícito em alguns de seus estudos, o filósofo demorou a isolá-lo como problema de pesquisa, entre outras razões, pela maneira com que o debate, à época, colocava o problema, ao modo de um embate maniqueísta e, consequentemente, axiológico. Seu esforço, a partir daí, foi o de construir uma analítica do poder que não se reduzisse a um dualismo generalizado e que lhe permitisse investigar processos complexos, plurais, eivados de correlações, em um nível concreto e local. Essa não foi uma tarefa fácil e, em um primeiro momento, ele próprio foi acusado de sustentar um “modelo rígido e dualista do poder”, alicerçado nas categorias de poder e resistência (Castro-Gómez, 2011, p. 21). A almejada superação do dualismo não se dá em um só movimento, mas demanda um esforço constante . De fato, mesmo contra a intenção expressa de Foucault, o par poder-resistência insinua uma polaridade antagonista, e mesmo axiológica. Em função disso, posteriormente, outro deslocamento ocorreu em sua obra, com o recurso à noção mais plural de governamentalidade.
Outro elemento que concorreu para a construção desse novo eixo em suas pesquisas foi o recurso a Nietzsche, “aquele que me deu como alvo essencial, digamos, do discurso filosófico, a relação ao poder [...] conseguiu pensar o poder sem se fechar no interior de uma teoria política para fazê-lo” (Foucault, 1975/2003a, p. 174). Assim, os acontecimentos históricos, como as revoltas de 1968 e, no seu caso, com o testemunho do que ocorreu na Tunísia, onde lecionava em maio, além de aportes extraídos da literatura filosófica, permitiram-lhe efetivar esse importante, mas tumultuado, deslocamento. Tumultuado, por haver um diagnóstico, compartilhado por muitos, de uma crise em seu pensamento nos anos de 1976-1977, associada à elaboração e à publicação do primeiro volume da História da Sexualidade (Kelly, 2014).
De fato, seu primeiro esforço teórico de estudo do poder foi bastante criticado, o que pode ser aferido, inclusive, em algumas entrevistas dadas por ele em 1977. A maior parte das críticas centrava- se na leitura de uma onipresença do poder em sua obra, o que produziria um efeito anestesiante entre os que lutavam por mudanças (Castro-Gómez, 2011). Deleuze sugere que Foucault estaria se fechando nas relações de poder, como que fascinado pelo que tanto odiava, e o estatuto da noção de resistência não era suficiente para fazê-lo se desvencilhar desse impasse (Deleuze, 1992, p. 135).
Em entrevista de 1977, perguntado sobre o porquê de tantas metáforas bélicas e se haveria uma tendência de análises do poder com a forma da guerra, Foucault responde, meio vacilante: “Ainda não sei bem” (Foucault, 1977/1979, p. 241) e descreve o que considerava, até o momento, os dois modelos de análise disponíveis: o do direito, que pensa o poder a partir da lei (contra o qual sempre se opôs); e o guerreiro ou estratégico, de inspiração nietzschiana, assentado em relações de força (que utilizou no início do período genealógico). O entrevistador insiste na crítica à ideia “onde há poder, há resistência”, sugerindo que a resistência acaba estabelecendo uma “natureza” à realidade social. Foucault responde que não pensa o poder e a resistência como substâncias, mas como acontecimentos que devem ser analisados em sua imanência. Mesmo assim, é iminente o novo deslocamento em torno dessa discussão. Dois elementos de sua biografia concorrem para promover esse movimento.
O primeiro deles foi que Foucault manteve, entre 1976 e 1980, um seminário privado na Biblioteca Nacional com ativistas da geração de 1968, entre os quais estavam François Ewald, Alessandro Fontana e Giovana Procracci. Nesse seminário, aprofundavam sua discussão sobre política (Behrent, 2010), tornando-se um laboratório de produção de uma nova filosofia política que funcionasse como uma alternativa ao marxismo. Parte desses estudos foi explorada nos seus cursos, de 1978 e 1979, no Collège de France. Posteriormente, vários desses alunos produziram trabalhos sobre políticas públicas e Welfare State e alguns atuaram como consultores junto ao governo francês.
O segundo elemento foi seu ano sabático no Collège de France, realizado em 1977. Quando retomou as aulas, em janeiro de 1978, apresentou um novo deslocamento em relação à temática do poder, distanciando-se de Nietzsche e do seu modelo de guerra, de relações de força, para definir o poder em termos de governo e governamentalidade (Castro, 2014). Em seu curso de 1978, Segurança, Território, População, Foucault introduziu três novos aspectos na análise do poder: as “tecnologias de segurança” (p. 12), seu conceito central de governo ou governamentalidade (p. 143), e a definição do objetivo do poder como modo de “conduzir a conduta” (Foucault, 2008a, p. 256).
Sua definição de governamentalidade abarcava três aspectos, mas o primeiro carrega a maior síntese: um conjunto de instituições, de procedimentos, de reflexões, de táticas, de exercício de um poder complexo, cujo alvo eram as populações, um saber que era a economia política e a tecnologia dos dispositivos de segurança. Disso, pode-se extrair a relação intrínseca entre governamentalidade, biopolítica (seu alvo é a população) e segurança (sua principal tecnologia de poder).
No curso de 1980, Foucault justificou a necessidade de deslocamento da noção de saber-poder para a noção de governo: “a noção de governo me pareceu ser muito mais operatória que a noção de poder; governo [...] no sentido largo e antigo de [...] conduzir a conduta dos homens” (Foucault, 2011,
p. 53). Curiosamente, essa definição tem aproximações com a formulação feita em 1961 pelo cientista político estadunidense Robert Dahl: “A tem poder sobre B se A consegue fazer com que B faça algo que, de outra forma, não faria” (citado por Mackenzie, 2011, p. 75). Não há indícios de que Foucault tenha feito previamente essas leituras, mas a “operacionalidade” da noção de governo como conduta da conduta se aproxima do esforço da ciência política nascente nos Estados Unidos de construir uma avaliação da política mais discriminada e precisa. É essa operacionalidade analítica que Lazzarato (2009, p. 130) valoriza: “o que me interessa verdadeiramente no trabalho de Foucault é a descrição das técnicas. Isso é o fundamental. As técnicas são específicas.”
É importante, novamente, lembrar que não se trata de uma sucessão de substituições, a soberania sendo substituída pelo disciplinar e este pela segurança. O que Foucault intenta construir é uma “história das tecnologias [...] das correlações e dos sistemas dominantes”, em uma dada sociedade (Foucault, 2008a, p. 12). Tem-se, pois, nessa história das tecnologias de poder, “um sistema de correlações entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança” (p. 11). Os sucessivos deslocamentos, na verdade, ampliavam a arquitetura dos possíveis arranjos teóricos das investigações conduzidas por Foucault. Não é um arranjo sistemático, estruturado, mas um sistema móvel, ancorado em correlações em constante rearranjo.
Foucault descreve o curso Segurança, Território, População como sendo uma experiência de método para demonstrar como, “a partir de uma análise relativamente local, relativamente microscópica [...] do pastorado [...], era possível se chegar aos problemas gerais que são os do Estado” (Foucault, 2008a, p. 481). Afinal, o Estado resulta das práticas dos homens, envolvendo uma maneira de fazer e de pensar. Entre micro e macropoder, não há uma ruptura, pois ambos estão entrelaçados. E uma análise na perspectiva dos “micropoderes compatibiliza-se, sem nenhuma dificuldade, com a análise dos problemas, como os do governo e do Estado” (p. 12). Isso será retomado de outra maneira em seu curso seguinte, Nascimento da Biopolítica.
O deslocamento promovido pela noção de governo será ainda motor do derradeiro deslocamento na direção do sujeito ético, a subjetividade doravante não mais pensada como assujeitamento, mas como prática de liberdade. É precisamente a noção de governo que permite a Foucault elaborar seu deslocamento em direção ao eixo da subjetividade e da ética.
Genealogia do sujeito ético
A exploração da temática da subjetividade se deu durante seu curso de 1980, Do Governo dos Vivos, como um desdobramento da noção de governo pela verdade, através de seu estudo sobre os procedimentos de produção da verdade, por ele chamados de alertugias. Há, na história das instituições judiciárias, a aparição da testemunha como aquele que diz a verdade. Assim, “vê-se aparecer a incrustação da primeira pessoa na aleturgia” (Foucault, 2011, p. 63). A aleturgia não se completa sem que os indivíduos possam dizer “eu”. E conclui: “Sem esse ponto de subjetivação no procedimento geral e no círculo global da aleturgia, a manifestação da verdade permaneceria inacabada” (p. 66).
Entretanto, seu interesse não está apenas na prática aletúrgica, que submete o sujeito ao enunciado da verdade, mas no “[...] movimento para separar-se do poder que deve servir de revelador da transformação do sujeito e das relações que ele mantém com a verdade” (p. 70). Tem-se, aí, a síntese do projeto que ocupará Foucault até o final de sua vida. E isso o conduzirá a realizar concomitantemente um deslocamento dos períodos históricos que estudava. Não é no cristianismo que encontrará essa ética que se aparta do poder, mas nos gregos. Por isso, reorientará nessa direção seus cursos e a continuidade de sua História da Sexualidade.
Kelly (2014) localiza outro elemento de continuidade entre política e subjetivação ao sugerir que “o engajamento de Foucault com a política iraniana foi seminal para sua obra final” (p. 158). Kelly considera que o fascínio de Foucault pela Revolução Iraniana passava, entre outros aspectos, pela ligação estabelecida entre política e espiritualidade, algo ausente no Ocidente, como ele próprio denominará: “o espírito em um mundo sem espírito”. Essa noção de espiritualidade será retomada no curso de 1981-2, em A Hermenêutica do Sujeito, definida como uma técnica de si, aspecto central de sua ética da subjetivação.
Paulatinamente, a partir de 1980, Foucault vai construindo seu deslocamento da política à ética, chegando a afirmar: “[...] o que me interessa é muito mais a moral do que a política ou, em todo o caso, a política como uma ética” (Foucault, 1983/2004b, p. 220). Mais uma vez, não se trata de um deslocamento de campos de conhecimento, mas de uma diferença de acento, “a política como uma ética”.
Talvez, o arranjo definitivo das relações de poder tenha se dado em uma entrevista de 1984, intitulada “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”. Nela, Foucault retoma a ideia, presente em muitos textos, de que o centro de sua pesquisa sempre foi a relação entre o sujeito e a verdade, mesmo que nem sempre tenha formulado dessa maneira. Considera que examinou esse problema nas “práticas coercitivas”, na psiquiatria e no sistema penitenciário e no campo científico, como em As Palavras e as Coisas (Foucault, 1984/2004e, p. 265). Somente mais tarde focalizou o tema nas práticas ou técnicas de si, com forte autonomia em relação aos sistemas de dominação no mundo greco-romano, o que diminuiu “quando foram investidas pelas instituições religiosas, pedagógicas ou do tipo médico e psiquiátrico” (p. 265). É essa ideia central de “práticas” que Foucault retém como elemento fundamental de sua analítica desde o período arqueológico. Por isso, desconfia do tema geral da liberação como um estado a ser atingido e insiste no contraponto das práticas de liberdade, definindo a ética como “a prática refletida da liberdade”, sem deixar de apontar que esta é uma questão plenamente política.
Ainda nessa referida entrevista, Foucault retoma a discussão sobre o poder, fazendo uma discriminação de suas três dimensões, retomando várias de suas discussões ao longo de seu percurso: as relações de poder, sempre móveis e reversíveis, entendidas como jogos estratégicos entre liberdades; os estados de dominação, nos quais as relações de poder estão fixadas de modo assimétrico, sendo sua margem de liberdade limitada; e as técnicas de governo, que operam concomitantemente entre as dimensões anteriores, tanto na dinâmica institucional da dominação quanto nas relações mais horizontalizadas. Sua síntese aponta para a articulação entre ética e luta política no enfrentamento aos estados de dominação e às “técnicas abusivas de governo” (Foucault, 1984/2004e, p. 285).
Enfim, os deslocamentos foucaultianos não cessam de se rebater mutuamente, aprofundando a sua caixa de ferramentas conceituais. Ao mesmo tempo, indicam que a temática política mantém sua importância. Mesmo que os cursos sobre governamentalidade não tenham derivado livros, esses estudos foram intensamente retomados após sua morte
Biopolítica e governamentalidade: a retomada pela literatura atual
Nesta seção, aprofunda-se o debate em torno do lugar das noções de biopolítica e governamentalidade em Foucault em diálogo com a literatura contemporânea, buscando-se identificar alguns problemas na retomada atual da noção de biopolítica, realçando a especificidade e detalhamento das análises de Foucault referentes à política.
Entrevistado por Dreyfus e Rabinow (1983/1995) acerca da importância de escrever uma “genealogia do biopoder”, Foucault responde que não tinha tempo no momento, mas assinalou: “eu tenho que fazê-lo” (p. 256). Talvez essa tenha sido uma resposta apressada, pois o próprio Foucault a retirou da versão francesa dessa entrevista, além de realizar outras modificações. Este estudo se coaduna com a posição de Dean (2013, p. 40-41) e de Kelly (2014, p. 137), entre outros, de que o conceito de governamentalidade sucedeu ao de biopolítica em sua narrativa sobre as concepções modernas de poder, não sendo mais utilizada após 1979, como se verá adiante. Em contrapartida, as noções de governo e de governamentalidade se mantiveram presentes até seus últimos cursos. Portanto, ele continuou a genealogia do biopoder a partir de uma nova grade analítica.
No início do curso Nascimento da Biopolítica, Foucault expõe que seu propósito era oferecer “um curso sobre a biopolítica” (2008b, p. 29). No entanto, após esse anúncio, essa expressão reaparece apenas duas vezes nas aulas. Na primeira delas, assumindo-se como um lagostim que anda de lado, diz ironicamente: “se a sorte me sorrir, chegaremos ao tema da biopolítica” (p. 107). Na segunda parte do curso, finalmente admite a intenção de falar sobre biopolítica, mas deixou-a de lado devido a duas “razões de método”.
A primeira razão era decorrente da noção de governamentalidade, introduzida no curso anterior, que lhe permitia construir uma melhor “grade de análise para essas relações de poder” (Foucault, 2008b, p. 258). A segunda razão, retomando o final de Segurança, território e população, era testar se essa grade da governamentalidade, anteriormente usada para análise das relações de poder com os loucos, com os delinquentes e com as crianças, poderia funcionar numa escala maior, na análise de uma política econômica ou da gestão social. Portanto, a governamentalidade, com sua analítica dos micropoderes, “não é uma questão de escala, não é uma questão de setor, é uma questão de ponto de vista”, ou seja, de método (p. 258). Em função disso, o neoliberalismo alemão e estadunidense se tornou o campo de análise privilegiado do curso. Assim, com a noção de governamentalidade, Foucault intentava dois avanços metodológicos: construir um instrumental analítico mais preciso e operacional, e obter, com ele, uma ampliação de seu alcance analítico que lhe permitisse o estudo de temas macropolíticos, tais como Estado, política econômica, regimes políticos, seguridade social, entre outros, mediante a perspectiva da microfísica do poder.
Entretanto, apesar de os cursos seguintes revelarem um novo deslocamento em direção ao governo de si, à ética e à subjetivação, Foucault não abandonou em definitivo seu interesse em análises da escala social macropolítica. Segundo Castro-Gómez (2011), antes de sua morte, Foucault planejava realizar um seminário em Berkeley, que teria como tema “o Estado de Bem-Estar e sua governamentalidade particular” com base nas teorias de Keynes (p. 174). Possivelmente, parte desse conteúdo aparece na sua polêmica entrevista sobre a seguridade social (Foucault, 1983/2004a). Desse modo, cumpriria, na mesma universidade de Berkeley, o que havia anunciado anteriormente na entrevista dada a Dreyfus e Rabinow (1995). Contudo, a sua grade analítica substituiria o biopoder pela governamentalidade.
Curiosamente, tem-se visto uma proliferação, talvez inflacionada, da noção foucaultiana de biopolítica. Lemke (2011) chega a considerá-la uma palavra da moda (bussword), e Virno (2003) teme que ela tenha se tornado uma “palavra fetiche” e possa exercer a função de esconder problemas, em vez de analisá-los. Os teóricos mais importantes responsáveis por essa retomada da biopolítica são Negri e Hardt e Agamben.
Os estudiosos afeitos à obra de Foucault divergem na avaliação dessa tendência. Alguns, como Dean (2013), veem uma possível complementariedade entre eles e as pesquisas foucaultianas. Outros, como Lemke (2011), entendem haver uma significativa diferença entre o modo foucaultiano de operar esses conceitos e a retomada feita pelos autores. Essa segunda posição, menos presente na discussão brasileira, é explorada nesta revisão.
Lemke (2011) escreveu um livro sobre a história do uso da noção de biopolítica, reconhecendo, por um lado, que a intensidade desse debate indica que esse termo captura algo essencial em nosso tempo. Por outro, dedicou um capítulo a Agamben e outro a Negri e Hardt, com críticas incisivas. Em cada capítulo, apresenta uma síntese do pensamento dos autores e, na sequência, aponta os problemas do uso que fazem da noção de biopolítica. Para fins deste artigo, abordar-se-ão diretamente as críticas.
Lemke identifica três problemas nas formulações de Agamben. No primeiro, chamado de jurídico, acentua sua oposição entre norma e exceção, que aproxima Agamben de Carl Schmitt e o distancia de Foucault. Enquanto Schmitt está interessado na suspensão das normas, Foucault se preocupa com a produção da normalidade. A justaposição binária entre bios e zoé, no antagonismo “ou... ou”, também impediria Agamben de avaliar as gradações da vida nua.
O segundo problema é seu foco no Estado. Em Agamben, haveria um foco nos mecanismos do Estado e uma centralização nas formas de regulação. Além disso, seu fundamento na política racial nazista distorceria sua visão do presente. Lemke entende que a biopolítica não é apenas a busca da regulação governamental, mas também um campo de sujeitos “autônomos”, que demandam opções biotecnológicas. De acordo com Lemke, o perigo atual não é o corpo ou seus órgãos sucumbirem ao controle do Estado, mas, principalmente, que o Estado, em nome da desregulamentação, retire-se dos domínios que ocupa, deixando a sociedade à mercê dos interesses comerciais.
Finalmente, haveria o problema da criação, por parte de Agamben, de uma quase ontologia da biopolítica, o que tornaria sua noção de vida estática e a-histórica. Agamben, ao tentar corrigir Foucault, abandona a convicção inicial de que a biopolítica é um fenômeno histórico, não separável da existência dos Estados modernos e do capitalismo. Aliás, essa é a crítica mais presente na literatura. Virno (2003) também se opõe a Agamben por este transformar a biopolítica em categoria ontológica a- histórica.
A obra de Negri e Hardt é mais amplamente criticada pela literatura e não atingiu o reconhecimento da de Agamben. Lemke (2011) aponta, porém, que seu uso da noção de biopolítica é, relativamente, pouco abordado. Castro-Gómez (2011) condena o diagnóstico totalizante de que “não há um fora do Império” (p. 221) e contrapõe com a ponderação foucaultiana de que não há uma racionalização global para o conjunto das sociedades humanas, mas cada pesquisa deve se manter local e precisa, pois para Foucault não há uma lógica única que determine o universo da experiência humana de modo infraestrutural. Enfim, afirma:
Não se trata de derivar a sociedade de controle, a pós-modernidade ou o neoliberalismo, do capitalismo, como se fossem emanações de um universal abstrato, senão mostrar que este, o capitalismo, não é outra coisa que o correlato de uma série de práticas históricas que devem ser estudadas em sua singularidade (Castro-Gómez, 2011, p. 222).
Lemke (2011) ainda acentua outro aspecto em sua crítica. O diagnóstico de Hardt e Negri comporta um binarismo analítico maniqueísta: a multidão sozinha seria produtiva e positiva, e o Império, controlador e restritivo. Entende que seria mais apropriado analisar uma relação (biopolítica) de produção que contivesse, de modo imanente, ambos os polos dentro de si. Considera problemática a interpretação ontológica de biopolítica e sua concepção de multidão como uma força igualitária e progressista. Apesar de contribuir para a mobilização social, esse modo de pensar poderia, pelo contrário, deixar a impressão de que lutas políticas não são nada mais que encarnações dos princípios ontológicos abstratos que quase automaticamente procedem sem engajamento, intenções ou emoções dos atores concretos.
Devem-se avaliar essas críticas em dois sentidos. Primeiramente, Foucault sempre foi resistente a teorias totalizantes que se aplicassem a quaisquer situações, como fazem Negri e Hardt. Por essa razão, ele refazia constantemente o diálogo diacrônico entre suas pesquisas, ao mesmo tempo em que, ocasionalmente, abandonava certos caminhos iniciados, sem grande alarde. Isso pode ter sido o que ocorreu em seu abandono silencioso da noção de biopolítica em função da governamentalidade, a ponto de seus leitores mal perceberem seu movimento. E, se desenvolveu uma ontologia, era o que intitulava de “ontologia histórica”, bem diferente de uma biopolítica que atravessasse a história do Ocidente desde o antigo direito romano, como propôs Agamben. Foucault entendia que “é sem dúvida prudente não tomar como objeto de estudo a racionalização da sociedade ou da cultura como um todo, mas analisar esse processo em vários domínios” (Foucault, 1981/2003b, p. 356).
Evidentemente, se a simples reprodução dos conceitos aos quais Foucault chegou não equivale a acompanhá-lo em seu percurso investigativo, não se pode cobrar de Negri, Hardt e Agamben esse tipo de alinhamento, afinal, eles lançaram mão de Foucault para construírem seu próprio percurso investigativo. Foucault operou do mesmo modo em seu recurso a Nietzsche e sempre fez uso de outros autores como instrumentos de construção dos próprios argumentos. Por isso, mesmo reconhecendo a diferença do modo de trabalho de Foucault com as noções de biopoder e biopolítica, não há porque reprovar Negri, Hardt e Agamben por utilizarem a noção de biopolítica como um conceito totalizante e transcendental, dentro do projeto de trabalho específico de cada um, e muito menos considerar indevida a retomada à noção de biopolítica que Foucault havia deixado de lado. Os foucaultianos o fazem com constância, e o próprio Lemke (2011) entende que nossa atualidade carece da retomada dessa noção. A releitura cuidadosa de qualquer conceito tem o seu mérito, e não cabem fundamentalismos na leitura de um filósofo como Foucault ou em seu nome.
O que parece problemático é a tendência de alguns estudos construírem uma colcha de retalhos, sem as necessárias costuras, entre Foucault, Negri, Hardt, Agamben, como se todos dissessem ou trabalhassem da mesma maneira a noção de biopolítica, o que é bastante frequente no Brasil. Diferentemente disso, insere-se a tentativa cuidadosa e aprofundada de Mitchell Dean (2013) de construir uma ferramenta analítica, que conjugue a imanência histórica de Foucault com a transcendência trans-histórica de Agamben, apontando suas diferenças, mesmo que se discorde de seu resultado final.
Foi no mundo anglo-saxão que a noção de governamentalidade floresceu de forma mais robusta, principalmente entre os autores das ciências sociais, criando uma área de estudos, Governmentality Studies, durante a década de 1990, impulsionada pela publicação de uma aula de Segurança, Território e População, na qual essa noção é definida. Sua gênese está associada a certa insatisfação, crescente nos anos 1980, com as formas de análise do marxismo clássico. Gordon (2013) realiza uma revisão desse tema, apontando que as ferramentas foucaultianas traziam uma maior visibilidade aos estudos sobre poder na vida cotidiana e institucional que o marxismo. São estudos sem homogeneidade estrita, havendo correntes diversas, porém todas ancoradas em uma leitura da noção de governamentalidade.
Considerações finais
Buscou-se, neste trabalho, acentuar a importância de apreender o movimento do pensamento de Foucault em seus deslocamentos, evitando-se uma leitura escolar das etapas de sua trajetória (saber, poder e subjetivação) a partir de uma compreensão dos desafios teóricos que exigiram tais mudanças. Há que se concordar com Koopman (2013) quando afirma que Foucault pode ser melhor lido com base em sua analítica do que em seu legado teórico-doutrinário. Se em Foucault o processo de teorização era mais importante que a síntese teórica final, deve-se, então, orientar a sua leitura privilegiando-se sua dimensão teórico-metodológica em relação à teórico-temática. Por isso, buscou-se enfatizar que não se trata apenas de reproduzir as teorias foucaultianas, mas, principalmente, acompanhar seu modo de teorização, sua analítica de problematização, que tece as articulações teóricas a partir de um campo empírico específico em cada pesquisa.
Ao transitar do conceito de biopolítica ao de governamentalidade, Foucault buscou um instrumento analítico mais operacional e que permitisse fazer uma análise macrossocial sustentada pela perspectiva da microfísica dos poderes. Deduz-se que a noção de biopolítica não lhe permitiria o mesmo manejo, talvez por possibilitar uma captura do olhar macropolítico para as análises que ele pretendia realizar na perspectiva micropolítica. A tendência atual de conferir um estatuto ontológico e totalizante a essa noção indica que ele fez uma escolha acertada.
O apego à doutrina teórica pode conduzir a um trabalho movido por palavras de ordem classificatórias, e não por um esforço analítico. É inegável a popularidade atual da noção de biopolítica e, como pontuou-se anteriormente, seu uso não deve ser condenado. O que decidirá seu valor será o esforço analítico que o acompanha, e, de um ponto de vista foucaultiano, o cuidado para que seu manejo não o torne um instrumento dedutivo ontológico-totalizante, “aplicado”, como um leito de Procusto, a qualquer realidade.
As noções de tecnologias de governo, bem como a de macro e micropolítica de Deleuze e Guattari, possuem uma fecundidade heurística ainda a ser explorada, particularmente em um tempo no qual as análises macrossociais revelam certo esgotamento (Ferreira Neto, 2015). Assim, permanece o desafio da utilização das ferramentas teóricas de Foucault na Psicologia, não somente em estudos temáticos particulares, como também em estudos de uma escala macropolítica, como nas políticas públicas. Isso foi iniciado pelo grupo foucaultiano dos Seminários da Biblioteca Nacional, na França, mas ainda merece ser intensificado no Brasil, como tem sido feito pela área da Saúde Coletiva. Entende-se que ainda há muito que percorrer no campo dos estudos de governamentalidade em pesquisas sobre políticas públicas no Brasil.
Apoio e financiamento:
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
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