Resumo: Considerando pesquisas recentes na área da maternidade que salientam as transformações psicológicas que acompanham o processo de transição para a maternidade e o aumento do número de famílias brasileiras em situação de precariedade social, de acordo com o Mapa de Vulnerabilidade de São Paulo, do Centro de Estudos da Metrópole, buscamos investigar os sentidos afetivo-emocionais atribuídos à experiência da maternidade em situação de vulnerabilidade social. Adotando a narrativa interativa como recurso metodológico, solicitamos a 17 mulheres, entre gestantes e puérperas, moradoras de um alojamento social na cidade de São Paulo, que completassem uma história fictícia, previamente elaborada pelas pesquisadoras, sobre as angústias de uma gestante. As produções narrativas foram psicanaliticamente consideradas e organizadas em campos de sentido afetivo-emocional que comunicam a experiência materna das participantes. Neste trabalho, focalizamos o campo da mãe de primeira viagem, que organiza as produções narrativas das participantes em torno da experiência de ser mãe pela primeira vez. A mãe de primeira viagem é vista por esse grupo de mulheres como insegura, ansiosa e medrosa, mas capaz de construir o seu próprio estilo de ser mãe à medida que cuida do filho, ganhando maturidade e autoconfiança. Os depoimentos das participantes nos convidam a desconstruir concepções sociais preconceituosas acerca das possibilidades de uma maternagem adequada em situação de vulnerabilidade social, e a compreender que o cuidado infantil pode ser viabilizado, também nessa condição, pelo suporte familiar, social e, quando necessário, psicológico, o que sugere a potencialidade de medidas preventivas e interventivas.
Palavras-chave:MaternidadeMaternidade, vulnerabilidade vulnerabilidade, narrativas narrativas.
Abstract: Consistent with motherhood researches that emphasize the psychological transformations involved in the process of becoming a mother and the increase of Brazilian families living a precarious existence, according to the Sao Paulo Vulnerability Map, Metropolitan Research Center, we proposed to investigate psychoanalytically the affective-emotional meanings attributed to the experience of becoming a mother under social vulnerability conditions. Adopting the Interactive Narrative as a methodological procedure, we asked 17 women, among them, pregnant women and post -partum ones, who were living in a social shelter in Sao Paulo, to complete a fictional story that had been previously created by the researchers. The story concerned the distress of pregnant women. The narrative productions were considered psychoanalytically and interpretatively organized as fields of emotional -affective meanings that convey the participant’s experience of motherhood. In this paper, we focus on the field “First -Time Mothers”, regarding those participants’ narratives that were produced around the experience of becoming a mother for the first time. The first-time mother is seen by this group as an insecure, anxious and scared mother at the beginning, but also as someone who is able of developing her own way of taking care of the baby as it grows, becoming more confident and mature. The participant’s testimonies lead us to deconstruct prejudiced social conceptions about the adequate motherhood under social vulnerability conditions and to understand that child care can be provided, also in this situation, by means of family and social support, as well as when it is necessary psychological care, indicating the potentiality of preventive and therapeutic interventions.
Keywords: Motherhood, vulnerability, narratives.
Resumen: En consideración a las investigaciones en el área de la maternidad que apuntan para las transformaciones psicológicas que participan en el proceso de convertirse en madre y el aumento del número de familias brasileñas en situación de precariedad social, según el Mapa de Vulnerabilidad de São Paulo, Centro de Estudios Metropolitanos, hemos investigado psicoanalíticamente los sentidos afectivo-emocionales atribuidos a la experiencia de ser madre en la situación de vulnerabilidad social. Adoptando la Narrativa Interactiva como recurso metodológico, solicitamos a 17 mujeres, embarazadas y madres, que viven en un abrigo social en la ciudad de São Paulo, que completan una historia de ficción previamente preparada por las investigadoras. Las producciones narrativas fueron consideradas psicoanalíticamente y organizadas en campos de sentido afectivo-emocional que comunican la experiencia de maternidad de las participantes. En ese estudio se nuestra el foco es el campo “Madre primeriza”, que organiza la experiencia de ser madre por la primera vez. Para el grupo de participantes la nueva madre es insegura y llena de temores y preocupaciones, pero también ponen de relieve la posibilidad de cada mujer construir su propio estilo de ser madre a medida que cuida del hijo, ganando confianza y madurez. Los testimonios de las participantes nos invitan a deshacer concepciones sociales prejuiciosas sobre las posibilidades de una maternidad adecuada en situación de vulnerabilidad social y nos llevan a comprender que el cuidado infantil puede ser ofrecido en esa condición con el apoyo familiar y social, y cuando sea necesario, psicológico, lo que indica el potencial de las medidas preventivas y de intervención.
Palabras clave: Maternidad, vulnerabilidad, narrativas.
MÃE DE PRIMEIRA VIAGEM: NARRATIVAS DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL1
FIRST-TIME MOTHERS: NARRATIVES OF WOMEN UNDER SOCIAL VULNERABILITY CONDITIONS
MADRE DEL PRIMER VIAJE: NARRATIVAS DE MUJERES EN SITUACIÓN SOCIAL DE VULNERABILIDAD
Recepção: 13 Maio 2015
Aprovação: 04 Abril 2016
Quando buscamos compreender o processo de transição para a maternidade, verificamos que esta se constitui de forma singular para cada mulher, extrapolando as questões biológicas para abarcar as subjetividades e o contexto social em que elas se produzem (Aguiar, Silveira, & Dourado, 2011). Destacamos, entretanto, que, ainda que reconheçamos a maternidade como construção, resguardandonos da naturalização que nos conduziria à ideia de instinto materno, expectativas sociais sobre o amor devotado e incondicional de uma mãe que se sacrifica pelos filhos parecem obstaculizar a possibilidade de reflexão e aceitação da ambivalência que caracteriza o processo de transição para a maternidade, negando, por exemplo, sentimentos de frustração e hostilidade maternas (Travassos-Rodriguez & Féres- Carneiro, 2013).
Partindo dessa evidência, observamos o reconhecimento científico da área da maternidade como campo de pesquisa, o que é atestado pelo aumento na produção científica recente que aborda a experiência materna desse novo ângulo. Há estudos que visam investigar a necessidade de recursos emocionais e sociais para o enfrentamento desse período de transição (Stellin, Monteiro, Albuquerque, & Marques, 2011) ou a importância do suporte social para a regulação de estresse que acompanha o período da gestação (Rapoport & Piccinini, 2006), ou, ainda, as imagens construídas em relação à gravidez (Martins, 2010). Outros pesquisadores exploram o modo como a experiência materna se articula com a construção ideológica desse papel (Choi, Henshaw, Baker, & Tree, 2004), ou o processo de constituição da maternidade (Marin, Gomes, Lopes & Piccinini, 2011), ou, ainda, como tem sido para a mulher viver essa experiência pela primeira vez nas últimas décadas (Brunton, Wiggins, & Oakley, 2011; Camacho, Vargens, Progianti, & Spíndola, 2011).
Embora seus objetivos divirjam, os estudos acima citados compartilham a ideia de que gestação, parto e puerpério compõem um período de transição, caracterizado por mudanças físicas, psicológicas e sociais que usualmente se fazem acompanhar por intensa experiência afetiva (Marin, Gomes, Lopes, & Piccinini, 2011) constituindo-se, para cada mulher, de acordo com seu processo de identificação e articulação dos papéis sociais de mulher, esposa e mãe (Badinter, 2011). Embora a transição para a maternidade seja marcada por sentimentos ambivalentes, as participantes do estudo de Strapasson e Nedel (2010) salientam que, frequentemente, não encontram espaço para compartilhá-los, o que as leva a vivê-los em sigilo.
Temos nos dedicado a estudos compreensivos sobre a experiência da maternidade que investigam o imaginário compartilhado por diferentes grupos, como mulheres em situação de vulnerabilidade social (Aching & Granato, 2016), enfermeiras obstétricas (Granato, Tachibana, & Aiello-Vaisberg, 2011), estudantes universitários (Granato & Aiello-Vaisberg, 2013) a respeito do papel materno. Embora os conflitos maternos investigados nestes estudos tenham evocado nos participantes sentidos afetivoemocionais plurais, suas produções imaginativas, reunidas, permitiram aos autores concluir que a figura materna é frequentemente associada à dedicação e ao amor incondicional, cabendo a ela, quase exclusivamente, a responsabilidade sobre o bem-estar físico e mental dos filhos. Tais evidências abrem espaço para uma reflexão sobre a dissonância que se estabelece entre o discurso social idealizado e a experiência vivida.
Nesse panorama de produção científica crescente sobre a experiência de transição para a maternidade, as diferentes configurações familiares que emergem na atualidade assim como o contexto social que alimenta as práticas de cuidado infantil têm sido cada vez mais considerados para uma compreensão crítica dos fenômenos. Nesse sentido, não podemos ignorar que o cenário brasileiro é marcado por múltiplas determinações que forjam as expectativas sociais e, consequentemente, as condutas parentais, as quais se particularizam conforme a região geográfica e o nível socioeconômico, dentre outras variáveis, como é o caso das famílias que vivem em condições de vulnerabilidade social.
Embora a vulnerabilidade social não se restrinja ao fator econômico, conforme sublinham Prati, Couto e Koller (2009), uma vez que se estabelece como “conceito multidimensional que se refere à condição de indivíduos ou grupos em situação de fragilidade, que os tornam expostos a riscos e a níveis significativos de desagregação social” (Ximenes, 2010, p.1). Segundo o Centro de Estudos da Metrópole (2004), há um aumento no número de famílias em situação de vulnerabilidade social a precariedade econômica é o que mais tem contribuído para a desestruturação familiar no Brasil (Gomes & Pereira, 2005). Nossa prática clínica informa, bem como estudos sobre a maternidade em nosso país (Ferrari & Kaloustian, 1998; Fonseca, 2012; Freire, 2009), que a mulher que se torna mãe em situação de vulnerabilidade social provém de uma família monoparental que, apenas em sua origem, organizou-se como família nuclear. Todavia, como essa família, que passa a ser sustentada pela mãe, continua a nutrir um ideal de família nuclear e patriarcal (Ferrari & Kaloustian, 1998), a ausência paterna precipita a saída dos filhos para o mundo e o abandono escolar, na medida em que estes precisam contribuir com o orçamento familiar.
Diante da dupla tarefa de prover os recursos materiais e o cuidado aos filhos, a mãe desempenha suas funções em um contexto de fragilidade (Martin & Angelo, 1999). Essa configuração caracteriza tanto o contexto familiar de origem das participantes deste estudo quanto a nova família que estão prestes a constituir. Elas são mulheres que, na ausência de suporte familiar, precisaram recorrer a uma instituição que lhes oferecesse alojamento social durante o período de gestação, parto e puerpério. Muitas são abandonadas pelo companheiro assim que a gestação é anunciada, perpetuando-se o ciclo do desamparo, violência e precariedade.
Adotamos como referencial teórico a elaboração winnicottiana sobre o processo de constituição da maternidade em virtude do potencial heurístico de conceitos como o de ‘preocupação materna primária’ (Winnicott, 1956/2000) e o de ‘mãe suficientemente boa’ (Winnicott, 1956/2000). O conceito de preocupação materna primária se refere a uma condição psicológica da mãe que a predispõe a satisfazer as necessidades básicas do filho, uma vez que dirige seus investimentos afetivos quase exclusivamente ao bebê, sobretudo nas etapas iniciais de seu desenvolvimento. Já a mãe suficientemente boa é aquela que oferece o ambiente emocional necessário para o desenvolvimento infantil, pautando-se pela sua sensibilidade, habilidade esta que independe de suas capacidades intelectuais ou do aprendizado de técnicas de cuidado. Esses dois conceitos permitem a proposição de uma maternagem que depende mais de dedicação que de conhecimento intelectual, além de aludir a uma vinculação materna que, por ser apenas suficiente, e não perfeita, permite tanto a satisfação quanto a frustração do bebê. Se a mãe é capaz de dosar adequadamente as experiências de satisfação e frustração, de acordo com as crescentes capacidades psíquicas do bebê, pavimentará o caminho do filho rumo ao desenvolvimento emocional saudável.
Nesse sentido, evitando uma naturalização do cuidado materno, tendência que se deixa entrever ao longo da obra winnicottiana, passamos a nos interrogar sobre os limites e possibilidades de mulheres que vivem em condições precárias de vida exercerem uma maternagem suficientemente adequada. Partindo do pressuposto de que condições precárias de vida podem constituir-se como obstáculo para o estabelecimento de uma maternagem suficientemente adequada (Aching & Granato, 2016), definimos como objetivo deste trabalho investigar psicanaliticamente os sentidos afetivo-emocionais atribuídos à experiência de se tornar mãe por um grupo de gestantes e puérperas que vivem em situação de vulnerabilidade social.
Situamos este estudo no âmbito da pesquisa qualitativa de inspiração psicanalítica por se ocupar da experiência singular de mulheres que são mães no contexto particular da vulnerabilidade social. Esta pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (parecer nº 213.776) e dela participaram 17 mulheres abrigadas em uma instituição do município de São Paulo, a qual oferece alojamento social para gestantes e puérperas que carecem de condições financeiras e suporte familiar para cuidar de si mesmas.
Como recurso metodológico, apresentamos às participantes uma Narrativa Interativa (Granato, Corbett, & Aiello-Vaisberg, 2011), a qual consiste em uma breve história fictícia que propõe uma situação, um fenômeno ou conflito que se quer investigar, para que seja completada imaginativamente pelas participantes em direção a um desfecho. Para elaborar tal história, levamos em conta tanto nossa experiência clínica nas áreas da maternidade e da vulnerabilidade social quanto às discussões realizadas com os demais membros de nosso grupo de pesquisa, buscando a adequação da história enquanto proposta que visa investigar a experiência das participantes no âmbito da maternidade.
Como procedimento expressivo, a Narrativa Interativa (NI) visa a uma aproximação dialógica e lúdica do fenômeno investigado, permitindo que o participante se apresente de modo livre e espontâneo, como propõem Granato e Aiello-Vaisberg (2013), ao narrar uma solução para o conflito ao redor do qual a história se organiza. Assim, optamos por focalizar um conflito materno não delimitado por um contexto social específico, a fim de liberar a produção associativa das participantes, bem como evitar a sobrecarga emocional ao reapresentar os dramas já vividos cotidianamente, o que resultou na narração de um sonho:
Cida já havia deitado há uma meia hora, mas as preocupações eram tantas que ficava difícil pegar no sono. Imaginava como seria o bebê, com quem ele seria parecido, e como faria para cuidar dele, agora que estava só. Como seria o parto? E quem avisar quando as dores começassem? Lembrou do pai da criança, da paixão que viveram juntos... Será que ele vai voltar pra conhecer o filho? Foi em meio a tantas dúvidas que Cida adormeceu, para acordar de madrugada depois de mais um pesadelo! No sonho, não conseguia cuidar do filho, ouvia-o chorando do berço, mas não conseguia levantar da cama, fazia força, mas seu corpo pesado não obedecia. Com muito esforço, se arrastou até o berço e, quando foi pegar o bebê, o berço virou! Cida acordou apavorada, mas ficou aliviada ao ver que não passava de um sonho. Porém, uma dúvida ficou no ar: que tipo de mãe eu vou ser?
Uma cópia da Narrativa Interativa foi entregue a cada uma das participantes para que acompanhassem a leitura feita em voz alta por uma de nós. Em seguida, as participantes foram convidadas a elaborar uma continuação para a história, individualmente e por escrito, em uma folha de papel sulfite, disponibilizada pela pesquisadora. Como segunda etapa do procedimento, um grupo de discussão foi constituído pelas participantes e por uma das autoras deste estudo, que agora tem a oportunidade de refletir sobre o tema da maternidade no contexto específico da vulnerabilidade social.
Cabe ressaltar que, visando mitigar um possível incremento da angústia advinda da própria condição de vulnerabilidade, optamos por dividir as participantes em três pequenos grupos, o que nos permitiria aprofundar a escuta psicanalítica e oferecer o acolhimento emocional necessário às participantes. Entretanto não houve qualquer desconforto durante a realização do procedimento, que se deu em três encontros distintos com duração de cerca de 90 min. cada. Os três encontros foram registrados sob a forma de relatos pessoais e associativos que comunicam as repercussões do encontro sobre a pessoa da pesquisadora, aqui considerado coprodutor dos dados de sua pesquisa.
Com as Narrativas Interativas finalizadas e os relatos do encontro reunidos como corpus do estudo, dedicamo-nos à interpretação desse material, adotando a teoria psicanalítica winnicottiana como referencial teórico de base, além da triangulação entre o material narrativo colhido, a literatura científica consultada e a discussão das interpretações propostas com nosso grupo de pesquisa. Conforme Stake (2011), a triangulação não só permite a confirmação e validação de interpretações, mas também propicia que diferentes pontos de vista surjam do próprio movimento interpretativo, o qual visa investigar o fenômeno em profundidade.
Os sentidos afetivo-emocionais que emergiram a partir da análise do material narrativo foram organizados interpretativamente em campos de sentido. Compreendemos com Herrmann (2011) que os campos se configuram como um conjunto de regras lógico-emocionais que sustentam a conduta humana enquanto manifestação individual, social e cultural. À semelhança de categorias temáticas, cada campo recebe um título emblemático que comunica determinada experiência vivida, em nosso caso, no âmbito da maternidade.
Dado a riqueza do material narrativo quanto à pluralidade de sentidos atribuídos à experiência da maternidade, focalizaremos, neste trabalho, o campo da “Mãe de primeira viagem”, em virtude de seu caráter surpreendente, na medida em que desafia a intenção inicial de investigar a experiência de maternidade no contexto específico da vulnerabilidade social. Vale ressaltar que os campos que melhor atendem a este último objetivo serão tratados em outro trabalho, respeitando o recorte metodológico aqui proposto.
A despeito de nosso objetivo inicial, conforme relatamos acima, a condição de ser mãe pela primeira vez emerge tanto das narrativas completadas pelas participantes como dos grupos de discussão. Esse fato chamou a nossa atenção para o campo que assim se anunciava, uma vez que a Narrativa Interativa não fazia qualquer alusão à condição de primiparidade da personagem Cida, embora tenha sido identificada pelas participantes como uma “mãe de primeira viagem” (sic). Tal constatação nos levou a identificar o campo da mãe de primeira viagem como um dos organizadores dos sentidos afetivoemocionais, atribuídos pelas participantes à experiência materna ali narrada. A título de ilustração desse campo, apresentamos o modo como Vanda completou a história de Cida:
Uma mãe imatura? Ou irresponsável? Ou, com o passar do tempo, vou aprender a cuidar do meu primeiro filho? Mas aí voltei a dormir. Sonhei com um anjo chamado Gabriel e nisso ele me disse: Mãe, não temas, acima de tua família, acima de você, tem um grande pai que vai te dar forças para sobreviver. Ela perguntou: Quem? O anjo respondeu: Jesus, o Nazareno.
Embora nem todas as produções escritas apontem para a experiência de ser mãe pela primeira vez, este tema foi recorrente durante os grupos de discussão que se seguiram à finalização da Narrativa Interativa. As participantes identificaram os questionamentos e incertezas comunicados pela protagonista da história como característicos de quem vive a experiência de se tornar mãe pela primeira vez.
quando se tem outros filhos, se há preocupações você procura soluções, por exemplo, sobre o pai da criança, Cida está preocupada se o pai volta ou não, e é isso, ela terá que ser pai e mãe, mas tem que trabalhar, cuidar da criança, da casa (Zilda).
que essas preocupações são de quem tem um filho pela primeira vez, na hora que você descobre que está grávida você pensa ferrou, onde vou dormir, comer, morar, e minha mãe o que vai pensar? (Maria).
A identificação do campo da Mãe de Primeira Viagem levou-nos a refletir acerca da implicação do pesquisador na pesquisa qualitativa psicanalítica. Consideramos que este participa ativamente do processo de construção de sua pesquisa, na medida em que “elabora a narrativa que serve como ponto de partida para a instauração de um campo investigativo dialógico” (Granato et al., 2011, p. 83). Um posicionamento que o distancia definitivamente dos ideais positivistas de neutralidade supõe que o pesquisador faça uso de suas próprias experiências, sejam elas pessoais ou profissionais, na construção de uma história que veicula um drama compartilhado, o que amplia sua repercussão pessoal e coletiva:
a narrativa interativa veicula, já de saída, um campo de sentidos afetivo-emocionais que interroga o participante sobre sua própria experiência emocional a respeito da maternidade. Convidado a completar aquela história, cada participante é instado a elaborar a trama enunciada em direção a um desfecho, segundo sua interpretação pessoal do drama materno (Granato et al., 2011, p. 83).
A emergência do campo da Mãe de Primeira Viagem teve o surpreendente efeito de denunciar os sentidos inconscientes que agregamos à Narrativa Interativa, abrindo um campo de experiência emocional que sequer supúnhamos estar presente. Neste retorno ao procedimento, buscamos identificar os elementos vivenciais que participaram desse movimento associativo inconsciente, concluindo que as autoras fizeram uso de sua prática clínica com gestantes e mães, de seus estudos nas áreas da maternidade e da vulnerabilidade social, além do fato de que algumas de nós nunca tinham sido mães à época do estudo. A eventual crítica sobre a limitação que esse procedimento poderia significar, dirigindo a atenção das participantes para a experiência da “mãe de primeira viagem”, não se sustenta pelo fato de que apenas uma parte das produções narrativas do grupo de participantes caminhou nessa direção, além de concordarmos com Devereux (1967) sobre a objetividade da pesquisa em ciências humanas ser garantida pelo reconhecimento da participação da subjetividade do pesquisador.
Após esta breve reflexão sobre o pesquisador qualitativo, retornamos ao tema deste estudo. Pesquisas recentes na área da transição para a maternidade (Alves, Ferreira, Martins, Silva, Auwerter, & Zagonel, 2007; Cáceres-Manrique, Molina-Marín, & Ruiz-Rodríguez, 2014; Choi et al., 2004) indicam que esse processo é acompanhado por sentimentos de insegurança, ansiedade e dúvidas. Entretanto nossa experiência clínica com gestantes e mães em situação de vulnerabilidade social sugere que, antes que conflitos em relação à gestação ou à maternidade possam emergir, angústias e inseguranças próprias à condição de desemprego, falta de moradia, carência de suporte familiar e social, além do uso de drogas, precisam ser acolhidos e cuidados no âmbito do atendimento psicológico e social. Tal acolhimento inaugura, portanto, a possibilidade de vivenciar a gestação e a maternidade a partir de um lugar que é compartilhado por diferentes mulheres em diferentes contextos, não mais se restringindo às demandas da precariedade em que vivem.
Como exemplo das questões que começam, então, a emergir da maternidade como experiência compartilhada, temos a conclusão de Bruna quando afirma que “está claro para mim que Cida é mãe de primeira viagem” (sic), sustentando tal ideia pelo teor do questionamento que a personagem levanta. Do ponto de vista de Bruna, a mãe recente é “uma mãe medrosa” (sic) ou, conforme Marcela, “superprotetora, com tanto medo do que o mundo pode fazer com seu filho” (sic), apontando a insegurança como o sentimento básico dessa etapa, sentimento este que pode ser potencializado pela condição de vulnerabilidade social (Aching & Granato, 2016).
Os sentimentos apontados pelas participantes convergem para o que autores como Brunton et al. (2011) afirmam sobre a insegurança inicialmente vivida em relação ao parto, pelo medo de sentir dor e, depois, no pós-parto, pela expectativa de que sejam as maiores responsáveis pelo bebê. Marin et al. (2011) corroboram esses resultados ao constatarem que, no caso de gestantes primíparas solteiras, a insegurança no que se refere aos futuros cuidados do bebê parece se agravar pela ausência paterna que as recoloca como únicas responsáveis, o que vai ao encontro da recomendação de Alves et al. (2007) sobre a necessidade de apoio familiar e social no processo de transição para a maternidade. Duas narrativas ilustram como é reunir os recursos pessoais e ambientais disponíveis a fim de se reposicionar, ocupando o lugar de provedora das necessidades do filho:
Vou ser uma mãe que, ao invés de pensar no pai da criança, vou pensar no bebê e lembrar que quem precisa de mim é a criança, afinal de contas ele me abandonou e eu, então, nesse momento, decidi que a segurança da criança é o que importa e as dúvidas, com o tempo, esquecerei delas (Lara).
Ela se encontrou em desespero, mas foi um sonho ruim, quando acordou sentiu alivio dentro do peito e agradeceu a Deus, ela vai ser uma boa mãe, e a família da mãe pode ajudar a cuidar da criança, e ela vê que não deve perder a esperança. (Júlia).
Enquanto Brunton et al. (2011) apontam para a decepção de mulheres primigestas, quando a maternidade não acontece de forma instintiva, sendo levadas a buscar informações a fim de conter a ansiedade que acompanha a relação mãe-bebê em termos de seu potencial de imprevisibilidade, nossas participantes relatam que preferem recorrer a outras mães em busca de conselho. Durante um dos grupos de discussão, imaginamos que a presença de Luisa, que havia recentemente dado à luz, poderia mobilizar o tema da primeira maternidade, quando a própria participante confessa ter se sentido muito insegura nos primeiros 15 dias após o nascimento da filha, sentindo vontade de chorar cada vez que a filha chorava por algo que a mãe ainda não era capaz de reconhecer. Sua forma de lidar com a ansiedade foi pedir ajuda a outras mães, sobretudo diante de cuidados que a deixavam particularmente insegura, como limpar a orelha de sua filha ou dar-lhe os primeiros banhos. Cáceres-Manrique et al. (2014) confirmam que uma as maiores ansiedades da primigesta é ter um bebê sob sua responsabilidade, alegando que a maternidade se afigura como a maior transformação já vivida por ela.
A incapacidade de interpretar as necessidades do bebê é outro fator que desencadeia ansiedades e sentimentos de culpa nas mães de primeira viagem, conforme Brunton et al. (2011) apontam, o que foi interpretado como resultado de expectativas de que a maternidade seja instintiva. Ana compartilha sua experiência contando que, em sua primeira gestação, ela se sentia “muito perdida” (sic) nos cuidados com o bebê e que, por essa razão, seguiu à risca todas as recomendações médicas, embora não concordasse totalmente com elas. Como foi orientada a amamentar o bebê de 3 em 3 h, ela o fazia independentemente da demanda do bebê ou de seu próprio cansaço durante a madrugada. Já com o segundo filho, Ana se sentiu suficientemente confiante para amamentar conforme a necessidade do bebê e as suas próprias possibilidades.
Os estudos reunidos por Brunton et al. (2011) confirmam a experiência vivida por Ana, argumentando que, à medida que a mãe cuida de seu bebê, passa a se sentir suficientemente segura para questionar os saberes técnicos e oferecer a maternagem de um modo mais autêntico, encontrando seu estilo pessoal de ser mãe (Granato & Aiello-Vaisberg, 2013), no sentido da maternagem que é possível, isto é, não idealizada. Uma postura que reposiciona a mãe em termos de expectativas mais realistas promove o alívio da frustração diante de modelos sociais inatingíveis. Além disso, compartilhamos a ideia de que o exercício da maternidade está subordinado ao amparo que a mãe recebe da família ou de sua comunidade, mas também da rede de assistência social, fato que é observado no dia a dia da clínica da maternidade e que se dá no contexto de precariedade social.
Outro aspecto a ressaltar no relato das participantes se refere ao fato de que, diante da insegurança, a “mãe de primeira viagem” não pode se apoiar na equipe médica para aliviar suas ansiedades, uma vez que é julgada incapaz de compreender uma explicação ou recomendação médica. Talita explica que o fato de não seguirem uma recomendação como, por exemplo, oferecer leite em pó adequado às necessidades do bebê após o desmame, e não o leite de vaca industrializado, relaciona-se mais com suas limitações financeiras do que cognitivas. O argumento de Talita vem reverberar a noção winnicottiana de mãe suficientemente boa que se apoia sobre o solo da dedicação amorosa, distanciando-se do saber técnico impessoal e dogmático.
Em contrapartida, Rose conta para o grupo que só foi possível ter acesso a um programa social que lhe garantia o leite necessário para os dois primeiros anos de seu filho quando revelou ao médico sua impossibilidade financeira de prover o leite recomendado para o desenvolvimento saudável do filho. Porém reconhece que precisou transpor o medo de ser julgada pelo profissional como mãe negligente. Rose parece tocar na delicada questão do duplo preconceito que pode se instaurar entre médicos e pacientes, sobretudo quando a condição socioeconômica de uns e de outros é tão distinta, impossibilitando o cuidado atento ao contexto de que parte o pedido de ajuda. Alves et al. (2007) recomendam, em seu estudo, que uma mudança na postura de cuidado da equipe pode favorecer a transição para a maternidade, uma vez que o processo é emocional e não cronológico.
Nossa experiência clínica corrobora tanto o transbordamento da ansiedade na primigesta e, consequentemente, na mãe de primeira viagem quanto ao fato de mães, tanto as que já tiveram filhos como as mães de primeira viagem, poderem recorrer a uma referência interna desenvolvida a partir de uma experiência concreta anterior. Curiosamente, Ana identifica a própria ansiedade como o motor da busca pela afinação de sua sensibilidade às demandas do bebê, provavelmente retornando sob a forma de segurança. Winnicott (1949/2002) alude à sobrevivência da função materna quando afirma que a mãe
comumente entra numa fase da qual se recupera nas semanas e meses que se seguem ao nascimento, e na qual ela é o bebê, e o bebê é ela... afinal ela já foi um bebê, e traz com ela as lembranças de tê-lo sido... tem recordações de que alguém cuidou dela, e estas lembranças tanto podem ajudá-la quanto atrapalhá-la em sua própria experiência como mãe (p. 4).
Tendo a mãe recebido ou não o cuidado adequado, quando ela mesma era um bebê, podemos supor que a situação de precariedade social venha a agravar esse quadro de vulnerabilidade emocional da mãe de primeira viagem. Marin et al. (2011) e Cáceres-Manrique et al. (2014) sugerem que o modo de lidar com os intensos sentimentos que acompanham a gestação, parto e puerpério tem relação com a rede de apoio e os recursos maternos pessoais, o que torna fundamental um trabalho de escuta e sustentação da função materna.
Em suas histórias, as participantes testemunham sobre o sofrimento que advém dessa sobreposição de vulnerabilidades, a emocional e a social: “sozinha e abandonada pelo pai eu não saberia cuidar desta criança sozinha” (sic). E, nas palavras de Alice: “Insegura demais... organizar todas essas perguntas e obter respostas para elas, será uma mãe vitoriosa, mas tem que ter muita disposição e força de vontade” (sic). Ou ainda, segundo Rita, no caso de uma mãe mais afortunada, do ponto de vista da maturidade emocional e do apoio familiar: “Cida, em desespero pôde se acalmar e concluir que poderia ser uma boa mãe; afinal já estava preocupada com seu bebê, poderia contar com a família da mãe e não perderia a esperança” (sic).
Maria traz outra perspectiva quando explica que a insegurança materna pode se renovar a cada gestação, independentemente de esta ser a primeira, segunda ou terceira, quando uma nova relação mãe-bebê se desenvolve em direção à sintonia da dupla. A título de confirmação, Sueli, que estava grávida de seu quarto filho, relata a própria história ao grupo, dizendo que estava “cheia de dúvidas e insegura” (sic) em relação ao futuro bebê, como se ainda fosse “uma mãe de primeira viagem” (sic).Entretanto, no caso de Sueli, esta nova gestação parecia ter a função de restaurar sua capacidade materna, uma vez que ela havia perdido a guarda dos três filhos por estar envolvida com o mundo das drogas. No entanto supomos que o fato de essas mulheres estarem vulneráveis, dado a precariedade de sua condição, potencialize ansiedades e, consequentemente, a experiência de sentir-se como mães de primeira viagem, tal é o desamparo que experimentam.
Brunton et al. (2011) reconhecem que, embora a mulher naturalmente se isole pela demanda de cuidar de um bebê, como estado psicológico preparatório para a maternidade, já apontado por Winnicott (1956/2000) como a preocupação materna primária, o apoio recebido de mulheres que já são mães tem servido de orientação e conforto para as primigestas. Portanto, somos levadas a concluir que a situação de vulnerabilidade social demanda uma clínica ampliada, alinhando-nos às ideias de Granato e Aiello- Vaisberg (2011) e de Rapoport e Piccinini (2006) sobre a necessidade de acolhimento da gestante e da mãe pelas redes de apoio social, na medida em que suas famílias são igualmente vulneráveis e carentes de cuidados, motivo pelo qual frequentemente se ausentam enquanto suporte à gestante.
Considerando a realidade da precariedade social das mulheres abrigadas na instituição em que desenvolvemos este estudo, imaginávamos que as ansiedades que são usualmente relatadas pela primigesta não teriam lugar diante de preocupações com a falta de dinheiro e moradia, o desemprego, o abandono da família e/ou do parceiro, o abuso de álcool e de outras substâncias, ou mesmo a prostituição. Entretanto podemos supor que num período de cuidados recebidos na instituição de abrigo os sentidos afetivo-emocionais que remetem ao processo de transição para a maternidade puderam emergir na narrativa das participantes como expressão de uma experiência que é compartilhada na cultura, e não apenas no contexto da vulnerabilidade social, experiência que nos remete às dificuldades de uma primeira gestação e aos primeiros cuidados dispensados a um bebê, bem como à necessidade de assistência psicológica e social como suporte para o desenvolvimento da maternagem saudável.
Além disso, podemos supor que na experiência dessas participantes a oferta de um espaço de escuta e acolhimento favoreceu o encontro com o seu mundo emocional. Aching & Granato (2016) observaram como mulheres em situação de vulnerabilidade social priorizam as necessidades de seus filhos, desconsiderando e afastando-se dos seus próprios sentimentos. Dessa forma, o campo Mãe de Primeira Viagem nos fez refletir se muitas não se encontraram com as demandas emocionais da maternidade pela primeira vez, mesmo que não fossem primíparas, ao vivenciar o processo de transição para a maternidade em um contexto que ofereceu sustentação emocional.
O campo de sentidos afetivo-emocionais da mãe de primeira viagem sugere o compartilhamento de ansiedades que, de certa forma, parece independer do contexto socioeconômico em que a maternidade tem lugar. O desejo de ser uma boa mãe, a preocupação de atender às necessidades do filho, o receio de não ser capaz de interpretar essas necessidades, a luta pelo direito de desempenhar a função materna de modo autônomo e autêntico foram também observados em nossas participantes, a despeito de suas condições precárias de vida. Essa constatação poderia nos levar a concluir que mães que vivem uma situação vulnerável têm todas as condições para exercer uma maternagem suficientemente boa, como qualquer outra mulher.
No entanto, quando consideramos o contexto da vulnerabilidade social, deparamo-nos com toda uma gama de dificuldades que as mulheres enfrentam no exercício da maternidade, comprometido que está pelas condições precárias de vida. A provisão ambiental destaca-se como fator fundamental que viabiliza a emergência da mãe suficientemente boa, parafraseando Winnicott, além da possibilidade de transformação de um cotidiano marcado pelo empobrecimento e desamparo progressivos. Observamos, também, a necessidade de um acolhimento especial às gestantes em função da sobreposição de vulnerabilidades, uma que remete à esfera afetivo-emocional, enquanto a outra que expõe as condições sociais precárias que ameaçam sua condição humana.
Cumpre salientar que, pela prevalência dos saberes técnicos na contemporaneidade, há sempre o risco de que o cuidado materno-infantil se converta em fonte de angústia e frustração para a mãe (Vilhena et al., 2013) sempre que o profissional de saúde deixe de incluir a condição social e cultural de sua paciente nas recomendações que lhe propõe. Todavia, se as narrativas das participantes sobre a mãe de primeira viagem sugerem potencialidade para construir um estilo próprio de ser mãe (Granato & Aiello-Vaisberg, 2011), desafiando, inclusive, os ideais de nossa cultura, é também verdade que esse potencial criativo necessita de um ambiente suficientemente bom, que acolha as necessidades maternas, para que possa florescer.