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A PARTICIPAÇÃO INFANTIL EM FOCO: UMA ENTREVISTA COM NATÁLIA FERNANDES
Regiane Sbroion de Carvalho; Ana Paula Soares da Silva
Regiane Sbroion de Carvalho; Ana Paula Soares da Silva
A PARTICIPAÇÃO INFANTIL EM FOCO: UMA ENTREVISTA COM NATÁLIA FERNANDES
Psicologia em Estudo, vol. 21, núm. 1, pp. 187-194, 2016
Universidade Estadual de Maringá
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A PARTICIPAÇÃO INFANTIL EM FOCO: UMA ENTREVISTA COM NATÁLIA FERNANDES

Regiane Sbroion de Carvalho
Universidade de São Paulo, Brasil
Ana Paula Soares da Silva
Universidade de São Paulo, Brasil
Psicologia em Estudo, vol. 21, núm. 1, pp. 187-194, 2016
Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 06 Julho 2015

Aprovação: 23 Dezembro 2015

As teorizações, pesquisas e práticas que têm as crianças como foco apresentaram mudanças significativas a partir das décadas de 1980 e 1990 com a emergência dos novos estudos sobre a infância. Compreendendo as crianças como sujeitos ativos, construtores e que modificam seus contextos e a sociedade, esses novos estudos redimensionam os papéis sociais de crianças e adultos em pesquisas e práticas destinadas à criança. Posicionam as crianças como as principais conhecedoras e informantes sobre suas vidas, em um processo de coconstrução entre os parceiros etários (crianças, adultos). Um tema de investigação que tem assumido papel fundamental na construção de um campo de conhecimento e de práticas que efetivem essa visão de infância e criança é a participação infantil. Este tema tem desdobramentos nas formas como compreendemos a criança e a infância e dialoga com os saberes que a psicologia já construiu sobre esse segmento geracional.

Na construção de conhecimento sobre a participação infantil, a professora Natalia Fernandes tem assumido papel de destaque a partir da sociologia da infância, investigando o tema desde seu doutorado e realizando avanços a partir de novas pesquisas, orientações de mestrado e doutorado e práticas desenvolvidas na sociedade portuguesa.

Natália Fernandes é professora auxiliar no Instituto de Educação da Universidade do Minho em Braga, Portugal, e faz parte do Centro de Investigação em Estudos da Criança da mesma universidade. Orienta pesquisas e intervenções que têm como tema os direitos das crianças, novos paradigmas de pesquisa com crianças e questões éticas em pesquisas com crianças. Natália tem desenvolvido parcerias e pesquisas em grupos internacionais envolvidos nas questões de crianças que enfrentam restrições em suas vidas como a pobreza, institucionalização, acolhimento, dentre outras. Dentre esses grupos, destacamos a “European Network of Masters on Children’s Rights”, da qual é membro-fundador, e o Projeto CREAN – Children’s Rights Academic Network. No âmbito nacional, Natalia realiza e colabora com projetos governamentais locais em Braga, Portugal, com o objetivo de melhorar as condições das crianças. Natália Fernandes tem hoje importante papel nos estudos da sociologia da infância, com diversas publicações, e tem participado de conferências pelo mundo, inclusive no Brasil, com a temática dos direitos das crianças, principalmente sobre questões de participação infantil e visibilidade da criança como cidadã.

A presente entrevista foi realizada em 28 de março de 2013, na sala de Natália Fernandes na Universidade do Minho, em Braga, Portugal, em razão da participação de uma das autoras em um encontro científico, organizado pelo Instituto de Educação da Universidade do Minho, editada pelas autoras e revista pela professora Natália Fernandes em fevereiro e março de 2015 com vista à atualização de informações. A entrevista tem como eixo principal a participação da criança no mundo social, sendo discutidos, ainda, os papéis dos agentes envolvidos nessa participação, os possíveis locais de sua ocorrência e os aspectos necessários para que a participação infantil se efetive. Além disso, Natália avalia as diferentes ações e contextos, com destaque para a escola, para o papel do professor e para a necessidade de formação dos adultos a fim de que a participação da criança de fato aconteça.

Quando o tema da participação infantil foi inserido na agenda acadêmica e científica em Portugal e internacionalmente?

Quando se fala de participação, há um momento formal que é inquestionável e que, em todos os textos que se possa consultar [sic], refere-se à Convenção dos Direitos da Criança. Sem a existência da Convenção e sem a existência daquele conjunto de artigos, do 12 ao 17, que legitima formalmente a imagem da criança como sujeito com direitos de participação, era difícil apoiar, em termos formais, este movimento. A Convenção dos Direitos da Criança aparece em 1989 e é também mais ou menos nessa altura que surge a área a partir da qual eu falo, que é a Sociologia da Infância. A Sociologia da Infância surge em meados finais da década de 1980 e faz um percurso – não em paralelo, porque elas se tocam, acho eu – com a Convenção. Quando a Sociologia da Infância defende a imagem da criança como um sujeito, um ator social, não está a defender mais do que aquilo que é salvaguardado na Convenção quando diz que a criança tem o direito a dar opinião, tem direito de envolver-se nos assuntos que lhe dizem respeito. Portanto, houve uma sinergia interessante do surgimento de uma área científica que tem como foco exclusivo a criança e a valorização da sua ação social e o surgimento da Convenção que legitima formalmente a participação das crianças. Aqui estão os fatores que ajudam a sustentar historicamente o conceito de participação. Há autores contemporâneos na Sociologia da Infância que deram um contributo decisivo para sustentar a ideia de que a criança é um sujeito com ação social válida e que temos é que fazer com que sejam criados espaços, tempos, para que ela possa efetivamente exercer essa sua ação social com significado, nomeadamente Gerison Lansdown, Alan Prout, Michael Wyness, Nigel Thomas, Kay Tisdall, entre outros. O conceito de participação que nós defendemos no nosso grupo é algo muito simples, mas, ao mesmo tempo, algo muito difícil de conseguir. Classicamente, nós tendemos a considerar que uma criança participa a partir do momento em que, por exemplo, no espaço da sala de aula é permitido que ela levante o dedo e diga a sua opinião. Isso já é bom; houve um tempo em que nem sequer isso nós podíamos fazer. No entanto, quando os professores são confrontados com essa prática, no sentido de desconstruir, de ir além disso, a maior parte acha que não, que isto já é suficiente. Funcionamos muito num registro de uma democracia representativa. É um posicionamento muito doador de ação, que não tem nada a ver com aquilo que nós achamos que deve ser a participação. A participação deve ser uma ação dotada de sentido para o sujeito, e que tenha implicações; implicações em termo de transformação social. Não precisa mudar o mundo, nem o país, nem o bairro, podem ser mudanças pontuais no próprio sujeito, no próprio grupo, mas esse sujeito tem que sentir que aquela ação intencional que ele desencadeia é acolhida num determinado coletivo, e depois de ter sido acolhida, que tem impacto ou não. Por exemplo, nós, adultos, sabemos que nem todas as opiniões que temos acerca de determinados assuntos são opiniões que vão ter um final feliz, aquele que nós queremos. E sabemos também que as nossas opiniões se jogam muito no confronto com opiniões de outros. É assim que nós funcionamos ou deveríamos funcionar. E é nesses processos de confronto e negociação que se vai construindo com a criança esta dimensão do sujeito participativo, ou se quisermos, de modo ampliado, de cidadão. Nós somente somos cidadãos se pudermos exercer a nossa ação social e sentirmos que temos espaço num coletivo e que nossa ação também é acolhida. Pode não ser aquela que efetivamente comandará uma determinada dinâmica, mas que foi discutida, foi considerada e depois colocada num conjunto de vontades, onde estão também as dos outros; e é desse confronto que nasce uma decisão. Quando nós sentimos isso, está feito já um percurso significativo no sentido de considerarmos, “muito bem, eu tenho o direito a dar a minha opinião”, então o artigo 12 da Convenção já está salvaguardado, “tenho o direito de dar a minha opinião, mas, além disso, a minha opinião é ouvida”. A maior parte das vezes, o que acontece na escola portuguesa, por exemplo, é isso. Em contextos de sala de aula a professora diz: “Muito bem, temos aqui duas cartas, uma vermelha e uma amarela. Quantos escolhem a carta vermelha?”. E de 15, 9 escolhem a carta vermelha. E os outros 6 escolhem a carta amarela. Como a professora achava que a carta amarela iria trazer mais contributos para trabalhar o conteúdo ali, diz ela: “Ah, pois muito bem, mas hoje vamos trabalhar a carta amarela, depois temos tempo pra trabalhar a carta vermelha”. Isto acontece correntemente. No entanto, essa professora ficou extremamente satisfeita porque arranjou ali algum espaço que eles deram opinião. E se isso for feito reiteradamente nós estamos a transmitir às crianças determinadas mensagens. Estamos a dizer-lhes o quê? “Olha, tu podes dar a tua opinião, mas depois quem decide sou eu”. Isso destrói completamente o significado do conceito de participação e transmite às crianças a ideia de que aquilo que elas dizem não tem valor. E elas vão crescendo com esse registro.

Quais são os papéis dos adultos e da criança quando se fala da participação infantil? A quem cabe a intencionalidade nessa ação: ao adulto ou à criança?

Sem os adultos estarem conscientes e muito bem documentados relativamente àquilo que é ou que pode ser o conceito de participação, ela será difícil de acontecer. As crianças são e estão cada vez mais dependentes; vivem e têm uma interface cada vez mais institucionalizada, mais dependente da ação do adulto, que organiza tudo; todos os tempos da vida das crianças estão profundamente engavetados e manipulados pelos adultos. Se nós não fizermos formação dos adultos que trabalham com crianças, no sentido de eles pensarem, refletirem sobre o que significa participar e sobre o tipo de dinâmicas que se devem efetivar, fica difícil promover a participação das crianças. Podemos correr o risco de achar que tudo é participação, mas não é. Há ações espontâneas que, a princípio, podemos dizer: “Ela está participando”. De fato, ela pode estar a envolver-se numa determinada dinâmica. Mas o que eu acho é que nós devemos atribuir ao conceito de participação uma intencionalidade. Considerar que o sujeito tenha também consciência dessa intencionalidade porque somente assim é que ele, à medida em que vai crescendo, atribui significado político a sua participação. Se nunca me confrontarem com o facto de uma determinada ação que eu faço ser considerada participação, podemos perder experiências interessantes e importantes de tomada de consciência de que este é um modo de eu me situar e me colocar na sociedade e de me mobilizar. Quando nós consideramos o conceito de participação política, a dimensão individual fica muito mais diluída e a dimensão coletiva assume mais sentido. No que diz respeito ao conceito de participação política e à possibilidade de o compreender a partir da infância surgem significativas controvérsias advindas de áreas como a filosofia ou o direito, onde continuamos a ver legitimadas imagens de infância onde as crianças são meros objetos de intervenção, sem se considerar que sejam legítimos sujeitos ativos de direitos. Falar de cidadania infantil, nestes contextos, é falar de algo sem sentido, uma vez que se concebe que a intitulação de cidadão diz respeito somente à velha e bolorenta imagem do século passado, na qual, nem sequer as mulheres tinham lugar, somente os homens burgueses.

Qual é o papel criança em eventos políticos?

Vou dar um exemplo quanto a essas movimentações coletivas dos adultos que ilustra que é importante considerarmos processos de formação acerca da participação infantil para que efetivamente a participação aconteça. Há alguns anos, em 2003 ou 2004, houve em Portugal um caso, que ainda está em julgamento, denominado Casa Pia. Um caso de abuso sexual de crianças em um abrigo. Foi um escândalo até porque os abusadores eram todas figuras públicas. Então, organizaramse manifestações de repúdio, chamadas Marchas Brancas. Falava-se para a população vestir-se de branco, levar as suas crianças em procissão pela cidade. Em Braga isso foi feito. Havia adultos, crianças e, no final da manifestação, subiram ao palco duas crianças. Eu estava contente pois elas iam falar. Quando as crianças começaram, eu descobri que elas estavam a ler um texto adulto. Era impossível que elas tivessem escrito um texto daquela natureza. Pensei que se perdeu ali um momento importante em termos de participação política, porque, se aquelas crianças tivessem ido ao palco apresentar um manifesto decorrido de um trabalho delas com as outras crianças, isso sim seria participação. Que os adultos ajudassem, mas que fosse delas. Isso não é participação, não é participação política. Teria sido, se efetivamente isso decorresse de um processo de construção, de negociação, de implicação de adultos e, fundamentalmente, de crianças.

A participação infantil levaria a uma participação política?

É, desde que consigam desenvolver processos indicativos da ação social com intenção, com intenção e com impacto, isso é participação política.

O que você chama de intenção e impacto?

Que seja algo que vá para além da mera espontaneidade, não é uma ação espontânea. É uma ação dotada de significado, e é uma ação que também tem que ter algum efeito na prática. A criança tem que sentir, pelo menos, que é levada em consideração, é focada num coletivo e é posta ao serviço de um coletivo.

Essa intencionalidade é por parte do adulto ou pode ser também por parte da criança?

A criança tem que se apropriar dos sentidos e dos modos da ação, senão, não é participação.

O processo se inicia pela criança ou pela proposição do adulto?

Há um autor, Alejandro Cussianovich, teólogo da libertação, que tem muitos textos sobre protagonismo infantil e há uma frase dele que é esta: “Não é pelo fato de um determinado processo ter se iniciado pelo adulto que ele deixa de ser menos participativo para a criança”. O que interessa é o que vai acontecer depois, a forma que [sic] o adulto vai encaminhar o processo. Na maior parte das vezes, se o adulto não estiver consciente, a participação nem sequer se inicia. Portanto, é fundamental fazer a formação dos adultos que trabalham com crianças no sentido deles [sic] refletirem e se documentarem sobre o que é participação e o modo que deve acontecer, para que apesar de, por vezes, serem eles a iniciarem um determinado processo participativo, poderem depois organizar dinâmicas com as crianças de modo a que estas se vão apropriando e assumindo protagonismo no desenvolvimento da mesma.

E quais seriam as características que você avalia que o adulto deveria ter para promover a participação?

No âmbito da formação inicial dos professores, no espaço de sua formação, têm que existir momentos em que parem para pensar quem é este sujeito criança. Se eu defendo uma dimensão de sujeito-criança-cidadão, tenho que parar para pensar de que forma isso acontece. Se eu defendo um processo de ensino-aprendizagem, de envolvimento da criança, tenho que parar para pensar como é que isso acontece. Então, idealmente, num processo de formação, no currículo, deveria haver momentos em que esses candidatos a professores refletissem acerca de quem é a criança, o que é participação, o que é cidadania, e como é que nós podemos fazer isso. É fundamental ter espaços na formação das pessoas que trabalham com crianças para que elas fiquem mais atentas e mais conscientes do que pode e deve ser feito. De outra forma podemos educar para a conformidade, com práticas profundamente hierárquicas, verticais, voltadas aos conteúdos e não às competências para a ação.

Como articular a participação infantil com a idade das crianças? Existe alguma idade específica para se falar da participação infantil?

As crianças têm competências distintas. E as formas que [sic] as crianças participam obviamente também são distintas de idade para idade. Agora, o que é interessante, é olharmos para os grupos mais novinhos, para os bebês, por exemplo, e ver se efetivamente eles também participam e as formas como participam, por exemplo, na dinâmica da sala. Baseadas no senso comum, o que as pessoas tendem a considerar é que, quanto mais pequenina a criança, menos participa e menos validade tem a sua participação. É aquela ideia de menor idade. À medida que ela cresce, ganha legitimidade para dar opiniões e para participar. É interessante perceber que, por vezes, eles abrem espaço para participarem, não por ser um ato planificado, intencional, mas porque efetivamente algumas crianças são extremamente competentes no sentido de se colocarem, defenderem os seus pontos de vista e promover mudança.

A maioria do conhecimento da área é proveniente de pesquisas com crianças maiores?

É. Eu mesma fiz isso quando fiz o meu doutoramento, trabalhei com crianças entre os 8 e os 12 anos. E a maior parte das pessoas prefere trabalhar com crianças maiores não com crianças pequeninas.

Além da escola, como você pensa a participação da criança em outros contextos sociais?

No contexto da proteção, o conceito de participação assume uma importância especial. A participação tem que ser algo que esteja a serviço do sujeito, que lhe dê ferramentas, que lhe permita construir a sua identidade, enquanto cidadão e que seja útil. E no que diz respeito, por exemplo, à proteção, à pobreza e à exclusão social, há algum tempo, desde meados da década de 1990, defendese que a melhor arma para lutar contra a exclusão é promover a participação dos sujeitos. Na União Europeia, por exemplo, programas de luta contra a pobreza enfocam essa dimensão, da participação e da implicação dos sujeitos. Chegou-se à conclusão de que organizar medidas políticas assistencialistas que não implica o indivíduo na gestão do subsidio, por exemplo, não tem efeito. Não empodera o indivíduo no sentido de ele olhar para sua vida e considerar que ela é sua, e ele tem que fazer alguma coisa por ela. Temos que ser ativos e ter essa consciência de que eu tenho que fazer alguma coisa pela minha vida, eu tenho que participar, é uma dimensão das políticas sociais, por exemplo, de combate à pobreza e à exclusão. Há uma linha de intervenção muito específica que é a linha da pobreza infantil. Nestes programas, defende-se, por exemplo, a ideia de que, quanto mais precocemente nós construímos com a criança contextos para a participação para ela enfrentar as suas situações de privação, tão mais eficazes serão as políticas sociais de combate à pobreza em geral; ou seja, quanto mais precocemente o sujeito que vive em situação de privação se assumir como sujeito com ação, cuja voz tem validade, cuja ação tem sentido, ele se assumirá enquanto protagonista de sua própria vida. E irá construir a ideia de que não é com base no subsídio que recebe do Estado que sua vida tem que ocorrer. Mas que ele tem um papel a desempenhar. É uma articulação muito estreita entre proteção e participação.

Temos visto pessoas colocando a questão da proteção e da participação como opostos. O que você pensa sobre isso?

Essa separação é artificial, a partir do próprio conceito de direitos humanos. Um dos princípios dos direitos humanos é que os direitos são indivisíveis. Devem ser considerados de uma forma interdependente. É completamente errado defender um conjunto de direitos de proteção e um conjunto de direitos de participação como elementos estanques. Eles só se efetivam se forem considerados de uma forma interdependente.

E como fazer isso, articular os dois?

Há uma máxima, eu até acho que é da Unicef, eu não tenho certeza neste momento, que diz: “a proteção será tão mais conseguida, quanto mais participada for”. A ideia da proteção participada. Ou da participação protegida.

Isso implica poupar as crianças de algum tipo de participação ou contexto?

Não, eu acho que vai mais no caminho oposto; implica em não fazer de conta com as crianças de que não há problemas. Obviamente, não as expor aos perigos desnecessários [sic], mas construir com elas olhares criteriosos, críticos relativamente à realidade social. E é dessa forma que o sujeito poderá se proteger mais. Quando eu fiz o meu trabalho de campo no doutorado, no contexto do Caso Pia, eu trabalhei com dois grupos: um que não vivia em abrigo e outro que vivia em abrigo. Nas conversas que eu tinha com as crianças que não viviam nos abrigos, eu nem perguntava nada, o assunto espontaneamente aparecia nas nossas conversas. E, por exemplo, todas as crianças com quem eu falava diziam que já haviam discutido aquilo com os pais, que os pais já tinham lhes dado determinadas orientações no sentido de elas se protegerem. Portanto, aquilo era um processo, se quisermos nessa linha que estamos a falar, de proteção participada, ou seja, ganha-se consciência do problema e arranjam-se estratégias de proteção. Assume-se o protagonismo aí. O que que [sic] aconteceu com o outro grupo de crianças? Esse tema nunca surgiu espontaneamente nas nossas conversas. E quando eu comecei a perceber que ele não surgia nas conversas, comecei a tentar lançar algumas pistas para ver se eles espontaneamente falavam e eles não falavam. Então comecei a perceber que havia ali uma estratégia de silenciamento de uma realidade, não como uma intenção má. A intenção da instituição era protegê-los, porque achavam que, por viverem em uma instituição semelhante, iriam sentir-se ameaçados. Agora a minha questão é: será que a omissão e o silenciamento são as melhores formas de nos protegermos? Claro que não; nós não conseguimos construir ferramentas para enfrentar as adversidades. E ali uma ação que era legítima, até certo ponto, para proteger esses meninos, ao mesmo tempo estava a deixá-los profundamente desprotegidos. Porque não os [sic] permitia discutir algo que podia acontecer dentro da instituição e, se acontecesse, saberem que tinham possibilidades de se protegerem, que haviam [sic] mecanismos e que isso não era uma coisa natural. Há problemas que podem ser ultrapassados pelos sujeitos se eles ganharem consciência de que aquilo é um problema. E que ele tem o direito de ser protegido e intervir no sentido de acabar com o processo de abuso. De forma que acho que as duas dimensões nunca podem ser consideradas como estanques.

E como você pensa a questão da participação, por exemplo, na família ou em contextos, digamos, mais privados?

Eu acho que a criança, pelo menos no contexto português, conquistou alguma centralidade na forma como se vê enquanto sujeito participante na família. Aliás, quando se fala com ela, a propósito dessa dimensão de participação, é na família que ela vê maiores possibilidades de participação; porque escolhe a roupa, ajuda a escolher o destino das férias, por todo um conjunto de decisões que são tomadas dentro do contexto familiar onde ela sente que tem espaço, que sua opinião é considerada na tomada de decisão do coletivo família.

Então é no âmbito mais público que precisa mais batalhar a participação da criança?

As próprias crianças não consideram que seja importante que elas participem dos espaços públicos. O fato de as crianças portuguesas terem mais espaço na família – hoje em dia a família é mais democrática – obviamente é ótimo, inquestionável, mas não as ajuda. Os próprios adultos da família também precisam construir um olhar sobre o coletivo e a sociedade, tirar um pouco a ideia de individualidade e considerar que vivem em um coletivo e que é também no coletivo que acontece a vida, a vida social. Então há muito a ideia, e recupera-se muito, nos discursos das crianças, de que tudo que aconteça fora do espaço, da arena familiar, é da competência daqueles que eu elejo para me representarem. Portanto, delego.

Você acha que as instituições escolares em Portugal atualmente têm pensado mais na participação da criança?

Não.

Mas existe alguma experiência, iniciativa?

A escola da Ponte. Infelizmente em Portugal eu acho que pouco ou nada acontece no que diz respeito a considerar que a participação das crianças é algo fundamental que poderia ser considerado na organização da forma como a educação acontece.

A quem cabe isso? Cabe aos professores ou cabe à instituição?

Alguns professores têm poder. Só que eu acho que os professores se acomodam muito ao instituído. E efetivamente, nos últimos tempos, nós temos tido uma exigência no sentido de apresentar resultados factíveis em termos de competências naquelas áreas fundamentais, que avaliam como fundamentais, que é o português e a matemática. Depois, há rankings na Europa, então Portugal sempre esteve cá embaixo e agora tem que fazer de tudo para subir. Então, interessa é trabalhar essas áreas. Há professores que levam à letra isso, e então as aulas são uma tortura, condicionamento. Tarefa, tarefa, tarefa. Grande parte dos professores se escuda nesse argumento formal para legitimar a ausência de práticas participativas dentro da escola. Há aqueles que efetivamente acreditam que há outras possibilidades de a educação acontecer e também se pode trabalhar o português e a matemática em ambiente onde se promove a cidadania e a participação das crianças; conseguem fazer tudo ao mesmo tempo. Como é o caso da escola da Ponte, onde não deixam de trabalhar os conteúdos, mas, ao mesmo tempo, as crianças vão conquistando competências políticas fantásticas. Mas, infelizmente, em Portugal é quase um deserto em termos de contextos onde possa efetivamente acontecer a participação das crianças, valorizada como algo didático, central, para que o processo de educação possa ter sentido, possa acontecer.

E o que seria um ambiente escolar que fomenta a participação?

Eu acho que o que acontece na escola da Ponte dá conta exatamente de forma em que o contexto educativo pode se organizar para promover a participação das crianças. Até mais, não é para promover; na escola da Ponte a participação das crianças é central para sustentar um processo educativo.

E os outros elementos vão se articulando para isso?

Completamente. São as crianças que se envolvem na gestão dos tempos, dos conflitos. Obviamente que os professores estão lá e elas sabem que elas têm que fazer determinadas conquistas em termos de conteúdos, em determinados momentos. Mas a forma como isso é negociado, e a forma como as próprias crianças que se responsabilizam, para dar conta dessas tarefas, dessas conquistas, é um processo muito construído com elas, isso é que é importante.

Como os professores, gestores e diretores poderiam se orientar em uma escola que busca considerar a participação?

Eu acho que essas pessoas precisam pensar muito seriamente e olhar com muito respeito para aquele sujeito criança na escola. E começa desde no olhar para ela não como um aluno, mas como uma criança ou um jovem; como alguém que não veste somente o papel, a roupa de aluno, porque o maior erro que nós podemos cometer é esse, é tentar construir malhas homogêneas destes sujeitos que temos dentro da escola. É muito fácil cair na homogeneização dos olhares e das práticas. Compreender de uma forma homogênea algo que não tem nada de homogêneo só pode ter maus resultados no final. A primeira coisa que eles precisam fazer é desafiar a sua própria representação acerca do que é aquele sujeito que ali está. E, depois, a partir do momento em que se constrói um olhar mais respeitoso sobre esta criança que está na escola, articular todas essas dimensões de proteção, de educação, de participação que a intervenção educativa deve acontecer. É na mobilização dessas dimensões e na sua articulação que a práticas desenvolvidas pelos professores deve acontecer [sic]. Mas isso só poderá acontecer se eles receberem formação; sem formação fica tudo muito frágil.

Material suplementar
Agradecimentos

Agência de fomento: Fundação do Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)

Referências
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