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O DESVELAR DE VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS EM SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS
Vânia Regina Bressan; João Fernando Marcolan
Vânia Regina Bressan; João Fernando Marcolan
O DESVELAR DE VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS EM SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS
THE UNVEILING OF HUMAN RIGHTS VIOLATIONS IN RESIDENTIAL THERAPEUTIC SERVICES. HUMAN RIGHTS VIOLATIONS.
EL DESVELAR DE VIOLACIONES DE LOS DERECHOS HUMANOS EN SERVICIOS RESIDENCIALES TERAPÊUTICOS
Psicologia em Estudo, vol. 21, núm. 1, pp. 149-160, 2016
Universidade Estadual de Maringá
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Resumo: O objetivo do estudo foi analisar as práticas de assistência aos moradores de sete Serviços Residenciais Terapêuticos de município de Minas Gerais e suas concepções, segundo as propostas da reforma psiquiátrica, da Política de Saúde Mental brasileira e de outros autores. Foram entrevistados 15 cuidadores por meio de questão disparadora e questões relacionadas à assistência e funcionamento do Serviço Residencial Terapêutico. As entrevistas foram gravadas, transcritas e categorizadas em temas. Os dados mostraram práticas de violações de direitos humanos: violência física, verbal, psicológica e sexual e negligência de cuidados por parte de cuidadores e responsáveis técnicos pelos serviços. Essas práticas mostraram-se influenciadas pela concepção social da loucura, associada à falta de compreensão e inteligência, de autonomia, à ausência de razão, à exclusão, à discriminação e ao isolamento. Verificamos falta de capacitação e educação permanente aos cuidadores e de acompanhamento e fiscalização federal, estadual e municipal das práticas que ocorriam nesses serviços. A associação que gerenciava os serviços não se comprometeu com a qualidade da assistência, a Secretaria de Saúde do Município foi omissa e não verificamos o suporte de responsáveis técnicos dos serviços e equipe do Centro de Atenção Psicossocial. Há falta de investimento em intervenções para mudança da concepção social da loucura pelo movimento da reforma psiquiátrica. Identificamos, ainda, lacuna na legislação sobre os serviços residenciais terapêuticos. Esses serviços pesquisados mantinham práticas manicomiais e características de instituição total, contrárias às propostas da reforma psiquiátrica e da Política Nacional de Saúde Mental.

Palavras-chave:Serviços de Saúde MentalServiços de Saúde Mental, direitos humanos direitos humanos, violência violência.

Abstract: The aim of the study was to analyze the practices of care to residents in seven therapeutic’s residential’s services of an municipality of Minas Gerais State, Brazil, and the views of caregivers linked to these practices. Fifteen caregivers were interviewed by triggering question and issues related to assistance and Therapeutic Residential Service’s functioning. The interviews were recorded, transcribed and categorized into themes. The data showed human rights violations practices: physical, verbal, psychological and sexual violence and neglect of care by carers and technicians responsible for the services. These practices have proven to be influenced by the social conception of madness associated with lack of understanding and intelligence, lack of autonomy, lack of reason, exclusion, discrimination and isolation. We found a lack of training and continuing education to caregivers and lack of monitoring and supervision of the practices that occurred in these services by the federal, state and municipal’s levels. The Association that manages the service is not committed to the care’s quality, the County Health Department was silent and there was no support by the technicians responsible for the service and by the staff of the Psychosocial Care Center. There is a lack of investment in interventions to change the social conception of madness by the psychiatric reform movement. Identified, yet, legislation’s gap about the Therapeutic Residential Services. The Residential Therapeutic Services surveyed maintained madhouse’s practices and characteristics of total institution, instead the psychiatric’s reform and National Mental Health Policie’s proposals.

Keywords: Mental Health Services, human rights, violence.

Resumen: El objetivo del estudio fue analizar las prácticas de la atención a los residentes en siete servicios residenciales terapéuticos de una ciudad de Minas Gerais y sus puntos de vista, de acuerdo con las propuestas de la reforma psiquiátrica, la Política de Salud Mental de Brasil y de otros autores. Se entrevistó a 15 cuidadores mediante la activación de emisión y cuestiones relacionadas con el cuidado y funcionamiento del Servicio Residencial Terapéutico. Se grabaron las entrevistas, transcritas y categorizados por temas. Los datos mostraron que hay prácticas de violaciones de derechos humanos: físicas, verbales, psicológicos y sexuales y también hay falta de cuidado de los cuidadores y técnicos responsables de los servicios. Estas prácticas fueron influenciadas por la concepción social de la locura asociada con la falta de comprensión y con la inteligencia, la falta de autonomía, la falta de la razón, la exclusión, la discriminación y el aislamiento. Hemos encontrado una falta de capacitación y educación continua para los cuidadores y hay falta de seguimiento por la supervisión de los niveles federal, estatal y local que se han producido en estos servicios. La Asociación que gestiona los servicios no están comprometidos con la calidad de la atención. El Departamento de Salud del condado se quedó en silencio y no había técnicos de soporte responsables por el servicio del Centro de Atención Psicosocial. Hay una falta de inversión en las intervenciones para cambiar la concepción social de la locura por el movimiento de la reforma psiquiátrica. También identificó fallas en la legislación relativa a los servicios residenciales terapéuticos. Los Servicios Terapéuticos Residenciales encuestados examinaron las prácticas de manicomio guardados y las características totales de la institución, en contra de las propuestas de la reforma psiquiátrica y la Política Nacional de Salud Mental.

Palabras clave: Servicios de Salud Mental, derechos humanos, violencia.

Carátula del artículo

O DESVELAR DE VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS EM SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS

THE UNVEILING OF HUMAN RIGHTS VIOLATIONS IN RESIDENTIAL THERAPEUTIC SERVICES. HUMAN RIGHTS VIOLATIONS.

EL DESVELAR DE VIOLACIONES DE LOS DERECHOS HUMANOS EN SERVICIOS RESIDENCIALES TERAPÊUTICOS

Vânia Regina Bressan
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil
João Fernando Marcolan
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil
Psicologia em Estudo, vol. 21, núm. 1, pp. 149-160, 2016
Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 12 Agosto 2015

Aprovação: 14 Março 2016

Introdução

O direito à vida, à alimentação, à moradia, à saúde, à educação é considerado direito humano básico, sem o qual um indivíduo é incapaz de se desenvolver e de exercer sua cidadania. Esses e outros direitos foram normatizados em 1948 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (Ventura & Brito, 2012).

Violações de direitos humanos, como violência, castigos, maus-tratos e negligência na assistência às pessoas em sofrimento psíquico, estiveram e ainda estão presentes no cotidiano de serviços de saúde mental do mundo todo (Drew et al.,2011), inclusive do Brasil. Os chamados loucos, rótulo dado aos desviantes das normas sociais, eram mantidos no hospital psiquiátrico, local de controle e de segregação social. Ali eram submetidos a torturas e a formas violentas de tratamento. O hospital psiquiátrico retirava do indivíduo em sofrimento psíquico a característica de humano e operava sobre ele o processo de reificação (Castel, 1978; Goffman, 2013; Foucault, 2013).

No Brasil, o movimento da denominada reforma psiquiátrica, desde a década de 1970, busca a mudança dessa realidade. Um dos avanços conquistados por esse movimento, principalmente no que diz respeito à proteção e aos direitos das pessoas em sofrimento psíquico, ocorreu com o arcabouço jurídico-legal, emanado de portarias do Ministério da Saúde e legislação do Congresso Nacional (Ministério da Saúde, 2004). Concomitantemente, houve a mudança de paradigma da assistência na área da saúde mental, agora baseado nos conceitos de subjetividade, de integralidade, de acolhimento, de vínculo, de dignidade, de autonomia e de justiça (Dutra & Rocha, 2011).

A assistência, antes hospitalocêntrica, passou a ser oferecida em serviços ou em equipamentos inseridos na comunidade, com a proposta de estarem integrados nas redes sociais disponíveis no território, sempre a prezar pela dignidade pessoal, pelos direitos humanos e civis da demanda atendida (Ministério da Saúde, 2004). Um dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), surgiram por meio da portaria 106/2000, com a finalidade de proporcionar aos egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos, que perderam os vínculos familiares e sociais, a oportunidade de residirem em casas inseridas na comunidade, serem reabilitados e reinseridos socialmente (Ministério da Saúde, 2004). Contudo a reforma ainda não se concretizou de forma ampla e necessária no país. Há insuficiente número de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e SRTs e ainda se observam nesses serviços práticas manicomiais como o controle, as normas e as rotinas impostas, além de relações verticalizadas e de poder com os usuários (Mângia & Ricci, 2011; Pereira & Costa-Rosa, 2012; Alves, Silva, & Costa, 2012).

A criação de serviços substitutivos ao manicômio não garante por si só que o modelo manicomial seja superado. Não bastam estratégias de planejamento e de imposição legal, configuradas na política de saúde mental, para que ocorram mudanças nas práticas manicomiais. É necessário que seja realizado processo de desconstrução do saber social sobre a “loucura”, influenciado por sua origem histórica e associado à ideia de periculosidade, de incapacidade e de animalidade, que contribui para produzir atitude social de medo, de discriminação e de violência para com as pessoas nessa condição (Bressan, 2014). Entretanto os tipos de violência que sofrem os indivíduos em sofrimento psíquico nos serviços substitutivos não são divulgados em artigos científicos. Esses achados desvelam que os SRTs pesquisados mantiveram o mesmo mecanismo de violência e de desrespeito aos direitos dos seres neles encerrados. Essa é questão séria e preocupante a ser retomada pelo movimento da denominada reforma psiquiátrica brasileira. Além disso, lacunas nas leis da reforma precisam ser revistas, assim como a falta de acompanhamento e de fiscalização federal, estadual e municipal das práticas que ocorrem nos SRTs.

O estudo teve por objetivo analisar as práticas de assistência aos moradores dos SRTs e suas concepções, segundo as propostas da denominada reforma psiquiátrica, da Política de Saúde Mental brasileira e de autores que discutem a assistência em saúde mental.

Metodologia

Participaram do estudo 15 cuidadores de sete SRTs de um município em Minas Gerais. Os critérios de inclusão adotados para seleção dos sujeitos foram: interessar-se e aceitar a participar do estudo ao dar seu consentimento por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e estar em atuação no SRT há pelo menos seis meses. Ao todo, nos sete SRTs do município, no momento das entrevistas, eram 28 cuidadores. Preenchiam o segundo critério de inclusão 23 cuidadores e foram entrevistados 15. As entrevistas cessaram quando os objetivos da pesquisa foram contemplados. Também foi entrevistado um membro da comissão local de desospitalização que forneceu informações sobre o histórico dos SRTs do município.

Os locais das entrevistas foram escolhidos pelos cuidadores. Nove entrevistas foram realizadas na residência do cuidador e seis em horário de trabalho do cuidador no SRT. Os SRTs do município foram criados em outubro de 2008 para servir de residência aos egressos do hospital psiquiátrico da cidade que foi descredenciado do SUS. No início eram oito SRTs, com 64 moradores no total. Por óbitos de moradores, um SRT foi fechado e restaram sete SRTs com 46 moradores no total.

Das sete residências terapêuticas, cinco eram masculinas e duas, femininas. A maioria dos moradores era mais comprometida psicossocialmente, havia alguns moradores com comportamento agressivo e outros idosos mais dependentes de cuidados. A minoria dos moradores era independente. Em visita às casas, todas se encontravam com portão fechado com cadeado.

No início da implantação dos SRTs, foi criada a Associação de Familiares e Usuários de Serviços de Saúde Mental, pois se acreditava que seria mais um dispositivo na rede para oferecer apoio, orientação, garantir direitos e reivindicações dos familiares e usuários. Embora os membros dessa associação fossem usuários e familiares de indivíduos em sofrimento psíquico, não havia nenhuma atuação desses membros em atividades propostas por associação com esse perfil.

Em 2009, essa associação conveniou-se com a Prefeitura para gerenciar os SRTs, como responsável pela manutenção das casas e pela contratação de cuidadores e de serviços gerais. No total, eram 28 cuidadores que trabalhavam em turnos de 12 por 36 h, sete dias da semana, ou seja, quatro cuidadores por residência e sete serviços gerais, um em cada SRT, que trabalhavam 44 h semanais, de segunda a sábado. Outros profissionais que compunham a equipe dos SRTs foram contratados pela Prefeitura, sendo um psiquiatra e três profissionais de nível superior (um enfermeiro, uma biomédica e uma psicóloga), com o cargo de responsáveis técnicos (RT) e função de capacitar e de supervisionar os cuidadores e os serviços gerais, além de construir com o morador e com a equipe o Projeto Terapêutico Singular dos moradores.

A coleta dos dados se deu por meio de entrevistas agendadas por telefone, em dia, horário e local escolhido pelo cuidador. Foi realizada nos meses de outubro e novembro de 2012, pela pesquisadora, enfermeira com experiência na área de saúde mental. As entrevistas duraram, em média, 01h e 30 min. cada e foram iniciadas por meio da questão disparadora: Gostaria que você me contasse sua vivência: como é para você o cuidado aos moradores da residência terapêutica? A partir dessa questão, outros temas que foram surgindo no decorrer da entrevista foram abordados. Quando a entrevista não fluía, foram utilizadas questões relacionadas ao tema pesquisado (assistência oferecida aos moradores e funcionamento do SRT) como estímulo a se responder e trazer dados de interesse. Os cuidadores foram designados por números, respeitada a sequência da realização das entrevistas.

O estudo foi autorizado a ser desenvolvido nos sete SRTs pela Secretaria Municipal de Saúde e teve a aprovação sob parecer nº 19.653 do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo. Asseguramos os princípios éticos deste estudo com o cumprimento das diretrizes e das normas para pesquisa envolvendo seres humanos, preconizadas pela resolução CNS 466/2012 (Resolução n. 466, 2012). Embora não cuidador, um membro da comissão local de desospitalização nos forneceu informações sobre o histórico dos SRTs e autorizou a utilização destas no estudo.

As entrevistas foram gravadas, transcritas na íntegra e categorizadas em temas por meio dos passos propostos pela análise de conteúdo (Bardin, 2011): 1) pré-análise - leitura dos discursos para apreensão das ideias principais; 2) exploração do material - trechos dos discursos dotados de significado (unidades de significado) foram destacados e separados para a realização da categorização; 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação - agrupamento das unidades de significado que constituíram subcategorias de categorias temáticas. Para a análise e a interpretação dos dados, utilizamos referenciais teóricos da reforma psiquiátrica, da Política Nacional de Saúde Mental e de autores que discutem a assistência em saúde mental.

Resultados e Discussão

Dos 15 sujeitos entrevistados, a maioria (10) era do sexo feminino e trabalhava há mais de três anos no SRT; a idade dos sujeitos variou entre 23 a 57 anos; 13 tinham o ensino médio completo e dois não tinham concluído o ensino fundamental; seis eram técnicos de enfermagem e 12 nunca trabalharam em hospital psiquiátrico.

Os resultados apresentados neste artigo são quatro subcategorias - violência covarde contra usuários; usuários relatam a violência dos cuidadores; negligência de cuidadores e de responsáveis técnicos e mortes: sofrimento para alguns, desconfiança para outros - provenientes da categoria temática "práticas manicomiais". Os dados mostraram desobediência aos princípios do movimento da reforma psiquiátrica e legislação vigente, sendo notórios a quantidade e os tipos de violência contra os moradores dos SRTs.

Violência covarde contra usuarios

Os relatos que se seguem mostram as formas de violência que alguns cuidadores utilizavam contra o morador: “...o cuidador punha a poltrona e para o banheiro só passava a hora que eles [cuidadores] queriam.”(C8); “... no domingo e feriado [cuidador] fica sozinho, deixa os meninos [moradores] trancados, já teve cuidador que deixou sem comer, não fez almoço, os deixou com fome, ... eles [moradores] não falam, são como criança ...” (C14)

...agride mesmo,...tranca para fora da casa,...fecha [morador] no quarto, acaba defecando, urinando [no quarto]... [moradores] ficavam lá fora [no quintal], podia estar sol, chuva... urinando e defecando ali, depois ela [cuidadora]... dava banho com a mangueira... o fulano com um corte na cabeça... me bateram, quebraram uma colher de pau na cabeça... você é um preto, um resto de aborto!... pessoa da Associação [disse isso]... agressão verbal, tem toda hora... [Um cuidador] Quase quebrou o braço dele [morador]... tinha que tomar banho senão já descia pau também,... continham com faixa no leito... são técnicos de Enfermagem, traziam do [hospital], dois serviços, traziam na mochila...(C7)

...a fulana [cuidadora], se os meninos desobedecer, ela deixa sem cigarro, sem café e sem comer, ... Ele [morador] estava andando de mau jeito, a colega [cuidadora] perguntou e ele falou com todas as letras: [falando baixinho]: o fulano [cuidador] fez sexo comigo... é queixa muito forte pra... referência não tomar providência.(C13)

A loucura era e, com esses dados, podemos dizer que ainda é punida, não mais no asilo, mas agora nos SRTs, mesmo que no discurso seja inocentada fora da instituição (Foucault, 2012). Esses dados mostram a concepção dos cuidadores sobre loucura associada à falta de compreensão e de inteligência, de autonomia, à ausência de razão, à exclusão, à discriminação e ao isolamento.

O suplício, a punição e o castigo que ocorriam em público até meados do século XVIII, para que todos vissem, testemunhassem e deles tivessem medo, a servir de escola, começaram a ser realizados em locais fechados, para que não fossem mais vistos. Porém os castigos e as punições continuaram a ser conhecidos por todos, pois se institucionalizou o poder de punir por meio de sistema de autoridade e saber de quem punia. Ao invés de espetáculo em locais públicos, as punições tornaram-se mais discretas, sutis e veladas em instituições consideradas "organizações carcerárias", como hospitais, quartéis, escolas e conventos (Foucault, 2013). O mesmo parece ter ocorrido com a violência aos indivíduos em sofrimento psíquico, que era comum nos manicômios e agora mais discreta ou velada nos dispositivos extra-hospitalares, como nos SRTs pesquisados.

Em pesquisa realizada com pessoas em sofrimento psíquico de 18 países de baixa e média rendas sobre os tipos de violações de direitos humanos a que eram submetidas, os resultados foram alarmantes, como em nosso estudo. As mais comuns violações de direitos humanos, descritas pelos sujeitos, foram: exclusão, marginalização e discriminação na comunidade; negação ou restrição de direitos a adquirir emprego ou oportunidades de geração de renda; abuso ou violência física; dificuldade de acesso a serviços de saúde em geral e de saúde mental; abuso ou violência sexual, entre outros. As instituições psiquiátricas e os serviços de saúde mental estavam entre os ambientes em que mais se sofriam esses tipos de violações (Drew et al., 2011).

Segundo Goffman (2013), a violência é encontrada em instituições totais. Ao entrar nelas, o indivíduo é vítima de rebaixamentos, de degradações, de humilhações e de profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Além da deformação do eu, existe a desfiguração pessoal, decorrente de mutilações diretas e permanentes do corpo, como marcas ou perda de membros. Profanações verbais ou gestuais são práticas comuns nessas instituições por profissionais e pela equipe dirigente, como se referir ao indivíduo com nomes obscenos, xingá-lo, indicar suas qualidades negativas, "gozar dele", ou falar sobre ele com outros internos como se ele não estivesse presente. Outra prática de violência comum nas instituições totais e que contribui para a mortificação do eu ocorre quando o indivíduo é obrigado a manter relações sexuais sem manifestar desejo. Tratar o outro com delicadeza seria um desperdício com lunáticos.

Em nosso estudo, os dados revelaram violências física, verbal, sexual e psicológica aos moradores dos SRTs por meio de humilhações, de isolamento, de desrespeito, de discriminação, de castigos e de punições. Essas práticas de violência ocorreram independentemente da formação do profissional, tanto por cuidadores, por técnicos de enfermagem como por profissionais responsáveis pelo serviço, indicativo de que práticas manicomiais de violência permanecem por influência da concepção social sobre a loucura e de práticas manicomiais exercidas por séculos, enraizadas no imaginário social, pois historicamente o louco sempre foi considerado sem razão, com instintos animais, perigoso, incapaz, infantil (Foucault, 2013).

Portanto, a violação de direitos humanos é problemática trazida pela psiquiatria e mantida pela sociedade e por profissionais da saúde mental em suas práticas e concepções, pois o manicômio está dentro de nós e o levamos para onde formos. O trabalho que deveria ser feito pela reforma seria investir em estratégias para a mudança de mentalidade das pessoas (Marcolan, 2014). Ao primar pela reabilitação psicossocial e pela reinserção social dos excluídos, a reforma psiquiátrica torna-se limitada ao ser realizada sem crítica ou com ruptura radical aos fundamentos sociais, ancorados na rejeição e na exclusão social do indivíduo em sofrimento psíquico,e por serem desrespeitados esses princípios por gestões municipais e por outras esferas do governo (Alverga & Dimenstein, 2006).

Outra reflexão possível sobre a ocorrência dessas práticas é a precarização das condições de trabalho, evidenciada por baixo salário a levar alguns cuidadores a terem mais de um emprego. Além disso, não concordamos com número reduzido de cuidadores por SRT, visto o grau de dependência da maioria dos moradores e nos indignamos com a falta de capacitação, de supervisão e de apoio tanto dos RTs como dos profissionais do CAPS, estes responsáveis pelo suporte técnico necessário aos SRTs, segundo a portaria 3.090/2011 (Portaria n. 3.090, 2011).

Verificamos a falta de capacitação e de educação permanente dos cuidadores pelos discursos: “...quando admite um cuidador novo, tinha que ter e não tem...Uma instrução...” (C1); “...quando a gente entra... fica com outro cuidador.”(C10); “...nenhum curso....há 3 anos teve um curso, faz muito tempo, mas depois, ...não teve mais”(C11).

A falta de capacitação tem sido apontada por vários estudos (Sprioli & Costa, 2011; Mângia & Ricci, 2011; Furtado et al., 2013) como um dos pontos centrais de fragilidade dos SRTs, assim como o fato de as ações dos cuidadores serem decorrentes do saber da experiência de cada um, baseadas em suas próprias vivências e valores morais, muitas vezes antagônicas, sendo comum que cada cuidador adote parâmetros e rotinas próprias durante o seu plantão (Sprioli & Costa, 2011; Mângia & Ricci, 2011; Furtado et al., 2013; Bressan, 2014), como ocorria nos SRTs pesquisados.

Verificamos, como em outros estudos sobre SRTs (Mângia & Ricci, 2011; Furtado et al., 2013), a atuação solitária do cuidador, carente de equipe multidisciplinar e de projetos singulares de reabilitação para pautarem suas práticas. Por isso a assistência oferecida nos SRTs tem se mostrado tutelar, baseada na oferta de cuidados básicos, com rotinas empobrecidas e ritualizadas.

Além disso, não podemos deixar de mencionar falhas na legislação dos SRTs. Nas portarias 106/2000 e 3.090/2011, que dizem respeito aos SRTs, não há menção quanto à formação exigida para a profissão de cuidador. Segundo a portaria 106/2000 (Ministério da Saúde, 2004), a equipe técnica - os profissionais que atuarão na assistência e na supervisão das atividades do SRT - deve ser constituída por um profissional médico e por dois profissionais de nível médio, com experiência e/ou com capacitação em reabilitação psicossocial, que entendemos ser os cuidadores, pois têm sido os profissionais encarregados de prestar assistência direta aos moradores dos SRTs.

A portaria 3.090/2011 menciona o cuidador como profissional de assistência direta, porém não faz menção à formação exigida para a profissão. O cuidador, então, é um trabalhador pouco conhecido e mencionado na literatura da área da saúde mental e pouco reconhecido pela regulamentação legal dos SRTs. Encontramos um artigo (Vidal, Bandeira & Gontijo, 2008) que descreve que os profissionais de nível médio, especificados na portaria 106/2000, atuam como cuidadores e auxiliares diretos na reinserção social dos moradores (trabalho, lazer, educação, entre outros), proposta pela portaria 3.090/2011, como foco do trabalho da equipe dos SRTs. Outros autores (Sprioli & Costa, 2011; Furtado et al., 2013) descrevem que a formação exigida para o cuidador é o ensino fundamental completo, mas que, ao iniciarem o trabalho nos SRTs, devem receber capacitação para o cuidado dos moradores. Faz-se necessário rever a lotação de profissionais nos SRTs, pensar na qualidade e na especificidade da assistência, inclusive nas ações que necessitam de profissional legalmente capacitado para ministrar medicação, realizar reabilitação física, entre outras.

Verificamos neste estudo que a formação dos cuidadores era, na sua maioria, o ensino médio completo, mas a capacitação não ocorreu para todos ao ingressarem nos SRTs. Somente os cuidadores com mais tempo de atuação foram os que receberam capacitação.

Usuários relatam a violência dos cuidadores

Os dados a seguir nos mostram que os próprios moradores denunciavam práticas de violência contra eles para outros cuidadores e para os RTs: “não adianta querer fazer as coisas, eles contam tudo...a tia [cuidadora] deu um tapa na minha cara, ...”(C3); “...funcionário já chegou a agredir, bater, o responsável chegou..., eles falaram, é aquele negócio, palavra de louco e drogado não tem valor, ..., por isso que fica do jeito que está. Mas eles falam, a maioria...”(C14).

Concordamos com Mateus e Mari (2013) sobre a falta de fiscalização para verificar se o respeito aos direitos humanos está sendo acatado pela equipe profissional dos serviços extra-hospitalares, como os CAPS e SRTs. Quando o morador contava ao RT que tinha sido agredido, o profissional não dava atenção, pois, na concepção social, incorporada pelo próprio RT, "palavra de louco e drogado não tem valor", como relatado. Essa reação mostra mais uma vez que as concepções historicamente enraizadas sobre a loucura se mantêm no nosso meio social e entre os profissionais da saúde mental, independentemente de sua formação profissional.

A III Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM) já recomendava que houvesse a garantia, por meio de órgãos de fiscalização (municipais, estaduais e federal), de que os serviços substitutivos não reproduzissem a lógica manicomial (Ministério da Saúde, 2002). De acordo com a lei 8.142/1990, o controle social é possível de ser realizado, entre outros meios, por representantes de usuários e de familiares, por profissionais de saúde e por prestadores de serviço por meio da participação nos Conselhos Municipal, Estadual e Federal de Saúde, e em alguns municípios no Conselho Gestor da unidade. A associação tinha representante no Conselho Municipal de Saúde, mas as denúncias que lhes eram endereçadas, principalmente por vizinhos dos SRTs, não chegavam até o Conselho. Isso mostra que o controle social nos locais estudados não se cumpria. Concordamos com Oliveira e Conciani (2009) que há representantes no conselho que visam a interesses próprios e não dão prioridade e providências às denúncias.

Além disso, associações de usuários e familiares de indivíduos em sofrimento psíquico e a organização de outras diversificadas entidades também têm papel de suma relevância na salvaguarda dos direitos humanos e de cidadania das pessoas em sofrimento mental (Drew et al., 2011). Como já exposto, a associação do município em questão foi criada com membros que representavam usuários e familiares de indivíduos em sofrimento psíquico, mas não atuava em benefício destes; seu papel era apenas a gerência dos recursos financeiros aos SRTs.

A Secretaria Municipal de Saúde, ao optar por terceirizar a gestão dos recursos financeiros aos SRTs, eximiu-se da responsabilidade de gestão, de fiscalização e de contratação de cuidadores e de serviços gerais e contrariou os ideais preconizados pelas Conferências Nacionais de Saúde e Saúde Mental que defendiam a gestão pública dos serviços ligados ao SUS e de concursos públicos para a seleção dos funcionários. Desse modo, a gestão dos SRTs, responsabilidade da associação, considerada Organização Social em Saúde (OSS), não garantiu a melhora da qualidade na assistência prestada aos moradores. Ao contrário, pelos relatos, verificamos que a associação não respeitou os princípios básicos da denominada reforma psiquiátrica, a prezar pela dignidade humana, pela autonomia, pela reabilitação e pela reinserção social dos moradores, entre outros, nem sequer garantiu os direitos básicos do ser humano.

A crítica às OSS se faz ao se preocuparem em atender à demanda dos usuários como forma de justificar sua contratação, ficando em segundo plano a qualidade da assistência (Mazzaia, 2014). A nosso ver, essa associação deveria ser desligada da gerência dos recursos financeiros aos SRTs, ser extinta, reformulada ou criada outra que assumisse seu real papel de apoio, de fiscalização, de orientação e de garantia de direitos e reivindicações dos familiares e usuários dos serviços de saúde mental.

Ainda temos que considerar que o processo de implantação dos SRTs pesquisados se deu de forma rápida, com deficiências e com interesses políticos, a fim de resolver o problema de falta de moradia aos egressos do hospital psiquiátrico fechado na cidade. O planejamento das ações, o processo de transição aos egressos do hospital ao SRT que envolveria a preparação destes e da comunidade em recebê-los e os critérios de seleção dos funcionários, como perfil e atributos necessários ao cuidado, não foram levados em conta e não foi priorizado processo de capacitação permanente aos funcionários a fim de contribuir para a melhor qualidade da assistência aos moradores do SRT.

Negligência de cuidadores e de responsáveis técnicos

Segue-se a sequência de relatos sobre negligência de cuidadores e responsáveis técnicos em relação à omissão de cuidados aos moradores: “...Só se a gente chamar [o RT]. Muitas vezes resolve até por telefone...não dá muita atenção”.(C2); “...faz um ano que eu não tenho reunião...”(C8).

...faleceu engasgado com pão. ... é negligência,... eles [RT] põem panos quentes [quanto às agressões de cuidadores]... ele estava desde de manhã, era umas 2 horas da tarde,... a referência deveria mandar alguém um pouco qualificado... Seu fulano todo sujo, todo defecado, urinado,... aquela escara aberta,... levei pra frente, mas ninguém tomou providência... a Associação que administra, eu acho que... agressão, a providência tinha que ser imediata ... [cuidador] dorme que chega a roncar e pode tocar telefone,... a maioria dos serviços gerais é conivente com a situação...(C7).

... hoje tá pegando qualquer um... gente até que usa droga. ... na outra casa, os moradores estavam com piolho... se eles [RT] fossem mais presentes e lessem o relatório, ... ele magro, não comia direito e queixando de dor nas costas e no peito... de tanto ele reclamar e nós falarmos, RT levou pra consultar... fez o exame de escarro, deu tuberculose. ...RT não levou remédio pra mim, naquela noite,... esquece... (C13).

...não fizeram nada e a pessoa que fez isso foi atrás do cuidador que falou e já ameaçou, espera na porta do serviço pra bater,... Não tem como fazer nada porque a maioria dos cuidadores, eu mesmo tenho medo.... principalmente nos plantões à noite. Tem gente [cuidador] que usa droga,... bebe,... faz festa nas residências... dá remédio a mais pra dormir, ... tem relação nas casas durante a noite, leva o namorado ou namorada pra dormir... estava de plantão de noite... deixou os meninos [moradores] dormindo, passou a madrugada inteira na farra, abandonou a casa,... chegando o final do dia voltou.(C14).

A violência institucional, produzida por profissionais da área da saúde, inclui discriminações, maustratos, violências, negligências, recusa ao cuidado, indução de pioras e mortes evitáveis, falta de fiscalização ou fiscalização deficiente acerca das péssimas condições de cuidado por órgãos competentes ou até acobertamento de ações negligentes (Nunes & Torrenté, 2009). Todos esses fatos foram encontrados em nosso estudo.

As atitudes negligentes dos cuidadores são condutas ilícitas, utilizadas pelos funcionários para escapar daquilo que a organização supõe que eles devam fazer, consideradas ajustamento secundário nas instituições totais. Geralmente, para que sejam cometidas por um funcionário, precisam estar longe dos olhos e dos ouvidos dos chefes e dos próprios pacientes (Goffman, 2013). Por isso que possivelmente os moradores eram medicados em excesso para que dormissem e não vissem as festas que os cuidadores realizavam dentro das casas ou não vissem sua saída para frequentarem festas; os moradores eram trancados nos quartos ou no quintal para que o cuidador pudesse dormir no plantão.

É inadmissível o fato de os RTs acobertarem ações negligentes, maus-tratos e violência de cuidadores, assim como a ausência de demissões decorrentes desses fatos. Condutas da chefia deveriam zelar com o compromisso ético do cuidar. Além disso, a falta de supervisão in loco e de reuniões de equipe contribuíam para que práticas de violação de direitos humanos se perpetuassem.

As reuniões de equipe, ausentes ou infrequentes nos SRTs pesquisados, são de extrema importância para que a equipe discuta os projetos terapêuticos singulares, as estratégias para colocá- los em prática e para que possibilitem a construção de novas práticas em relação à organização dos serviços, orientadas pelo princípio da integralidade (Bonfada, Cavalcante, Araujo, & Guimarães, 2012). Essa estratégia poderia ser inserida nos SRTs pesquisados, com o intuito de melhorar a qualidade da assistência oferecida aos moradores e de evitar que práticas de violência e de negligência ocorressem.

Outro aspecto importante a ser integrado aos SRTs pesquisados é a supervisão. Esta é capaz de promover a diretriz do trabalho e a continuidade das ações propostas (Sprioli & Costa, 2011). A supervisão clínico-institucional para profissionais de serviços de saúde mental foi proposta na I CNSM (Ministério da Saúde, 1988) e referendada na III CNSM (Ministério da Saúde, 2002), ao se afirmar que os serviços substitutivos de saúde mental tivessem supervisão clínica e institucional regularmente, com discussões permanentes dos projetos terapêuticos dos usuários.

A III Conferência de Saúde Mental de 2001 propôs que, para a efetivação da reorientação do modelo assistencial, era fundamental a criação de indicadores e de sistema de avaliação da política e dos serviços de saúde mental. Dessa forma, poderiam ser realizados o acompanhamento, a intervenção e o redirecionamento das práticas de saúde, com vistas à consolidação dos princípios do SUS e da reforma psiquiátrica, o que não foi verificado em nosso estudo.

Todas as medidas citadas, como reuniões de equipe, supervisão in loco, supervisão clínicoinstitucional, indicadores para sistema de avaliação, não foram cumpridas pelos diversos agentes responsáveis e envolvidos na assistência aos moradores dos SRTs, a começar pelos RTs, profissionais do CAPS que deveriam oferecer suporte técnico, associação, prefeitura e comissões de fiscalização municipal e estadual. Isso mostra o descompromisso de profissionais, de serviços e de esferas governamentais com os princípios da denominada reforma psiquiátrica.

Mortes: sofrimento para alguns, desconfiança para outros

Diante dos 18 óbitos ocorridos em cinco anos nos SRTs - de outubro de 2008 a agosto de 2013 -, quase quatro óbitos por ano, alguns cuidadores manifestaram tristeza e sofrimento, outros tinham suspeitas de que essas mortes, por terem ocorrido no período noturno, aconteceram por negligência: “...Quando perco um paciente me abala muito... tenho eles como um filho... o motivo da morte súbita... é como eles vêm vivendo há muito tempo, isolado da família, muita medicação, ... a tristeza...”(C1); “...Parecia que tinha perdido um filho... Sofri demais... me deu até ansiedade, tive que tomar calmante!...”(C2); “...Chegou no hospital, uma hora e pouquinho depois ele teve um infarto, ...”(C5); “...acho que deveria falar, o fulano morreu por causa disso... pode ser um diagnóstico que pode ser evitado...”(C7); “...nós estamos tendo esse surto de tuberculose,... fulano que faleceu e tem outro fazendo tratamento”(C1).

Possíveis causas das mortes relatadas pelos próprios cuidadores foram uso contínuo de medicação psiquiátrica, tristeza por sentirem falta da família, infarto e tuberculose. Essas duas últimas também foram apontadas em estudo de Garcia (2012) como causas de mortes frequentes nos manicômios da região de Sorocaba-SP. Assim como nesse estudo, no nosso, não havia investigação adequada dos óbitos. A reclamação dos cuidadores é que havia falta de acesso ao diagnóstico da causa da morte, destacando o relato em subcategoria anterior sobre a morte por engasgo de um paciente.

Os dados mostram que não estavam sendo respeitados os princípios da política de saúde mental, baseada na Declaração de Caracas no que diz respeito aos recursos, à assistência e à legislação que devem preservar a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis dos indivíduos em sofrimento psíquico e promover a organização de serviços comunitários de saúde mental que garantam seu cumprimento (Ministério da Saúde, 2004).

A violação dos direitos humanos nas instituições extra-hospitalares passa despercebida e, para o movimento que se convencionou denominar de reforma psiquiátrica, o que mais importa parecem ser leitos fechados em hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros dispositivos de atenção à saúde mental, como SRTs, entre outros. Esquece-se de que a criação de serviços substitutivos ao manicômio não garante por si só que o modelo manicomial seja superado.

Além da fiscalização e da avaliação dos serviços de saúde mental e de controle social como medidas para diminuir a violação dos direitos humanos dos indivíduos em sofrimento psíquico, devemos levar em conta que a ignorância e a falsa crença sobre essas pessoas são consideradas razões para a ocorrência de violação de direitos humanos. Geralmente, esses indivíduos são percebidos como violentos, perigosos ou imprevisíveis, por isso são vítimas de violação de direitos humanos. Tais atitudes negativas são realizadas não só pela população em geral, mas também por profissionais de saúde e por políticos responsáveis pela legislação vigente (Drew et al., 2011).

Entre as estratégias mais efetivas em longo prazo, para desconstrução da cultura manicomial na comunidade, está favorecer o aumento do conhecimento da população em relação aos sofrimentos mentais e aos tratamentos possíveis, considerando o novo enfoque em saúde mental, por meio de campanhas educativas nas quais a população tenha contato com o próprio indivíduo em sofrimento psíquico e com seu testemunho. Esse contato possibilita a percepção da dimensão humana do outro e tem sido identificado como significante fator na redução de atitudes estigmatizantes, permitindo a desmistificação da periculosidade ou imprevisibilidade associadas ao indivíduo em sofrimento psíquico. Ações em parceria com outros setores como esporte, cultura e lazer, entre os quais se inclui a participação de pessoas em sofrimento psíquico em atividades com a comunidade, também são estratégias para facilitar o contato e reduzir estigma e discriminação (Pimentel, Villares, & Mateus, 2013)

Outras sugestões para diminuir as violações de direitos humanos contam com a participação dos próprios indivíduos em sofrimento psíquico, de seus familiares e de profissionais de saúde mental para identificar áreas prioritárias para serem realizadas essas campanhas de entendimento sobre saúde mental, redução de estigma, discriminação e promoção de direitos humanos. Essas campanhas devem ser contínuas e devem se iniciar nas escolas (Drew et al., 2011).

Aos profissionais de saúde, são necessários treinamentos específicos e educação oferecidos por autoridades sociais e do Estado. Aos próprios indivíduos em sofrimento psíquico, deveriam ter apoio de defensores, de serviços comunitários, de assistentes sociais, de demais profissionais da saúde e entre os pares para encorajar o estabelecimento ou o fortalecimento de organizações que lutem pelos seus direitos de cidadania. Essas organizações de usuários devem participar da avaliação e da fiscalização dos serviços de saúde mental, especificamente em relação às práticas de violação de direitos humanos, por meio de visitas regulares nesses serviços. Queixas de usuários dos serviços, assim como de seus familiares e amigos, também devem ser ouvidas, permitindo e encorajando-os a relatarem as violações dos direitos humanos, de forma livre e segura (Drew et al., 2011).

Conforme verificamos pelos dados apresentados neste estudo, nenhuma ação foi realizada para que práticas manicomiais violadoras dos direitos humanos dos indivíduos em sofrimento psíquico fossem erradicadas nos serviços de saúde mental estudados.

Considerações finais

Este estudo revelou práticas manicomiais como violência e negligência de cuidados aos moradores dos SRTs pesquisados. Essas práticas, que violam os direitos humanos, foram relacionadas à influência da concepção social e dos cuidadores sobre loucura, associada à falta de compreensão e inteligência, de autonomia, à ausência de razão, à exclusão, à discriminação e ao isolamento. Essa é questão séria e preocupante a ser retomada pelo movimento da denominada reforma psiquiátrica brasileira, como investir em estratégias para mudança da concepção social sobre a loucura.

Contribuiu ainda para a ocorrência dessas práticas a falta de fiscalização das esferas municipal, estadual e federal. A Secretaria Municipal de Saúde eximiu-se da responsabilidade em gerir e de fiscalizar os SRTs e a confiou a uma associação de familiares e usuários de serviços de saúde mental, que por sua vez contratou cuidadores e RTs sem perfil para o cargo. Não se preocupou com a educação permanente dos profissionais e com o acompanhamento das práticas ocorridas nos SRTs. Os RTs não cumpriram seu papel e os profissionais do CAPS não ofereceram suporte técnico, desrespeitando a legislação vigente sobre os SRTs. Além disso, há lacunas nas leis da reforma relacionadas aos SRTs que precisam ser revistas, como mencionar claramente a formação exigida aos cuidadores. Por essas razões, os cuidadores, solitários em sua atuação, com concepções sociais herdadas sobre a loucura, pautavam suas práticas nos seus próprios valores morais.

Diante do exposto, concluímos que os SRTs pesquisados, que deveriam substituir os hospitais psiquiátricos e suas práticas asilares, eram serviços novos, com estrutura física de casa, mas que mantinham práticas manicomiais e características de instituição total, ou seja, o manicômio se encontrava travestido de SRT. A questão da violação dos direitos humanos, à época da coleta dos dados, preocupou-nos profundamente. Os resultados da pesquisa foram apresentados em reunião no início de 2013 à nova Coordenação de Saúde Mental do Município, pela mudança de gestão municipal. A coordenadora apurou os dados, houve reestruturação dos SRTs, foi promovida capacitação aos cuidadores e a violência passou a ser fiscalizada pelos novos RTs contratados. Não temos dados após essas mudanças.

Há limitações do estudo em relação à generalização dos resultados. Sugerimos estudos futuros para trazerem outras reflexões e propostas, com vistas à construção da assistência mais humana e comprometida com os princípios da reforma psiquiátrica: reabilitação e reinserção social, autonomia, direitos humanos e cidadania. Este estudo aponta para fatos que indicam que a reforma precisa ser efetivamente implantada em todas as regiões do Brasil, sair do papel e mudar de verdade a realidade dura e cruel do modelo manicomial ainda hegemônico em muitos equipamentos, inclusive nos substitutivos ao manicômio.

Material suplementar
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