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CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A RECONSTRUÇÃO DA CRÍTICA À IDEOLOGIA
Pedro Sobrino Laureano
Pedro Sobrino Laureano
CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A RECONSTRUÇÃO DA CRÍTICA À IDEOLOGIA
CONTRIBUCIONES DEL PSICOANÁLISIS PARA LA RECONSTRUCCIÓN DE LA CRÍTICA DE LA IDEOLOGÍA
Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 3, pp. 471-482, 2015
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá
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RESUMO.: Buscamos elaborar uma compreensão da ideologia atual através da psicanálise e de alguns autores da filosofia, como Benjamin e Zizek. Neste sentido, investigamos os argumentos de Sloterdijk, para quem o cinismo constitui a forma dominante de consciência em uma era pós -ideológica, forma caracterizada por aquilo que o autor chama paradoxalmente de “falsa consciência esclarecida”. Em seguida, buscamos em Marx, em Freud e no modernismo artístico de Malevich e de Duchamp elementos para uma renovação da crítica da ideologia em uma época pretensamente desencantada, apontando os limites da crítica anterior e de algumas intepretações reducionistas de Marx e de Freud. Concluímos com algumas reflexões críticas sobre o debate concernente à crise da autoridade social e com apontamentos sobre a ideologia a partir do conceito de gozo em Lacan. N osso objetivo é compreender as transformações do poder no capitalismo contemporâneo a partir das ideias da psicanálise acerca das relações entre crença, verdade e gozo.

Palavras-chave: GozoGozo,ideologiaideologia,psicanálisepsicanálise.

RESUMEN.: Se buscó desarrollar una comprensión de la ideología corriente a través del psicoanálisis y de algunos autores de la filosofía, como Benjamín y Zizek. Para tal, investigaremos los argumentos de Sloterdijk, para quien el cinismo es la forma dominante de la conciencia en una era post-ideológica, forma que se caracteriza por lo que el autor llama paradójicamente de "falsa conciencia ilustrada". Buscamos, entonces, en Marx, Freud y en el modernismo artístico de Malevich y Duchamp elementos a través de los cuales llevar a cabo una renovación de la crítica de la ideología en un tiempo supuestamente desencantado, señalando los límites de la crítica anterior y de algunas interpretaciones reduccionistas de Marx y Freud. Se concluye con algunas reflexiones críticas sobre el debate en torno a la autoridad de la crisis social y notas sobre la relación entre la ideología y el concepto de goce, en Lacan. Nuestro objetivo es entender la transformación del poder en el capitalismo contemporáneo, a través de las ideas psicoanalíticas acerca de la relación entre la creencia, la verdad y el goce.

Palabras-clave: Goce, ideología, psicoanálisis.

Carátula del artículo

Artigo Original

CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A RECONSTRUÇÃO DA CRÍTICA À IDEOLOGIA

CONTRIBUCIONES DEL PSICOANÁLISIS PARA LA RECONSTRUCCIÓN DE LA CRÍTICA DE LA IDEOLOGÍA

Pedro Sobrino Laureano
Universidade Federal de São João Del Rei, Brasil
Psicologia em Estudo, vol. 20, núm. 3, pp. 471-482, 2015
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 16 Junho 2015

Aprovação: 04 Novembro 2015

Introdução

Alguns autores têm buscado qualificar a ideologia própria ao capitalismo atual através da ideia de uma racionalidade cínica (Sloterdijk, 1988; Zizek, 2011b; Safatle, 2012; Dunker, 2015). O cinismo corresponde àquilo a que Peter Sloterdijk chama de “falsa consciência esclarecida” (1988, p. 34), isto é, uma consciência que, ainda que enxergue perfeitamente o caráter fetichista de suas crenças, continua, entretanto, a encená-las. Na verdade, a questão principal do cinismo está relacionada ao “ainda que” e ao “entretanto”: o cinismo não se torna ideologia apesar da consciência que o sujeito tem da falsidade de suas crenças, mas justamente por causa dessa mesma consciência. Não se trata da constatação desencantada de que já não acreditamos nas imagens sociais, que as percebemos como meros semblantes destituídos de qualquer legitimidade, mas sim que acreditamos nelas justamente por serem meros semblantes destituídos de legitimidade.

Sloterdijk argumenta que a crítica social de molde iluminista, que buscava distanciar o sujeito do sonho ideológico, despertando-o para realidade material e histórica, perde a eficácia, na medida em que é a própria realidade que se parece, cada vez mais, com um sonho ideológico em relação ao qual não há mais realidade para a qual se poderia despertar. O cinismo seria esta “falsa consciência esclarecida... Ao mesmo tempo bem instruída e miserável, essa consciência não se sente mais aturdida por nenhuma crítica ideológica” (Sloterdijk, 1988, p. 34). Os modelos de identificação do capitalismo tardio constituem-se a partir do reconhecimento pleno do fetichismo social, dos simulacros que não pedem para serem levados a sério e que têm no distanciamento reflexivo sua paradoxal condição de eficácia. Dessa maneira, a tarefa crítica de procurar o distanciamento que permita a destituição do imaginário social em nome da realidade encontra limites claros na medida em que, para a consciência cínica, é a própria realidade que se transforma cada vez mais em semblante.

Se a crítica buscava denunciar os interesses particulares escondidos por trás dos enunciados universais, hoje se trata primeiramente de revelar a universalidade inerente às ações de sujeitos que pensam agir por interesse próprio. Paradoxalmente, o que a crítica do cinismo deve buscar é a articulação da impossibilidade da descrença. Ou seja, a impossibilidade inerente às intenções do sujeito que crê poder reduzir inteiramente sua posição social ao ponto de vista de um grupo particular sem que, com isso, dispute efetivamente o espaço de reconhecimento universal.

Certamente, quando uma minoria, ou um determinado setor da sociedade busca reconhecimento de seus direitos, ela argumenta em nome da particularidade de seus interesses. Suas reivindicações, entretanto, possuem consequências que concernem à dimensão universal da política: o reconhecimento do casamento entre homossexuais muda a maneira como todos os sujeitos percebem a questão de gênero, assim como o reconhecimento de que determinados sujeitos devem ter acesso a cotas de vagas no ensino superior ou a uma renda mínima por parte do Estado muda a maneira como toda a sociedade encara a questão dos pobres ou dos negros. Isto é, a ação puramente particular, movida pelos interesses de uma racionalidade egoísta, é impossível.

E se a crítica buscou mostrar as determinações particularistas inerentes a enunciados universais como os da moral ou os da religião, atualmente tal procedimento tende a se tornar inócuo. Caberia buscar justamente o inverso, revelando o constrangimento moral ideológico subjacente ao sujeito que crê, cinicamente, que seu interesse privado constitui a única imagem do bem. É o que buscaremos articular, neste artigo, através de uma leitura da ideologia contemporânea, a partir de Marx e de Freud, e também por exemplos tomados da arte moderna.

Freud, Marx e a arte moderna

A importância da análise do fetichismo das mercadorias realizada por Marx (1867/2010), no primeiro capítulo de O capital, relaciona-se à maneira como o filósofo subverte aquilo que compreendemos como sendo a crítica da ideologia. Longe de constituírem sistemas de crença que deveriam ser remetidos a suas raízes terrestres e humanas, às determinações da base produtiva, Marx parte da ideia de que as mercadorias se apresentam, no capitalismo, como objetos triviais e mundanos perfeitamente desmistificados. As mercadorias são percebidas pelos sujeitos como objetos determinados pelas relações e pelas forças de produção, e não como fetiches. O papel da teoria é justamente o de revelar o aspecto mistificado daquilo que, à primeira vista, aparece como um objeto absolutamente banal, reduzido a suas determinações materiais. A teoria não desencanta o mundo, mas, estranhamente, “encanta” aquilo que é considerado o reduto objetivo da realidade natural ou social. Não se trata, então, de desmascarar a crença, mas sim de desmascarar a própria realidade, mostrado a necessidade da crença como constitutiva da esfera que a percepção comum julga como realista.

Slavoj Zizek (2012/2013) argumenta que tal inversão marxiana da crítica da ideologia encontra afinidades surpreendentes com o método de interpretação criado por Freud (1900/2006a). Normalmente, compreende-se a descoberta do inconsciente como a revelação de que fenômenos pertencentes a esferas universais de valoração, como a moral, a arte, a religião e a ciência, devem ser compreendidos através das motivações sexuais recalcadas. Freud seria um pensador materialista porque haveria enxergado na sexualidade a realidade natural reprimida pelas formações sociais ideológicas. Entretanto, ao se retratar o pensamento freudiano desta maneira, perdemos, para Zizek, o argumento central de Freud a respeito da sexualidade. Longe de haver descoberto a base natural sexual que rege as esferas elevadas da cultura, Freud chega a uma descoberta muito mais inquietante: a de que sexualidade é atravessada pelo fantasma subjetivo. Para Freud a crença organiza até mesmo aquilo que o sujeito considera como sendo a realidade imediata de seus desejos sexuais mais íntimos.

Ora, o paradoxo do cinismo atual é o de que mesmo a revelação do fetichismo como elemento estrutural na constituição daquilo que se compreende como sendo a realidade da produção material, ou da fantasia que sustenta o desejo sexual, não basta para dissolver a permanência da crença. Há um limite para a crítica da ideologia, assim como, em psicanálise, há um limite para a crítica do fantasma através do recurso à intepretação. Pois mesmo o sujeito que se depara com o caráter mistificado de suas crenças pode continuar a acreditar nelas, e torná-lo consciente das crenças inconscientes não basta para dissolvê-las. O sujeito continua a acreditar nelas, ainda que seja capaz de descrever racionalmente as determinações materiais que contradizem abertamente o significado da crença. Isto é, trata-se do paradoxo de um sujeito que reconhece a esfera fetichista como elemento fundamental de suas ações e desejos, mas que, ainda assim, continua a crer no fetiche.

Não poderíamos estender a proximidade entre Freud e Marx proposta por Zizek, considerando como tal programa crítico constituiu parte fundamental, também, de movimentos artísticos da modernidade? Tomemos os exemplos de artistas como Duchamp e Malevich. Em o Quadrado negro sobre fundo branco, Malevich buscou representar a diferença entre figura e fundo, a disparidade entre forma e conteúdo que é responsável pela própria existência de um quadro, antes mesmo que qualquer objeto venha preenchê-lo. Por sua vez, Duchamp, ao expor em museus objetos triviais do cotidiano, como um mictório, buscou destacar a função da moldura como sendo aquilo que confere o estatuto artístico a qualquer objeto.

Uma das maneiras de compreendermos tais obras é através da ideia de que os artistas haveriam dessacralizado objetos submetidos ao fetichismo social, o artístico, no caso de Malevich, ou o das mercadorias, como em Duchamp. Ao mostrarem os procedimentos necessários à construção dos objetos artísticos ou industriais, desmascaram a autonomia do produto como uma aparência que termina por ocultar os processos sociais ou materiais de produção do valor. Seja a mediação social que concorre para a construção do valor de um objeto, sejam, ainda, os próprios processos produtivos imanentes à obra, o procedimento de dessacralização consiste em fazer adentrar, no espaço reificado da representação, a dimensão produtiva oculta por trás do produto final.

Entretanto nos parece que tais obras não realizam uma simples dessacralização de objetos através da passagem da esfera da representação para a da produção. Em um movimento contrário, elas mostram como mesmo um objeto absolutamente banal, que aparece já indexado a seus processos materiais ou sociais de produção, depende do enquadramento por meio do qual ele se torna um objeto “sagrado”, artístico, revelando aquilo que Walter Benjamin (1936/1994) chama de “aura”. Se o quadro ideológico atual é aquele do cinismo, não surpreende sabermos que uma obra de arte depende daqueles que estão em posição social de valorizá-la, ou que as mercadorias são produzidas por relações de produção assentadas sobre a exploração do trabalho. O que surpreende é que tais objetos não deixem de ser “auráticos”, no sentido benjaminiano, ainda que conscientemente conheçamos seus segredos.

Lembremos as palavras de Benjamin sobre a aura, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica:

O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca o domínio da tradição do objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial (Benjamin, 1936/1994, p. 176).

A intenção de Benjamin não é lamentar o desencantamento moderno, mas sim pensar aquilo que, nesses objetos absolutamente serializados, dispostos como autômatos frente a multidões passivas que se contentam em consumi-los, constitui a determinação própria do que seria um objeto aurático e uma época desencantada. De fato, não seria o papel da arte moderna o de revelar como a aura, tradicionalmente associada a objetos produzidos pela técnica insubstituível do artista, pode ser encontrada mesmo nos objetos reprodutíveis do capitalismo? Trata-se de revelar como um objeto espúrio ou banal do cotidiano já contém a qualidade inefável capaz de torná-lo desejável.

O valor de um objeto nunca pode ser conhecido através de determinações exclusivamente empíricas. Há um elemento de absoluta contingência inerente à determinação daquilo que o tornará socialmente valorizado, e é tal elemento que torna o papel da crença fundamental. Talvez seja o que Benjamim explicite, pela transição do regime religioso da arte, em que esta é inseparável do ritual social baseado na tradição, para um regime político, em que a perda do ritual é capaz de fundar um novo laço coletivo:

... com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual... Mas, no momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política (Benjamin, 1936/1994, p. 181).

Se reduzirmos o modernismo à ideia de dessacralização, perdemos o caráter subversivo de obras como as de Malevich e Duchamp. Estas seriam absolutamente conformes ao desencantamento moderno, ao rebaixamento de objetos sagrados aos seus atributos mundanos, triviais. De fato, a exposição de um mictório ou de um quadro composto apenas de figura e fundo revela como a dimensão universal da arte é inerentemente artificial, já que dependente do reconhecimento de grupos que “emolduram” um objeto, transformando-o em arte. Mas tais obras não se reduzem a encenar de forma paródica as estratégias sociais de valoração. Elas buscam, antes, mostrar o caráter artístico da própria moldura, a sacralidade inerente ao ato de se recortar um objeto espúrio, como é o caso em Duchamp, ou a própria forma, em Malevich, e elevá-los à condição de objetos de arte. Que o sujeito possa repeti-los, que a arte torne-se acessível a qualquer um, não constitui um argumento contrário a sua caracterização como arte, mas o argumento propriamente modernista a favor da autonomia política da arte em relação aos rituais sociais de cunho religioso.

Uma das consequências do cinismo como ideologia não é apenas a tentativa de transformar qualquer objeto em utensílio, mercadoria, mas também o movimento oposto, aquele que consiste em reconhecer o caráter mistificado de um determinado objeto, sem que, com isso, ele perca seu estatuto. Se a lógica do equivalente geral torna todo objeto igual aos outros, reduzindo-o ao seu valor de troca, ela apenas pode ser realizada através da eleição de um objeto que ainda funciona de forma excepcional e cuja reprodutibilidade não implica a destituição de seu teor fetichista. Trata-se, é claro, do próprio dinheiro. Ele não é um objeto comum, capturado no círculo de trocas sociais, mas aquele que é responsável pela constituição do próprio círculo normal de trocas. O dinheiro incorpora a crença social na circulação das mercadorias por possuir autonomia relativa em relação a qualquer lastro material, baseando-se, em última instância, na confiança coletiva.

Mas é justamente o caráter fetichista do dinheiro como mercadoria que é plenamente aceito, sem que a conscientização do sujeito concorra para a destituição da eficácia da crença. Por trás do movimento da circulação do valor, o sujeito reconhece o caráter histórico das relações e das forças de produção, mas tal reconhecimento não conduz a qualquer transformação social, e sim à aceitação do fetiche. Quanto mais a sociedade se torna descrente, parecendo dispensar, a respeito de esferas como sexualidade, comportamento, cultura e religião, qualquer elemento de crença, mais o próprio dinheiro se desmaterializa, tornando-se uma entidade autorreferente que parece não depender de qualquer lastro real.

Marx viu como o dinheiro encarna o poder simbólico que era conferido, em sociedades pré- capitalistas, aos objetos políticos, mágicos ou religiosos. Mas o que ele não poderia antecipar é que, ao contrário de outras formações sociais, no capitalismo, a crítica do fetiche não concorre para sua dissolução. Podemos lembrar, aqui, de afirmações como estas, de Safatle:

Ao invés da tragédia de um sistema econômico que a todo momento funciona através do ocultamento do caráter fetichista de seus processos de determinação de valor em todas as esferas da vida social,... teríamos o cinismo de práticas capazes de reduplicar seu próprio sistema de representações, tomando a todo o momento uma distância brechtiana em relação àquilo que elas enunciam, tal como em uma eterna paródia. (Safatle, 2010, pp. 91-92).

Não basta dizer que aquilo que outras sociedades buscavam esconder, o capitalismo mostra. Se a produção do valor é compreendida em seu caráter material, como produção de homens que trabalham, o fetichismo também é aceito plenamente, sem que a conjugação dos dois enunciados, o do reconhecimento do caráter histórico da produção e o gozo dos semblantes sociais, contradigam um ao outro ou, ao menos, sem que tal contradição transforme-se em esteio para transformação dos agentes sociais. Paradoxalmente, a consequência da redução do valor a suas características materiais não é a imersão do sujeito em uma realidade desencantada, mas a prevalência da esfera virtual dos simulacros sociais, a fantasmagoria do capital como um objeto sublime que parece estar além da vida natural e histórica. Neste sentido, o cinismo constitui uma estranha mescla de realismo e fetichismo.

O sujeito aceita o fetiche, que convive junto ao reconhecimento da realidade material da produção. Trata-se de uma cisão da consciência, de um reconhecimento duplo e contraditório: a aceitação plena dos fetiches sociais, por um lado, e o reconhecimento do caráter histórico da produção, por outro. A contradição, entretanto, não se coloca como possível sítio de transformação, não marca uma tensão rumo a sua resolução, parecendo destituir, com isso, o recurso à dialética como motor de transformações sociais. Enquanto o sujeito reconhece a produção como fundamento histórico e material da sociedade, também é capaz de gozar do fetiche, do caráter ideológico do movimento de expansão do capital. Este é como um autômato social ou, como diria Espinosa (2007) a respeito da substância, uma Causa sui (causa de si) cuja expansão move todo o universo histórico.

A arte moderna aparece como uma possível aliada na crítica do cinismo, quando reintroduz a dimensão da crença naquilo que, em outros sistemas sociais, era excluído como objeto possível de crença. Ao invés de dessacralizar os objetos, reduzindo-os a seus valores materiais, busca-se elevá- los à dimensão daquilo que deve ser reconhecido pela cultura. Trata-se do enquadramento do que é excluído pelas normas que regulamentam o belo. Não se trata da mera transgressão, mas da elevação ao estatuto de arte daquilo que se encontra fora das leis do Bem ou do Belo. É tal moldura que torna um objeto qualquer em um objeto sublime, como no caso de Duchamp e Malevich.

Devemos ressaltar, neste sentido, uma clarificação necessária ao conceito de materialismo, tal como este pode ser compreendido através tanto da psicanálise, como do marxismo. De fato, no contexto de uma sociedade em que, como temos buscado argumentar, o enunciado ideológico principal é aquele de que vivemos em uma era pós-ideológica, a própria oposição entre materialismo e idealismo deve ser problematizada. Se a ideologia atual constitui-se, principalmente, através da demanda compulsória de adequação do sujeito à realidade material, podemos dizer que, paradoxalmente, a realidade é um dos nomes atuais da ideologia. É o que Jean Claude Milner exprime, argumentando como o conceito psicanalítico de fantasma pode nos ajudar a compreender, hoje, a nova figura de autoridade que se baseia justamente no significante “realidade”:

É verdade que nós, Ocidentais modernos, acreditamos poder escapar facilmente das Palavras- mestras... De resto, numa sociedade que se quer leiga e liberal, o espírito crítico não conhece limite algum e não pode recuar diante de palavra alguma. No entanto, esse movimento mesmo tem sua própria Palavra-mestra: quando tudo cedeu, ela ainda nos rege, por essa única razão, não a percebemos mais como um simples nome, mas como o que, por definição, tem mais força que qualquer nome possível. Esse além dos nomes, definido justamente por ser mais que um nome, deve, no entanto, ser nomeado: trata-se, bem entendido, da Realidade... mas a realidade por estrutura, é fantasmática, já que, como fantasia, ela é valor de laço (Milner, 2011, pp. 56-57).

De fato, ao contrário do que pensa a intepretação vulgar de Marx e Freud, a perspectiva materialista não busca reduzir todas as fantasias e ficções à realidade muda do sexo ou da produção que, como coloca Milner, se colocaria para além dos nomes. De fato, hoje não faltam aqueles que pedem um retorno à realidade por trás das ideologias, seja à esquerda, seja à direita. Os que criticam a finaceirização geral da econômica por haver negligenciado o papel das pessoas reais e da economia produtiva, dessa forma, terminam por reduplicar o discurso daqueles que caracterizam qualquer regime social que se afaste do modelo pragmático e liberal atual como sendo ideológico.

Entretanto o que tal materialismo reducionista não enxerga é justamente o passo fundamental de autores como Freud e Marx em relação à crítica da crença. Pois tanto para Marx quanto para Freud o verdadeiro materialismo deve incluir as ficções subjetivas, a maneira como o sujeito necessariamente distorce a realidade ao buscar apreendê-la, como parte imanente da própria realidade. Ao contrário da concepção “materialista” que procura normalizar os fenômenos através da explicação causal capaz de serializá-los, o materialismo crítico de Marx e Freud procura mostrar como até o mais ínfimo objeto cotidiano, como a sexualidade ou a mercadoria, possui uma inevitável dimensão aurática, sendo atravessado pela dupla determinação do fantasma e do desejo (Freud, 1923/2006b; Lacan, 1992/1998).

A ideia de que ao processo de modernização seria inerente um desencantamento do mundo pode ser lida, portanto, como uma descrição da ideologia própria a uma sociedade pós-ideológica. Ao contrário do encantamento antigo, trata-se de uma paradoxal ideologia do desencantamento. Se o discurso religioso constitui-se pela tentativa de monopolizar o sagrado, identificando o transcendente à dimensão particular de um grupo ou comunidade social, a tarefa da crítica atual não é a de privar o mundo do sagrado, mas, pelo contrário, a de apontar a dimensão da crença como já operante naquilo que consideramos como absolutamente trivial. Da mesma maneira, portanto, como o caráter subversivo das teses de Freud e Marx foi o de haver enxergado até mesmo na realidade natural do sexo ou da produção a presença do fantasma, no caso de Freud, ou da ideologia, no de Marx.

Tal revelação do caráter sagrado de objetos considerados triviais não constitui a nostalgia pela dimensão antiga da crença institucionalizada. Trata-se, antes, daquilo que poderíamos apontar como sendo a crença na construção de uma universalidade capaz de distanciar-se tanto a dimensão transcendente do Bem antigo, sustentada pela exclusão das motivações ou grupos particulares, quanto do cinismo contemporâneo, que consiste em denegar a universalidade no mesmo ato de encená-la. A universalidade não se constrói, portanto, através de uma exceção constitutiva, de um termo excluído que permite a universalização de um determinado grupo, mas sim por meio daquilo que resiste à inscrição do sujeito em uma totalidade orgânica.

Se hoje é a própria universalidade que se encontra excluída (sendo, entretanto, encenada) pela ideologia cínica, trata-se de sustentar a ideia de que a universalidade não se opõe à singularidade, mas que, pelo contrário, é condição do singular. Ernesto Laclau expressou tal ideia através do curto circuito entre o objeto pequeno a, conceito criado por Lacan (1962-1963/2005), para pensar os objetos parciais freudianos, e aquilo que chama de hegemonia, o movimento contingente em que um grupo particular excluído se eleva à posição de representante da totalidade1. Antes de constituir a simples inscrição da particularidade sob um conceito universal, trata-se de elevar uma parcialidade que evoca a impossibilidade do universal, o antagonismo que impede sua constituição, como já sendo o nome da própria universalidade: “O objeto parcial não é uma parte de um todo, mas uma parte que é o todo... Deste modo, o objeto parcial deixa de ser uma parcialidade evoca uma totalidade e torna-se... o nome dessa totalidade” (Laclau, 2005/2013, pp.175-176). Se o objeto pequeno a não é uma parte de um todo, mas já é o nome do próprio todo, é justamente por constituir aquilo que impossibilita a construção de uma totalidade saturada, orgânica.

Slavoj Zizek (2014a) também buscou mostrar como um conceito renovado de universalidade encontra um inesperado respaldo na ideia freudiana de pulsão de morte, pensada como uma “energia não ligada” capaz de desagregar os vínculos constituídos pela pulsão de vida. A pulsão de morte, como abolição dos laços de identificação que permitem reunir os sujeitos em comunidades, torna-se, na leitura de Zizek, o vínculo de sujeitos que perderam qualquer relação com seus territórios nacionais, familiares, étnicos ou laborais; sujeitos reduzidos ao caráter de resto da operação simbólica que Lacan buscou pensar através do papel do objeto pequeno a na economia do desejo (1962-1963/2005). O que se encontra em jogo nessa reabilitação da universalidade, então, é a necessidade contemporânea de reconstrução da crença não apesar, mas a partir da impossibilidade de relações sociais orgânicas em um tempo marcado pela crise dos universais da cultura.

A maneira usual através da qual se interpreta a ideia freudiana de inconsciente permanece presa à noção comum de crítica da ideologia como desmistificação da consciência alienada. Freud teria revelado, por trás dos valores morais da modernidade, o “segredo sujo” da sexualidade e dos desejos inconfessados. O que se perde, nessa interpretação, portanto, é a verdadeira força subversiva das teses de Freud. Se a função de uma análise era (erroneamente) compreendida como sendo a de levar o sujeito a reconhecer a determinação sexual recalcada que distorce os universais da moral, hoje se trata de salientar o aspecto normativo e moral contido na própria elevação do gozo individual ao modelo hegemônico de socialização. Isto é, o sujeito em análise não deve aprender a se confrontar com a realidade sexual de seus sintomas, com a base material recalcada da qual depende seus ideais morais elevados, mas sim encontrar um espaço onde reconhecer sua incapacidade de assumir a sexualidade como sendo meramente a determinação egoísta da vontade guiada pela maximização do prazer.

A novidade trazida pela descrição freudiana da lógica sexual e marxiana do fetichismo das mercadorias não é haver mostrado o caráter naturalista, ou particularistas, de aspirações sociais caracterizadas pela universalidade de seus enunciados. De fato, suas análises teriam, assim, arrombado uma porta aberta. Talvez não seja por acaso que a recepção popular da psicanálise tenha sido majoritariamente baseada na ideia de Freud como aquele que é capaz de mostrar as motivações sexuais inerentes aos altos ideais da civilização. Mas a sexualidade para Freud não consiste na interação de causas biológicas, mas na organização de um sistema de crenças sociais que determinam aquilo que o sujeito experiência como sendo a intimidade de seu desejo. Assim como as mercadorias, para Marx, não são o produto do trabalho social concreto, mas da crença social que sustenta a própria produção do valor.

De fato, Marx e Freud não inauguram, aqui, apenas um programa crítico apto a pensar a ideologia em um tempo que insiste em se caracterizar como pós-ideológico, mas subvertem a própria dualidade entre saber e crença, problematizando qualquer projeto de transformação social que seja legitimado pela desmistificação da consciência alienada. Vimos como ambos terminam por descobrir algo a respeito do qual as vanguardas artísticas modernas também haviam se deparado: longe de insistir no mero desmascaramento de objetos submetidos ao pensamento religioso ou moral, a crítica busca revelar o caráter fantasmático ou ideológico que condiciona a própria realidade supostamente desencantada do capitalismo, a crença implicada em campos que são percebidos ideologicamente como sendo não ideológicos, como os da produção e da sexualidade.

Ideologia e gozo

Em relação à ideologia contemporânea, podemos perguntar por que o capitalismo consegue torna- se credível, mesmo tratando-se de um sistema que se organiza a partir da descrença. Segundo nosso argumento anterior, o capitalismo não se legitima porque ele constrói sistemas ideológicos totalizantes que, ao interpelar o sujeito em todos os níveis da sua experiência (da vida privada à sexualidade, passando pelo trabalho e pelos hábitos de consumo), não deixam espaço para o distanciamento crítico. O agenciamento da crença no capitalismo pode ser relacionado, antes, àquilo que podemos denominar de núcleo não ideológico da ideologia, isto é, o gozo que o sujeito retira ao subverter suas próprias identificações ideológicas (Zizek, 2012/2013, 2014b). O capitalismo continua credível porque mobiliza as fantasias de realização e restituição do gozo.

O capitalismo, neste sentido, constitui o primeiro sistema social a haver reconhecido (ao menos parcialmente) aquilo que, através da leitura da mais valia descoberta por Marx, Lacan chama de “mais gozar” (2006/2008). Trata-se da coincidência entre excesso e falta que caracteriza a desvirtuação humana da sexualidade instintual ou mesmo culturalmente determinada. Longe de ser proibido, o gozo torna-se peça fundamental na legitimação do sistema. Se as sociedades baseadas em ideais de renúncia moral prometem o gozo infinito para o futuro, por meio do ascetismo religioso ou do trabalho árduo, o capitalismo não funciona através da promessa do gozo futuro, mas sim da imposição de um gozo que deve ser atualizado e realizado fora da mediação simbólica do desejo (Dunker, 2015). Gozo que, apesar de inteiramente mediado pelas instituições sociais, é vivenciado pelos sujeitos como uma escolha particular.

A questão das relações entre ideologia e gozo também pode ser relacionada ao debate atual a respeito da crise da autoridade. De fato, o debate a respeito do fim das ideologias pode ser retraçado a enunciados modernos como os da “Morte de Deus” e do “fim da metafísica” até aquilo que a psicanálise chama, hoje, de “crise da Lei paterna”, a ausência de uma representação social da Lei capaz de estabilizar o gozo da pulsão. Entretanto podemos propor uma pergunta foucaultiana acerca dos debates a respeito da crise inerente a um tempo histórico supostamente caracterizado pelo ocaso da autoridade social. Da mesma maneira como Foucault, no primeiro volume da História da sexualidade (1976/1999), perguntou-se por que precisamos acreditar na ideia de que a sexualidade teria sido reprimida por séculos de cristianismo e capitalismo, para ser libertada apenas no século XX, trata-se de perguntar por que nós vivemos em uma época que precisa constantemente compreender a si mesma como estando em crise de legitimação?

Os debates sobre a crise costumam gerar duas respostas opostas, não apenas no campo da psicanálise, mas no próprio campo das ciências humanas, quando sociólogos, filósofos, antropólogos etc. buscam conceituar o poder atual. Podemos dividir tais respostas entre nostálgicas -aqueles que, como Lasch (1983), criticam a prevalência do individualismo no mundo contemporâneo- e afirmativas, em alguns defensores do pós-modernismo como Lyotard (2011), que enxergam na sociedade híbrida e descentrada atual o ocaso do poder repressor da modernidade. No campo da psicanálise tal oposição traduz-se na oscilação entre duas perceptivas: a nostalgia da Lei paterna e da autoridade simbólica, por um lado, e a celebração, de caráter pós-modernista, das identidades fluidas, flexíveis, por outro (Dunker, 2011).

Ora, não nos parece apropriado associar cada uma dessas posições com uma determinada escola de psicanálise, mas sim indicar que esse conflito entre duas perceptivas sobre o poder já marca, de maneira constitutiva, nossa sociedade. Isto é, trata-se de uma contradição ou, em termos lacanianos, de algo impossível de ser simbolizado, no sentido de que se trata de um problema que divide a própria sociedade, e não apenas os teóricos que buscam pensá-la. Uma análise da ideologia atual que consiga enxergar para além da oposição entre estes dois campos, entre estas duas repostas, não deve procurar uma resposta unívoca capaz de determinar o que é o poder, mas sim compreender como o poder atual já é estruturado em torno desta contradição. Isto é, ele já é articulado em torno da impossível reunião entre as duas perspectivas.

O poder hoje consiste justamente nessa hibridização infinita da subjetividade, que é instada a escolher entre identidades prêt-à-porter [prontas para vestir] que poderão ser continuamente recicladas, mas excluindo, dessa forma, qualquer espaço para a transformação real. Isto é, tudo se passa como se a nova forma de poder operasse justamente através da fragmentação e da hibridização social, e não contra elas. Neste sentido, pensamos que a questão principal, hoje, é a de repensar o papel do radicalismo, em uma época que se caracteriza justamente por uma mistura de hipertransformação acelerada e ausência de transformação real.

O que tanto os defensores da sociedade aberta quanto os nostálgicos da proibição simbólica talvez não percebam é que a autoridade, hoje, longe de haver decaído, funciona justamente através da crise. Uma crise que, longe de marcar o ocaso da autoridade -seja este afirmado, seja repudiado- constitui a marca de sua perenidade, instalando um perpétuo estado de exceção através do qual a autoridade governa não apesar de, mas justamente em razão da fragmentação, do caos social e da hibridização das subjetividades. Isto é, há uma complementaridade entre o gozo “não ideológico” que subverte toda e qualquer autoridade e a própria ideologia. Como se a crise da autoridade atual constituísse seu funcionamento normal, e o poder, longe de disciplinar indivíduos em instituições normativas, tivesse como tarefa principal organizar a anomia através da qual ele se legitima. O poder não busca mais, portanto, excluir a anomia e a fragmentação social, mas sim administrá-la, utilizando àquilo que seria temido por outras formações históricas como uma fonte contínua e paradoxal de legitimação.

Neste sentido, talvez não possamos mais dar a mesma resposta que Foucault forneceu ao problema da sexualidade. Tudo se passa como se tal resposta já houvesse sido, hoje, plenamente absorvida pelo poder. Para Foucault (1976/1999), a associação entre sexualidade e verdade é apenas um constructo discursivo destinado a disciplinar o sujeito, a inscrevê-lo dentro de uma norma de verdade a-histórica. Ora, mas o poder atual não busca mais disciplinar o sexo por meio de normas, mas incitá-lo; ele não produz subjetividades conforme identidades rígidas que normalizam o campo social, mas sim sujeitos capazes de parodiarem quaisquer sistemas de crença; ele não opera mais através dos grandes sistemas universais ou totalizantes que reprimem a diferença, mas sim através da gestão da diferença em um espaço de anomia em que Lei e transgressão condensam-se dentro de um mesmo enunciado. Enfim, a imagem clássica do poder como agente universal e totalitário não é mais apta a pensar um poder que se exerce justamente pela exclusão contínua da universalidade de seus enunciados.

Existe algo suspeito em uma sociedade que precisa, a todo tempo, pensar a si mesma como estando em crise de identidades, vínculos ou lideranças. Seria o caso, então, de dizer que a autoridade contemporânea já não se constitui através do espaço disciplinar descrito por Foucault (1975/2001), no qual o sujeito é identificado perante uma norma, mas sim através da organização da crise das identidades, inclusive e primeiramente de si mesma, enquanto poder social. Ao contrário das imagens clássicas do poder, a autoridade atual não precisa da disciplina, da Lei e da Ordem, mas sim da gestão perpétua de sua própria crise.

Trata-se de compreender a nova forma pela qual é gerida a relação entre poder e gozo. Se a concepção tradicional da autoridade consiste em obrigar o sujeito a renunciar, hoje ela busca organizar o espaço pós-ideológico do gozo. O enunciado do poder é o de que não devemos levar a sério nossos papéis sociais, já que eles constituem apenas meios em relação à finalidade do gozo particular. A tarefa principal da ideologia, então, é a de organizar o espaço desse gozo não ideológico ou pós- ideológico. É assim que o capitalismo “pega”, portanto, não através da renúncia, da identificação com a Causa e da demanda manifesta pela crença em sua eficácia enquanto sistema social, mas do gozo não ideológico de sujeitos que não precisam acreditar no sistema, para que ele funcione.

Neste sentido, assim como Marx dizia que a “anatomia do homem é a chave para anatomia do macaco” (Marx 1941/2011, p. 120), o capitalismo permite iluminar o “segredo obscuro” de outros sistemas ideológicos. Ele mostra como mesmo as ideologias baseadas em ideais universais que implicam a renúncia do sujeito também se baseiam no agenciamento do gozo. Entretanto o oposto também é verdadeiro: se é apenas com o capitalismo que podemos compreender o núcleo transgressivo de sistemas sociais centrados em sistemas universais de valores, é apenas através da análise dos sistemas passados e do papel que a crença social neles desempenha que podemos compreender como a dimensão “autista” do gozo atual é inteiramente imanente ao espaço ideológico da crença social.

Mesmo nos sistemas sociais construídos a partir de ideais universais, o sujeito apenas se converte quando troca os prazeres terrenos sacrificados por um gozo prometido, ou mesmo pelo gozo latente que é autorizado pela submissão aos ideais. A ideia comum de que o poder antigo era baseado no sacrifício do gozo, enquanto o atual o teria liberado deve ser problematizada, portanto. Não apenas nenhuma ideologia poderia se legitimar se não reconhecesse a necessidade de mobilizar o desejo dos sujeitos, prometendo uma contrapartida utilitária ao prazer sacrificado, como também a liberação atual torna-se facilmente um dever compulsivo, capaz de gerar desprazer e culpa.

Se a ideologia fosse apenas baseada na renúncia, no sacrifício ou na disciplina moral ela se tornaria insustentável. Em algumas versões do cristianismo, por exemplo, trata-se de trocar o sacrifício moral pelo gozo infinito do paraíso, o retorno da inocência após a Queda; já em algumas intepretações do Islamismo, ao obedecer aos mandamentos, o fiel é recompensado pelas houris, virgens destinadas a satisfazer o desejo sexual dos homens no paraíso. Da mesma forma, o fascismo e o nazismo não consistiram apenas no ideal de sacrifício e renúncia em prol da causa, mas, principalmente, na organização do espaço não ideológico através do qual o sujeito é autorizado a gozar. A mensagem totalitária de renúncia e identificação com a causa deve ser complementada por seu “avesso obsceno” (Zizek, 2010/2011a): renuncie, identifique-se e, então, você poderá roubar, matar, estuprar etc.

Esse elemento não ideológico ou, poderíamos dizer, cínico da ideologia é fundamental. Nenhuma ideologia é pura, consistindo apenas no enunciado da renúncia e da submissão. O sujeito torna-se plenamente identificado com um enunciado ideológico não quando se identifica com seu texto manifesto, mas sim com a transgressão inerente ao subtexto “não ideológico” da ideologia. Transgressão que, hoje, é plenamente assumida pelo próprio poder, encontrando a luz do dia através da crise das sociedades baseadas na interdição. Trata-se de um poder que não se envergonha mais de seu exercício, de uma potência que não apenas não teme se atualizar, mas que deve constantemente ser atualizada. Nisso consiste, então, a singularidade da ideologia capitalista. Ela revela o que em outros sistemas sociais apenas poderia ser articulado nos entreditos: o gozo e a transgressão. Por isso, a vacuidade de se insistir no gozo e na transgressão como instrumentos de subversão do poder atual.

Considerações Finais

“O homem normal não apenas é muito mais imoral do que crê, mas também muito mais moral do que sabe” (Freud, 1923/2006b, p. 65). Esta frase de O eu e o isso, em que Freud busca resumir o programa da psicanálise, contém duas ideais que nos parecem fundamentais para compreendermos a ideologia, pois a psicanálise não descobre apenas a imoralidade inerente à moralidade, mas também a moralidade própria à imoralidade. Portanto a crítica da ideologia não consiste apenas na denúncia das motivações egoístas como fundamento último dos ideais morais, mas também no movimento contrário, na articulação do caráter idealista subjacente à própria imoralidade. Freud não remete os ideias da cultura à dimensão naturalista da sexualidade, mas mostra como mesmo a sexualidade é ideologicamente agenciada. A tarefa primordial da ideologia é organizar o espaço não ideológico no qual, ao invés de pensar, o sujeito goza.

A tese freudiana a respeito da moralidade da imoralidade nos parece crucial em uma época que se constitui pela crise dos ideias de renúncia, sacrifício e submissão à causa. Época que tem como uma de suas marcas principais a transcrição de quaisquer aspirações universalistas em termos de gozo privado. De forma que, se caracterizarmos a tarefa da análise como sendo a de levar o sujeito a assumir os móbeis egoístas de sua conduta, mantendo uma distância crítica e reflexiva em relação à dimensão ideológica, terminamos por reforçar a racionalidade cínica. Buscamos argumentar como a tarefa da crítica, assim como a do psicanalista, parece-nos ser exatamente a oposta. Assim como Freud e Marx mostraram como mesmo objetos comuns, como a sexualidade e as mercadorias, são atravessados pela crença, trata-se de mostrar como o rebaixamento de quaisquer aspirações universalistas à particularidade e ao egoísmo dos indivíduos é, fundamentalmente, ideológica.

De fato, se o poder tinha como tarefa primordial organizar o espaço da Lei e da Ordem, e prometer a satisfação absoluta para uma “Outra cena”, seja esta representada pela transcendência religiosa, seja pelas fantasias do inconsciente neurótico analisado por Freud, hoje tais imagens do poder são insuficientes. Pois o papel do poder é, antes, o de incitar o sujeito não apenas à relativização perpétua de seus laços e ideais sociais, mas também à transgressão. Poder que não quer, portanto, disciplinar o sujeito e reprimir seu gozo mundano, mas sim organizar o espaço através do qual o gozo, sendo consentido, termina por tornar-se demandado.

Ao contrário das imagens de um poder totalitário forte que castra as liberdades individuais, o poder hoje se caracteriza muito mais pela inflação generalizada dessa mesma dimensão individual, pela organização do espaço de uma liberdade reduzida àquela do gozo privado. Neste sentido, caberia pensar o papel da crítica como sendo o inverso da desmistificação. Se o monopólio religioso do sagrado teve como tarefa erigir uma exceção transcendente à dimensão dos impulsos humanos, a verdadeira crítica da religião e da mistificação, neste sentido, deve mostrar como a realidade “mundana” é submetida à lógica da crença.

Isso é o que nos parece constituir a modernidade inerente ao pensamento de Marx e Freud. Mostrar como fenômenos banais como atos falhos, chistes, a sexualidade, a produção e as mercadorias são agenciados pelo fantasma social. E que a saída da ideologia não implica, portanto, o reconhecimento da realidade positiva por trás das aparências sociais, mas o reconhecimento do caráter conflitivo da realidade, daquilo que distorce nossa apreensão da realidade e que não constitui, entretanto, a consequência do desconhecimento ou da ilusão subjetiva, mas sim um elemento estruturante da própria experiência.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 Não procuraremos, aqui, desenvolver em maiores pormenores o conceito de objeto pequeno a, em Lacan, mas apenas apontar o uso que dele fazem autores como Laclau e Zizek, a respeito da dialética entre universalidade e singularidade, no que tange ao pensamento político. Entretanto devemos marcar que há uma distinção importante, na obra e Lacan, entre o conceito de Das Ding (a Coisa), tal como este aparece no Seminário VII, e aquele de objeto pequeno a, tal como é introduzido a partir do Seminário X (1962-1963/2005). Ora, tal distinção não deixa de relacionar- se ao nosso tema: se, no Seminário VII (1997/1999), Lacan pensa Das Ding como objeto da transgressão, que nasce do desejo para além da Lei simbólica, implicando o encontro mortífero do sujeito com o gozo, a partir do Seminário X, as relação entre significante e gozo tornam-se mais próximas. O objeto pequeno a implica, neste sentido, um gozo fragmentando, divido entre excesso e falta. A Lei não é mais apenas aquilo que limita o gozo, sendo ambos pensados, agora, através de uma correlação que ocorre, justamente, por meio de sua disjunção. Lacan exprime esse ponto, também, no Seminário XVII, quando aponta como o gozo, longe de ser transgressor, é ex-timo— neologismo que procura exprimir a ideia de algo que é, ao mesmo tempo, interior e exterior— em relação à cadeia simbólica: “Assim também é por isso que articulo como mais de gozar o que aqui aparece, mas não como um fora ou uma transgressão—... O que a análise mostra, se é que mostra alguma coisa -... é precisamente isto, não se transgride nada. Entrar de fininho não é transgredir” (Lacan 1992/1998, p.17). Esta recusa do par Lei/transgressão nos parece fundamental, então, para a crítica da ideologia contemporânea, já que, como temos argumentado, esta se baseia justamente na própria transgressão como já sendo o enunciado da Lei.
Notas
2 We do not seek herein to develop in greater detail the concept of small object a in Lacan, but only to point the use that writers like Laclau and Zizek make of it, concerning the dialectics between universality and singularity with regard to political thinking. However, we must point out that there is an important distinction in Lacan’s work between the concept of Das Ding (the Thing), as it appears in Seminar VII, and that of small object a, as introduced in Seminar X (1962- 1963/2005). Now, such a distinction relates to our theme: in Seminar VII (1997/1999) Lacan thinks of Das Ding as an object of transgression that is born of desire beyond the Symbolic Law, implying the deadly encounter of the subject with jouissance; in Seminar X the relationship between signifier and jouissance becomes closer. The small object a implies, in this sense, a fragmented jouissance split between excess and lack. The Law is no longer what limits jouissance, both considered now through a correlation that occurs precisely through their disjunction. Lacan expresses this point as well in Seminar XVII when pointing out how jouissance, far from being transgressor, is ex-time - neologism that seeks to express the idea of something that is at the same time internal and external - relative to the symbolic chain. “Moreover, it is for this reason that I articulate as surplus enjoying what appears here, and not by force or by a transgression... What analysis shows if it shows anything - ... - is very precisely that nothing is transgressed. To make ones way is not the same as transgressing” (Lacan 1992/1998, p.17). This refusal of the Law/transgression pair seems fundamental, then, to the contemporary critique of ideology, since, as we have argued, the latter is precisely based on transgression itself as being already being the statement of the law.
Autor notes
Pedro Sobrino Laureano: Professor do departamento de psicologia da Universidade Federal de São João Del Rei e membro do Nupep - Núcleo de pesquisa e extensão em psicanálise.
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