Crise política e os impactos na Universidade Pública
Numa época em que reina
a confusão...
Em que o arbitrário tem
força de lei,
Em que a humanidade se
desumaniza...
Não digam nunca: Isso é
natural!
A fim de que nada passe
por imutável.
Fonte: Bertold Brecht
As palavras de Brecht nos parecem propícias para abrir este editorial que não pode se furtar à problematização do delicado momento político que se vivencia no país. Para além de discussões partidárias esgarçadas pelo tom polarizado nos últimos meses, entendemos ser necessário dar destaque à condição na qual a democracia brasileira está alicerçada. Vale destacar que, ainda que no modo de produção capitalista os interesses do capital venham a sobressair (Marx, 1985), a Constituição Federal, promulgada no ano de 1988, por meio da efetiva participação popular, é uma conquista inegável de direitos da população assumidos como política de Estado. Aquela Constituição, também chamada de Constituição Cidadã, traçou novas possibilidades de elaboração e implementação de políticas fundamentadas nos preceitos de dignidade da pessoa humana e na pluralidade política.
A conquista da tão recente democracia fora marcada pela eclosão de intensos movimentos de luta e resistência durante aquele obscuro período de governos ditatoriais que dominaram a cena brasileira por cerca de 25 anos. Os anos de chumbo, marcados pela censura e outras restrições à liberdade de comunicação e expressão, além de intimidações de diversas ordens, também silenciaram vozes e vidas de pessoas que representavam oposição aos ideais militares. A prática extremamente comum de perseguição daqueles considerados subversivos aos governos ditatoriais culminou na prisão política e morte de brasileiros que, torturados vivenciavam as atrocidades cometidas por militares de um regime centralizado e opressor. A repressão ditatorial apenas recentemente obteve reconhecimento oficial por meio da instauração, no ano de 2012, da Comissão Nacional da Verdade (2014) que, com finalidades de apurar as inúmeras violações massivas e sistemáticas de direitos humanos, trouxe a público os diversos relatos dos sobreviventes daquele triste período da história brasileira.
Em memória de mortos e desaparecidos naquele período, nos resta a alusão da resistência daqueles que ousaram contestar, ousaram discordar, ousaram pensar em outras formas de produzir igualdades e “liberdades democráticas” e, sobretudo, ousaram lutar pela vida. Ora, se a história é feita por mulheres e homens no seu cotidiano, há que se entender que foi preciso que muitos perdessem suas vidas para que tivéssemos liberdades como as que temos hoje, de crer, de falar, de lutar, de discutir, de pesquisar e debater, aspectos que consideramos de relevância e pertinência nos mais diferentes âmbitos. A liberdade, portanto, não é uma conquista qualquer, é algo inestimável na vida de cada cidadão, tenha-se clareza disto ou não.
Quando assistimos, atônitos, parlamentares, representantes das vontades do povo, aplaudindo um colega fazer apologia àquele triste e obscuro período da história brasileira, homenageando um daqueles que ficou conhecido como implacável torturador do militarismo, sentimos a fragilidade do Estado democrático ainda tão jovem e conquistado à custa de tantas vidas no Brasil.
As recentes notícias de projetos políticos de um governo antidemocrático, que promete reduzir o papel do Estado na economia e na garantia de direitos sociais e trabalhistas recentemente conquistados, também são um iminente alerta sobre a situação crítica da política brasileira. O desmonte de importantes órgãos ministeriais que previam a garantia de direitos humanos e o investimento em cultura, igualdade racial e de gênero, as declarações sobre a diminuição de investimentos na educação, saúde e programas sociais, a proposta de limitação de direitos trabalhistas, a concretização das aproximações entre políticos e entidades religiosas em um Estado supostamente laico, o risco de desmonte de Políticas Públicas implementadas após a promulgação da Constituição Cidadã, são alguns dos pontos do cenário político que destacamos incrédulos diante da promessa de tanto retrocesso. Marilena Chauí (2016), em recente debate, também comentado em um jornal de grande circulação nacional, lança o alerta sobre os riscos da constituição de um espetáculo em que nenhuma possibilidade de democracia está garantida e que se compõe como propício para fundamentar o “universo fascista”. Um fascismo que, como adverte Foucault (1991), impõe-se no tecido da vida cotidiana e determina a repetição, a obediência, o assujeitamento, a norma, cerceia a criatividade e enfraquece a existência.
A situação política e os temas relacionados à democracia - com suas fragilidades no âmbito do atual modo de produção - devem ser problematizados e debatidos, principalmente, em âmbitos acadêmicos. As universidades nos parecem dispositivos importantes para tais discussões por comportarem diversos saberes em prol da construção da ciência e da formação de profissionais éticos e críticos. No entanto, o espaço universitário também se encontra intimidado quando a democracia está ameaçada. Quando interesses particulares se sobrepõem aos interesses do bem comum, abre-se espaço para a precarização dos serviços, para o desinvestimento na educação pública de qualidade e para a implantação de políticas que retiram direitos conquistados.
Em tempos de democracia fragilizada e trabalho precarizado, questionamos qual tem sido o compromisso e as possibilidades de atuação das universidades públicas paranaenses quem vêm sofrendo ano a ano com a precarização de seus serviços em virtude do descaso das esferas governamentais. Cabe lembrar que no ano de 2015 as universidades paranaenses entraram em greve por um período de quase três meses tendo como pauta inicial a tentativa de impedir que o governo estadual se apropriasse do caixa previdenciário. O dia 29 de abril de 2015 ficou marcado pelo massacre histórico em que professores e demais servidores públicos paranaenses foram sistematicamente atacados pela polícia militar armada com bombas de gás, balas de borracha, cães e outros artifícios quando tentavam impedir que fosse votada a proposta que visava a confiscar o saldo em caixa da previdência. A despeito do massacre que ocorria do lado de fora da assembleia legislativa do Paraná, a votação seguiu adiante, foi aprovada e até hoje não houve punição para aqueles que deixaram mais de 200 feridos naquele dia. Não obstante aquele lamentável episódio, iniciamos o ano de 2016 com a notícia de que todas as universidades deveriam repassar ao governo estadual 80% dos valores arrecadados com vestibulares, cursos de extensão, pós-graduações e afins e caso esta medida não fosse cumprida, não receberíamos o repasse anual para custeio e manutenção das universidades. Após alguns debates, por hora, sabe-se que o governo voltou atrás em sua resolução. Todavia, sabe-se também que os repasses de custeio ainda não foram feitos na íntegra a todas as instituições.
Reafirmamos, assim, a necessidade premente do enfrentamento aos retrocessos e do combate, conforme Foucault (1991, p.84), contra “todas as formas de fascismo desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas cotidianas.” Dessa forma, fomentar o debate de forma ampla e mobilizar resistências, na luta por conquistas históricas que não podem ser esquecidas e perdidas, também deve ser o papel da Universidade.
A Revista Psicologia em Estudo, que vale mencionar, tem conseguido manter a qualidade de suas publicações apesar da escassez de recursos, é um instrumento importante para a veiculação de pesquisas não apenas para o Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, mas também para as áreas afins, uma vez que tem como proposta a publicação de artigos de outras áreas de pesquisa, democratizando também o saber.