Recepção: 27 Março 2015
Aprovação: 28 Fevereiro 2016
DOI: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i1.27142
Resumo: Este estudo objetivou compreender quais são as principais dificuldades e estratégias apontadas por pessoas em situação de rua relacionadas às suas práticas e às políticas públicas de cuidados em saúde, averiguando se atendem de forma efetiva às suas demandas. Trata -se de estudo qualitativo, exploratório e transversal. Os participantes (duas mulheres e quatro homens) têm idade média de 38 anos, estão na rua em média há 16 anos e participaram voluntariamente da pesquisa. Os dados foram coletados por meio de entrevistas individuais e analisados por meio da análise de conteúdo temática. Os principais resultados apontam que os entrevistados apresentam várias necessidades não contempladas de cuidado em saúde tendo em vista a precariedade do ambiente que estão inseridos; além disso, eles demandam um espaço de escuta atenta e qualificada para sua s necessidades e desamparos sociais, materiais e subjetivos. Portanto, nota-se a importância de estabelecer e/ou aprimorar espaços e serviços de saúde como o Consultório na Rua que viabilizem de forma mais satisfatória o cuidado em saúde na cidade de Uberaba-MG levando em consideração as particularidades dessa população.
Palavras-chave: Sem-teto, políticas públicas, promoção da saúde.
Abstract: This study aimed at understanding the main difficulties and strategies reported by people living on the streets regarding their own practices to keep their health, as well as public health policies towards them, in order to discover whether those practices and polices meet their real necessities. This is a qualitative, exploratory and cross-sectional study. The participants (two women and four men), aging, in average, 38 years, have been living on streets for almost 16 years. All of them took part of the study willingly. The data were collected by means of individualized interviews and analyzed by using thematic content analysis. The main results showed that the participants have several health care needs, because of the precarious environment that they live in; moreover, they demand a space for being attentively listened to, so that they can express their social, material and subjective needs. Therefore, it could be noticed that there is a huge demand for the establishment and/or improvement of spaces that allow more satisfactory health care and more studies on this subject in the city of Uberaba (Brazil), taking into account the particularities of this population.
Keywords: People living on streets, public policies, health promotion.
Resumen: Este estudio tuvo como objetivo comprender las principales dificultades y obstáculos mencionados por la gente en las calles (personas sin vivienda) relacionados con la oferta políticas públicas de salud. Es un estudio cualitativo, exploratorio y transversal. Los participantes (dos mujeres y cuatro hombres) con edad media de 38 años están en la calle por un promedio de casi 16 años y voluntariamente participaron en el estudio. Se recolectó los datos por intermedio de entrevistas individuales y analizados mediante análisis de contenido temático. Los principales resultados enseñan que los sujetos tienen varias necesidades de atención en vista del medio ambiente precario que viven; además, exigen un espacio de escucha atenta de sus necesidades sociales, materiales y subjetivas. Por lo tanto, es importante establecer espacios que permiten una atención más satisfactoria y más estudios sobre el tema en la ciudad de Uberaba (Brasil) teniendo en cuenta las particularidades de esta población.
Palabras clave: Sin vivienda, políticas públicas, promoción de la salud.
Introdução
O conceito de saúde adquire diferentes significados dependendo da população em questão, do momento histórico e dos valores e costumes de determinada sociedade. De fato, a compreensão de um grupo sobre saúde representa aspectos do seu viver (Bacellar, Rocha, & Flôr, 2012).
Historicamente, o conceito de saúde sofreu mudanças: desde concepções que priorizavam ações medicamentosas, curativas e a ausência de doença até as que enfatizam o completo bem-estar físico, mental e social (Pereira, Augusto, & Barros, 2011). Assim, saúde a partir do paradigma biopsicossocial pressupõe a inclusão das dimensões coletivas e subjetivas, considerando aspectos além dos biológicos no processo saúde-doença. Isso supõe que a saúde é resultado de um processo social que representa as condições de existência dos indivíduos (Pereira et al., 2011).
A partir desse pressuposto o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro pretende oferecer atenção à saúde de forma ampliada a toda a população, incluindo os cuidados básicos até os complexos por meio da integralidade, universalidade e equidade (Ministério da Saúde, 1990) possibilitando que todos tenham suas necessidades providas. Todavia, é sabido que a realidade não é bem assim: Rosa, Secco e Brêtas (2006) afirmam que o empobrecimento populacional brasileiro influencia na qualidade de vida e nas condições de saúde.
Especificamente, a população em situação de rua ocupa espaço desfavorecido no sistema de saúde. Essa população pode ser definida como:
... um grupo populacional heterogêneo que tem em comum a pobreza, vínculos familiares quebrados ou interrompidos, vivência de um processo de desfiliação social pela ausência de trabalho assalariado e das proteções derivadas ou dependentes dessa forma de trabalho, sem moradia convencional regular e tendo a rua como o espaço de moradia e sustento (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2008, p. 9).
A primeira (e até o momento a única) pesquisa nacional sobre população em situação de rua (MDS, 2008; Ministério da Saúde, 2012) realizada em 71 municípios revelou dados importantes sobre esse contingente: são aproximadamente 50 mil pessoas (considerando apenas os maiores de 18 anos); possuem idade entre 25 e 44 anos; majoritariamente homens (82%) e negros (67%); possuem baixa escolarização formal (48% iniciou mas não completou o ensino fundamental e 15% nunca frequentou a escola); estão na rua por motivos diversos (29.1% por causa de desavenças familiares, 29.8% por causa do desemprego e 35.5% por causa do uso de álcool ou outras drogas); 70% efetivamente residem na rua (jardins, praça e banheiros públicos, terrenos abandonados, marquises etc.), 20% residem em albergues e demais 10% alternam albergues com a rua; 71% deles exercem atividades remuneradas informais (coleta de materiais recicláveis, flanelinhas, carregadores etc.), e pouco mais da metade (52,6%) recebe entre R$ 80,00 e R$ 240,00 mensais, revelando a precariedade dessa situação; em relação à saúde 62% relataram que não possuem problemas de saúde, e dentre os 30% que relataram ter problemas de saúde a maioria (70%) procura ou por hospitais ou por postos de saúde – são poucos os que recorrem espontaneamente ou tem como referência os dispositivos de atenção primária à saúde como, por exemplo, o Consultório na Rua (CR).
O CR é formado por equipe multidisciplinar em saúde e é uma modalidade interventiva da atenção básica em saúde que consiste na oferta de atendimentos psicossociais de caráter clínico-comunitário. Sua proposta é oferecer cuidados em saúde para as pessoas em seus próprios contextos de vivência, especialmente na rua e não nos espaços institucionalizados de saúde (hospitais, postos e unidades de saúde etc.) (Ministério da Saúde, 2012).
O CR aposta na estratégia de redução de danos como meio de aproximação e cuidados incentivando, por meio de uma atitude informativa, a autonomia (em relação aos direitos como saúde, assistência social, proteção, dignidade etc.) daqueles que estão em situação de rua (Ministério da Saúde, 2012).
Todavia, há de se considerar que o CR padece de enormes dificuldades (logísticas, operacionais, financeiras e de recursos humanos) que dificultam a efetivação dos seus objetivos (Hallais & Barros, 2015). Em consequência as pessoas em situação de rua não recebem adequadamente a atenção e cuidados em saúde e os profissionais da saúde do CR não conseguem exercer satisfatoriamente seu trabalho (Londero, Ceccim, & Bilibio, 2014).
Por isso o cuidado dispensado à saúde dessa população em situação de rua necessita considerar as peculiaridades das condições da rua, devendo haver maior atenção acerca da realidade dessa população para que sejam compreendidas suas peculiares estratégias de sobrevivência e práticas de cuidado da saúde (Pereira et al., 2011).
Dessa forma, o objetivo desta pesquisa foi investigar numa cidade brasileira de médio porte (Uberaba/MG) as principais dificuldades e estratégias apontadas por pessoas em situação de rua relacionadas às suas práticas e às políticas públicas de cuidados em saúde.
Delineamento e procedimentos metodológicos
Trata-se de uma pesquisa exploratória, transversal, amparada na abordagem qualitativa de pesquisa na qual foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, observação participante, notas e diário de campo.
Participantes
Participaram desse estudo seis pessoas em situação de rua. A escolha pela denominação população em situação de rua se justifica para destacar a transitoriedade dessa situação (Rosa, Cavicchioli, & Brêtas, 2005; Ministério da Saúde, 2012) e sua estigmatização (Magni 2006; Schuch, 2007).
Para as entrevistas semiestruturadas foram selecionadas pessoas com mais de 18 anos, de ambos os sexos, que estavam em situação de rua e que consentiram em participar da pesquisa. No total foram realizadas seis entrevistas mediante o critério de saturação dos dados (Fontanella et al., 2011).
Procedimento de coleta dos dados
O trabalho de campo ocorreu entre junho e setembro de 2014 em dois locais da cidade de Uberaba (MG) nos quais o CR realiza suas intervenções. Esses locais, segundo a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Social de Uberaba (SEDS), se consolidaram por mero acaso e pela adesão dos frequentadores às intervenções. A SEDS estimou em setembro de 2014 que havia 105 indivíduos em situação de rua no município, dos quais aproximadamente 30 eram atendidos pelo CR. Todavia, há naquela cidade vários outros locais de concentração de pessoas em situação de rua.
O primeiro destes locais está situado à beira da rodovia federal que corta a cidade no qual os sujeitos atendidos usualmente estão envolvidos com a criminalidade e com o tráfico de drogas. Isso dificultou o acesso a essas pessoas em razão do uso de drogas e da prostituição. Assim, foi possível coletar apenas uma entrevista neste local. O outro local é uma praça de um dos bairros centrais da cidade onde se encontram pessoas que consomem abusivamente álcool; ali o acesso à população em situação de rua é mais fácil (foram realizadas cinco entrevistas), pois o envolvimento com a criminalidade é baixo.
A coleta de dados foi realizada na presença da equipe do CR tendo em vista que já existia contato entre ela e os pesquisadores, facilitando o acesso aos participantes. Neste contato inicial os pesquisadores observavam as pessoas em situação de rua e depois os abordavam convidando para uma entrevista. A observação participante pretendeu também compreender como as pessoas em situação de rua vivenciavam tal situação e como lidavam com as questões relacionadas a sua saúde (Queiroz, Vall, Souza, & Vieira, 2007), tanto as advindas das ações do CR (logo, de políticas públicas) como as autorrealizadas.
O roteiro semiestruturado de perguntas abordava questões concernentes à história de vida (o que o levou à situação de rua), ao entendimento sobre cuidado em saúde (definições, responsabilidades, práticas pessoais e da equipe do CR etc.) e suas expectativas visando à efetivação desse cuidado/direito.
Estratégias de organização e análise dos dados
As entrevistas foram audiogravadas e transcritas na íntegra, sendo analisadas vertical (uma a uma) e horizontalmente (conjunto das entrevistas), possibilitando que categorias temáticas fossem elencadas a partir das respostas dos participantes.
Os dados foram organizados segundo a análise de conteúdo temática (Bardin, 2010) e compreendidos à luz da teoria das representações sociais de Moscovici (2012) que as define como formas de conhecimentos grupais e socialmente elaborados que orientam práticas/ações. As representações sociais devem ser compreendidas a partir dos seus contextos específicos de produção, ou seja, mediante as particularidades de cada grupo.
Disposições éticas
Essa pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) (parecer nº 667.568 de 29/05/2014). Buscou-se resguardar o anonimato e sigilo da identidade dos participantes (os nomes são fictícios).
Resultados e Discussão
Os entrevistados são quatro homens e duas mulheres, com idade média de 38 anos. Isso se deveu à disponibilidade de acesso aos interlocutores acompanhados pelo CR – ou seja, trata-se de amostra de conveniência. Muitas outras pessoas em situação de rua recusaram responder à entrevista por não desejarem se expor devido à dinâmica da rua que, durante o período de coleta de dados, esteve bastante conturbada devido à morte de um usuário do programa envolvido com o tráfico de drogas.
Em geral, a média de tempo que estão em situação de rua é de quase 16 anos, variando de quatro meses a 40 anos, período elevado de exposição a riscos e vulnerabilidades sociais diversos. Todos os participantes fazem uso de substâncias psicoativas (legais ou ilegais), sendo este um dos principais motivos que os levaram a rua; neste ínterim, de acordo com a política nacional de redução de danos, o que deve ser indagado é o estilo e a funcionalidade do consumo dessas substâncias, e não a simples proposta de abstinência (Ministério da Saúde, 2012).
Foram construídas quatro categorias temáticas após a coleta dos dados aferidas por juízes: Caracterização e Trajetórias (características dos participantes e algumas de suas experiências no ambiente da rua); Cuidado em Saúde (sentidos e práticas sobre esse cuidado); Responsabilidades pela Saúde (percepções em relação à responsabilização em práticas de saúde); Expectativas em Saúde (ações de auto e de heterocuidado em saúde e suas expectativas de futuro).
A Tabela 1 apresenta as principais informações coletadas junto aos participantes:

Categoria 1 – Caracterização e Trajetórias
Cada participante revela uma trajetória que o levou à situação de rua. Contudo, três motivações foram elencadas como principais. Para cinco entrevistados (Orlando, Eduardo, Adriano, Vanda e Marcelo) problemas familiares (desavenças com esposas, mães, pais, padrastos) foram os principais motivadores para abandonarem suas casas. Um dos entrevistados relata:
Eu morava com a mãe da minha esposa, com a minha esposa e a mãe do meu filho. Aí depois que ela me largou, que nós dois separemos [sic.] ela foi embora e eu vendi meu carro, minha casa e voltei a beber cachaça e fui pra rua (Orlando).
Escorel (2006) afirma que quando problemas familiares são elencados como motivo para a ida às ruas outros fatores tendem a estar envolvidos (alcoolismo, violência doméstica, uso de drogas, doenças mentais, conflitos de valores etc.). Destes, o álcool e as drogas afetam significativamente a dinâmica da família, gerando conflitos em decorrência do aumento das despesas para a aquisição dessas substâncias, afetando o orçamento e a dinâmica familiar – o que gera as desavenças.
Em segundo lugar a ida para as ruas também foi motivada pelo uso de substâncias psicoativas, como apontam Orlando e Marcelo. Marcelo ressalta: “A situação que eu vivo lá em casa ... meu padrasto é muito ignorante, não aceita eu [sic.] lá usando drogas, aí fica me mandando ir embora, aí eu prefiro fica na rua.” Lovisi (2000) argumenta que muitas vezes o rompimento dos laços familiares ou sua fragilização podem precipitar a ida para as ruas devido à violência, alcoolismo ou desemprego, mas, geralmente, o consumo de substâncias psicoativas é anterior à ida para a rua.
A terceira motivação citada pelos entrevistados para a ida para as ruas são as dificuldades financeiras, tal como Laura relata:
Eu fui pra Alagoas onde moram meus filhos, aí de lá eu voltei. Ia voltar pra São Paulo mas eu peguei um ônibus clandestino e o ônibus deixou aqui [Uberaba], aí eu fiquei aqui. Morei primeiro numa pensão, depois não tive mais como pagar e acabei vindo ficar na rua.
Diante disso é possível perceber que os contatos familiares se dissolvem na mesma proporção em que há aumento da permanência nas ruas, dificultado o retorno às suas casas e famílias de origem.
Em relação a isso apenas Laura mencionou que sua família fornece suporte para poder sair das ruas, tendo ela manifestado o desejo de voltar para a casa da mãe. Orlando, por sua vez, afirmou não ter mais contato com seus familiares e Eduardo, Adriano, Vanda e Marcelo relataram que esse vínculo está fragilizado e raramente encontram alguém da família; expressa Marcelo:
Esse dia para traz eu fiquei lá na minha mãe. Só que antes de ontem ele [padrasto] chegou e falou que era pra eu acordar cedo, seis horas da manhã e ir embora. Já teve dia de eu dormir na garagem junto com o cachorro.
Em suma, os principais motivadores que levaram os participantes para as ruas são os mesmos destacados pela pesquisa nacional sobre a população em situação de rua (Ministério da Saúde, 2012). Estes trechos de entrevistas também revelam representações acerca das vivências em situação de rua – espaço (rua) esse que foi percebido a partir das motivações anteriormente citadas.
Para Varanda e Adorno (2004) as pessoas em situação de rua estão em situação de vulnerabilidade devido à fragilidade/ausência dos laços familiares. Desta forma a rua passa a ser o lugar que lhes resta para tentar existir e estabelecer processos compensatórios às perdas e criar novos recursos de sobrevivência ou subsistência, tais como o consumo de drogas. Por isso, para Varanda e Adorno (2004) diferentemente de Lovisi (2000), nem sempre as drogas são os principais motivadores da situação da rua, mas são uma das suas consequências e táticas de suportabilidade naquele contexto e, por isso, a política de redução de danos é de suma importância como baliza para as políticas públicas.
A rua, tanto para Orlando quanto para Eduardo, é compreendida como um ambiente precário e sem regras ao mesmo tempo em que se revela como um lugar onde encontraram pessoas que partilharam das mesmas experiências. Além disso, para Adriano, esse ambiente proporcionou-lhe encontrar pessoas que lhe deram carinho e amor nunca recebido da família. Para Vanda a rua é a sua casa, onde nasceu, passou fome e aprendeu muitas coisas; para ela, viver nesse espaço exige capacidade, sugerindo ser uma experiência difícil e triste, mas repleta de ensinamentos. Laura relata ter medo da rua por se tratar de um ambiente perigoso e de exposição, e Marcelo apresenta a rua como um lugar onde pode ficar sem regras e sem restrições quanto ao uso do álcool.
Além de Marcelo também Eduardo e Orlando relataram dificuldades de convívio em ambientes institucionalizados nos quais precisam seguir regras (como as clínicas de recuperação, pensões, residências de origem e albergues). A rua aparece, portanto, como expressão de liberdade e identificação com outras pessoas com vivências semelhantes e que compreendem suas fraquezas e vícios. Isso corresponde ao mencionado por Souza, Fortini e Domingues (2010) ao afirmarem que a rua adquire sinônimos de liberdade e falta de responsabilidade, onde conquistam amizades derivadas do uso de drogas e/ou álcool e do não-enfrentamento das dificuldades da vida causadoras de frustração.
Da Matta (2004) ao discorrer acerca dos sentidos sobre a rua (espaço público) na nossa sociedade corrobora com diversas representações dos participantes sobre o que é morar/viver nas ruas. Ao mesmo tempo em que consideram a rua seu lar muitos participantes relataram ser ela um espaço sujo, desconhecido, violento e inseguro e, assim, creem que a sociedade tem deles uma imagem equivocada: não pessoas em situação de rua, mas sim pessoas da rua (que são sujos, violentos e perigosos). Para Laura: “Só que às vezes tem gente que acha que a gente está na rua porque é vagabundo, porque não quer trabalhar, mas às vezes aconteceram coisas que fazem a pessoa não ter força para sair [da rua]”.
Dessa forma, Da Matta (2004) argumenta que a rua configura-se como o lugar do anonimato, onde se encontra a massa, a população em movimento constante, a competição, a desordem social e o capitalismo exacerbado, ou seja, ela é compreendida como espaço público no qual ninguém é respeitado como cidadão de direitos.
Considerando as falas dos participantes em relação à rua pode-se entrever uma representação partilhada por esses indivíduos que organiza seus modos de viver e pensar (Moscovici, 2012): um borramento entre espaço público e privado, no qual a rua enquanto espaço coletivo (público) e ao mesmo tempo habitat pessoal (privado). Por isso, aqueles que estão em situação de rua são estigmatizados pelas características atribuídas à rua.
Categoria 2 – Cuidados em Saúde
Pensar sobre atenção e cuidado em saúde é atentar à diversidade de sentidos e significados que esses termos possuem. Sendo assim, cabe dar espaço aos sentidos construídos pelos participantes sobre esses temas.
Orlando, Eduardo e Laura entendem que os cuidados em saúde estão relacionados à alimentação e ao sono: “Cuidar da saúde? Começa por uma boa alimentação, uma boa noite de sono, está entendendo? Coisa que na rua você não tem, entende? Então eu diria que é precário” (Eduardo).
A higiene pessoal foi relatada por Adriano, Vanda e Laura como cuidado em saúde. Para a Laura é preciso ir ao médico quando necessário, porém, Marcelo relatou que o cuidado em saúde só seria possível de acontecer quando conseguisse parar de beber: “Pra mim eu precisava parar de beber pra eu sair da rua”.
Além de algumas representações dos participantes sobre cuidados em saúde faz-se necessário compreender melhor se e como os colocam em prática (mediante suas possibilidades) para que esses cuidados sejam efetivados. Orlando, Laura e Marcelo disseram que tentam se alimentar melhor; Eduardo, Adriano e Vanda responderam que tomam banho frequentemente; Marcelo disse tomar água com regularidade; Vanda relatou que tenta dormir bem, no entanto muitas vezes não consegue porque a rua não oferece condições para isso, mas procura escovar os dentes todos os dias (carrega consigo escova, toalha, roupas íntimas, bucha e sabonete); Orlando se esforça para parar de beber álcool quando não se sente bem.
O cuidado com a alimentação foi descrito como sendo o mais fácil de realizar, pois todos recebem doações (de alimentos) de restaurantes, instituições de caridade ou centros espíritas. Todavia, durante as observações participantes pôde-se ver que o armazenamento dos alimentos é precário, e em muitas ocasiões foi possível ver pombos comendo ou andando em cima de marmitas semiabertas ou pães expostos.
A manutenção da higiene pessoal (escovação de dentes, raspagem de barba, banho e troca de roupas) também fica dificultada, pois alguns precisam pagar para usar banheiros de praças públicas, rodoviárias ou de pensões. Segundo Vanda: “Para tomar um banho tenho que pedir dinheiro aqui nessa praça como todos. Para beber minha pinga, para comprar o meu cigarro e para tomar um banho, porque a Dilma [presidenta do Brasil] não sabe dar o banho público”.
Em suma, o cuidado pessoal é precarizado no ambiente da rua. Assim como Graeff (2012) expôs em pesquisa sobre pessoas em situação de rua em Paris algumas delas carregam consigo marcas corporais que traduzem o abandono social, uma vez que estão com roupas sujas, sem tomar banho há dias, com odores e, às vezes, com feridas expostas (principalmente nos pés tal como a observação participante permitiu entrever). Cabe refletir se é possível evitar essas marcas corporais diante das dificuldades no cuidado pessoal na rua – dificuldades ligadas à falta de recursos materiais e à falta de perspectiva de mudança da realidade que essas pessoas vivenciam (esse tema será tratado na categoria 4).
Sobre essas marcas corporais, resultantes das condições de saúde, elas são comuns a quase todos os entrevistados. Elas são observáveis nos pés descalços e rachados de Orlando e Eduardo; na barba comprida e mal aparada de Eduardo; nas roupas sujas e rasgadas que todos vestiam; nas feridas expostas de vários outros sujeitos inseridos naqueles ambientes.
Como consequência dessa condição de vida precária todos os participantes disseram que já apresentaram problemas de saúde como dores de cabeça (Laura, Vanda e Adriano), problemas gastrointestinais (Orlando e Eduardo) ou dermatológicos (Orlando) e HIV (Laura e Marcelo). Apenas quatro entrevistados disseram que só se dirigem ao hospital e às unidades de pronto atendimento quando a situação é mais grave – sem, contudo, diferenciar o que seria mais e menos grave em saúde. Em contrapartida, salientaram que recorrem à automedicação ou tentam ignorar dores e sofrimentos consumindo drogas ilícitas ou álcool, o que dificulta a vinculação dessa população com serviços preventivos como o CR.
De acordo com Dantas (2007) as pessoas em situação de rua são intensamente vulneráveis aos agravos de saúde, apresentando uma série de patologias inerentes às suas condições de vida. Segundo o manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua (Ministério da Saúde, 2012) a vida na rua pode precipitar problemas de saúde devido ao aumento da exposição a riscos de doença, violências, ingestão de alimentos e água contaminados, variações climáticas extremas e muitos outros. Todavia, assim como os entrevistados relataram, as pessoas em situação de rua pouco procuram os serviços de saúde e quando o fazem procuram por serviços institucionalizados de caráter curativo-medicamentoso, pouco atentando para práticas preventivas em saúde (como as propostas pelo CR), revelando dificuldades estruturais das políticas públicas em saúde (Hallais & Barros, 2015).
Além destes, o medo de dormir em calçadas e praças foi ressaltado por alguns dos participantes, pois a rua é vista como um ambiente de exposição à violência. Essa realidade foi igualmente retratada por Aguiar e Iriart (2012) em pesquisa realizada em Salvador/BA com pessoas em situação de rua. Segundo os autores a violência aparece como um fator de preocupação para essas pessoas principalmente à noite, tendo em vista que são recorrentes os ataques noturnos e agressões (inclusive homicídios). Assim, muitos preferem dormir (na verdade, apenas cochilar) durante o dia e realizar outras atividades no período noturno.
Em relação à violência no ambiente da rua Nascimento (2006) argumenta que as pessoas em situação de rua não devem de antemão ser rotuladas como perigosas: o perigo está nos ambientes nos quais estão inseridas, tendo em vista que compartilham espaço com a marginalidade, com a violência institucional (ausência de condições que evitem sua expulsão para a rua), com o comércio ilícito de drogas e com a prostituição.
Especificamente na presente pesquisa alguns participantes disseram ter sofrido violência na rua. O caso de Adriano é emblemático, pois não só evidencia o medo de ser agredido como também seu envolvimento com a criminalidade: ele foi diversas vezes espancado após roubar e/ou comprar fiado drogas com traficantes.
Nessa categoria foi possível compreender algumas representações sobre o cuidado em saúde de pessoas em situação de rua que são moduladas por aquela realidade específica (Moscovici, 2012). Todavia, ao contrário do que foi declarado, esses sentidos não se coadunam ao que a Organização Mundial da Saúde conceitua como saúde (Sá Junior, 2004): para os entrevistados saúde diz respeito às necessidades básicas e imediatas e, assim, deve-se considerar que a noção de perfeito bem-estar está distanciada da realidade de quem vive nas ruas, onde as condições de existência são extremamente precárias.
Categoria 3 – Responsabilidade pela Saúde
Considerar os sentidos dos entrevistados sobre o cuidado em saúde alude à pergunta sobre a concretização desse cuidado, ou seja, quem é o responsável por este cuidado?
Adriano, Vanda e Marcelo acreditam que a responsabilidade pelo cuidado em saúde é apenas do indivíduo: “A gente mesmo. A gente tem que procurar, porque tem os profissionais da saúde, é só procurar que eles não vão negar atendimento, mas a gente mesmo é que é o responsável” (Marcelo).
Consonante com essa representação princípios ideológicos (segundo uma concepção marxiana de ideologia) estão implicados a fim de legitimar e tonar naturais os processos relacionais (desiguais) da nossa sociedade que estabelecem práticas de controle social e a manutenção da ordem social vigente (Chauí, 2012). A representação de que a responsabilidade por este cuidado é apenas individual retira do cenário os encargos do Estado (do coletivo) em assegurar, criar e aplicar políticas públicas que atendam às necessidades das populações.
Ainda sobre esse aspecto paira sobre o imaginário popular a meritocracia das relações sociais (incluindo as práticas de saúde), como se a população em situação de rua não pudesse usufruir das benesses e direitos sociais uma vez que não participa da classe produtiva (que recolhe impostos) e da parcela consumidora da sociedade (Chauí, 2012).
Em contrapartida, Orlando e Laura entendem que este cuidado é tanto do indivíduo como do Estado:
Eu acho que uma parte depende da gente e outra parte depende também do governo, aí já vai falar em política, né? Porque talvez a pessoa tá passando mal no meio da rua e sabendo que o hospital está ali e não adianta você chegar lá e vai ficar a metade de um dia na fila lá (Orlando).
Orlando aponta a realidade da saúde do Brasil assim como Fleury (2011) argumenta sobre a precariedade das condições de funcionamento de hospitais, sendo isso um real contradireito tendo em vista que ela é preconizada como um direito universal e de qualidade. Em apenas uma entrevista (Eduardo) essa responsabilidade apareceu como sendo somente do poder público: “[D] o Estado, que envolve a prefeitura, o Município, uma coisa toda”.
Percebe-se que diversos fatores influenciam na legitimação do cuidado em saúde por parte do Estado, do indivíduo e/ou de ambos. Mas, em todos os casos, para quem se encontra em situação de rua tal responsabilidade é negligenciada a despeito da atuação dos profissionais da saúde do CR que, todavia, por muitas vezes não conseguem desenvolver ações e intervenções específicas justamente porque também não possuem respaldo e condições materiais (Londero et al., 2014), comprometendo a efetivação de políticas públicas em saúde para essa parcela da população.
Lovisi (2000) afirma que vários fatores podem estar associados às condições de saúde daqueles que estão em situação de rua: o primeiro seria o de variáveis estruturais ou macrossociais (extrema pobreza; falta de moradia; migrações; desinstitucionalização de hospitais psiquiátricos entre outras); o segundo nível contemplaria a dinâmica familiar e a falta de suporte social; por fim, o terceiro nível incluiria variáveis individuais ou microssociais (características pessoais e individuais).
Ainda para Lovisi (2000) algumas pesquisas apontam o nível microssocial como o principal motivo que levam as pessoas a ficarem em situação de rua, deixando em segundo plano a evidente origem estrutural dessa realidade. Em suma, novamente, a culpabilização individual como responsável pelas condições paupérrimas de existência e de saúde (Chauí, 2012) ganha destaque e, por isso, deve ser combatida.
Categoria 4 – Expectativas em Saúde
Após esboçadas as representações sobre a responsabilização do cuidado em saúde é significativo entender a dinâmica desse cuidado a partir da perspectiva das expectativas da população em situação de rua. As ações que promovem esse cuidado deveriam decorrem de políticas públicas direcionadas a esse contingente de pessoas no intuito de cumprir o papel do Estado na garantia dos direitos sociais (MDS, 2008).
Considerando que a pessoa em situação de rua deve ser atendida por uma rede de atenção e cuidado especializada uma das intenções desta pesquisa não é enumerar os diversos serviços oferecidos, mas sim explorar algumas das representações dos entrevistados sobre a atuação desses serviços públicos. Portanto, essa categoria apresenta questões relacionadas às expectativas de práticas em saúde voltadas à população em situação de rua.
Três participantes falaram especificamente dos serviços prestados pelo CR. Orlando relata que tais atendimentos são importantes e atendem de uma forma geral às demandas de cada um. Já Eduardo acredita que as ações realizadas pelo CR são boas, mas que mais estratégias poderiam ser efetivadas caso houvesse mais incentivo/investimento pelo Estado.
Adriano, mesmo reconhecendo as ações do CR, não o desvincula de ações de caráter assistencialista: “Eu acho assim... é da hora. Porque [o CR se] preocupa todo dia e está conosco, traz um café, o carinho, fazendo a gente ter coisas que não teve na infância”. Isso revela a dificuldade em compreender saúde como direito, pois é vista como um favor ou caridade, criando óbices para a atuação do CR junto àqueles que estão distanciados da rede formal de atenção e cuidado em saúde (Ministério da Saúde, 2012). O CR deve ofertar cuidados multiprofissionais aos usuários em seus próprios contextos de vida e adaptados às suas especificidades, cujo objetivo é promover acessibilidade, integralidade dos cuidados em saúde para os usuários em situação de exclusão social a fim de possibilitar um espaço concreto do exercício de direitos e cidadania.
Infelizmente, e no geral, os CR padecem de diversos problemas e limitações (Hallais & Barros, 2015) que não lhes permite atingir seus objetivos. Outro exemplo disso foi o fato de que no momento da coleta de dados dessa pesquisa o programa CR de Uberaba (MG) contava com apenas uma profissional da enfermagem e uma do serviço social, pois a psicóloga desligou-se voluntariamente do programa, ocasionando dificuldades nos atendimentos. Assim, mesmo que as representações dos participantes sobre o CR mostrem que a equipe já é uma referência de acesso à saúde, mais ações poderiam ser realizadas (assim como destacou Eduardo). Daí a necessidade de reforçar os CR nos seus contextos locais de atuação.
Orlando, Eduardo, Adriano e Marcelo relataram que já passaram por internações em clínicas particulares de recuperação, sendo que Eduardo e Adriano disseram terem sido internados à força – e Adriano relatou que não concorda com a internação compulsória. A ideologia predominante argumenta que o uso das drogas deve ser resolvido por meio de estratégias de simples proibição e abstinência do uso/consumo dessas substâncias e, por esse motivo, as internações compulsórias são consideradas importantes – porém, desconsideram que o uso de drogas é um problema de saúde pública e não somente de uma (equivocada) escolha individual (Nascimento, 2006; Wurdig & Motta, 2014).
Eduardo, Adriano e Marcelo denunciaram ações de descaso com o cuidado em saúde nas clínicas de recuperação: “Aqui em Uberaba são poucas; algumas delas judiam [dos internados], não tem uma alimentação adequada. Eu cheguei a comer mamão puro cozido e meu pai pagando 400 reais por mês” (Adriano). Eduardo também fala da necessidade de investir em clínicas que funcionem de maneiras mais adequadas e que ofereçam acompanhamentos variados a fim de fortalecer a pessoa durante o processo de desintoxicação:
Clínica que fica nove meses internado é depósito de drogados. Depósito de alcoólatras. Joga lá, faz você levantar hora que eles querem, reza hora que eles querem, comer hora que eles querem. Fazer o que eles querem. Mas ninguém senta com você, como você está fazendo agora e procura saber o porquê que você bebe, o porquê do vício, o porquê voltou a usar droga? (Eduardo)
Mas os participantes também trouxeram alternativas de cuidado: “Se abrisse um albergue de moradia que a pessoa pudesse ficar trabalhando – ia trabalhar de dia e voltava pra dormir, com banho quente, a roupa lá, com um armarinho e chave, seu cadeadinho e tudo ali certinho”. (Adriano); “Lá [em São Paulo] tem lugares que a pessoa chega e pode tomar banho e lavar roupa, tem atividades pra ela fazer durante o dia, se alimentar. Daí não precisa ficar o dia inteiro na rua. Eu cheguei a ficar em um lá e nele fiz um curso de copeira hospitalar”. (Laura)
Orlando e Laura relataram terem sofrido preconceito quando procuraram ajuda em hospitais por serem pessoas em situação de rua: “Eu acho que no hospital eles não dão tanta atenção. Não sei se é por que eles devem ver a gente diferente” (Laura). Esse relato é extremamente significativo ao considerar que quando necessário a maioria das pessoas em situação de rua procura espaços institucionalizados de saúde para receberem tratamento mas, contudo, são discriminados (Ministério da Saúde, 2012). Isso somado às dificuldades de funcionamento dos CR (que deveriam ser para essa população a porta de entrada para o SUS) afasta mais ainda esses sujeitos do SUS.
Os participantes relataram que faltam muitos recursos para que a saúde possa ser cuidada de forma melhor na rua. Orlando e Marcelo acreditam que para mudar a condição de cuidado em saúde é preciso sair da rua, pois enquanto estiverem nela sua condição não irá mudar. Para Eduardo, Adriano, Vanda e Laura a ausência de soluções seria resultado dos poucos investimentos do Estado para com a realidade da rua, e para Eduardo e Adriano também faltam profissionais qualificados para o atendimento desta população.
Vários serviços em Uberaba são ofertados à população referida e para os quais os próprios participantes elencaram mudanças necessárias. Depreende-se da narrativa dos entrevistados que existem dificuldades nos atendimentos ofertados a essa população pois prevalecem modelos de atenção e cuidado à saúde de caráter curativo e medicamentoso que não buscam compreender o sujeito em sua singularidade. Portanto, é premente a necessidade de qualificar profissionais comprometidos não somente técnica, mas principalmente eticamente com aquela população a fim de melhorar a qualidade do cuidado ofertado (Rosa et al., 2006).
Marcelo, Eduardo e Orlando relataram que a vida que atualmente levam é repleta de desilusões. Todos, em condições distintas, sentem saudades da vida que tinham e de suas famílias de origem, mas apenas Orlando e Laura apresentam efetivas perspectivas de mudança, mas se mostram igualmente angustiados com as condições que estão vivendo.
Durante as entrevistas ficou evidente suas necessidades de relatarem suas histórias e trajetórias. Isso revela que esse tipo de cuidado afetivo e essa atenção à subjetividade (saúde mental) quase nunca acontecem de maneira efetiva nas ruas, seja por ser abafado pelo efeito do uso das drogas, seja falta de espaço para cuidar desse tipo de necessidade/demanda.
Ayres (2004) enfatiza a importante interação entre pessoas em situação de rua e serviços de saúde calcada no acolhimento (capacidade de escuta atenta e respeitosa diante do sujeito), sendo forçoso por parte dos profissionais da saúde oferecer escuta qualificada. No caso dessa população em situação de rua aspectos afetivos estão relacionados às condições de cuidado de si próprios e às motivações que os conduziram para as ruas. Por isso é de extrema importância que esse tipo de espaço/escuta seja ofertado, tal como relata Eduardo: “Às vezes parece que não, mas conversando com você [entrevistador] aqui alguma coisa já muda. Você sabia? Já me faz pensar diferente”.
Por fim, o intuito deve ser oferecer serviços que contemplem as várias demandas em saúde que essa população apresenta. A oferta de atendimento deve ser feita a partir de uma perspectiva humanizada que efetive a melhora da qualidade de vida dessas pessoas, e não moralismos e discriminações (Londero et al., 2014). Dessa forma, cabe repensar as práticas em vigor (tanto as destes usuários do SUS como dos profissionais em saúde) para ampliar as possibilidades de cuidado em saúde dessa população.
Considerações finais
Considerando os principais resultados desta pesquisa percebe-se que os participantes apresentam várias necessidades de cuidado em saúde tendo em vista a precariedade do ambiente da rua e as suas limitações nesse cuidado, dentre as quais se destaca a falta de recursos materiais. Essas limitações esbarram nas suas expectativas de mudanças ou melhoria de condição, tendo em vista suas vivências permeadas por dores, angústias, frustrações, desamparos e sofrimentos.
Dessa forma, é necessário repensar os serviços de saúde ofertados, nominalmente a composição e as ações do CR (que deveriam ser ampliados), no sentido de avaliar se essa população está sendo atendida em suas necessidades e demandas. Além disso, destaca-se a necessidade de melhor qualificar os profissionais que acolhem, orientam e intervém junto a essa população para efetivar seus direitos de saúde e alterar seus atuais modos de viver. Portanto, acreditamos que a aposta que deve ser realizada não é a da alteração radical das políticas públicas em saúde para a população em situação de rua, mas sim o cumprimento integral do estabelecido para o CR.
Ao discorrer sobre a população em situação de rua nota-se o envolvimento dessas pessoas com o uso abusivo ou a dependência de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas – muitas vezes uma estratégia para suportar a situação de rua e a exclusão social. Assim, percebe-se a necessidade de repensar e questionar argumentos (originários tanto da classe política como dos profissionais da saúde) que tratam o assunto a partir de um prisma apenas: o da proibição e a abstinência do uso dessas substâncias. Deve-se, portanto, compreender a lógica, sentidos e funções envolvidos nestes hábitos de consumo para inseri-los como meios de acesso e atenção à saúde, e não simplesmente bani-los.
Para realizar este estudo foram utilizados dados acerca da população em situação de rua em nível nacional, despertando a atenção para a necessidade de estudos que evidenciem as múltiplas realidades locais da cidade de Uberaba (MG) tendo em vista a diversidade desse contingente populacional e a importância desse município no contexto regional.
Ao investigar as práticas (advindas deles próprios ou para eles destinados) de atenção e cuidado em saúde junto a algumas pessoas em situação de rua de uma cidade brasileira de médio porte pôdese compreender sua(s) lógica(s) de funcionamento e organização como estando diretamente correlacionadas às suas condições imediatas de existência. Portanto, para alterar tal quadro é fundamental alterar as condições de existência dessa população, no caso, os entraves de acesso ao SUS – para o qual o CR pode muito contribuir desde que tratado com dignidade pelos formuladores de políticas públicas locais, regionais e nacionais.
Entende-se, assim, que o objetivo dessa pesquisa foi alcançado, e espera-se que esse relato de pesquisa possa contribuir para a intensificação da discussão e, consequentemente, para a alteração das ações e de políticas públicas voltadas ao cuidado da população em situação de rua.
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