VIVÊNCIA DA SEXUALIDADE A PARTIR DO RELATO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

SEXUALITY EXPERIENCE AS FROM REPORT OF PEOPLE WITH INTELLECTUAL DISABILITY

LA EXPERIENCIA DE LA SEXUALIDAD BASADO EN RELATOS DE PERSONAS CON DISCAPACIDAD INTELECTUAL

Ana Cláudia Bortolozzi Maia
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho , Brasil

VIVÊNCIA DA SEXUALIDADE A PARTIR DO RELATO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

Psicologia em Estudo, vol. 21, núm. 1, pp. 77-88, 2016

Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 14 Outubro 2015

Aprovação: 09 Abril 2016

Financiamento

Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Resumo: Esta pesquisa qualitativa-descritiva investigou a vivência da sexualidade e saúde sexual a partir de relatos de 12 pessoas, homens e mulheres com deficiência intelectual que participaram de uma entrevista. Os participantes demonstraram dificuldades em verbalizar conceitos sobre sexualidade, mas a expressaram sem ser ela ausente ou atípica. Relataram a ocorrência de namoros, geralmente sem sexo e vigiada por adultos; as relações sexuais relatadas ocorreram em lugares de pouca privacidade e quase sempre sem preservativo. Há aqueles que desejam o casamento e a reprodução, mas também os que adiam ou não querem a maternidade/paternidade, revelando escolhas sobre sua vida reprodutiva. Por demonstrarem informações superficiais de uma educação sexual ineficaz e assumirem uma vida ativa afetiva e sexual, encontram-se em condições de vulnerabilidade. Conclui-se que a sexualidade das pessoas com deficiência intelectual é bastante semelhante a das demais quanto à expressão do desejo erótico e a exposição aos padrões sociais e que essa população deve receber uma educação sexual que contribua para o exercício pleno da sua sexualidade e o respeito aos seus direitos sexuais.

Palavras-chave: Deficiência intelectual, sexualidade, educação sexual.

Abstract: This qualitative descriptive study investigated the experience of sexuality and sexual health from reports of 12 people, men and women, with intellectual disabilities who participated in an interview. The participants showed difficulties in verbalizing concepts about sexuality, but were capable of expressing it without any aloofness or weirdness. They report the occurrence of dating, usually without sex and guarded by adults; when reported, the intercourse occurs in places of little privacy and often withou t condoms. There are those who covet marriage and reproduction, but also those who postpone or avoid maternity / paternity, revealing choices about their reproductive lives. Due to superficial information provided by an ineffective sex education and taking on affective and sexual lives, they are found in vulnerable conditions. We conclude that the sexuality of people with intellectual disabilities is quite similar to that of other people when referring to the expression of erotic desire and exposure to social standards; this population should receive sex education that contributes to the full exercise of their sexuality and to the respect of their sexual rights.

Keywords: Intellectual disability, sexuality, sex education.

Resumen: Este estudio descriptivo y cualitativo investigó la vivencia de la sexualidad y la salud sexual de los informes de 12 personas, hombres y mujeres, con discapacidades intelectuales que participaron en una entrevista. Los participantes mostraron dificultades para verbalizar conceptos de la sexualidad, pero se expresaron sin estar ella ausente o atípica. Reporte la ocurrencia de las citas, por lo general sin sexo y custodiado por los adultos; sus relaciones sexuales ocurren en lugares de poca intimidad y a menudo sin condones. Hay aquellos que quieren el matrimonio y la reproducción, sino también a aquellos que no quieren posponer o maternidad/paternidad, revelando decisiones sobre su vida reproductiva. La información superficial de una educación sexual efectiva hace que se encuentran en condiciones de vulnerabilidad. Llegamos a la conclusión de que la sexualidad de las personas con discapacidad intelectual es bastante similar a la otra como la expresión del deseo erótico y la exposición a las normas sociales y que esta población deben recibir educación sexual que contribuya al pleno ejercicio de su sexualidad y respeto sus derechos sexuales.

Palabras clave: Discapacidad Intelectual, sexualidad, educación sexual.

Introdução

O cenário de uma sociedade inclusiva tem possibilitado a luta pela equidade de condições para todas as pessoas, considerando também aquelas com diferentes deficiências que devem ser compreendidas em um contexto social, econômico, educacional e político (Priestley, 2001). Entendese a deficiência como um fenômeno socialmente construído (Omote, 2004); é uma condição que configura a identidade social de uma pessoa (somada às identidades de gênero, etnia, orientação sexual, nacionalidade, classe, etc.), ou seja, embora a deficiência revela-se em um corpo orgânico, o modelo social da deficiência desloca a problemática individual para as representações e as condições sociais que a determinam (Mitchell & Synder, 1997; Siebers, 2008).

A sexualidade de pessoas com deficiência intelectual (DI) ainda é um tema polêmico, mesmo em uma sociedade inclusiva. Trata-se de um duplo tabu; por um lado, a sexualidade, representada por valores e concepções sociais diversas e, por outro, a DI que implica em limitações cognitivas e carrega o estigma da “diferença” e da “desvantagem social”. Quando se associam essas duas condições a questão parece “problemática”. No entanto, o convívio maior das pessoas com deficiência e seus familiares com toda a comunidade, aliado ao esclarecimento oriundo de pesquisas, têm possibilitado a essas pessoas condições melhores para se expressarem e serem reconhecidas sexualmente.

Possíveis dificuldades na vivência da sexualidade de pessoas com DI são resultantes mais das questões sociais, como barreiras atitudinais, do que inerentes às questões orgânicas e daí é preciso considerar a discussão sobre sexualidade e deficiência no campo social e dos direitos humanos (França-Ribeiro, 2012; Gesser & Nuernberg, 2014). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, incluindo os direitos sexuais, reconhece que os direitos devem ser iguais a todas as pessoas, sem distinção, incluindo as pessoas com deficiências. No entanto, diante de condições de exclusão e de invisibilidade que, ainda hoje, vivem essas pessoas, convenções e legislações são necessárias para reafirmarem e defenderem esses direitos. Documentos resultantes da “Convenção sobre Direitos da Pessoa com Deficiência”, do “Programa de Ação Mundial para pessoas deficientes” ou da “Carta de Direitos Sexuais e Reprodutivos”, por exemplo, ressaltam os direitos das pessoas com deficiências à constituição e ao planejamento familiar, bem como à saúde sexual, enfatizando a necessidade de atenção para a garantia desses direitos sexuais e reprodutivos (Ministério da saúde, 2009).

A sexualidade representa a expressão individual do desejo que se manifesta em diferentes contextos sociais; envolve as formas de sentir afeto e emoções e de viver as práticas sexuais e a expressão de valores construídos socialmente (Anderson, 2000; Couwenhoven, 2007; Schwier & Hingsburger, 2007). A deficiência intelectual, sensorial, física que a pessoa possui não implica impedimentos definitivos que excluam a dimensão da sexualidade, inerente ao ser humano. Entretanto, a imposição social de dificuldades para a vida afetiva e sexual dessas pessoas pode limitar o exercício da sexualidade de modo íntegro (França-Ribeiro, 2012; Gesser & Nuernberg, 2014; Maia, 2006).

Crenças errôneas sobre a sexualidade da pessoa com DI foram propagadas a partir do senso comum e de estudos que focalizaram comportamentos inadequados relacionados à deficiência compreendendo a questão a partir de um modelo médico e não social e essas crenças ajudaram a reproduzir e a manter preconceitos (Amor Pan, 2003; Anderson, 2000; Kaufman, Silverberg, & Odette, 2003; Maia & Ribeiro, 2010).

As representações sobre a sexualidade de pessoas com DI são, em geral, diferentes para pais e educadores, sendo entre os pais uma ideia prevalecente de uma sexualidade ausente e ingênua e, entre os educadores, uma sexualidade exagerada e aberrante (Giami, 2004). Essas crenças são oriundas da observação dos comportamentos de pessoas com DI como sendo “exacerbados” por serem públicos e, talvez, frequentes e “ingênuos” por serem de pessoas consideradas e tratadas como “eternas crianças”, cuja imaturidade e dependência alimentam uma infantilidade geral, também no campo da sexualidade (Anderson, 2000; Giami, 2004; Heighway & Webster, 2008; Kaufman, Silverberg, & Odette, 2003).

Pode-se afirmar que, ainda hoje, é comum a noção errônea de que as pessoas com DI são “hiperssexuadas” ou “assexuadas”, incapazes de expressar sua sexualidade de modo adequado, saudável e prazeroso. Couwenhoven (2007), Glat (2004), Maia e Ribeiro (2010), ressaltam que os comportamentos considerados inadequados existem devido a uma precária educação sexual e não por uma questão inerente à deficiência.

Muitas dificuldades na sexualidade de pessoas com DI acontecem mais por motivos psicológicos e sociais (autoestima, timidez, inabilidade social, preconceito e socialização restritiva) do que orgânicos relacionados à deficiência ou às síndromes. Uma deficiência intelectual não deve ser uma condição prévia de impedimento ou proibição da manifestação da sexualidade, incluindo aí, a possibilidade de troca de carinho, comunicação, enamoramento, relações sexuais e também a procriação, atividades sociais e afetivas que fazem parte dos relacionamentos humanos (Denari, 2012).

No período da puberdade, o amadurecimento do corpo biológico e o desenvolvimento das características sexuais secundárias de jovens com DI ocorrem do mesmo modo como nas pessoas que não têm a deficiência, especialmente em casos não sindrômicos (Anderson, 2000; Amor Pan, 2003; Gherpelli, 1995). O corpo se desenvolve com a idade cronológica, mas a expressão da sexualidade estará relacionada à capacidade cognitiva e emocional (Schorn, 2005).

Algumas particularidades são observadas no caso de pessoas com síndrome de Down: as mulheres são férteis, embora tenham um aumento da probabilidade de abortos. Os homens são quase sempre inférteis, pois há uma quantidade pequena ou ausência de espermatozoides nos testículos; há uma redução de pelos faciais e axilares e, em alguns casos, genitália menos desenvolvida e variações hormonais disfuncionais (Amor Pan, 2003; Moreira & Gusmão, 2002). Apesar disso, essas alterações não diminuem os sentimentos de desejo afetivo e sexual e a possibilidade de usufruírem da vida amorosa, sexual e reprodutiva. Schaefer et al. (2011) descrevem um estudo de caso de um homem de 31 anos com síndrome de Down que relata comportamentos de beijos, abraços e namoro que não diferem de outros jovens. Incomoda-se com a baixa estatura, mas isso não é um obstáculo para seus relacionamentos afetivos; deseja casar-se, ter filhos, fazer faculdade e trabalhar, ou seja, tem aspirações de independência para a vida adulta.

A incorporação de sentimentos sociais negativos relacionados à deficiência pode interferir na expressão da sexualidade de pessoas com DI, especialmente na adolescência, tais como baixa autoestima e uma imagem desvalorizada de si mesmo e isso prejudica a possibilidade deles mesmos se sentirem pessoas desejáveis eroticamente (Amor Pan, 2003).

Além disso, geralmente, o fato de existir entre as pessoas com DI, maior dificuldade em compreenderem as regras sociais, carência de educação sexual e de esclarecimentos, a incorporação de uma imagem social desvantajosa, menos oportunidades de engajar e viver relacionamentos amorosos, maior controle de adultos e pouco incentivo a autonomia sexual, tornam essas pessoas vulneráveis, física e emocionalmente, às situações de violência e/ou abuso e exploração sexual (Glat, 2004; Vieira & Coelho, 2014).

Segundo Dantas, Silva e Carvalho (2014, p. 566), as questões de gênero também são importantes, pois colocam “a mulher com deficiência em situação de dupla desvantagem e vulnerabilidade”. Paula et al. (2010) ressaltam também que essa população é mais vulnerável em relação às doenças sexualmente transmissíveis (DST/aids) e embora tenha aumentado o índice de contaminação entre as pessoas com DI, ainda são poucas as preocupações preventivas nesse aspecto, talvez pela crença de sua assexualidade. Os jovens com DI, como todos seres humanos, têm desejos e vivem sua sexualidade, no entanto, tendem a agir de modo menos seguro à saúde física e emocional porque, segundo Vieira e Coelho (2014, p. 210), devido à “pouca ou inexistente educação sexual e apoio, decorrente de tabus diversos e negação da sua sexualidade por parte de familiares e educadores, eles expõe-se a riscos diversos”.

Littig, Cardia, Reis e Ferrão (2012) investigaram a concepção de mães de jovens com DI sobre a sexualidade deles e observaram que elas têm uma ideia de assexualidade, lidando com os filhos de modo infantilizado e superprotetor. Por acreditarem que seus filhos(as) não entenderiam um diálogo sobre sexualidade, muitas mães não oferecem educação sexual e reproduzem as concepções errôneas negando a sexualidade deles(as).

Bastos e Deslandes (2012) estudaram a narrativa de pais de adolescentes com DI que observaram em seus filhos(as) o comportamento do autoerotismo que, no caso de pais de meninos, foi considerado algo que ocorria devido a puberdade, enquanto que nos pais de meninas, era algo instintivo, sem “maldade”. Em todos os casos, quando o comportamento da masturbação ocorria publicamente e era considerado inadequado, priorizava-se a repreensão e o julgamento de uma sexualidade “anormal” relacionada à deficiência. Para diminuir o desejo sexual dos filhos meninos, os pais citaram o uso de medicamentos e da prostituição; no caso das meninas, a preocupação era a gravidez e se recorria a esterilização, embora isso não evitasse o contágio de HIV/aids, nem os riscos de violência sexual. Atenta-se no discurso dos pais para as questões de gênero e a evidência de dificuldades para ações educativas e menos repressoras.

Glat e Freitas (1996) consideram que as pessoas com DI têm condições de expressar suas emoções, desejos e sentimentos. As autoras ouviram 25 homens e 26 mulheres com DI que relataram sobre relações de afeto entre colegas da mesma instituição e experiências de namoro limitadas a contatos físicos, sem relações sexuais. A maioria das mulheres afirmou que namorava e, às vezes, de modo fantasioso; poucas assumiam ter beijado na boca ou tido uma relação sexual. Já, entre os homens, o beijo na boca foi relatado mais vezes e oito deles relataram o sexo pelo menos uma vez.

Vieira e Coelho (2014) analisaram os relatos de jovens com DI sobre sexualidade e educação sexual que apontaram receber pouca informação por parte da família e da escola. Quando houve diálogo sobre isso, a tônica principal era a proibição ao sexo e a recriminação. Muitos relataram o namoro com a fiscalização familiar, envolvendo o ato de passear e beijar, troca de afetos, sem relações sexuais. Em três casos relataram histórias de abuso sexual descrevendo sentimentos de “sofrimento, vergonha, culpa e difícil superação” (p. 207).

A história de vida de uma mulher com DI foi analisada por Dantas, Silva e Carvalho (2014), evidenciando nela a superação do estereótipo de incapacidade e o reconhecimento de uma condição sexuada, com desejos e expectativas amorosas e sexuais. É mais comum as mulheres com DI se casarem e terem filhos do que os homens (Amor Pan, 2003) e a escolha de um parceiro amoroso dependerá do grau de comprometimento da deficiência e do suporte social, mas em todos os casos é comum a expressão de afeto e a busca por relacionamentos amorosos (Gherpelli, 1995).

Alguns estudos têm ressaltado que as pessoas com DI têm acesso a informações sobre sexualidade, entretanto, mostram pouco entendimento sobre funcionamento do corpo, relação sexual, gravidez e nascimento e alguns temas são mais complexos que outros para a compreensão (Glat & Freitas, 1996).

No estudo de Maia e Camossa (2002), os relatos de jovens com DI foram obtidos com a apresentação do desenho da figura humana, bonecos sexuados e pranchas com cenas sobre namoro, casamento, autoerotismo, jogos sexuais, menstruação, relação sexual, gravidez, parto, amamentação e abuso sexual. A partir dessas estratégias, as autoras concluíram que eles tinham noção de uma identidade de gênero e conhecimentos difusos e incompletos sobre sexualidade, reforçando a necessidade de implementação de programas de educação sexual.

Do mesmo modo, os autores Morales e Batista (2010) estudaram a compreensão sobre conceitos de sexualidade de jovens com DI registrando que os mesmos mostraram dúvidas, dificuldades e valores iguais aos de jovens sem deficiência. Ressaltam a importância de oferecer a eles esclarecimentos reconhecendo-os como sujeitos de direitos e comentam que o acesso a educação sexual diminuiu seus comportamentos inadequados.

Sánchez (2011) defende que as pessoas com DI têm direitos afetivos e sexuais relacionados à integridade e propriedade de seu corpo e ao exercício de uma vida sexual e afetiva que desejem e que seja possível ter, dependendo das características pessoais e do nível de apoio de familiares/responsáveis e de profissionais; além disso, têm direito de receber educação sexual na família e nos centros educacionais. Para Gesser e Nuernberg (2014), as barreiras atitudinais, como as ações preconceituosas, violam esses direitos.

Neste sentido, muitos autores têm defendido que para que as pessoas com DI possam desenvolver a sexualidade socialmente, usufruir o direito à expressão sexual, ao relacionamento afetivo e sexual gratificante e à saúde sexual e reprodutiva deve-se garantir um processo pleno de educação sexual (Anderson, 2000; Couwenhoven, 2007; Heighway & Webster, 2008; Sánchez, 2011; Schiwer & Hingsburger, 2007; Walker-Hirsch, 2007; Wilson & Burns, 2011).

Em consonância com a literatura, esta pesquisa, qualitativa-descritiva (Freixo, 2010), teve por objetivo investigar a vivência da sexualidade e a saúde sexual sob o ponto de vista de pessoas com DI e, mais especificamente, a compreensão que têm sobre sexualidade e as expectativas de relacionamentos afetivos e sexuais, os comportamentos de prevenção e a educação sexual recebida.

Método

Participaram 12 pessoas (quatro mulheres e oito homens), diagnosticadas com deficiência intelectual com necessidade de apoio amplo, extenso e/ou limitado, com a idade cronológica variando entre 18 e 39, estudantes no ensino fundamental I, oriundos de uma classe social e econômica desfavorecida, que frequentavam uma instituição especial que atende um público de estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA), deficiências múltipla, física e intelectual. Os participantes foram selecionados por uma amostra de conveniência, a partir da indicação da psicóloga dessa instituição e foram aqui nomeados com a letra maiúscula P, seguida da letra M (mulher) ou H (homem) e de um número ordinal sequencial. Todos os procedimentos éticos foram respeitados, inclusive a solicitação da assinatura de pais/responsáveis e dos participantes do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética de uma universidade pública (Processo 5193/46/01/11). Após sua aprovação, a coleta de dados foi iniciada. Além disso, a instituição de reabilitação de pessoas com deficiência onde os participantes foram recrutados também solicitou o projeto para avaliação em Comitê de Ética, tendo o mesmo sido aprovado no Ofício n. 06/2011-CEP.

Os dados foram coletados por meio de uma entrevista que foi testada na sua funcionalidade junto a dois participantes equivalentes aos da amostra. Havia um roteiro de questões sobre conceito de sexualidade, a sexualidade e educação sexual recebida, experiências e expectativas sobre namoro, casamento e reprodução e comportamentos afetivos e sexuais. Cada participante foi entrevistado individualmente em uma sala reservada da instituição especial e todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra para análise de conteúdo, tal como propõe Bardin (2011), procedendo-se do seguinte modo: leitura flutuante e exaustiva do relato e a identificação das unidades de registro (uma palavra, um tema) e de contexto (aqui a condição estigmatizante da deficiência), definindo e nomeando as categorias temáticas que se caracterizam como mutuamente exclusivas: (a) Conhecimento sobre sexo/sexualidade e a Educação Sexual recebida; (b) Vida afetiva, sexual e reprodutiva (Namoro/relacionamentos sexuais, Expectativas de casamento/reprodução; Padrões sociais de estética/beleza).

Resultados

Conhecimento sobre sexo/sexualidade e a Educação sexual recebida

Os participantes não souberam definir e conceituar “sexualidade”; alguns não o fazem, outros relacionam a situações conjugais e eróticas como beijo, sexo, casamento e, provavelmente, abuso sexual (“fazer maldade”):

[Sexualidade] É comentar sobre as pessoas. Sexo é transar, beijar, casar (P3H, 18a).

[Sexualidade] Não sei”. [Sexo?] Eu já ouvi, mas eu nunca vi ninguém fazer não [Mas o que é?] eu não sei te explicar... é casamento (P4M, 18a).

Não sei... é quando a pessoa faz maldade para os outros [O que seria maldade?] Não sei, esqueci... mas é errado! (P11M, 18 a)

Os participantes mostram um relativo entendimento sobre prevenção, especialmente, contágio de DST e o uso de preservativo, mas nem todos conseguem descrever adequadamente o que seria HIV/aids, nem outros temas da sexualidade demonstrando um entendimento precário das informações recebidas e/ou uma ineficaz educação sexual:

...pra engravidar é pelo útero da mulher, a mulher tem o útero e o ovário que transforma na hora que faz a transa vai transformando um filho (P4M, 18 a).

[Gravidez] Não lembro; [Nascimento] O médico vai lá e recorta a barriga e tira o nenê (P7H, 16 a).

[Aids] Ah, esqueci... [Camisinha] É aquilo que coloca no negócio ... pra transar (P8H, 19 a).

[Aids] Não, nunca ouvi. [Nascimento] Não sei, nunca vi (P9H, 39 a).

Aids é uma doença que mata [Masturbação] É um líquido [Menstruação?] É o líquido que sai da mulher. [Gravidez] Namora, casa, transa. Um vai no outro, aí vira a criança. A barriga fica grande. A criança nasce pelo cordão umbilical (P10 H, 33a)

[Menstruação] É quando desce, desce o sangue. Tem que se cuidar, limpar [Gravidez] Não usa camisinha, daí fica grávida a mulher (P11M, 18 a)

[Nascimento] Não sei como sai, mas é no hospital (P12M, 24a)

Em alguns casos, os participantes com DI relacionaram a sexualidade aos modelos de televisão envolvendo expressões de afeto e romance e a internet também foi citada como fonte de aprendizado:

Eu assisto muita novela... Vê o homem beijando a... a moça na revista, um beijando na moça assim [Aids] Não sei. Eu vi na televisão só... Não pode, não pode. Tem que ter camisinha, não pode sem camisinha (P1M, 31 a).

... em novela tem... sempre pesquiso na internet (P4M, 18 a)

... Gosto de ver a menina pelada... já vi sexo eu coloquei no site (P8H, 19 a).

... fico assistindo (risos) mulher transando com homem, mulher pelada. ... passar a mão na teta, na vagina; na minha casa, tenho um monte de DVD que meu irmão comprou para mim. E assisto o filme da Bandeirantes também, mas só no sábado. Tenho um monte de DVD... de funk da mulher melancia, mulher melão (P10H, 33 a)

Também se percebeu a reprodução de padrões definidores de normalidade a partir de uma educação sexual com uma visão heteronormativa da sexualidade:

... homem ficar com outro, eu já vi; um homem beijando outro homem. Não é certo não, porque homem não pode beijar outro homem, tem que ser com mulher (P6H,16a).

... gay é mulher que gosta de mulher. É errado, porque homem tem que gostar de mulher. E tem homem que gosta de homem também... mas é errado. [Quem disso isso para você?] Minha professora falou (P11M, 18 a).

Os participantes com DI demonstraram uma educação sexual que não tem atingido o objetivo de esclarecer, informar e prepará-los para a autonomia da sua sexualidade. As poucas informações que receberam foram oriundas de médicos, psicólogos e alguns familiares. Falam do assunto com dificuldade, mostram que já receberam orientações sobre sexualidade ou já ouviram falar de muitas coisas, mas têm um conhecimento precário. Segundo alguns relatos, os esclarecimentos ocorreram por parte de alguns profissionais, como médicos e psicólogos de outras instituições, focalizando de modo específico o uso do preservativo como prevenção, embora pareça uma informação limitada e sem sentido para eles/as. Apenas uma jovem pareceu melhor informada recebendo explicações de diversas fontes, ressaltando a importância da educação sexual repetida e sistemática:

[Conversam sobre isso?] Não. [Seu pai?] Não. [com amigas?] Não. [Aids] Não pode, não pode. Tem que ter camisinha (P1M, 31 a).

... Já...ah..camisinha, para usar camisinha, para não pegar doença. [Aids] Não pega Aids [Onde ouviu falar isso?] “no médico” (P2H, 37 a).

O T. (amigo) explica: tomar cuidado e usar camisinha pra não pegar Aids. [Aids] é um bichinho que entra no corpo. Aí tem que usar camisinha (P3H, 18 a).

... conversa (com a mãe) pra um dia se eu for fazer amor com o namorado, que eu posso arrumar uma barriga... ela fala pra tomar cuidado. ... com as amigas (conversa). [Aids] tem que usar preservativo pra não pegar ... a professora explicou pra gente, a psicóloga, a minha mãe explicou, a minha avó explicou (P4M, 18 a).

... “Aids mata” [Onde aprendeu isso?] No... (citou nome de uma instituição e do psicólogo que o atendia) (P5H, 18 a).

Observa-se aqui as diferenças de gênero na preocupação dos educadores sobre o uso de preservativos relacionados à prevenção, sendo para evitar DST quando se trata de meninos e para a não ocorrência da gravidez, quando se trata das meninas.

Vida afetiva, sexual e reprodutiva

Namoro e relacionamentos sexuais

Alguns participantes não namoram e nunca namoraram; outros se envolvem em relacionamentos com a ocorrência de relações sexuais ou não. Em geral, descrevem o namoro com atitudes bem infantilizadas de companheirismo e amizade, relatando passeios e troca de beijos, sempre sob a vigilância de um adulto que, geralmente, é a mãe:

Passeio, namoro... eu vou na casa dele, depois ele vai na minha, minha mãe ajuda (P1 M, 31a).

Namoro a R. sou namorado dela ... faz tempo ... é bom sim [Como se namora?] ah, beija, sai, vai ao shopping, faz carinho... sexo não; ficar pelado não...a mãe da R. leva. Ela gosta de mim (P2 H, 37a).

[Sexo] Eu nunca; tenho vontade. Eu já namorei, já larguei. ... ela ficou com outro. [Beijava na boca?] Não. Era só amizade. [Sexo?] Na hora certa. Não sei a hora minha. Eu tô solteiro. Eu nunca beijei na boca uma menina (P3H, 18a).

[Já namorou?] Duas vezes ... a gente conversa, namora um pouco, sai pra namorar ... passeia. [A mãe sabe?] Sabe, ela gosta muito dele... tem beijo na boca sim, passar mão não, isso daí ele respeita eu.... nunca na minha vida fiz sexo; eu quero fazer sexo depois que eu casar (P4M, 18 a).

...nunca namorei...quero, porque é gostoso.[Como você sabe que é gostoso?] Imagino (P5H, 18 a).

[O que é namorar?] Eu não sei, mas conheço gente que namora. Eu não vou namorar não...ainda não! (P11M, 18 a)

Já namorei a S., mas agora não estou namorando mais. Uma vez namorei a C. mas também não estou mais com ela. Sabia o que ela fez uma vez? Passou a perna no meu pinto. Mas daí a amiga dela viu e daí ela parou (P10H, 33 a)

Quase não vejo o E., só de fim de semana. Ele vai na minha casa. A gente fica lá na sala. [Como namoram?] Beijo e abraço [Fazem sexo?] Não!, acha!? Ainda não! (P12 M, 24 a)

Em alguns casos, há relatos de relações sexuais e, nessas situações, desvela-se a vulnerabilidade no fato delas ocorrerem em lugares com pouca privacidade e sem comportamento preventivo contra o contágio de DST ou gravidezes:

Eu fiz isso lá na casa da minha mãe. Transei. Aí depois ela separou não ficou mais comigo. [Usou camisinha?] Não, não lembro, não sei (P7H, 19 a).

Transei uma menina lá na escola ... ela era minha namorada ... foi gostoso ... no banheiro, escondido ninguém viu eu transei ela, só com ela (P8H, 24 a)

Sim, fiz (sexo). Foi (gostoso), foi na rua, ninguém viu (P9H, 39 a)

Mas, também encontramos o relato de um homem que diz usar preservativo nas relações sexuais que acontecem com a namorada, escondido da mãe. O irmão é o apoio social para os esclarecimentos e, no caso, para o custeio ou providência do preservativo:

[Sexo] Eu já fiz... (risos) com uma mulher que meu irmão pagou para eu ir no motel, faz tempo já. (com a namorada atual). Na casa dela ... ela fica sentada do meu lado no sofá. E me dá um tesão!! (risos). Você nem imagina...meu pinto fica duro. Daí beija na boca. Um agarra o outro. ... depois a gente vai lá no quarto, mas só quando fica noite se não a mãe dela fica brava. ... tem que usar camisinha, né? sabia que um dia ela até colocou a camisinha no meu pinto? ... meu irmão me dá camisinha (P10H, 33 a)

O relacionamento amoroso e sexual ou o desejo dessas ocorrências aparecem no discurso desses jovens, assim como observamos em jovens que não tenham deficiência. Neste grupo de jovens, as garotas não relataram vivências de relações sexuais.

Expectativas de casamento e reprodução

Os/as entrevistados/as vislumbram uma vida conjugal e familiar, com o casamento e a filiação, mas não assumiriam essa vivência no momento atual, seja porque não se consideram aptos para isso, porque incorporaram a ideia que seria difícil ou, ainda, porque eventualmente expressam um planejamento para a vida reprodutiva. Aparece o argumento de que ter e cuidar de filhos é algo trabalhoso e um participante homem, com síndrome de Down, preocupa-se com a possibilidade de ter também um filho com a mesma síndrome. Em geral, este grupo de pessoas com DI não se mostram irresponsáveis ou incapazes de escolhas autônomas.

[Filho] Um só, menininha (P1, M, 31a).

[Casar; ter filhos] A R. quer [Você?] Também [Casar?] Eu penso, mas.. mais pra frente, mais pra frente (P2H, 37a).

Eu quero casar um dia. Mas ... tem que fazer 18 anos primeiro. ... Ah! não aparece uma menina pra mim namorar [Filhos?] Eu nunca tive. [Quer?] Não, só mulher que tem filhos. [Quer ser pai?] Quero (P3H, 18a)

... ah, eu acho que é importante sim, quando casar...aí eu ia ser feliz né? [Filhos?] Eu quero ter um só, dá muito trabalho ... Eu não quero ter filho ainda, mas quando eu casar eu vou curtir bastante o casamento, depois eu penso em ter filho (P4M, 18a).

[Casar?] Quero. [Filhos?] Ah, não! Dá trabalho, acorda cedinho, que nem meu sobrinho pequenininho (P5H, 18a).

[Casar?] Vai demorar. [Filhos?] Dá muito trabalho... eu não quero não (P11M, 18a).

[Casar?] Sim, mas quero ser muito rico ainda (risos) [Filhos?] Não, Down como eu...ah! pode ser que sim...já pensou que bonitinho... Isso é preconceito, né, eu falar que Down não, assim, que nem eu. Deficiente ou não eu vou gostar dele (P10H, 33a).

[Casar?] Não, nunca [Filhos] Nossa, piorou, não quero não. Gosto de criança, mas não quero não. É melhor não (P12M, 24a).

É interessante destacar, no relato de alguns participantes, a percepção realista de que cuidar de um filho exige trabalho e dedicação e que não estariam preparados ou dispostos a isso; também o relato do rapaz P10 que assume o temor pelo nascimento de um filho igualmente estigmatizado pela deficiência.

Padrões sociais de estética e beleza

Nos relatos, alguns participantes estão satisfeitos com seu corpo; outros relataram o desejo de melhorar sua aparência, especialmente atendendo padrões de estética atuais, como o corpo magro. O corpo “belo” significa tanto a expressão da autoestima, como também a possibilidade ou garantia de vínculos amorosos. Mais que isso, uma jovem atribui a infelicidade com um parceiro amoroso (conseguir uma namorada ou conseguir um casamento) ao corpo que pode ser modificado com cirurgia estética, por exemplo.

[Que parte do corpo mais gosta?] do braço...antebraço.. e as pernas. E os pés (P1M, 31 a).

... Bonito sim (o corpo); [Sua namorada gosta?] É. [E ela é bonita?] “hum”... hum”. [O que você mais gosta nela?] Dela... do rosto (P2H, 37a).

[Corpo] Bonito [Quer mudar algo nele?] Não (P5H, 18a).

... Uma mulher pode gostar de mim gordinho? ... Meu corpo tá um pouco... gordinho. Barriga, eu não aguento mais ser. [Qual a parte do seu corpo que você mais gosta?] “Daqui pra cá” (mostrou as pernas). [As pessoas te acham bonito?] Elas não chegam muito perto não (P3H, 18a).

Eu acho meu corpo um pouco feio... [O queria mudar?] Fazer plástica no nariz, na boca, na barriga; fazer uma redução de estômago, meu sonho é fazer uma redução, só que daí não temos dinheiro ... Eu sou gorda demais ... e eu não consigo emagrecer. ... eu quero fazer sexo depois que eu casar ... Eu quero, eu queria tá bem magrinha com a redução de estômago pra casar com ele (P4M, 18a).

Sou bonitão. né? Mas queria mudar a barriga. Barriga é feio, é muito gorda. Tenho que fazer mais piscina (P10H, 33a).

Ressalta-se, aqui, a expressão da repressão sexual vigente impondo padrões definidores de normalidade referentes a um modelo de estética e, além disso, o não ser “belo” para esse grupo de pessoas com DI não aparece relacionado ao estigma da deficiência, o que seria possível, de certa forma, que ocorresse.

Discussão

Os/as participantes têm uma visão restritiva da sexualidade relacionada ao corpo sexual e as práticas sexuais e não concebem o fenômeno da sexualidade como sendo social e histórico, tal como argumenta Anderson (2000), Couwenhoven (2007) e Schwier e Hingsburger (2007). Além disso, Vieira e Coelho (2014) também encontraram esses dados no entendimento sobre sexualidade de jovens com DI como algo biológico restrito à prevenção e à higiene.

A sexualidade é um aspecto fundamental na vida de todas as pessoas (Heighway & Webster, 2008). Ainda que as pessoas com DI possam demonstrar dificuldades de expressar ou dialogar e verbalizar conceitos sobre sexualidade, são seres sexuados e em grande parte de suas vivências, expressam semelhanças com pessoas sem deficiência, indo ao encontro do que afirmam Anderson (2000), França-Ribeiro (2012), Glat, (2004), Gherpelli (1995), Maia (2006) e Schorn (2005).

Os/as participantes expressam a sexualidade por meio de relações afetivas e amorosas, mas ainda são tratados de modo infantilizado, sem privacidade e com superproteção parental (Anderson, 2000; Dantas, Silva & Carvalho, 2014; Giami, 2004; Walker-Hirsch, 2007). Envolvem-se em relações amorosas, geralmente sem sexo, reiterando o que afirmam Amor Pan (2003), Vieira e Coelho (2014), Gherpelli, (1995) e Glat e Freitas (1996). O fato de serem tratados como “eternas crianças” pode direcionar o comportamento dos adultos em permitir o “namoro” sob supervisão, porque esse namoro é visto como algo “infantil” ou porque temem uma relação sexual que necessariamente suscitará riscos e problemas. Isso, no entanto, não prepara os jovens para o exercício responsável de sua sexualidade, pois alimenta a dependência e a imaturidade.

No estudo de Dantas, Silva e Carvalho (2014), observaram-se, igualmente, barreiras atitudinais e sociais uma vez que por trás do discurso de liberdade e incentivo das relações afetivas dos pais, havia restrições e controle sobre a vida sexual da filha com DI com o namorado, justificadas pelo argumento da “proteção”. Do mesmo modo, Vieira e Coelho (2014) ressaltam a postura dos pais que tentando proteger seus filhos “buscam estratégias de evitar que tenham relacionamentos mais íntimos” (p.209), ou ainda, por outro lado, contratam uma prostituta para satisfazer os impulsos sexuais do filho homem, como também se observou no estudo de Bastos e Deslandes (2012).

Em geral, os participantes desejam o namoro, o casamento e a reprodução, mas demonstram capacidade de pensar sobre isso, inclusive no caso da reprodução, pensar nisso em uma vida futura e, em alguns casos, optam por não escolherem nem a conjugalidade, nem a maternidade/paternidade. É importante ressaltar que, a despeito das limitações sobre a compreensão da sexualidade, houve quem considerasse o casamento e a reprodução como algo a ser decidido por eles, sendo um plano adiado ou não desejado, evidenciando uma condição de amadurecimento e autonomia contrários à noção de que as pessoas com DI são sempre incontroláveis e inconsequentes em sua sexualidade.

Outro ponto a destacar é que as pessoas com DI são igualmente atingidas pelas regras e modelos sociais repressivos e valorizam o corpo ideal, relacionado à magreza e também seguem uma visão heteronormativa. O modelo de beleza social influencia a construção do erotismo humano e isso se intensifica quando o corpo tem alguma deficiência que foge ao padrão imposto (Anderson, 2000; Couwenhoven, 2007; Kaufman, Silverberg & Odette, 2003).

Os relatos esclarecem os mitos e preconceitos sobre a sexualidade das pessoas com deficiência, já descritos na literatura (Anderson, 2000; Giami, 2004; Heighway & Webster, 2008; Kaufman, Silverberg & Odette, 2003), sobretudo, explicitando que são pessoas que sentem desejo sexual como as demais pessoas, sem este ser incontrolável ou atípico. Também almejam o namoro ou já namoram, têm vida sexual ou não dependendo de oportunidades e não da limitação intelectual; ou seja, vivem uma vida sexual que, segundo Gesser e Nuernberg (2014), deveria estar respaldada pelos direitos sexuais e reprodutivos.

Percebe-se também que, embora tenham vida amorosa e sexual, há falta de informações e o conhecimento sobre sexualidade é superficial, tal como Couwenhoven (2007), Glat (2004), Glat e Freitas (1996) e Maia e Camossa (2003) comentaram ocorrer. Alguns citaram a internet e a televisão como fontes de informação sobre sexualidade, assim como se observou no estudo de Vieira e Coelho (2014).

A educação sexual oriunda da família, da escola e mesmo dos profissionais quando ocorre parece ser deficitária e priorizando questões preventivas sem o devido esclarecimento, como também registraram Glat e Freitas (1996). Questões de gênero também foram percebidas no discurso preventivo dos educadores, ao fazerem diferenças quando se trata de meninos e de meninas, ressaltando essa importante discussão que, neste caso, não tem relação com deficiência, pois essa educação sexista é generalizadamente vigente.

Vários autores têm evidenciado a necessidade e a importância da educação sexual e proposto ações educativas para pessoas com deficiência, seja para diminuir os riscos de violência ou doenças ou falta de planejamento familiar, seja para lhes garantir uma vida sexual plena e satisfatória (Couwenhoven, 2007; Heighway & Webster, 2008; Maia, 2006; Schwier & Hingsburger, 2007; WalkerHirsch, 2007; Wilson& Burns, 2011).

É importante destacar que os participantes recebem uma educação sexual que é informal e assistemática e isso é insuficiente; por isso, defende-se a necessidade de oferecer a educação sexual formal e planejada que garanta a expressão prazerosa da sexualidade e também a saúde sexual e reprodutiva para diminuir a vulnerabilidade que vivem, tal como alertam Glat e Freitas (1996), Vieira e Coelho (2014) e Paula et al (2010). A esse respeito, França-Ribeiro (2012, p. 43) ressalta que o desenvolvimento da sexualidade de pessoas com DI deve fazer parte de uma “educação sexual inclusiva”, e defende que os programas de educação sexual destinados a essas pessoas devem respeitar as diferenças e existirem como uma meta ao cumprimento dos direitos humanos, incluindo neles, os direitos sexuais.

Considerações finais

Os resultados corroboram com estudos anteriores cujos protagonistas foram pessoas com DI, principalmente quanto à compreensão genitalizada da sexualidade, da educação sexual superficial, da expressão do desejo erótico, do namoro geralmente desprovido de sexo e vigiado por adultos ou de práticas sexuais vulneráveis, além das expectativas de casamento e reprodução. O que chamou a atenção como um elemento novo foi a preocupação com a estética como condição para a felicidade amorosa, elemento central nos estudos vigentes sobre a repressão sexual e isso demanda novas investigações sobre os padrões definidores de normalidade em sexualidade imbricados também nas questões de gênero, quando associados a condição estigmatizante da deficiência.

Os relatos evidenciam que as pessoas com DI expressam seus desejos eróticos, como as demais pessoas, sem que este seja “ausente” ou “exagerado”, vivem relações amorosas e sexuais, mesmo que em muito sentido seja um namoro “infantilizado” e sob vigilância de adultos. A relação entre sexualidade e DI, observada na análise dos relatos, corrobora com outros estudos nacionais e internacionais: a existência de preconceito social, desvelamento de mitos sexuais, uma educação sexual precária, as dificuldades psicossociais e não orgânicas da vivência da sexualidade que colocam a pessoa com DI em uma condição de vulnerabilidade.

Como se trata de pesquisa qualitativa, não há a pretensão de generalização dos dados, mas os relatos tanto evidenciam uma convergência com a literatura consultada, quanto suscitam discussões importantes, tais como as questões de gênero e a influência dos padrões de estética e valores normativos que merecem aprofundamento em novas pesquisas.

Pessoas com deficiência são seres sexuados, têm voz sobre seus desejos e relatam possibilidades e dificuldades da expressão da sua sexualidade, sobretudo, decorrentes de processos educacionais e sociais que podem favorecer ou não a autonomia que precisam para viver plenamente a sexualidade na vida adulta. Conclui-se a necessidade de se investir em propostas educativas tanto para os familiares, profissionais e educadores envolvidos, quanto para a população com DI, pois todos têm direito à expressão da sexualidade e a garantia de condições à saúde sexual e reprodutiva em uma sociedade inclusiva.

Agradecimentos

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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